打印全文
Proc. nº 740/2009
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 27 de Outubro de 2011
Descritores: Representação
Mandato sem representação
Enriquecimento sem causa

SUMÁRIO:
I- Se alguém actua por conta de outrem, mas em nome próprio, fá-lo ao abrigo de um mandato sem representação. Nesse caso, o acto produz efeitos na esfera jurídica do mandatário, por ser sujeito de direitos e obrigações promanados da actividade exercida, embora os deva depois transferir ao mandante no interesse de quem a actividade foi realizada, ao abrigo do art. 1107º do Código Civil.
II- Em face do princípio da subsidiariedade contido no art. 468º do CC, o empobrecido só pode recorrer à acção de enriquecimento quando a lei não lhe faculte outro meio de cobrir os prejuízos ou de reaver o que lhe não pertence.











Proc. nº 740/2009

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I- Relatório

“A”, sociedade comercial registada sob o nº 59008318 em Taiwan, onde tem a sua sede no nº XX, Shu-Pi, Shi-Pai Zhuang Changhua City, moveu no TJB acção contra “B” e C, com morada em Taiwan, XX, nº26, Lane 57, Linyi St, Taipei City, pedindo a condenação destas a reconhecerem ser exclusiva titular das quantias depositadas numa determinada conta à ordem que identificam e no pagamento a si da importância de USD 1.026.785,81, acrescida de juros e dos prejuízos que se vierem a liquidar em execução de sentença.
*
Seguiu a acção os seus trâmites normais até final, vindo a ser proferida sentença que julgou a acção improcedente.
*
Contra tal decisão insurgiu-se a autora, em cujas alegações de recurso apresentou as seguintes conclusões:
 “1. Pelo exposto, a recorrente entende que a análise feita pelo tribunal a quo na parte da “fundamentação” sofre dos seguintes problemas: a) a alegação da recorrente foi inobjectivamente destorcida, b) houve erro de lógica no processo de dedução, c) os pressupostos de dedução ultrapassaram ou excluíram parcialmente o âmbito dos quesitos da base instrutória já confirmados, d) os factos provados não foram apreciados de forma global e interligado, mas sim de forma separada e independente, e) houve erro na aplicação das leis ao entender que inexiste a relação de mandato, e f) fez uma errada interpretação da “causa justificativa” no conceito de enriquecimento sem causa, e por conseguinte entendeu erradamente que não se devem aplicar as respectivas disposições legais.
 2. Por este motivo, a sentença do tribunal a quo, ou seja, a sentença recorrida, deve ser anulada.
 3. Em relação aos problemas a)~ d), foi violado o disposto no artigo 562.º, n.º 2 e artigo 563.º, n.º 3 do CPC.
 4. Por outro lado, em relação aos problemas e) e f), de acordo com os factos provados na I.” instância e a análise feita pela recorrente, atendendo especialmente ao facto de ter existido entre a recorrente, “D”, a 1.a recorrida e EVG o modo de transacções já acordado, ao papel de intermediário da 1.a recorrida (no sentido de que o objectivo de estabelecimento e a função da 1.a recorrida se limitam a servir duma peça do xadrez entre a recorrente e EVG), ao facto de a 1.a recorrida não ter tido lucros segundo revelado pelas facturas de transacções, e ao facto de todos os actos jurídicos praticados em nome dela serem no interesse da recorrente, deve entender-se que existe uma relação de mandato sem representação entre a recorrente e a 1.a recorrida.
 5. O tribunal que conhece o recurso deve fazer aplicação dos artigos 1083.º, 1106.º, 1087.º - e), 1107.º - 1, 752.º e 391.º do Código Civil de Macau, entendendo que a I.” recorrida, sendo mandatário da recorrente, tem juridicamente a obrigação de restituir a respectiva verba (isto é, o valor de USD 1.026.785,81 depositado na conta bancária n.” 1001-170096-202 da filial de Macau do Banco Internacional de Taipei) a este.
