打印全文
Processo nº 74/2011
(Autos de Recurso Contencioso)

Data: 27 de Outubro de 2011

ASSUNTO:
- Poder e dever inquisitório da Administração

SUMÁRIOS:

- Nos termos do princípio da colaboração entre a Administração e os particulares, previsto no artº 9º do CPA, os órgãos da Administração Pública e os particulares devem actuar em estreita cooperação recíproca.
- Assim, uma vez apresentados os documentos na sequência da solicitação da Comissão de Abertura, esta tem o dever de analisá-los para averiguar se a entidade emissora do certificado em causa é ou não autoridade pública local.
    
O Relator,
Ho Wai Neng



Processo nº 74/2011
(Autos de Recurso Contencioso)

Data: 27 de Outubro de 2011
Recorrentes: A
B
Entidade Recorrida: O Senhor Chefe do Executivo
Contra-interessados: C
D
E
F
G
H

ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:

I – Relatório
    O consórcio entre A e B, melhor identificados nos autos, vem interpor o presente recurso contencioso contra o despacho do Senhor Chefe do Executivo, de 04/11/2010, pelo qual se indeferiu o seu recurso hierárquico, mantendo a deliberação da Comissão de Abertura das Propostas que excluíu, em 30/06/2010, a sua proposta ao Concurso Público Internacional para “Modernização, operação e manutenção da Estação de Tratamento de Águas Residuais da Península de Macau”, concluíndo que:
1. as intercomunais belgas não são pessoas de direito privado nem têm nenhum carácter comercial mas sim são pessoas colectivas de direito público dos serviços públicos de governo local autárquico para o exercício de determinada actividade de serviço público originàriamente pertencente às diversas comunas ou municípios que a compõem e integram, independentemente de neles admitirem ou não outras entidades.
2. o acto recorrido enferma de todas e cada uma das ilegalidades que acima lhe são em imputadas em IV-1 a IV-4 e, por isso deve ser anulado;
3. é ilegal e anulável, por vício de violação da lei – violação dos arts. 3º e art. 4º da Convenção de Haia de 5 de Outubro de 1961 e violação da lei belga e, por via dela, violação da lei de Macau, nomeadamente os arts. 24º, 31º e 358º do C. Civil bem como, por via disso, as cláusulas 13ª nº 1 al. h) e 6ª nº 3 do “Instructions to Tenderers” face aos aplicáveis preceitos da lei Belga que a qualificam de pessoa colectiva de direito público do governo local autárquico das diversas comunas ou municípios que a compõem e integram, nomeadamente art. L1512-6, § 1º, 2º e § 3º do Código da Democracia Local e da Descentralização e os arts. 11º e 41º da Constituição Belga;
4. o certificado de experiência posto em causa foi junto dentro do prazo de concurso, juntamente com a Proposta, foi emitido na Bélgica e foi também na Bélgica que foi legalizado por notário e apostilha dos respectivos serviços do Ministério dos Negócios Estrangeiros Belga os quais conhecem o seu país e respectiva organização político-administrativa e formas que assume, daí resultando que ao reconhecer e legalizar tal certificado não estavam a reconhecer e atestar a assinatura de um qualquer cidadão e um qualquer papel mas sim a do concreto funcionário que dele consta e concreto documento do organismo intermunicipal (“I Intercommunale Pour La Gestion Et La Réalisation D’Études Techniques Et Économiques”);
5. e, consequentemente, tal certificado existe de facto e foi apresentado antes de esgotado qualquer prazo (está no processo de concurso) e existe de direito por força do art. 358º do C. Civil de Macau, arts. 3º e 4 da cit. Convenção de Haia de 5/10/1961 em vigor em Macau, e legislação belga aplicável àquelas autoridades.
6. o acto é, assim, ilegal por erro nos pressupostos de facto bem como ilegal é por erro de direito ao pressupôr que não foi apresentado certificado emitido por ente do governo local (uma intercomunal ou intermunicípio) dotado da autoridade pública própria da administração autárquica das diversas comunas ou municípios que a compõem e integram;
7. além disso, os art. 3º 1ª parte e art. 4º ambos da Convenção de Haia de 5 de Outubro de 1961 (BO nº 24, de 29.03.1970, pág. 959-962, e Aviso nº 40/2002 in BO nº 23/2002, de 5.Jun.2002), preceituam que a única formalidade que pode ser exigida para certificar a assinatura e a qualidade do emitente é a mera apostilha, que o certificado posto em causa possui, aposto pelos serviços do Ministério dos Negócios Estrangeiros;
8. e segundo a 2ª alínea do mesmo art. 3º, nem essa formalidade pode ser exigida se a lei ou o mero costume do país do acto (Bélgica) for ainda mais simples na legalização, ou até a dispense, DAÍ QUE o acto recorrido seja ilegal por violação de tais normas da Convenção de Haia em vigor em Macau;
