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Processo nº 535/2011 Data: 27.10.2011
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “ofensa grave à integridade física”.
Insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.
Contradição insanável da fundamentação.
Erro notório na apreciação da prova.
Medida da pena.
Suspensão da execução.



SUMÁRIO

1. O vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão apenas existe quando o Tribunal omite pronúncia sobre matéria objecto do processo.

2. Ocorre contradição insanável da fundamentação quando se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre este e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.

3. O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.

É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.

4. O artigo 48º do Código Penal de Macau faculta ao juiz julgador a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido quando:
– a pena de prisão aplicada o tenha sido em medida não superior a três (3) anos; e,
– conclua que a simples censura do facto e ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (cfr. Art.º 40.º), isto, tendo em conta a personalidade do agente, as condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste.
E, mesmo sendo favorável o prognóstico relativamente ao delinquente, apreciado à luz de considerações exclusivas da execução da prisão não deverá ser decretada a suspensão se a ela se opuseram as necessidades de prevenção do crime.

O relator,

______________________
José Maria Dias Azedo


Processo nº 535/2011
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por Acórdão do T.J.B. decidiu-se condenar os (1° e 2°) arguidos A e B, como co-autores da prática de 1 crime de “ofensa grave à integridade física” p. e p. pelo art. 138°,al. d) do C.P.M. na pena individual de 2 anos e 9 meses de prisão; (cfr., fls. 359 a 360 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Inconformados, os arguidos recorreram.
Motivaram para concluir nos termos seguintes:

O (1°) arguido A:
“1. O Tribunal a quo nunca procedeu à apreciação integral do objecto do processo.
2. O acórdão referiu que o ofendido foi ferido por um arguido com uma arma branca.
3. As lesões registadas e averiguadas pelo parecer do clínico de medicina: a pontoada no toráx e a laceração no fígado provocaram ao ofendido o perigo para a vida e a ofensa grave à integridade física.
4. Porém, o Tribunal a quo não provou qual dos arguidos tinha causado lesões ao ofendido com a arma branca.
5. Por sua vez, só provou que o ofendido foi ferido por um dos arguidos com uma arma branca.
6. Todavia, no requisito objectivo, é necessário apurar qual dos dois arguidos feriu o ofendido com a arma branca e lhe causou ferimentos e perigo para a vida.
7. No entanto, o Tribunal a quo não averiguou a aludida matéria de facto, pelo que o recorrente considerou que aquele tribunal não tinha apreciado as matérias de facto que são indispensáveis para a decisão jurídica.
8. Padecendo do vício previsto no art.º 400º, n.º 2, al. a) do Código de Processo Penal.
9. A par disso, indicou-se no teor do acórdão que foi provado que o ofendido foi ferido por um dos arguidos com uma arma branca.
10. Mas não se provou que o 2º arguido B pegasse numa arma branca e espetasse-a no peito do ofendido.
11. Não foi o 2º arguido que feriu o ofendido com uma arma branca nem se provou que o recorrente trouxesse a arma branca e ferisse o ofendido.
12. In casu, só o recorrente e o 2º arguido praticaram, em co-autoria material e na forma consumada, o crime de ofensa grave à integridade física.
13. Não se provou que o 2º arguido ferisse o peito do ofendido com uma arma branca, contudo, os factos provados não apuraram que o recorrente ferisse o peito do ofendido com uma arma branca.
14. Não se provou que o 2º arguido ferisse o ofendido com uma arma branca nem se averiguou que o recorrente trouxesse a arma branca e ferisse o ofendido, entretanto, provou-se que a agressão praticada pelos dois arguidos causou directa e necessariamente as lesões registadas e averiguadas pelo parecer do clínico de medicina legal de fls. 105 dos autos: a pontoada no toráx e a laceração no fígado provocaram ao ofendido o perigo para a vida e a ofensa grave à integridade física.
15. O Tribunal a quo, por um lado, não provou que o recorrente e o 2º arguido ferissem o ofendido com uma arma branca, mas os factos provados indicaram que o ofendido foi ferido por um daqueles arguidos com uma arma branca e que os dois arguidos causaram necessariamente ao ofendido os ferimentos e o perigo para a vida, sendo factos praticamente incompatíveis e contraditórios.
16. Assim, o acórdão também padece do vício previsto no art.º 400º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Penal.
17. Além disso, do teor do acórdão, o Tribunal reconheceu que, na dada altura, o recorrente agrediu o ofendido na cabeça e no peito; o ofendido reagiu logo e, naquele momento, o 2º arguido também o atacou, em seguida, o ofendido e o recorrente agrediram-se entre si e acabaram por cair no chão, e, posteriormente, o 2º arguido abandonou o local da ocorrência dos factos. Por sua vez, o 2º arguido não pegou na arma branca para ferir o peito do ofendido.
18. O recorrente não tinha praticamente tempo nenhum para atacar o peito do ofendido com a arma branca.
