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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
O Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base, por Acórdão de 13 de Abril de 2011, condenou a arguida A pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de burla de valor consideravelmente elevado, previsto e punível pelo artigo 211.º, n. os 1 e 4, alínea a) do Código Penal, na forma continuada, na pena de 4 (quatro) anos de prisão.
O Tribunal de Segunda Instância (TSI), por Acórdão de 26 de Julho de 2012, negou provimento ao recurso interposto pela arguida e, oficiosamente, entendeu que a arguida praticou, não um crime continuado, mas 3 crimes de burla de valor consideravelmente elevado, previstos e puníveis pelo artigo 211.º, n. os 1 e 4, alínea a) do Código Penal, e 3 crimes de valor elevado, previstos e puníveis pelo artigo 211.º, n.os 1 e 3 do Código Penal, cabendo a cada um dos primeiros a pena de 3 (três) anos de prisão e por cada um dos segundos a pena de 1 (um) ano de prisão e, em cúmulo jurídico, a pena única de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão. No entanto, manteve a pena aplicada pelo Tribunal de 1.ª Instância por ter sido interposto recurso apenas pela arguida e não pelo Ministério Público, face ao princípio da proibição da reformatio in pejus, previsto no artigo 399.º do Código de Processo Penal.
Ainda inconformada, recorre a arguida para este Tribunal de Última Instância (TUI), terminando com as seguintes conclusões úteis:
- A recorrente entende que o acórdão a quo viola o disposto no artigo 29, n.º 2 do CPM.
- Porque já se verificaram, no acórdão, outros requisitos do crime continuado, só que não se verificou a situação exterior que diminuísse a culpa da recorrente.
- No entanto, a recorrente entende que as circunstâncias dos crimes por ela praticados preenchem completamente os requisitos do crime continuado. Apesar de ser diferentes os tipos dos crimes cometidos, é fundamentalmente o mesmo bem jurídico que se violou.
- A recorrente burlou a mesma ofendida. Apesar de ter usado diferentes hotéis como objecto simulado, a forma da execução foi essencialmente homogénea. As actividades de burla foram realizadas quando a mesma ofendida não se suspeitou. Com estes pressupostos favoráveis ao cometimento do crime, existe evidentemente a situação exterior que diminua a culpa.
- No caso da procedência dos fundamentos supracitados, deve o TSI conhecer das questões da medida da pena e da suspensão da execução da pena de prisão deduzidas pela recorrente no seu recurso.
Na resposta à motivação do recurso a Ex.ma Procuradora-Adjunta defendeu que deve ser negado provimento ao recurso.
No seu parecer, a Ex.ma Procuradora-Adjunta manteve a posição já assumida na resposta à motivação.

II – Os factos
Os Tribunais de 1.ª e Segunda instâncias consideraram provados e não provados os seguintes factos:
1.
Em Abril de 2006 B (ofendida) visitou a arguida na sua casa sita na [Endereço (1)], altura em que esta disse-lhe que conhecia C patrão do [Hotel (1)], que lhe tinha dado o trabalho de contratar para o hotel 400 trabalhadores não residentes. A arguida perguntou à ofendida se ela estava interessada em cooperar com aquela em introduzir pessoas do interior da China a trabalhar em Macau.
Tendo testemunhado a obtenção, por parte da arguida, de documentos de trabalho em Macau para pessoas do interior da China, a ofendida acreditou nas palavras da arguida, com quem fez um acordo segundo o qual ela cobraria a cada indivíduo do interior da China que pretendesse trabalhar em Macau um montante de HKD$3.500,00, entre o qual dois mil seria entregue à arguida para a despesa com obtenção dos documentos, 500 seria a comissão da arguida, e o restante mil seria remuneração à ofendida.