9. mesmo que estes normas não existem a garantir tal qualidade (que existem), foi apresentada, também dentro prazo dado (28.6.2010) no prazo dado a documentação e explanação particular solicitada, resumida nos arts. 29º e 30º desta petição, comprovando à saciedade tratar-se de ente público intermunicipal com poderes e autoridade própria na matéria em todo o território dos municípios que a compõem e dos quais ali se identificam expressamente 22 (vinte e dois);
10. além de competência delegada ou confiada pela Região in Doc 5 e por incumbência do contrato de gestão in Doc. 4, o qual, face ao ordenamento administrativo belga e cits. Decretos de 15 de abril, 1999 e de 12 de fevereiro de 2004, mais não é, na prática, do que programa de acção e gestão governativas no campo do serviço público de águas de toda a Região da Valónia cuja prossecução até final fornecimento ao público comete a um ente público regional chamado SPGE, em coordenação com municípios, intermunicipais e outros entes públicos, a qual, para o efeito, responde perante o Governo e submete ao Parlamento;
11. Os princípios proclamados no paragrafo 12 do Preâmbulo da Constituição da República Popular da China reconhecem e respeitam a soberania das leis belgas quanto a tudo o que respeite à sua organização interna (sua organização político-administrativa, autoridades e formas de governo) adoptada na respectiva Constituição e leis internas, bastando, para tanto, que se trate de Estado diplomàticamente reconhecido pela RPC, como é o caso;
12. os amplos poderes de autonomia da RAEM não abrangem a Defesa e Relações Externas e muito menos as políticas e princípios das relações da China com os outros povos e estados, matéria em que se encontra submetida à soberania, Constituição, princípios e leis das autoridades do Governo Central da RPC;
13. Por isso, ao recusar ao referido certificado e leis belgas o valor soberania probatória das organizações e autoridade internas, in casu um organismo público do Poder Autárquico Intermunicipal chamado I e um certicado reconhecido e legalizado por notário e apostinha do Ministério dos Negócios Estrangeiros belgas, infringiu os princípios proclamados pelo paragrafo 12 do Preâmbulo da Constituição da República Popular da China e art. L1512-6, § 1º, 2º e § 3º do Código da Democracia Local e da Descentralização e os arts. 11º e 41º da Constituição Belga e, por via disso, violou a lei de Macau, nomeadamente os arts. 24º, 31º e 358º do C. Civil bem como, por via de ambas as ilegalidades, as cláusulas 13ª nº 1 al. h) e 6ª nº 3 do “Instructions to Tenderers”;
14. ao aplicar este critério quanto às recorrentes - o de não reconhecer como autoridades as autoridades das leis belgas -, mas não ter adoptado o mesmo procedimento uniforme quanto aos demais contra-interessados, nomeadamente Concorrente portuguesa nº 5 E, o acto recorrido caíu em dualidade de critérios e violação do art. 358º nº 1 do C. Civil de Macau e, consequentemente, além desse preceito legal, o princípio da igualdade e o princípio da imparcialidade, contra as ora recorrentes e em favor daqueles contra-interessados;
15. Para essa diferença de tratamento, o acto recorrido invoca o art. 5º do Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre a RAEM e Portugal, publicado pelo Aviso do Chefe do Executivo nº 10/2001 in BO nº 6/2001, 2ª Série, de 7.Fev.2001;
16. Porém, a verdade é que o que esse preceito trata é dispensar a autenticação a documentos emitidos por autoridades portuguesas (e vice-versa), questão aqui não se pode colocar porque o certificado relativa às recorrentes, emitido na Bélgica, encontra-se autenticado e legalizado por apostilha dos respectivos serviços do Ministério dos Negócios Estrangeiros Belga;
17. E, por isso, houve dualidade de critérios não cobertos pelo referido Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária e, consequentemente, é também ilegal por violação do princípio da igualdade e o princípio da imparcialidade (arts. 5º nº 1 e 7º do Cód. Procedimento Administrativo), contra as ora recorrentes e em favor da Concorrente nº 5 E e demais contra-interessados, para lá dos restantes vícios acima apontados.
18. ilegalidades estas que são sancionadas com anulabilidade e, nessa conformidade, se pede e espera se decrete a anulação do acto recorrido, com todas as legais consequências.
*
A entidade recorrida e os contra-interessados o consórcio entre a C e E, contestaram, respectivamente, nos termos constantes a fls. 297 a 319, 340 a 352 e 354 a 357 dos autos, cujos teores aqui se dão integralmente reproduzidos, pugnando pelo não provimento do recurso.