19. O ofendido nunca referiu que o recorrente tivesse pegado na arma branca e atacado o mesmo com aquela arma. Mais, o ofendido só reparou que o seu peito estava a sair grande quantidade de sangue, quando este pretendia levantar-se e fugir do local em causa, ou seja, o momento em que terminou a agressão.
20. O recorrente nunca abandonou o local da ocorrência dos factos nem se detectou nenhuma arma branca naquele local.
21. Não se encontrava nenhuma arma branca nem se provou que o recorrente atacasse o ofendido com uma arma branca, e, segundo a situação da ocorrência dos factos.
22. Analisadas as provas supracitadas, é inaceitável a conclusão retirada pelo Tribunal a quo de que os ferimentos do ofendido foram causados pelos dois arguidos, sendo um erro ostensivo, e a questão supramencionada não passa despercebida ao comum dos observadores.
23. Assim, o acórdão também padece do vício previsto no art.º 400º, n.º 2, al. c) do Código de Processo Penal.
24. Mais, no acórdão, o Tribunal a quo nunca atendeu à suspensão da execução da pena de prisão prevista no art.º 48º do Código Penal, e, na fundamentação, não se referiu a causa de não conceder a suspensão da execução da pena de prisão nem qualquer fundamentação de não conceder a suspensão da execução da pena de prisão por necessitar de concretizar o direito penal.
25. Contudo, o recorrente reúne completamente os requisitos subjectivo e objectivo da suspensão da execução da pena de prisão.
26. A pena de prisão aplicada ao recorrente é 2 anos e 9 meses, conformando com o requisito objectivo da suspensão da execução da pena de prisão, previsto no art.º 48º, n.º 1 do Código Penal, ou seja, a pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos.
27. Quanto ao requisito subjectivo, só se provou que o recorrente agrediu o ofendido na cabeça e no peito, mas não se provou que o mesmo usasse deliberadamente arma branca para atacar o ofendido.
28. Porém, é inadequada a aplicação da pena de prisão efectiva ao recorrente sem ter em consideração que o recorrente foi perdoado pelo ofendido e que não se provou que o mesmo usasse deliberadamente arma branca para atacar o ofendido nem ter atendido à personalidade do recorrente no cometimento do crime e posterior a este.
29. Pelo exposto, o acórdão violou o disposto no art.º 48º do Código Penal, e, em consequência, o recorrente merece ter uma oportunidade de suspensão da execução da pena de prisão.
30. O recorrente considerou que era notoriamente excessiva a pena de prisão de 2 anos e 9 meses que lhe foi aplicada.
31. O Tribunal a quo não atendeu completamente às circunstâncias que se mostram favoráveis ao recorrente.
32. O recorrente é delinquente primário e, posteriormente ao facto, foi perdoado pelo ofendido.
33. O recorrente cometeu o crime por ter recebido as indicações doutrem.
34. Não se provou que o recorrente usasse deliberadamente arma branca para atacar o ofendido.
35. O recorrente atacou o ofendido apenas com o seu corpo, cujo motivo é seguir as indicações doutrem. Ele tem emprego e vencimento fixos.
36. Contudo, o Tribunal a quo condenou o recorrente na pena de prisão de 2 anos e 9 meses sem ter atendido às situações supramencionadas que se mostram favoráveis ao mesmo, sendo esta uma pena notoriamente excessiva.
37. O acórdão violou os dispostos nos artigos 40º, 64º e 65º do Código Penal.
38. Deve condenar-se o recorrente numa pena de prisão de 2 anos e 3 meses, concedendo-lhe a suspensão da execução da pena”; (cfr., fls. 475 a 503).

