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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
O Tribunal Colectivo do 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, por Acórdão de 14 de Março de 2012, condenou o Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo, solidariamente com outro demandado cível, no pagamento da quantia de MOP$248.655,20, a A, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais.
O Tribunal de Segunda Instância (TSI), por Acórdão de 27 de Setembro de 2012, não admitiu o recurso por extemporâneo.
Recorre desta decisão o Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo para este Tribunal de Última Instância (TUI), com fundamento em violação do caso julgado, terminando com as seguintes conclusões úteis:
- A folhas 601, o Mmo. Juiz Titular do processo no Tribunal Judicial de Base, decidiu, sobre o requerimento apresentado pelo Recorrente a fls. 560-562, que «o Tribunal entende que não pode ser considerado como justo impedimento ao abrigo do artº 96.°, n,º 1, do CPPM» , consignando ainda, todavia, que «o Requerente pode pagar a multa ao abrigo do artº 95.°, n. ° 4 do CPCM. Notifique» ;
- Depositando toda a confiança no referido despacho, o Recorrente conformou-se com o mesmo na parte em que julgou inexistente o justo impedimento, mais procedendo ao pagamento da respectiva multa;
- Tal despacho era impugnável. Contudo, notificados de tal despacho todos os intervenientes processuais, nem a Assistente/Demandante, nem os outros 5 Co-Demandados, nem tão pouco o Ministério Público, contra tal despacho reagiram, e, designadamente, dele não interpuseram recurso, no prazo que, para o efeito, a lei determina;
- Consequentemente, o despacho de folhas 601 transitou em julgado (cfr. artigo 582.° do CPC de Macau, aplicável ex vi do artigo 4.° do CPP de Macau);
- Transitado em julgado, o despacho de folhas 601 passou a ter força obrigatória dentro do processo, vinculando não só o tribunal de primeira instância como também todos os outros que, em recurso, tiverem que apreciar qualquer questão nele suscitada - cfr. artigo 575.° do CPC de Macau, aplicável ex vi do artigo 4.° do CPP de Macau;
- O Tribunal de Segunda Instância, ao considerar ilegal o despacho de folhas 601 (pois só assim foi possível concluir pela extemporaneidade do recurso interposto para aquele Tribunal) e desprezando o aí decidido, ofendeu o caso julgado resultante daquele despacho;
- É certo que o n.º 3 do artigo 404.° do Código de Processo Penal de Macau determina que «a decisão que admita o recurso, que determine o efeito que lhe cabe ou o regime de subida não vincula o tribunal superior a que o recurso se dirige»;
- Mas o que aqui está em causa não é a relação entre o acórdão recorrido e o despacho de admissão do recurso proferido em primeira instância; não foi este despacho que foi violado;
- O Tribunal de Segunda Instância não estava obrigado a respeitar o decidido pela primeira instância quanto à admissibilidade, efeitos, momento e modo de subida do recurso - i.e., o despacho de folhas 612; o que tinha de respeitar era, precisamente, o despacho de folhas 601 que, por ter transitado, formou caso julgado formal e, assim, passou a ter força obrigatória dentro do processo.
  