*
As recorrentes, a entidade recorrida e o contra-interessado o consórcio entre a C, apresentaram alegações facultativas, mantendo, no essencial, as posições já tomadas.
*
O Ministério Público emitiu o seguinte parecer:
“Vêm "A" e "B", impugnar o despacho do Chefe do Executivo de 4/11/10 que, em sede de recurso hierárquico necessário e no âmbito do concurso público internacional "Modernização, Operação e Manutenção da Estação de Águas Residuais da Península de Macau ", manteve a deliberação da Comissão de Abertura de Propostas no sentido da exclusão da proposta da concorrente n° 2, representada por ambas as recorrentes, por aquela não ter apresentado documento bastante que desse cumprimento ao exigido pela cláusula 13.1, al 1) do programa do concurso, ou seja, documentação de prova emitida por autoridade local, certificando ter a 1ª recorrente experiência relevante em instalações de tratamento biológico de águas residuais, pelo período mínimo de 10 anos, conforme prescrito pela Cláusula 6.3 do mesmo programa, assacando ao acto, se bem interpretamos, vícios de violação de lei, seja por erro nos pressupostos de facto subjacentes à decisão, seja por afronta de dispositivos vários da Convenção de Haia de 5/10/61, seja por ofensa dos princípios da igualdade e imparcialidade, argumentando, em síntese, e no que reputamos de essencial que, ao contrário do entendido pela Comissão de Abertura das Propostas e sufragado pela entidade recorrida, a documentação que apresentaram faz prova bastante da citada exigência e de que foi emitida por autoridade local, razão por que se decidiu sobre pressupostos que não correspondem à realidade, sendo que, ao não se aceitar aquela prova de validade documental se ofenderam os pretendidos preceitos, ao que acresce que, na sua perspectiva, terá existido tratamento discriminatório e desigual decorrente da aceitação, em condições que entendem similares à sua, de documentos de outros concorrentes, mais concretamente do concorrente n° 5.
   Cremos, porém, não lhes assistir qualquer razão.
   Atendendo a que à Comissão de Abertura das propostas se suscitaram sérias dúvidas quanto à qualidade da entidade que emitiu o documento apresentado ao concurso pelas recorrentes como autoridade local, foi deliberado admitir a proposta respectiva condicionalmente concedendo-se àquelas, nos termos do n? 3 do art° 84° do Dec Lei 74/99/M de 8/11, o prazo de 24 horas para apresentação de documento suplementar efectivamente comprovativo daquela qualidade.
   Porém, apesar de posterior apresentação de nova documentação, não lograram as interessadas, no critério daquela Comissão, efectuar tal comprovativo.
   E, a verdade é que, do escrutínio do acervo factual, mormente documental, junto aos autos e respectivo instrutor, nada permite, vàlidamente infirmar tal asserção, afigurando-se-nos, que a análise, interpretação e valoração empreendida por parte da Comissão em causa relativamente à documentação apresentada a este propósito, se apresenta como sensata, adequada e consonante com as regras legais de certificação, não se podendo, consequentemente, dar por cumprido o previsto nas cláusulas 6 e 13.1 do Programa do Concurso, revelando-se inócua a apresentação de documentação em fase do recurso hierárquico, a que as recorrentes pretendem fazer apelo, já que, esgotado o prazo concedido, não poderia ser aceite por extemporânea, pois o acto de exclusão fundou-se precisamente na sua falta no exacto momento em que deveria ter sido apresentada.
   Não se vendo que o pressuposto em que assentou aquele acto de exclusão - não entrega por parte da concorrente em questão de documento comprovativo da experiência de 10 anos em instalações de tratamento biológico de águas residuais, por parte da recorrente "A", emitido por autoridade local - não corresponda à verdade, soçobra, por si, como é bom de ver, todo o restante alegado no que tange à pretensa ofensa de dispositivos legais da Convenção de Haia, e de legislação da Bélgica ou da RAEM, pois que a invocação desses normativos almejava precisamente demonstrar que a documentação em concreto apresentada atestava e certificava a qualidade da "I" como autoridade local.
   Relativamente à pretensa desigualdade e discriminação relativamente à aceitação da concorrente nº 5 em condições que as recorrentes pretendem como similares, por aquela ter apresentado declarações sobre a experiência em questão em Portugal sem a certificação de que as entidades emitentes eram autoridades locais, a verdade é que as situações são bem diferentes, pois que, nos termos do art° 5° do Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária celebrado entre a República Portuguesa e a RAEM, assinado a 17/1/01, conforme Aviso do Chefe do Executivo de 2/2/01, os documentos emitidos pelas autoridades públicas das duas jurisdições estão dispensadas de legalização ou autenticação, não constando que tenha sido celebrado semelhante convénio com a Bélgica.