 6. Se não entender assim, dever reconhecer pelo menos que a respectiva verba foi obtida pela 1.a recorrida injustificadamente, e em prejuízo da recorrente, e por conseguinte, julgar que a 1.a recorrida tem a obrigação de restituir à recorrente o valor obtido sem causa justificativa (USD 1.026.785,81), aplicando o regime de enriquecimento sem causa previsto no artigo 467.º do CCM.
 Com base nisto, solicita-se ao Dr. Juiz que julgue procedente o recurso, e que:
 a) Anule a sentença a quo;
b) Julgue que a 1.a recorrida tem que efectuar o pagamento de USD 1.026.785,81 depositado na conta bancária n.º 1001-170096-202 da filial de Macau do Banco Internacional de Taipei (sita na Avenida do Infante D. Henrique, 52-58) à recorrente; e
c) Por outro lado, calcule, de acordo com a taxa de juro legal, os juros de mora já vencidos e que vierem a vencer até ao pagamento efectivo e execução da sentença”.
*
Não houve alegações de resposta.
*
Cumpre decidir.
***
II- Os Factos
A sentença julgou provada a seguinte factualidade:
“Da Matéria de Facto Assente:
- A 2a Ré emitiu a favor de E uma procuração (alínea A) da Especificação).
- A 2a Ré revogou essa procuração numa data posterior (alínea B) da Especificação).
Da Base Instrutória
- A Autora é uma empresa que se dedica ao fabrico e subsequente comercialização de componentes para a montagem de bicicletas (resposta do quesito nº 1).
- Entre os seus clientes está uma sociedade sedia a na República Popular da China, “F.” (resposta do quesito nº 2)
- O trato comercial entre a Autora e a “F” é feito com a intermediação de duas sociedades comerciais para o efeito criadas(resposta do quesito nº 3)
- As duas sociedades comerciais são a 1 a Ré e a “D” (resposta do quesito nº 4).
- Ambas as sociedade são criadas para facilitar as transacções entre Taiwan e a China(resposta do quesito nº 5).
- A 2a Ré chegou a ser empregada da Autora (resposta do quesito nº 8).
- A Autora efectuou à “F.” Diversos fornecimentos de componentes para bicicletas (resposta do quesito nº 10).
- A mercadoria vendida transitava da Autora para a “D”; desta, por sua vez, para a 1a Ré, e; finalmente, desta última para a “F” (resposta do quesito nº 11).

- As quantias destinadas ao pagamento das aquisições feitas pela “F” transitavam desta para a 1a Ré; da 1a Ré para a “D” e; finalmente, da “D” para a Autora (resposta do quesito nº 12).
- As facturas emitidas pela Autora à “D” e pela “D” à 18 Ré tinham o mesmo valor (resposta do quesito nº 13).
- Foi aberta em nome da 1a Ré uma conta à ordem com o n? 1001-170096-202, na filial de Macau do Banco Internacional de Taipei, sita na Avenida do Infante D. Henrique, 52-58 (resposta do quesito nº 15).
- A procuração referida em A) dos factos assentes era para facilitar as operações de pagamento, movimentação e transferência de valores nessa conta (resposta do quesito nº 17).
- Essa procuração foi passada pela 28 Ré em representação da 18 Ré (fls. 65) (resposta do quesito nº 18).
- Essa procuração foi passada a favor de E, na qualidade de representante legal da Autora (fls. 65 a 66) (resposta do quesito nº 19).
- Através dessa procuração, foram conferidos poderes especiais a E para movimentar essa conta (resposta do quesito nº 20).
- Ao longo dos anos, E fez inúmeras transferências de F para a 1a Ré; desta para a “D” e; desta, com destino final, para a Autora (fls. 45 a 63) (resposta do quesito nº 21).
- A revogação referida em B) dos Factos Assentes foi feita em 26 de Outubro de 2004 (resposta do quesito nº 23).
- O que impediu que E continuasse a movimentar as quantias depositadas na conta bancária referida em 15º (resposta do quesito nº 24).