II – Os factos
O acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:
1. Por força do acórdão proferido a fls. 530 a 540 dos autos penais subjacentes emergentes de acidente de viação (com o n.o CR3-09-0006-PCC do 3.o Juízo Criminal do TJB) e lido em 14 de Março de 2012, o Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo foi condenado a pagar solidariamente MOP248.655,20 de indemnização de danos patrimoniais e morais à senhora A, autora do pedido cível aí enxertado.
2. Em 27 de Março de 2012, por requerimento de fls. 560 a 562, o Fundo de Garantia Automóvel e Marítimo pediu à Primeira Instância a admissão da prática do acto de interposição de recurso ordinário do dito acórdão, por alegada verificação de justo impedimento na apresentação tempestiva da motivação do recurso, ou, subsidiariamente, mediante o pagamento imediato da multa relativa à prática desse acto no primeiro dia útil seguinte ao termo do prazo como tal referida no art.º 95.º, n.º 4, do Código de Processo Civil (CPC), tendo, ao mesmo tempo, juntado (a fls. 571 a 595) a motivação do recurso para rogar a revogação parcial da decisão cível tomada no mencionado acórdão.
3. Sobre isso, decidiu a M.ma Juíza titular do processo em primeira instância (a fl. 601), no sentido de não haver justo impedimento e o requerente poder pagar a multa ao abrigo do art.º 95.º, n.º 4, do CPC.
4. Paga a multa referida (cfr. o teor de fl. 603) sem impugnação pelo requerente Fundo da decisão referente ao justo impedimento, foi judicialmente mandado cumprir o disposto no art.º 401.º, n.º 4, do CPP (cfr. o despacho de fl. 604).
5. E a final, foi proferido em 21 de Junho de 2012 (a fl. 612) o despacho de admissão do recurso como tempestivo.
6. Subido o recurso para este TSI, foi proferido o seguinte despacho pelo relator (a fls. 624v a 625) em sede de exame preliminar:
– < No despacho judicial de fls. 601, foi julgado não verificado o justo impedimento então alegado por esse recorrente a fls. 560 e ss., mas foi admitida a possibilidade de pagamento da “multa ao abrigo do art.º 95.º, n.º 4, do CPCM”.
Paga assim a multa, foi finalmente considerado pelo Tribunal “a quo” como tempestivo o recurso (cfr. o despacho de admissão de recurso de fls. 612).
Entretanto, afigurando-se plausível a tese jurídica de inaplicabilidade do mecanismo do art.º 95.º, n.º 4 (e 5 e 6), do CPC de Macau ao processo penal, dada a natureza suficientemente autónoma das regras dos art.os 93.º e 97.º do CPP de Macau, as quais não contêm nenhuma lacuna a ser integrada pelo dito art.º 95.º, n.º 4 (e 5 e 6) do CPC, notifique o recorrente para se pronunciar, em dez dias, sobre a eventual não admissão do seu recurso com fundamento na apresentação extemporânea do mesmo, ainda que o recurso seja circunscrito à causa cível de pedido de indemnização enxertado no presente processo penal.
[…]>>.

III - O Direito
1. A questão a resolver.
O despacho da Ex.ma Juíza do processo a decidir que a motivação de recurso podia ser apresentada nos 3 dias úteis seguintes ao termo do prazo mediante o pagamento de multa, transitou em julgado.
O acórdão recorrido entendeu que tal caso julgado formal não se impõe ao Tribunal de recurso, visto que o relator, no exame preliminar tem de verificar se alguma circunstância obsta ao conhecimento do recurso, nos termos do artigo 407.º, n.º 3, alínea a) do Código de Processo Penal. E, considerando inaplicável em processo penal a possibilidade de prática do acto nos 3 dias seguintes ao seu termo, mediante o pagamento de multa, prevista no artigo 95.º, n. os 4 a 6 do Código de Processo Civil, decidiu que a motivação de recurso não era tempestiva.
É o que se impõe examinar.