   Mas, ainda que de situações similares se tratasse, a única conclusão a retirar é que aquela concorrente tinha sido indevidamente admitida a concurso, daí havendo que retirar as devidas ilacções, não podendo, por essa via, os concorrentes arrogar-se à admissão da sua proposta por força da igualdade, já que, como é sabido, esta não opera na ilegalidade.
   Donde, por não ocorrência de qualquer dos vícios assacados, ou de qualquer outro e que cumpra conhecer, sermos a entender não merecer provimento o presente recurso.”
*
  Foram colhidos os vistos legais dos Mmºs Juizes-Adjuntos.
*
O Tribunal é o competente.
As partes possuem a personalidade e a capacidade judiciárias.
Mostram-se legítimas e regularmente patrocinadas.
Não há questões prévias, nulidades ou outras excepções que obstam ao conhecimento do mérito da causa.
*
II – Factos
É assente a seguinte factualidade:
- As oras recorrentes concorreram para o Concurso Público Internacional para “Modernização, operação e manutenção da Estação de Tratamento de Águas Residuais da Península de Macau, aberto mediante aviso do GDI publicado no Boletim Oficial n.º 13, II série, de 31 de Março de 2010.
- Dispõe a Cláusula 13.1, alínea 1) do programa do concurso que “Se o Concorrente obteve a sua experiência fora da RAEM deve apresentar documentação de prova emitida por autoridades locais, onde a experiência foi obtida, de acordo com a Cláusula 6.3 do presente Programa do Concurso”.
   - Por sua vez a Cláusula 6.3 do programa do concurso determina que “Se o Concorrente for uma sociedade, possuirá, pelo menos dez anos de experiência relevante em instalações de tratamento biológico de águas residuais. A experiência mencionada deve ser directa ou obtida através de sociedade subsidiária em que o Concorrente seja maioritário. Se a experiência não tiver sido obtida na RAEM, essa experiência deve ser confirmada por declaração oficial emitida por uma autoridade local”.
   - Para o efeito, as oras recorrentes apresentaram no seu processo de concurso um certificado de experiência de 10 anos na Bélgica, emitido por uma entidade local denominada I SOCIEDADE COOPERATIVA RESPONSABILIDADE LIMITADA, conforme consta do documento a fls. 72 dos autos.
   - Uma vez que a referida entidade afigura-se ser de natureza privada, a Comissão deliberou admitir condicionalmente as oras recorrentes, dando-lhe um prazo com termo às 17 horas do dia 28 de Junho de 2010, para apresentar documento suplementar que comprovasse ser a sociedade I uma autoridade pública local.
   - Dentro do prazo fixado, as oras recorrentes apresentaram cópia de um contrato entre o Governo da Valónia e uma empresa denominada SPGE e cópia de um extracto de um relatório de actividades de 2008 da mesma SPGE, ambos com tradução para português do original em francês, devidamente certificadas por notário (documentos juntos ao processo do concurso).
   - Perante os documentos juntos, a Comissão solicitou às oras recorrentes para indicar qual o documento que comprova a natureza da autoridade pública local da entidade emissora do certificado.
   - Em resposta à solicitação da Comissão, as oras recorrentes tentaram demonstrar que, face à lei da Bélgica, nos termos do contrato entre o Governo da Valónia e a SPGE e em vista do extracto do relatório de actividades de 2008 desta última, estava claramente explicitado ser a I uma autoridade local.
   - E, para reforço da sua fundamentação, apresentou uma compilação de legislação belga, em francês, para consulta da Comissão, nomeadamente no que entendeu que a legislação em causa comprova ser a I uma autoridade local, citando para o efeito diversos artigos daquelas leis.
   - Por entender não caber à Comissão, em pleno acto público do concurso, estar a interpretar leis estrangeiras ou contratos no qual determinadas empresas sejam parte, mas tão-somente apreciar o documento solicitado, a Comissão deliberou por unanimidade excluir a proposta das oras recorrentes, considerando como não provada a qualidade de autoridade pública da I.
- Inconformada com a decisão de exclusão, as oras recorrentes interpuseram o recurso hierárquico necessário impróprio para o Senhor Chefe do Executivo, o qual, por despacho de 04/11/2010, negou o mesmo, mantendo a deliberação da exclusão da Comissão de Abertura das Propostas.