- O contrato de trabalho da 2a Ré com a Autora cessou em 9 de Dezembro de 2003 (cfr. fls. 67) (resposta do quesito nº 25).
- Os valores actualmente depositados pela “F.” nessa conta ascendem a USD$1,026,785.81 (resposta do quesito nº 27).
***
III- O Direito
Invocando uma conjuntura específica que não permitia relações comerciais directas entre a República Popular da China e Taiwan, a recorrente - autora: “A”, com sede em Taiwan - justificou a criação de duas novas sociedades com capitais seus (ambas com sede nas Ilhas Virgens Britânicas, uma “B”, ora 1ª ré e dirigida pela 2ª ré, de nome C, e outra “D” .
O trato comercial concreto, esse, estabelecer-se-ia entre a autora, em Taiwan, e uma empresa com sede na República Popular da China, “F” e tinha em vista o fornecimento a esta de componentes para bicicletas por parte da autora que, primeiramente passavam pela D, depois pela B, para finalmente chegarem à F.
O pagamento desses fornecimentos faria um percurso inverso: seria feito da sociedade chinesa para a B; desta para a D e por fim da D para a autora A. O dinheiro provindo da China era depositado numa conta à ordem na filial do Banco Internacional de Taipé, em Macau. A 2ª ré, em representação da B, e a mando de E, director e representante legal da autora, emitiu uma procuração a favor deste para a movimentação do dinheiro resultante das vendas feitas a F.
Segundo as próprias palavras da autora, portanto, estas duas novas empresas não eram senão meras “intermediárias” expressamente criadas para funcionarem no trato comercial entre si e F, como modo de contornar a alegada impossibilidade legal e actos de comércio entre Taiwan e R.P. China.
A certa altura, a 2ª ré revogou a procuração, o que impediu E de movimentar o dinheiro, afirmando que só passaria uma nova procuração a favor daquele caso lhe fosse paga uma percentagem sobre os valores monetários depositados. Caso contrário, procederia ao levantamento do dinheiro depositado, gastando-o em proveito próprio.
A tese das rés é completamente diferente! A abertura desta conta e o negócio que estava por detrás dela tinha justificação pelo facto de E, casado, ter tido uma relação extraconjugal com uma irmã da 2ª ré, de quem teve dois filhos. O negócio com a empresa chinesa e a abertura da conta visava, pois, como é tradição e prática muito vulgar em Taiwan, garantir um futuro melhor para esses dois filhos, ao passo que os negócios do mesmo E em Taiwan seriam destinados à esposa e aos filhos desta nascidos em Taiwan. A relação entre E e G, irmã da 2ª ré, começou a deteriorar-se a partir de 2003 e abandonou o “lar” sem qualquer explicação deixando de cuidar os filhos menores. A revogação da procuração foi feita no interesse dos menores.
Ambas as versões, descritas desta forma, são plausíveis. Contudo, mais do que a realidade que escondem, o que importa verdadeiramente é o resultado final do apuramento concreto dos factos. Isto é, as posições trazidas aos autos pela autora e pelas rés só são versões, enquanto o processo não atingir a fase do julgamento da matéria de facto. A partir de então, o que prevalece é o que estiver obtido nos autos e será com essa massa factual que o tribunal haverá que trabalhar.
O que temos apurado, então?
- Que a 2ª ré emitiu uma procuração a E (alínea A) dos factos assentes) e que posteriormente a revogou (alínea B) dos factos assentes).
- Que a autora da acção tinha relações comerciais com F, na RPC, e que essas relações eram feitas com a intermediação da 1ª ré B e de D (factos 2º, 3º e 4º da base instrutória).
- Que estas duas sociedades intermediárias foram criadas para facilitar as transacções entre Taiwan e China (factos 3º e 5º da b.i.).

- Que as quantias destinadas ao pagamento das aquisições feitas pela F à autora transitavam desta para a 1ª ré, desta para D e por fim da D para a autora (facto 12º da b.i.).