O (2°) arguido B:
“1.O Tribunal a quo nunca procedeu à apreciação integral do objecto do processo.
2. O acórdão referiu que o ofendido foi ferido por um arguido com uma arma branca.
3. As lesões registadas e averiguadas pelo parecer do clínico de medicina: a pontoada no toráx e a laceração no fígado provocaram ao ofendido o perigo para a vida e a ofensa grave à integridade física.
4. Porém, o Tribunal a quo não provou qual dos arguidos tinha causado lesões ao ofendido com a arma branca.
5. Por sua vez, só provou que o ofendido foi ferido por um dos arguidos com uma arma branca.
6. Todavia, no requisito objectivo, é necessário apurar qual dos dois arguidos feriu o ofendido com a arma branca e lhe causou ferimentos e perigo para a vida.
7. No entanto, o Tribunal a quo não averiguou a aludida matéria de facto necessária, pelo que o recorrente considerou que aquele tribunal não tinha apreciado as matérias de facto que são indispensáveis para a decisão jurídica.
8. Padecendo do vício previsto no art.º 400º, n.º 2, al. a) do Código de Processo Penal.
9. A par disso, indicou-se no teor do acórdão que foi provado que o ofendido foi ferido por um dos arguidos com uma arma branca.
10. Mas não se provou que o recorrente pegasse numa arma branca e espetasse-a no peito do ofendido.
11. Não foi o recorrente que feriu o ofendido com uma arma branca nem se provou que o 1º arguido trouxesse a arma branca e ferisse o ofendido.
12. In casu, só o recorrente e o 1º arguido praticaram, em co-autoria material e na forma consumada, o crime de ofensa grave à integridade física.
13. Não se provou que o recorrente ferisse o peito do ofendido com uma arma branca, contudo, também não se provou que o 1º arguido ferisse o peito do ofendido com uma arma branca.
14. Não se provou que o recorrente ferisse o ofendido com uma arma branca nem se averiguou que o 1º arguido trouxesse a arma branca e ferisse o ofendido, entretanto, provou-se que a agressão praticada pelos dois arguidos causou directa e necessariamente as lesões registadas e averiguadas pelo parecer do clínico de medicina legal de fls. 105 dos autos: a pontoada no toráx e a laceração no fígado provocaram ao ofendido o perigo para a vida e a ofensa grave à integridade física.
15. O Tribunal a quo, por um lado, não provou que o recorrente e o 1º arguido ferissem o ofendido com uma arma branca, mas os factos provados indicaram que o ofendido foi ferido por um daqueles arguidos com uma arma branca e que os dois arguidos causaram necessariamente ao ofendido os ferimentos e o perigo para a vida, sendo factos praticamente incompatíveis e contraditórios.
16. Assim, o acórdão também padece do vício previsto no art.º 400º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Penal.
17. Além disso, do teor do acórdão, o Tribunal reconheceu que, na dada altura, o 1º arguido agrediu o ofendido na cabeça e no peito; o ofendido reagiu logo e, naquele momento, o recorrente também o atacou, em seguida, o ofendido e o 1º arguido agrediram-se entre si e acabaram por cair no chão, e, posteriormente, o recorrente abandonou o local da ocorrência dos factos. Por sua vez, o recorrente não pegou na arma branca para ferir o peito do ofendido.
18. O 1º arguido e o recorrente não tinham praticamente tempo nenhum para atacarem o peito do ofendido com a arma branca.
19. O ofendido nunca referiu que o 1º arguido tivesse pegado na arma branca e atacado o mesmo com aquela arma. Mais, o ofendido só reparou que o seu peito estava a sair grande quantidade de sangue, quando este pretendia levantar-se e fugir do local em causa, ou seja, o momento em que terminou a agressão; e, não se encontrava nenhuma arma branca no local da ocorrência dos factos.
20. Não se encontrava nenhuma arma branca nem se provou que o recorrente e o 1º arguido atacassem o ofendido com a arma branca, e, segundo a situação da ocorrência dos factos, o Tribunal a quo não sabia quem atacou o ofendido com a arma branca.
21. Analisadas as provas supracitadas, é inaceitável a conclusão retirada pelo Tribunal a quo de que os ferimentos do ofendido foram causados pelos dois arguidos, sendo um erro ostensivo, e a questão supramencionada não passa despercebida ao comum dos observadores.
22. Assim, o acórdão também padece do vício previsto no art.º 400º, n.º 2, al. c) do Código de Processo Penal.
23. Mais, no acórdão, o Tribunal a quo nunca atendeu à suspensão da execução da pena de prisão prevista no art.º 48º do Código Penal, e, na fundamentação, não se referiu a causa de não conceder a suspensão da execução da pena de prisão nem qualquer fundamentação de não conceder a suspensão da execução da pena de prisão por necessitar de concretizar o direito penal.
24. A pena de prisão aplicada ao recorrente é 2 anos e 9 meses, conformando com o requisito objectivo da suspensão da execução da pena de prisão, previsto no art.º 48º, n.º 1 do Código Penal, ou seja, a pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos.
25. Quanto ao requisito subjectivo, provou-se que o recorrente agrediu o ofendido na cabeça e no peito, mas não se provou que o mesmo usasse deliberadamente arma branca para atacar o ofendido.
26. Porém, é inadequada a aplicação da pena de prisão efectiva ao recorrente sem ter em consideração que o recorrente foi perdoado pelo ofendido e que não se provou que o mesmo usasse deliberadamente arma branca para atacar o ofendido nem ter atendido à personalidade do recorrente no cometimento do crime e posterior a este.
27. Pelo exposto, o acórdão violou o disposto no art.º 48º do Código Penal, e, em consequência, o recorrente merece ter uma oportunidade de suspensão da execução da pena de prisão.
28. Mais, o recorrente considerou que era notoriamente excessiva a pena de prisão de 2 anos e 9 meses que lhe foi aplicada.
29. O Tribunal a quo não atendeu completamente às circunstâncias que se mostram favoráveis ao recorrente.
30. Não se provou que o recorrente usasse deliberadamente arma branca para atacar o ofendido.
31. O recorrente atacou o ofendido apenas com o seu corpo, pois, o simples ataque feito com corpo humano não casaria necessariamente risco à vida do ofendido. Não se provou em qual parte do corpo do ofendido fosse ferido pelo recorrente. O recorrente tem emprego e vencimento fixos.
32. Contudo, o Tribunal a quo condenou o recorrente na pena de prisão de 2 anos e 9 meses sem ter atendido às situações supramencionadas que se mostram favoráveis ao mesmo, sendo esta uma pena notoriamente excessiva.
33. O acórdão violou os dispostos nos artigos 40º, 64º e 65º do Código Penal.
34. Deve condenar-se o recorrente numa pena de prisão de 2 anos e 3 meses, concedendo-lhe a suspensão da execução da pena”; (cfr., fls. 506 a 530).