III – Fundamentos
As recorrentes imputaram ao acto recorrido essencialmente os seguintes vícios:
    - Violação da lei;
    - Erro nos pressupostos de facto e de direito; e
    - Violação dos princípios da igualdade e da imparcialidade.
Uma vez que os dois primeiros vícios apontam para a mesma realidade, vamos analisá-los em conjunto.
Na óptica das recorrentes, os documentos por si apresentados comprovam suficientemente que, segundo a lei interna e a organização interna da Bélgica, a I é uma autoridade pública local.
Por outro lado, o certificado da experiência junto ao processo de concurso já foi legalizado em conformidade com a Convenção de Haia de 05/10/1961, em que RAEM também é parte, nos termos da qual para atestar a veracidade da assinatura, a qualidade em que o signatário do acto actuou, apenas exige aposição da apostilha definida pela Convenção.
E o acto recorrido ao não reconhecer a I ser uma autoridade pública local, está a ignorar a soberania do Estado da Bélgica, pondo em causa a autoridade das suas leis, bem como a sua organização político-administrativa, violando assim a lei belga e os princípios constitucionais da RPC, previstos no parágrafo 12 do Preâmbulo, e, por via disso, violou também a lei da RAEM.
Além disso, errou ainda nos pressupostos de facto.
Quid iuris?
O que passou com o caso em apreço é o seguinte (a acta de fls. 39 e 40 dos autos):
“A Comissão realizou então uma reunião à porta fechada para avaliar as reclamações dos Concorrentes. Quanto às reclamações apresentadas pelos Concorrentes, a Comissão decidiu assim as reclamações:
    ...
Quanto ao Concorrente nº 2, este deverá apresentar um documento complementar que comprove que a organização de verificação da experiência é qualificada como uma autoridade local. O documento suplementar deverá ser apresentando no GDJ antes das 17h00 do dia 28 de Junho de 2010. ...”
As oras recorrentes cumpriram, na medida possível, a ordem da Comissão de Abertura, apresentando documentos complementares para o efeito.
Em face dos documentos complementares apresentados, a Comissão de Abertura fez o seguinte:
“Depois de analisado os documentos suplementares de prova da experiência apresentados pelo Concorrente nº 2, não conseguindo descortinar a prova de que o documento de prova da experiência emitido pela empresa I é um documento emitido por uma autoridade local, a Comissão solicitou ao concorrente a indicação, nos documentos agora apresentados, do documento oficial requerido.
...
O representante do Concorrente nº 2 esclareceu que a I é uma autoridade local. Na passada sexta-feira, a Comissão apenas solicitou as competências da autoridade local e não o certificado. O Concorrente nº 2 informou que a I e a SPGE tem um contrato, em cujo articulado tal está provado. O representante do Concorrente nº 2 esclareceu que face à lei da Bélgica está claramente explicitado que uma empresa como a I é uma autoridade local.
A sessão pública foi suspensa e reiniciou-se pelas 11h10. A Comissão anunciou a sua deliberação:
A Comissão entendeu que o documento suplementar apresentado pelo Concorrente nº 2 não prova que a I é uma autoridade local, pelo que deliberou não aceitar o documento suplementar submetido pelo Concorrente, e anunciou a deliberação por unanimidade de exclusão da proposta do Concorrente nº 2 ...”. (v. acta de fls. 47 e 48 dos autos).
Ou seja, a Comissão de Abertura, após uma simples análise superficial dos mesmos, entendeu que não estava provada a qualidade de autoridade local da entidade emissora do certificado da experiência, e decidiu em não admitir as oras recorrentes ao concurso.
Conforme confessado pela entidade recorrida, as oras recorrentes apresentaram ainda, na sessão de 28/06/2010, uma compilação de legislação belga, em francês, para consulta da Comissão de Abertura, nomeadamente no que entenderam a que a legislação em causa comprova ser a I uma autoridade local, citando para o efeito diversos artigos daquelas leis (cfr. artº 14º da contestação).
Só que na visão da entidade recorrida, não cabe à Comissão de Abertura, em pleno acto público do concurso, estar a interpretar leis estrangeiras ou contratos para saber se determinadas empresas ter o estatuto de autoridade pública local.