Entre 24 de Maio e 16 de Agosto de 2006, a ofendida cobrou RMB$ 479.500,00 de 137 pessoas do interior da China que pretenderam trabalhar em Macau (quer dizer que cada um entregou à ofendida trinta e cinco mil RMB), compreendendo D, E, F, G, H, I, J, K, L, M, N, O, P, Q, R, S, T, U, V, W, X, Y, Z, AA, AB, AC, AD, AE e AF etc. Segundo o acordo, a ofendida retirou da verba um montante no valor de MOP$274.000,00 para entregar à arguida, junto com registo de agregado das 137 pessoas e os seus bilhetes de identidade do interior da China, para a obtenção dos documentos para trabalhar no [Hotel (1)].
Recebido o dinheiro e os dados, a arguida declarou que os documentos seriam obtidos após 9 meses.
2.
Cerca de Agosto de 2006, a arguida disse à ofendida que a [Companhia de Construção (1)] procurou contratar 23 trabalhadores não residentes. A arguida fez mais uma vez um acordo com a ofendida, segundo o qual esta cobraria a cada pessoa do interior da China que queria o trabalho o valor de RMB$5.000,00, entre os quais 2.000,00 seria entregue à arguida como a despesa com obtenção de documentos.
Nos dias 4, 13 e 29 do mesmo mês, a ofendida entregou à arguida os bilhetes de identidade de 23 pessoas do interior da China, o seu registo de agregado e uma quantia de MOP$48.000,00, para que esta procedesse à obtenção de documentos para as pessoas para trabalhar na Companhia em causa.
A arguida também declarou que a obtenção dos respectivos documentos precisaria de nove meses.
3.
Cerca de Setembro de 2006, a arguida disse à ofendida que a [Companhia de Limpeza (1)] procurou contratar 30 trabalhadores não residentes. A arguida fez mais uma vez um acordo com a ofendida, segundo o qual esta cobraria a cada pessoa do interior da China que queria o trabalho o valor de RMB$5.000,00, entre os quais 2.000,00 seria entregue à arguida como a despesa com obtenção de documentos.
Em 5 do mesmo mês, a ofendida entregou à arguida os bilhetes de identidade de 30 pessoas do interior da China, o seu registo de agregado e uma quantia de MOP$60.000,00, para que esta procedesse à obtenção de documentos para as pessoas para trabalhar na Companhia em causa.
A arguida também declarou que a obtenção dos respectivos documentos precisaria de nove meses.
4.
Cerca de Setembro de 2006, a arguida disse à ofendida que o [Hotel (2)] procurou contratar 280 trabalhadores não residentes. A arguida fez o mesmo acordo com a ofendida.
Nos dias 7, 17 e 28 de Setembro, 12 de Outubro e 13 de Novembro, a ofendida entregou à arguida o registo de agregado e os bilhetes de identidade de 280 pessoas do interior da China, incluindo AG, AH, AI, AJ, AK, AL, AM, AN, AO, AP, AQ, AR, AS, AT, AU, AV, AW, AX, AY, AZ, BA, BB, BC, BD, BE, BF, BG, BH, BI, BJ, BK, BL, BM, BN, BO, BP, BQ, BR, BS, BT, BU, BV, BW, BX, BY, BZ, CA, CB, CC, CD, CE, CF, CG, CH, CI, CJ, CK, CL, CM, CN, CO, CP, CQ, CR e CS, etc., junto com um montante de MOP$560.000,00, para a obtenção dos documentos para trabalhar no [Hotel (2)].
A arguida declarou que a obtenção dos respectivos documentos precisaria de nove meses.
5.
Em Outubro de 2006, a arguida disse à ofendida que a [Companhia de Construção (2)] procurou contratar 98 trabalhadores não residentes. A arguida fez um acordo com a ofendida, segundo o qual esta cobraria a cada pessoa do interior da China que queria o trabalho o valor de RMB$5.500,00, entre os quais 2.000,00 seria entregue à arguida como a despesa com obtenção de documentos.
Em 13 de Novembro e 11 de Dezembro do mesmo ano, a ofendida entregou à arguida o registo de agregado e os bilhetes de identidade de 98 pessoas do interior da China, incluindo CT, CU, CV, CW, CX, etc., junto com um montante de MOP$196.000,00, para a obtenção dos documentos para os 98 pessoas trabalhar na Companhia em causa.