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Respondendo, afirma o Exmo. Magistrado do Ministério Público que “deve ser dado parcial provimento ao recurso dos arguidos e, em consequência, ser alterado o douto acórdão, devendo os arguidos ser condenados pela prática, em co-autoria material, de um crime de participação em rixa, ou caso assim se não entenda, deve ser anulado o julgamento, face aos apontados vícios de contradição insanável de fundamentação e insuficiência da matéria de facto provada, e reenviado o processo para novo julgamento, nos termos do art.° 418° do CPPM”; (cfr., fls. 442 a 447).

*

Neste T.S.I., juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:


“São muito similares as alegações dos 2 recorrentes, fundando-se, essencialmente, na pretensa ocorrência dos vícios contemplados nas als a), b) e c) do n° 2 do art° 400°, CPP, almejando ainda, em termos de medida concreta das penas, a suspensão de execução das mesmas, argumentando, no que reputamos de essencial, que, ao ter-se como não provado que o 2° arguido, B “tirou uma arma branca e esfaqueou o tórax do ofendido”, dando-se como provado, por outra banda, que “durante a agressão, o tórax do ofendido foi atingido por uma arma branca trazida por um dos arguidos”, existiria contradição entre as duas conclusões, para além de que se revelaria insuficiente para a condenação alcançada a matéria de facto dada como provada, esgrimindo-se, finalmente, com a ocorrência de manifesto erro na apreciação da prova.
Cremos, porém, que, sem razão.
Sendo certo que o Colectivo deu como não provado que “o 2° arguido, B tirou uma arma branca e esfaqueou o tórax do ofendido”, não é menos verdade ter-se dado corno comprovado que “Durante a agressão, o tórax do ofendido foi atingido por uma arma branca trazida por um dos arguidos”, para além de que “os arguidos, de mútuo acordo, em conjugação de esforços e distribuição de tarefas, agrediram o ofendido, voluntária, livre e conscientemente, com intenção de ofender a integridade física do mesmo e bem sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei” (sublinhado nosso), sendo que dessa agressões “resultou, directa e inevitavelmente ao ofendido lesões ...”, lesões essas que lhe causaram perigo para a vida, tratando-se de ofensa grave à integridade física do mesmo.
Serve isto para realçar que, na forma de abordagem empreendida, aquela falta de provas àcerca do esfaqueamento efectivo por parte do 2° arguido não implica, necessariamente, a existência de qualquer contradição com o facto de se ter dado como provado que, durante a agressão, o ofendido foi atingido por uma arma branca: o que se revela é que, tendo-se comprovado que durante a agressão o ofendido foi atingido por uma arma branca trazida por um dos arguidos, não se logrou estabelecer, contudo, qual deles a utilizou.
Mas, tal asserção, não só não fundamenta qualquer das contradições na fundamentação utilizada, como, bem vistas as coisas, não impede a condenação registada, nos moldes imputados.
Percebe-se a dúvida instalada, dado o facto de a “agressão principal” ter derivado do uso de uma arma branca e não se ter estabelecido o uso específico da mesma por parte de qualquer dos arguidos, ao contrário do assacado no libelo acusatório. Porém, se, porventura, se tratasse, também com nefastas consequências para a integridade física do ofendido, de agressão levada a cabo a murro e pontapés, resultando os ferimentos principais de um desses pontapés, porventura surgiria controvérsia séria quanto à imputação do crime, derivada apenas do facto de não se ter estabelecido qual dos arguidos teria, efectivamente, desfechado esse pontapé?
Tendo-se comprovado, além do mais, que os arguidos actuaram “em conjugação de esforços e distribuição de tarefas”, o que haverá que concluir é que, independentemente de quem usou a arma branca, o outro sabia, aquiesceu e ajudou no “empreendimento”.
Tanto basta, em nosso critério, para afastar a pretendida ocorrência dos vícios imputados.
Ainda a este nível, uma breve nota àcerca da eventualidade da integração dos factos no conceito e tipo de “participação em rixa”, face à impossibilidade de imputação subjectiva , a qualquer dos arguidos, da produção do esfaqueamento, matéria a que, doutamente, se reporta o Exmo Colega junto do Tribunal “a quo”: aceitando-se que o dispositivo em questão contenha disposições residuais relativamente aos crimes de ofensas corporais graves e homicídio, elas serão isso mesmo, residuais : revelando-se a existência efectiva de qualquer desses ilícitos não fará sentido falar-se na ocorrência daquele outro, sendo certo que a eventual participação em rixa pressuporia, desde logo, a falta de estabelecimento de comunhão de vontades, esforços e actuação, dado que esta entraria no domínio da comparticipação criminosa, como é o caso, relativamente ao ilícito imputado, razão por que a alteração da condenação proposta não se justificaria.
Finalmente, pese embora a condição de primário do 1° arguido, A e o perdão do ofendido, atentas as circunstâncias específicas do caso, as exigências de prevenção, o grau de ilicitude, o modo de execução e intensidade do dolo, tudo revela que, por um lado, a medida concreta das penas alcançada se mostra justa, adequada e proporcionada e, por outro, que a simples censura do facto e a ameaça de prisão não realizarão, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição, pelo que arredada se mostra, e bem, a possibilidade da almejada suspensão de execução das penas aplicadas a ambos os recorrentes.
Tudo razões por que, sem necessidade de maiores considerações ou alongamentos, somos a entender ser de manter o decidido, negando-se provimento ao presente recurso”; (cfr., fls. 532 a 535).