- Que as facturas que circulavam entre D, B e F tinham o mesmo valor (facto 13º da b.i.) e que o dinheiro pago pela F era depositado numa conta em Macau numa filial do Banco Internacional de Taipei (facto 15º da b.i.).
- Que a procuração acima referida era para facilitar as operações de pagamento, movimentação e transferência de valores nessa conta (facto 17º da b.i.).
- Que essa procuração foi passada pela 2ª ré, em representação da 1ª ré, a favor de E, na qualidade de representante legal da autora (factos 18º e 19º da b.i.).
- Que essa procuração permitia que E movimentasse as quantias depositadas na mencionada conta (facto 20º, da b.i.), o que não foi mais possível desde que ela foi revogada (facto da alínea B), da matéria assente e factos 23º e 24º da b.i.)
- Que a 2ª ré foi empregada da autora, deixando de o ser em 9/12/2003 (factos 8º e 25º, da b.i.).
- Que o dinheiro depositado na conta soma USD$1.026.785,81 (facto 27º).
São estes os principais factos provados.
Ora, o que nos revelam eles? Nada mais do que a realidade que eles transmitem. Daí que tenhamos que esquecer a “versão” trazida pela 2ª ré a propósito da génese do negócio e da conta no exterior de Taiwan.
Escalpelizando um pouco melhor: a B (1ª ré) foi criada pela autora; e para a dirigir e representar foi nomeada a 2ª ré, C, empregada da autora. Esta 2ª ré, porém, porque se adivinha que só pertencia à empresa criada em termos formais, passou procuração a favor de E, representante legal da autora e o verdadeiro mentor da operação negocial, a fim de que ele pudesse movimentar a conta bancária em nome da B.
Com a revogação, essa movimentação deixou de poder ser feita. E é por isso que a autora veio ao processo pedir que se reconheça que a conta lhe pertence e se condenem as rés a pagar-lhe o valor da importância ali depositada. E baseou expressamente o pedido no enriquecimento sem causa, nos termos do art. 467º, nº1, do Código Civil.
A sentença recorrida concluiu que a 1ª ré é uma entidade com personalidade jurídica própria e autonomamente sujeito de direitos e deveres. Estamos de acordo. Disse também que a autora só pôde agir em nome da 1ª ré, em virtude da procuração que a 2ª ré, representante da 1ª, passou a E. Também é certo.
A autora, recorrente, nas suas alegações, bate-se por contrariar a sentença. Para tanto labora em redor da personalidade jurídica da 1ª ré, para negar que alguma vez lha tenha negado, ao contrário do que assevera o tribunal “a quo”.
Ora, não é bem isso o que a sentença diz, segundo cremos. O que a sentença afirma é que, a partir da criação formal da 1ª ré, ela age por si mesma, com independência e autonomia de direitos e deveres. Parece depreender-se daí que, para a sentença, a partir do momento da sua criação legal, não haveria contas a prestar de uma à outra, senão as que resultassem das relações comerciais tituladas entre ambas.
Mas, no nosso entendimento, não terá andado bem a sentença quanto a este aspecto.
Convém ter presente mais uma vez:
a) Que a 1ª ré é uma sociedade criada com o objectivo de facilitar o comércio entre Taiwan (a autora) e a RPC (pela empresa chinesa F): facto/resposta ao quesito 5º;
b) Que a 1ª ré, tal como D, é uma sociedade intermediária criada para o efeito: facto/resposta ao quesito 3º;
c) Que a 1ª ré, tal como D, não tinha autonomia decisória nessas relações, não só porque as mercadorias transitavam da autora e passavam por aquelas até serem entregues à empresa chinesa: facto/ resposta ao quesito 11º;
d) Que essas empresas intermediárias não acrescentavam qualquer valor à facturação expedida pela autora em Taiwan: facto/resposta ao quesito 13º;
e) Que o dinheiro do pagamento dos bens fornecidos pela autora à empresa chinesa transitava desta para a 1ª ré, posteriormente desta para a D e desta para a empresa autora: facto/resposta ao quesito 12º.