A arguida declarou que a obtenção dos respectivos documentos precisaria de nove meses.
6.
Em Novembro de 2006, a arguida disse à ofendida que a [Companhia de Limpeza (2)] procurou contratar 20 trabalhadores não residentes. A arguida fez um acordo com a ofendida, segundo o qual esta cobraria a cada pessoa do interior da China que queria o trabalho o valor de RMB$4.000,00, entre os quais 2.000,00 seria entregue à arguida como a despesa com obtenção de documentos.
Em 19 de Dezembro do mesmo ano, a ofendida entregou à arguida o registo de agregado e os bilhetes de identidade de 20 pessoas do interior da China, incluindo CY, CZ, DA, DB, etc., junto com um montante de MOP$40.000,00, para a obtenção dos documentos para os 20 pessoas trabalhar na Companhia em causa.
A arguida declarou que a obtenção dos respectivos documentos precisaria de nove meses.
7.
Até 15 de Março de 2007, altura em que a ofendida deduziu denúncia junto da PJ, a arguida não procedeu à obtenção, para qualquer pessoa, de documentos para trabalhar em Macau.
A arguida era absolutamente não capaz de obter para outrem documentos para trabalhar em Macau, e nunca obteve para outrem tais documentos.
Nenhuma das companhias supracitadas confiou à arguida a contratação de pessoas não residentes para trabalhar em Macau.
8.
A arguida, com intenção de obter para si enriquecimento ilegítimo, agiu de forma consciente e voluntária ao inventar falsos factos para ter a confiança de outrem, causando-lhe prejuízo patrimonial de valor consideravelmente elevado.
A arguida é dona da família e recebe mensalmente um subsídio na quantia de 9.000,00 patacas do Governo da RAEM.
A arguida é solteira e tem a seu cargo 4 filhos.
A arguida não reconhece os respectivos factos e é delinquente primária.
A ofendida B queria ser indemnizada pelos prejuízos.
Factos não provados: não há.

III - O Direito
1. As questões a resolver.
Trata-se, apenas de saber se os factos praticados pela arguida integram um crime continuado, tal como entendeu o Tribunal de 1.ª Instância, ou uma pluralidade de crimes (seis), tal como vinha acusada e entendeu o Acórdão recorrido.
No caso de a tese da arguida (crime continuado) obter vencimento, apurar-se-á se se impõe a redução da pena, fixada em 4 (quatro) anos de prisão pela 1.ª Instância e a suspensão da sua execução.

2. Crime continuado. No quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
Comecemos por citar a norma que prevê o crime continuado, no artigo 29.º do Código Penal:
“Artigo 29.º
(Concurso de crimes e crime continuado)
1. O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
2. Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.

Recordemos, ainda que, enquanto a punição do concurso de crimes consiste numa pena única, que tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (artigo 71.º, n. os 1 e 2 do Código Penal), no caso de crime continuado este é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação (artigo 73.º do Código Penal).
É sabido que o artigo 29.º do Código Penal de Macau corresponde exactamente ao artigo 30.º do Código Penal português de 1982.
O mesmo se diga, aliás, em termos substanciais, da correspondência dos artigos 71.º e 73.º do Código Penal de Macau ao artigo 78.º do Código Penal português, no que se refere às punições do concurso de crimes e do crime continuado.
A configuração do crime continuado nos Códigos português e de Macau reflectem, nos seus exactos termos, a lição sobre a matéria do autor do Projecto português, EDUARDO CORREIA1, que se referia, ao tema, da seguinte maneira no seu ensino da década de 60 do século passado:
  “O núcleo do problema reside em que, como já dissemos, se está por vezes perante uma série de actividades que, devendo em regra - segundo os princípios até agora expostos - ser tratada nos quadros da pluralidade de infracções, tudo parece aconselhar - nomeadamente a justiça e a economia processual2 - que se tomem, unitariamente, como um crime só. Ora, para resolver o problema, duas vias fundamentais de solução podem ser trilhadas: ou, a partir dos princípios gerais da teoria do crime, procurar deduzir os elementos que poderiam explicar a unidade inscrita no crime continuado - e teremos então uma construção lógico-jurídica do conceito3; ou atender antes à gravidade diminuída que uma tal situação revela em face do concurso real de infracções e procurar, assim, encontrar no menor grau de culpa do agente a chave do problema - intentando, desta forma, uma construção teleológica do conceito.