*

Cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados os factos seguintes:

“Por volta de 2005, o ofendido C começou a exercer actividades de angariador nos casinos de Macau, razão pela qual conheceu o 1° arguido A e o 2° arguido B.
O ofendido C, o 1° arguido A e o 2° arguido B frequentavam o “Casino Ponte 16” sito no Porto Interior.
No dia 11 de Dezembro de 2008, por volta das 19H45, o ofendido jogava numa mesa pequena de bacará no salão principal sito no rés-do-chão do “Casino Ponte 16”.
Na altura, o 2° arguido B foi sozinho à procura do ofendido e pediu-lhe que oferecesse um “café”.
O ofendido recusou o pedido do 2° arguido B.
De seguida, o ofendido e o 2° arguido B abandonaram a mesa acima referida, passando o ofendido a outra mesa para assistir às apostas dos outros jogadores.
Na mesma data (11 de Dezembro de 2008), por volta das 19H55, o 2° arguido B foi novamente à procura do ofendido, pedindo-o para ter uma conversa fora do casino, mas não especificou o tema que iam abordar.
Na altura, o ofendido não se encontrava a jogar, estando livre, pelo que, - aceitou o pedido do 2° arguido, tendo seguido este último para sair do salão e ir lá fora do "Casino Ponte 16".
Seguidamente, o 1° arguido A também seguiu o ofendido e o 2° arguido B para sair do casino.
Quando o ofendido e o 2° arguido chegaram a uma estátua de vaca no exterior do “Casino Ponte 16”, o ofendido perguntou ao 2° arguido para onde é que iam “tomar café” .
Neste preciso momento, o telemóvel do 2° arguido tocou, este atendeu a chamada e disse à outra parte que: “Espera aí! Não mexas ...” .
Pouco depois, o 1° arguido A aproximou-se para agredir a cabeça e o tórax do ofendido.
O ofendido ofereceu imediatamente resistência ao 1 ° arguido A, e, neste momento, o 2° arguido B prestou apoio ao 1° arguido, agredindo o ofendido juntamente. O ofendido e l° arguido envolveram-se e caíram ao chão.
De seguida, o ofendido presenciou que o 2° arguido B
foi-se embora em direcção ao “Restaurante XXXXX”, sito na Ponte 16 do Porto Interior.
Durante a agressão o tórax do ofendido foi atingido por uma arma branca trazida por um dos arguidos.
Quando o ofendido se levantou para abandonar o local, constatou que o seu tórax derramou repentinamente grande volume de sangue, pelo que, telefonou ao seu padrinho D, avisando que tinha sido esfaqueado com arma branca e estava a derramar sangue, pediu-lhe para vir ao local a fim de transportá-lo ao hospital.
Neste preciso momento, E, indivíduo que o ofendido tinha conhecido no casino, aproximou-se dele para o consolar.
Guarda de segurança do “Casino Ponte 16”, F, constatou que o tórax do ofendido derramou sangue ininterruptamente, pelo que, pediu reforço ao superior através da rádio, enquanto que o guarda da PSP destacado naquele casino notificou os Bombeiros para enviar uma ambulância. O ofendido foi transportado ao Hospital Kiang Wu para socorro, acompanhado pelo D.
Ao mesmo tempo, o guarda da PSP verificou que o 1° arguido A ficou ferido e sentado num local a 20 metros de distância do “Hotel Ponte 16”, pelo que, notificou a ambulância dos Bombeiros a fim de transportá-lo ao Hospital Kiang Wu para tratamento.
Da agressão dos dois arguidos resultou directa e inevitavelmente ao ofendido lesões descritas e examinadas no Perecer de Exame 'Clínico de Medicina Legal a fls. 105 dos autos. O corte no tórax e a laceração no fígado causaram perigo à vida do ofendido, tratando-se de ofensa grave à integridade física do ofendido.
Os dois arguidos, de mútuo acordo, em conjugação de esforços e distribuição de tarefas, agrediram o ofendido voluntária, livre e conscientemente, com intenção de ofender a integridade física do mesmo, e bem sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
O 1° arguido A é bate-fichas e aufere mensalmente cerca de quinze mil patacas (MOP$15,000).
Tem como habilitações académicas o ensino secundário e tem a mãe e dois filhos a seu cargo.
Conforme o CRC, o arguido é primário.
O 2° arguido B é electricista e aufere mensalmente cerca de oito mil a nove mil patacas (MOP$8,000 a MOP$9,000).
Tem como habilitações académicas a la classe primária e tem um filho a seu cargo.
Conforme o CRC, o arguido não é primário.
No âmbito dos autos n° 35/98, por acórdão de 23/06/98, o arguido foi condenado, por prática de um crime p.p. pelo art° 157° n°1 al. a) do CP, numa pena de três (3) anos e seis (6) meses de prisão. A pena foi declarada extinta em 20/10/2005.
No âmbito dos autos CR1-07-0140-PSM, por sentença de 23/07/2007, o arguido foi condenado, por prática de um crime de acolhimento p.p. pelo art° 15° n°1 da Lei n° 6/2004, numa pena de sete (7) meses de prisão, suspensa na sua execução por período de dois (2) anos.
O ofendido manifestou a vontade de perdoar os arguidos”; (cfr., fls. 356 a 358).