Não custa calcular que, no fundo, a sociedade 1ª ré seria uma espécie de “longa manus” da autora. E se é verdade que a relação subjacente, a causa da sua criação, é indiferente ao direito no capítulo das relações jurídicas estabelecidas a partir dela, o certo é que neste caso o que sabemos é que estas duas sociedades agiam, e para tanto foram fundadas, em nome e no interesse da “sociedade-mãe”, digamos assim.
E a prova disso, isto é, para ficar claro que a personalidade jurídica da 1ª ré nada tem a ver com a sua actividade e com a sua responsabilidade perante a autora é que esta levou a que uma sua empregada (2ª ré) fosse nomeada representante da 1ª ré e que emitisse uma procuração a favor do representante legal da autora a fim de movimentar a conta da desta 1ª ré.
Com todos estes dados de facto, pensamos que o quadro jurídico só não é o de uma representação directa (ver art. 251º do CC), porque a 1ª ré não manifestava nesses negócios uma vontade própria, mas sim e apenas a vontade do representado (neste sentido, ver Mota Pinto, Teoria Geral, pag. 1967, pag. 280). Ou seja, exteriorizava vontade alheia e agia em nome e no interesse de outrem.
Já nos parece, por outro lado, que a situação encaixa melhor no instituto do mandato (art. 1083º), na medida em que a 1ª ré agia por conta de outra (a autora) embora em seu nome, enquanto mandatário: Isto é, a 1ª ré praticava os actos de comércio com a empresa chinesa, não em nome da empresa autora, mas em nome próprio. Tratar-se-á de um mandato sem representação, tal como previsto no art. 1106º do C.C. (Mota Pinto, ob cit., pag. 247). O acto produz efeitos na esfera jurídica do mandatário:”Este é parte no negócio que celebra, muito embora, em consequência e execução do mandato, deva transferir para o mandante os direitos adquiridos” (Pires de Lima e A. Varela, in C.C. anotado, vol. II, pag. 787).
A 2ª ré, portanto, executa em nome próprio a gestão de que está incumbida, o que quer dizer que se torna ela, formalmente, o sujeito de direitos e obrigações promanados da actividade exercida, embora os deva depois transferir ao mandante, no interesse de quem essa actividade foi realizada (Galvão Teles, Contratos civis, pag. 71 e sgs. citado por Pires de Lima e A. Varela na anotação anteriormente mencionada). Por isso se diz nesta figura que o mandatário não deixa de ser um contraente em face de terceiros com quem negociar, mesmo depois de transferir para o mandante os direitos adquiridos na execução do mandato, nos termos do art. 1107º, nº1, do C.C. (A. Varela, Obrigações, pag. 311, 2ª ed.).
O negócio em que intervém a 1ª ré é feito, portanto, em proveito da autora. Na verdade, a sua intervenção ocorre por intermediação, por interposição real. Ela actua como verdadeira outorgante e cujo resultado económico é igual ao que se obteria se interviessem os verdadeiros e reais interessados (ver Ac. da RL, de 23/03/2000, in CJ, 2000, 2º, pag. 110).
Ora, se é tudo isto o que está provado, não podia o tribunal, ao abrigo do art. 1107º do CC, mesmo que não invocado na petição (porque se trata de uma questão de direito cuja qualificação feita pelas partes, ou ausência dela, não vincula, nem inibe o tribunal de o fazer: art. 567º, do CPC), deixar de reconhecer que o dinheiro da conta do Banco Internacional de Taipei, filial de Macau, pertence à autora e que para ela deve ser transferido a pretexto de uma condenação, tal como peticionado (neste sentido, os Acs. da R.P., de 20/02/1997, in CJ, 1997, 1º, pag. 238 e da RL, de 5/07/2000, in CJ, 2000, 4º, 82).
*
E como qualificar a relação da 2ª ré com a autora?
Lembremos que a 2ª demandada, empregada que era da autora, fora nomeada representante da 1ª ré e que, nessa qualidade outorgou uma procuração ao representante da “sociedade-mãe” de modo a permitir-lhe a movimentação dos dinheiros da conta acima referida. Procuração que viria a ser revogada, como já sabemos.