2. Caso julgado
Exposta a questão que cabe resolver, importa lembrar uma norma que tem pertinência para solução do problema e que parece ter sido desprezada pelo acórdão recorrido, embora milite a seu favor, que é o preceito do n.º 3 do artigo 404.º do Código de Processo Penal, onde se dispõe:
“A decisão que admita o recurso, que determine o efeito que lhe cabe ou o regime de subida não vincula o tribunal a que o recurso se dirige”.
Face a esta norma, é indiscutível que a decisão que admite o recurso não faz caso julgado1, ainda que o recorrido não a impugne, o que só pode fazer nas alegações (artigo 594.º, n.º 4, do Código de Processo Civil). Quer isto dizer, que o tribunal de recurso pode não conhecer do seu objecto, com fundamento em irrecorribilidade, intempestividade ou falta de legitimidade do recorrente (artigo 594.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente), ainda que o tribunal recorrido tenha admitido o recurso.
A questão que importa então saber é, por um lado, se o despacho da Ex.ma Juíza do processo, no sentido que a motivação de recurso podia ser apresentada nos 3 dias úteis seguintes ao termo do prazo mediante o pagamento de multa, fez caso julgado formal. E se tal decisão se impõe ao tribunal de recurso, dado que a decisão do tribunal recorrido, que admita o recurso não vincula o tribunal a que o recurso se dirige.
A favor da tese do Acórdão recorrido pode invocar-se que as decisões das questões que se referem à admissibilidade do recurso não fazem caso julgado, sejam as decisões do juiz do tribunal recorrido, que podem ser alteradas no tribunal de recurso, sejam as próprias decisões do relator do tribunal de recurso, que podem ser alteradas pela conferência de que faz parte.
A favor da tese do recorrente pode dizer-se que o despacho proferido sobre a possibilidade de prática do acto nos 3 dias posteriores ao termo do prazo mediante o pagamento de multa, não é o despacho que admite o recurso, antes é prévio àquele despacho.
Mas o argumento não é convincente. Pois tal despacho pode ser proferido simultaneamente com a decisão que admita o recurso, não fazendo sentido ter um regime diferente dependendo do momento em que é proferido.
Já o argumento de que a decisão, não impugnada, conduziu a uma estratégia processual por parte do recorrente que teria sido diferente, caso a mesma decisão não tivesse sido proferida, merece maior atenção.
No caso dos autos parece ter sido esse o caso, já que o recorrente invocou justo impedimento para a prática do acto fora de prazo e, subsidiariamente, pediu para pagar multa, ao abrigo do artigo 95.º do Código de Processo Civil.
A Ex.ma Juíza do processo indeferiu o requerimento na parte em que pedia a consideração de justo impedimento, mas logo deferiu o pagamento de multa, como condição para a prática atempada do acto, a motivação de recurso para o TSI.
Pode dizer-se que não fora esta segunda a decisão e o recorrente poderia ter impugnado a primeira decisão, a que desconsiderou a existência de justo impedimento. Assim, o recorrente delineou a sua estratégia processual acreditando na firmeza da decisão que admitiu o pagamento da multa, porque não impugnada por quem a poderia impugnar, no caso, a demandante cível.
Assim, deve entender-se que decidir-se no tribunal de recurso pela intempestividade do recurso, é contrário às garantias próprias de um processo justo ou equitativo, ofendendo ainda os princípios da segurança e da certeza jurídicas.
Em casos como estes decidir-se pela plena possibilidade de o tribunal de recurso, oficiosamente, isto é, não precedendo impugnação por parte do interessado, decidir pela não admissão do recurso, frusta as legítimas expectativas do recorrente, que confiou na firmeza da decisão judicial, não impugnada.
Repare-se que não basta que haja um despacho não impugnado do juiz do tribunal recorrido a admitir um recurso, ou a prorrogar o prazo de um recurso, para ele se impor no processo, ao tribunal a quem o recurso se dirige, já que o artigo 594.º, n. 4, do Código de Processo Civil é muito claro no sentido de que a decisão que admite o recurso não vincula o tribunal de recurso.
Isso só acontecerá se tal decisão, não impugnada, frustrar a confiança legítima depositada pelo recorrente nessa decisão judicial.
Não será esse seguramente o caso quando, após se ter esgotado o prazo do recurso, o juiz decide que comece a correr novo prazo para apresentação de motivação ou alegações. Aqui não há qualquer confiança legítima que se imponha proteger. Foi essa situação que se verificou no caso examinado no nosso Acórdão de 25 de Maio de 2011, no Processo n.º 21/2011.
Já é diferente se antes de o prazo começar a correr o interessado suscita a questão da duração do prazo e o juiz a resolve ainda que com violação da lei. Ou se, na pendência do prazo do recurso, o juiz o prorroga, mesmo ilegalmente. Nestes casos, na falta de impugnação do despacho do juiz, o interessado assenta a sua estratégia posterior nesse despacho ilegal não impugnado, pelo que seria contrário aos princípios da segurança e certeza jurídicas vir-se, posteriormente, a decidir, pela ilegalidade da decisão.
Seria uma situação deste tipo a configurada no nosso Acórdão de 26 de Julho de 2004, no Processo n.º 27/2004, não fora o caso de o Ministério Público ter impugnado o despacho ilegal do juiz que, durante o prazo do recurso, determinou que o mesmo começasse novamente a correr por inteiro.
Em conclusão, no caso dos autos, o recorrente poderia ter recorrido da decisão que indeferiu a apresentação de motivação de recurso fora de prazo, com fundamento em justo impedimento. Não o fez, porque, no mesmo despacho, foi autorizado a pagar a multa como condição da prática atempada do mesmo acto. É, assim, contrário a um processo justo e equitativo, ofendendo ainda os princípios da segurança e da certeza jurídicas, a decisão do TSI que, na falta de impugnação desta segunda decisão, considera o recurso intempestivo, com fundamento em ilegalidade da prática do acto fora de prazo, mediante o pagamento de multa.
É, pois, procedente o recurso.

IV – Decisão
Face ao expendido, concedem provimento ao recurso, revogam o Acórdão recorrido, decidindo que o recurso para o TSI é tempestivo.
Sem custas o recurso para o TUI, por a recorrida não ter dado causa nem aderido à decisão recorrida.
Macau, 16 de Janeiro de 2013.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
  
   1 RODRIGUES BASTOS, Notas ao Código de Processo Civil, Lisboa, 2001, vol. III, 3.ª ed., p. 235 e F. AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2000, p. 115.
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1
Processo n.º 75/2012