Do direito

3. Insurgem-se os arguidos A e B contra a decisão que os condenou como co-autores da prática de 1 crime de “ofensa grave à integridade física” p. e p. pelo art. 138°,al. d) do C.P.M., na pena individual de 2 anos e 9 meses de prisão.

Resulta das suas motivações e conclusões de recurso que imputam à decisão recorrida os vícios de “insuficiência da matéria de fato provada para a decisão”, “contradição insanável da fundamentação” e “erro notório na apreciação da prova”, afirmado também que excessiva é a pena de 2 anos e 9 meses de prisão que lhe foi aplicada, que devia ser reduzida (para 2 anos e 3 meses de prisão) e suspensa na sua execução.

Vejamos.

–– Quanto ao vício de “insuficiência...”, laboram os recorrentes em equívoco.

Com efeito, e como é sabido, o vício em questão apenas existe quando o Tribunal omite pronúncia sobre matéria objecto do processo, (cfr., v.g., o Acórdão de 09.06.2011, Proc. n.°275/2011 e de 02.06.2011, Proc. 198/2011) o que, manifestamente não aconteceu, pois que o Tribunal pronunciou-se sobre toda a dita matéria, elencando a que ficou provada e identificando a que assim não ficou; (cfr., fls. 356-v a 358-v).

Nesta conformidade, e inexistindo qualquer insuficiência, continuemos.

–– Dizem também os arguidos que o Acórdão recorrido padece de “contradição insanável”..

Ora, este vício tem sido entendido como aquele que ocorre quando “se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre este e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão”; (cfr., v.g., o Ac. deste T.S.I. de 29.09.2005, Proc. n° 108/2005 e de 27.01.2011, Proc. n° 634/2010).

E, nos autos, a questão coloca-se em relação a um facto “provado” e um outro dado como “não provado”.

De facto, deu o Colectivo a quo como “provado” que:

“Durante a agressão o tórax do ofendido foi atingido por uma arma branca trazida por um dos arguidos”.

E, depois, deu como “não provado” que:

“O 2° arguido B tirou uma arma branca e esfaqueou o tórax do ofendido”; (cfr., fls. 358-v).

Sobre a questão, e na sua Resposta, diz o Exmo. Magistrado do Ministério Público que o vício se verifica, entendendo-se, porém, no douto Parecer (que atrás se deixou transcrito), que assim não é.

Em sede de Resposta, afirma-se que “segundo o Tribunal não foi o 2° arguido quem “esfaqueou o tórax do ofendido, mas foi o ofendido atingido, no tórax, “por uma arma branca trazida por um dos arguidos”, e “se deu como não provado que o 2° arguido tenha esfaqueado o ofendido, este teria sido esfaqueado pelo 1° arguido, porém, o Tribunal também não deu como provado, que assim tenha sucedido”.

Por sua vez, no douto Parecer, considera-se que a “falta de provas àcerca do esfaqueamento efectivo por parte do 2° arguido não implica, necessariamente, a existência de qualquer contradição com o facto de se ter dado como provado que, durante a agressão, o ofendido foi atingido por uma arma branca: o que se revela é que, tendo-se comprovado que durante a agressão o ofendido foi atingido por uma arma branca trazida por um dos arguidos, não se logrou estabelecer, contudo, qual deles a utilizou”.