Por outro lado, entendeu ainda que o documento comprovativo inicialmente exigido tem de ser um “documento que teria necessariamente de ser emitido por quem tivesse competência para declarar ou mesmo atestar ser a sociedade I uma autoridade local ...” (v. artº 18º da contestação).
Salvo o devido respeito, não podemos conformar com as posições da entidade recorrida.
Suscitando dúvida quanto à qualidade da entidade emissora do certificado (I), é lícito e legítimo para a Comissão de Abertura exigir às oras recorrentes apresentarem documento complementar que comprova a mesma ser uma entidade com autoridade pública local.
Contudo, já não nos afigura correcta a entidade recorrida em afirmar que a Comissão de Abertura não tem o dever de analisar e interpretar as leis estrangeiras no acto da abertura das propostas do concurso.
Compreendemos perfeitamente as dificuldades da Comissão de Abertura em interpretar leis estrangeiras ou contratos no acto de público de abertura das propostas para o concurso público.
Mas isto não constitui fundamento para a sua não realização.
Nos termos do princípio da colaboração entre a Administração e os particulares, previsto no artº 9º do CPA, os órgãos da Administração Pública e os particulares devem actuar em estreita cooperação recíproca.
Além disso, o artº 59º do CPA dispõe ainda que “Os órgãos administrativos, mesmo que o procedimento seja instaurado por iniciativa dos interessados, podem proceder às diligências que considerem convenientes para a instrução, ainda que sobre matérias não mencionadas nos requerimentos ou nas respostas dos interessados, e decidir coisa diferente ou mais ampla do que a pedida, quando o interesse público o exigir”.
Segundo a acta junta aos autos, o que a Comissão de Abertura exigiu inicialmente é documento suplementar que comprova a qualidade de autoridade local da entidade emissora do certificado, e não um outro certificado ou atestado que certifica ou atesta esta qualidade, pois, em lado algum da acta disse que tal documento “teria necessariamente de ser emitido por quem tivesse competência para declarar ou mesmo atestar ser a sociedade I uma autoridade local ...”
Daí que é livre para as oras recorrentes apresentarem qualquer tipo de documentos que comprovam a qualidade de autoridade local da entidade emissora do certificado.
Uma vez apresentados os documentos na sequência da solicitação da Comissão de Abertura, esta tem o dever de analisá-los para averiguar se a entidade emissora do certificado em causa é ou não autoridade pública local.
Não o fez, violou os artºs 9º e 59º do CPA.
Por outro lado, não se pode dizer que as oras recorrentes não apresentaram documentos suplementares com vista à comprovação da qualidade da I.
Uma coisa é a não apresentação dos documentos suplementares, outra é o valor probatório dos documentos apresentados.
Ora, face aos documentos e a legislação belga juntos pelas oras recorrentes, entendemos que está provada a qualidade de autoridade pública local da I.
Assim, o acto recorrido padece dos vícios de violação da lei e do erro no pressuposto de facto, o que geram a sua anulabilidade.
No que respeita ao vício da violação dos princípios da igualdade e da imparcialidade, já não assiste razão às recorrentes.
Para o caso em concreto, estão em causa os certificados emitidos pelas entidades públicas de Portugal apresentados pela concorrente E, em que a Comissão de Abertura não lhe exigiu apresentar documento complementar de prova da qualidade das entidades emissoras.
Como é sabido, Portugal não é um país estranho a Macau, devido aos factores históricos.
Daí que os membros da Comissão de Abertura podem ter conhecimento da organização político-jurídica interna portuguesa.
Assim, caso a Comissão de Abertura já tenha conhecimento de que as entidades emissoras são entidades públicas, porquê razão ainda tem de exigir documento complementar de prova para o efeito?
Se exigisse, não estaria a violar o princípio da desburocratização e da eficiência?
Por outro lado, como bem observou o Dignº Magistrado do Mº Pº junto deste Tribunal, ainda que a Comissão de Abertura tivesse agido incorrectamente, as oras recorrentes não podem, “por essa via, arrogar-se à admissão da sua proposta por fora da igualdade, já que, como é sabido, esta não opera na ilegalidade.” (fls. 455 dos autos).
Improcede assim este argumento do recurso.
Tudo ponderado, resta decidir.