Pois bem. Na tese que acabamos de defender, mesmo sem essa procuração, tanto a 1ª ré (sociedade), como a 2ª ré (sua representante) deveriam ser condenadas na entrega/devolução do dinheiro da conta à autora. A procuração nada muda. Se a procuração voluntária tinha precisamente em vista a transferência de “direitos” da esfera da 1ª ré para a autora (a quem, de resto, já pertenciam), a sua revogação em nada altera a conclusão alcançada. Isto é, revogada a procuração, o dinheiro da conta deixa de poder ser movimentado pelo gerente da autora, é verdade, mas não quer isso dizer que ele não lhe pertença e que não lhe deva ser entregue. Aliás, se os factos revelam que tal mandato foi no interesse do mandatário (pelo menos, tanto quanto objectivamente flui da materialidade provada), a revogação até se nos afigura ilegal, face ao prescrito no art. 1096º, nº2, do CC. Portanto, a revogação apenas serve para conferir legitimidade processual acrescida à 1ª ré, na medida em que a instauração da acção se deve a um facto por ela praticado.
Quer isto dizer, pois, que a revogação da procuração não constitui obstáculo ao deferimento da pretensão.
*
Cumpre, por fim, uma breve incursão àquela que foi a causa de pedir da acção: o enriquecimento sem causa. Segundo a autora, sendo a conta bancária constituída por dinheiro seu e proveniente do giro comercial com F, a não devolução por parte das rés constituiria um enriquecimento sem causa.
Como se sabe, o enriquecimento sem causa de alguém implica o correspectivo empobrecimento de outrem (art. 467º do CC). E numa precipitada análise do caso, até seríamos levados a dizer que a situação dos autos, à partida, apontaria nesse sentido: se o dinheiro pertence à autora, e se as rés o detêm sem justificação, face a tudo o que se disse acima, então poderíamos dizer que o quadro factual descrito aparentemente se inscreveria no âmbito previsional do art. 467º do CC.
Todavia, só a aparentemente assim é. Se olharmos com atenção para a situação, logo nos deparamos com uma circunstância que obsta a tal qualificação jurídica.
Ela consiste na natureza subsidiária da obrigação. Diz o art. 468º do CC que “Não há lugar à restituição por enriquecimento quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento”.
Ora, assim sendo, a resposta ao problema vem pronta no artigo: na medida em que a autora pode obter a satisfação da pretensão com a restituição do dinheiro a partir do art. 1107º do CC, deixa de fazer sentido o apelo ao instituto do enriquecimento sem causa. Na verdade, em face do princípio da subsidiariedade patente no art. 468º citado, o empobrecido só poderá recorrer à acção de enriquecimento quando a lei não lhe faculte outro meio de cobrir os prejuízos ou de reaver o que lhe pertence (neste sentido, Galvão Teles, Obrigações, 3ª ed., pag. 136, Almeida Costa, Obrigações, pag. 337; Ac. RL, de 30/11/99, Proc. nº 0009087)
A isto acresce a circunstância de tal dinheiro até nem estar na disponibilidade das rés, face à decisão tomada no procedimento cautelar comum (ver apenso) em razão da qual o dinheiro do depósito bancário está à ordem do tribunal, significando isto que as rés ainda não tiveram a possibilidade de “enriquecer”, nem a autora a de “empobrecer”.
***
IV- Decidindo
Face a todo o exposto, acordam em conceder provimento ao recurso e revogar a sentença recorrida e, em consequência, julgar procedente a acção e, assim:
a) Declarar que a autora é exclusiva titular da conta nº 1001-170096-XXX na filial de Macau do Banco Internacional de Taipei;
b) Condenar as rés a restituírem à autora a quantia ali depositada, acrescida dos juros vencidos e vincendos até integral cumprimento.
Custas pelas rés em ambas as instâncias.
TSI, 27 / 10 / 2011

José Cândido de Pinho
Lai Kin Hong
Choi Mou Pan