Como decidir?

Ressalvado o muito respeito por entendimento em sentido diverso, mostra-se-nos de acompanhar o juízo exposto no douto Parecer (atrás transcrito) e que aqui se dá como reproduzido para todos os efeitos legais.

Com efeito, a decisão em se dar como “não provado” que “o 2° arguido B tirou uma arma branca e esfaqueou o tórax do ofendido” não impossibilita a decisão de se dar como “provado” que “durante a agressão o tórax do ofendido foi atingido por uma arma branca trazida por um dos arguidos”.

É que não se pode olvidar que foram ambos os arguidos condenados por co-autoria, pois que provado ficou que:

“Da agressão dos dois arguidos resultou directa e inevitavelmente ao ofendido lesões descritas e examinadas no Perecer de Exame 'Clínico de Medicina Legal a fls. 105 dos autos (…)”, e que “os dois arguidos, de mútuo acordo, em conjugação de esforços e distribuição de tarefas, agrediram o ofendido voluntária, livre e conscientemente, com intenção de ofender a integridade física do mesmo, e bem sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei”.

Por sua vez, não se pode também olvidar que a decisão de se dar como “não provado” 1 (determinado) facto não implica a decisão de se dar como “provado” o facto contrário.

–– Vejamos agora do assacado “ero notório na apreciação da prova”.
Pois bem, sobre a questão, e pronunciando-se sobre o sentido e alcance do imputado vício, repetidamente tem este T.S.I. afirmado que:

“O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.”

De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.”; (cfr., v.g., Ac. de 12.05.2011, Proc. n° 165/2011, e mais recentemente de 26.05.2011, Proc. n.° 268/2011 do ora relator).

E como é fácil de ver, não se vislumbra onde, como ou em que termos terá o Tribunal a quo desrespeitado as regras sobre o valor das provas tarifadas, as regras de experiência e as legis artis, sendo antes de notar que a decisão em questão apresenta-se-nos perfeitamente lógica, pois que se o ofendido não apresentava lesões antes da agressão perpetuada pelos ora recorrentes, e certo sendo que foi esfaqueado nessa mesma agressão, mais não é preciso dizer.

–– Por fim, quanto à “pena”.

Fixou o Tribunal a quo a pena de 2 anos e 9 meses de prisão para cada 1 dos ora recorrentes.
E, sendo que ao crime cometido cabe a pena de 2 a 10 anos de prisão, (cfr., art. 138° do C.P.M.), de forma alguma se pode considerar tal pena excessiva, pois que se situa apenas em 9 meses acima do seu limite mínimo, mostrando-se, antes, (bastante) benevolente.

Com efeito, ponderando as circunstâncias que envolveram a prática do crime, os seus motivos, o dolo intenso e directo, as consequências e as necessidades de prevenção, patente é que inexiste qualquer margem para redução da dita pena.

Quanto à pretendida suspensão da execução da pena, idêntica é a solução.

De facto, tem este T.S.I. afirmado que:

“O artigo 48º do Código Penal de Macau faculta ao juiz julgador a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido quando:
– a pena de prisão aplicada o tenha sido em medida não superior a três (3) anos; e,
– conclua que a simples censura do facto e ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (cfr. Art.º 40.º), isto, tendo em conta a personalidade do agente, as condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste.
E, mesmo sendo favorável o prognóstico relativamente ao delinquente, apreciado à luz de considerações exclusivas da execução da prisão não deverá ser decretada a suspensão se a ela se opuseram as necessidades de prevenção do crime.”; (cfr., v.g., Ac. de 13.04.2000, Proc. n° 61/2000, e, mais recentemente o Ac. de 14.07.2011, Proc. n° 412/2011).

E, no caso, atenta a natureza e consequências do crime, evidente é que a mera censura do facto e a ameaça de prisão não realizam, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.

Tudo visto, resta decidir.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, nega-se provimento aos recursos.

Pagarão os recorrentes a taxa de justiça individual de 10 UCs.

Macau, aos 27 de Outubro de 2011

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José Maria Dias Azedo
(Relator)

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Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto)

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Tam Hio Wa
(Segundo Juiz-Adjunto)

Proc. 535/2011 Pág. 36

Proc. 535/2011 Pág. 1