IV – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conceder provimento ao recurso interposto, anulando o acto recorrido.

Sem custas por parte da entidade recorrida por gozar da isenção subjectiva.
Custas pelos contra-interessados que apresentaram contestação, com 6 UC taxa de justiça para cada um.
Notifique e registe.

RAEM, aos 27 de Outubro de 2011.
Ho Wai Neng Presente
José Cândido de Pinho Vítor Coelho
Lai Kin Hong
Vencido nos termos de declaração de voto














Processo nº 74/2011
Declaração de voto de vencido

De acordo com o exigido na alínea 1) da Cláusula 13.1 do programa do concurso, o concorrente deve apresentar prova emitida por autoridade local certificando ter experiência relevante em instalações de tratamento biológico de águas residuais, pelo período mínimo de 10 anos.
Ora, o D.L. nº 74/99/M de 08NOV estabelece no seu artº 87º/2-a) que são excluídas as propostas que não estejam instruídas com todos os documentos exigidos pelo nº 1 do artigo 69º, bem como pelo anúncio e pelo programa do concurso.
E em face do disposto no artº 87º/1 do D.L. nº 74/99/M de 08NOV, à comissão da abertura das propostas não cabe a apreciação do mérito ou do conteúdo dos documentos com que devem ser instruídas as propostas, mas sim apenas o exame do aspecto formal desses documentos a fim de deliberar a admissão ou não das propostas apresentadas.
ln casu, apesar de posterior apresentação de nova documentação, dentro do prazo fixado para efeito pela Comissão, a complexidade e o volume dos documentos apresentados pela ora recorrente dificultam, senão impossibilitam o exame do aspecto formal dessa prova exigida.
Assim, não andou mal o Senhor Chefe do Executivo ao indeferir, como indeferiu, o recurso hierárquico necessário interposto da deliberação da comissão da abertura das propostas que decidiu excluir a proposta apresentada pelo concorrente, ora recorrente, com fundamento na falta da apresentação daquela lista de quantidades e preços.

Eis as razões que me levaram a não acompanhar a solução vertida no Acórdão antecedente.
RAEM, 27OUT2011
Lai Kin Hong

1


22
74/2011