  Este último é, sem dúvida, o caminho mais legítimo, do ponto de vista metodológico, para resolução do problema. Pois, quando bem se atente, ver-se-á que certas actividades que preenchem o mesmo tipo legal de crime - ou mesmo diversos tipos legais de crime, mas que fundamentalmente protegem o mesmo bem jurídico -, e às quais presidiu uma pluralidade de resoluções (que, portanto, em princípio atiraria a situação para o campo da pluralidade de infracções), todavia devem ser aglutinadas numa só infracção, na medida em que revelam uma considerável diminuição da culpa do agente”.
No caso dos autos, o Acórdão recorrido não teve quaisquer dúvidas de que se verificavam alguns requisitos do crime continuado, como:
i) A realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico;
  ii) Execução dos factos por forma essencialmente homogénea.
  E, na verdade, assim é. Tratou-se da prática de burlas, sendo a mesma pessoa a vítima e tendo sempre como pretexto a contratação de trabalhadores do interior da China, para trabalharem em Macau.
O que o Acórdão recorrido não aceitou foi que estivesse em causa uma “solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.
E com razão o fez.
Como ensina EDUARDO CORREIA4 “ … quando se investiga o fundamento desta diminuição da culpa ele deve ir encontrar-se, como pela primeira vez claramente o formulou KRAUSHAAR, no momento exógeno das condutas, na disposição exterior das coisas para o facto. Pelo que pressuposto da continuação criminosa será, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito5”.
E depois, de tipificar quatro casos em que a situação exterior mencionada se verificaria, conclui:
“Não deve porém esquecer-se que, com a tipificação de situações que deixamos esquematizada, nem por um lado se esgota o domínio da continuação, nem por outro se fica legitimado a afirmá-lo sem mais: sempre será necessário, para o alargar ou corrigir, recorrer à ideia fundamental que, como começámos por pôr em relevo, em última instância o legitima: a diminuição considerável do grau de culpa do agente”.
Também J. FIGUEIREDO DIAS6 afina pelo mesmo diapasão: “§ 45 Compatível com a figura do crime continuado, tal como se encontra plasmada no art. 30.º -2, parece pois tanto a hipótese de à série de comportamentos presidir um dolo conjunto ou um dolo continuado, como de se estar perante uma pluralidade de resoluções (7). O ponto a que a lei confere relevo não é esse, mas sim o de – seguindo um pensamento que de Kraushaar vem até Eduardo Correia (8) – exigir que aquele crime seja dominado por uma situação exterior “que diminua sensivelmente a culpa do agente”: aqui se depara com um elemento “subjectivo” que há-de estender-se à inteira relação de continuação”.
MANUEL CAVALEIRO DE FERREIRA9, a propósito da diminuição da culpa que se tem de verificar no crime continuado, pondera: “A situação exterior é tomada como a origem da motivação do agente. O que a lei pretende, portanto, é dar a razão da diminuição da culpa, indo buscar o seu fundamento substancial na motivação da decisão voluntária, motivação que se figura objectivamente na «situação de facto» que a provoca. Por isso Eduardo Correia afirma que «a diminuição da culpa do agente em certos casos de reiteração de condutas criminosas, foi a ideia à luz da qual procurámos delimitar o âmbito do crime continuado»10.
E, sendo assim, o n.º 2 do art. 30.º não define rigorosamente requisitos objectivos do crime continuado, e antes indica caminhos para descobrir a menor ou muito menor gravidade da culpa.
É sintomática a comparação que se lê na obra citada: «Sendo assim, sempre que sucede o agente violar um certo interesse ou valor jurídico, é preciso investigar se, encarnando nas circunstâncias que acompanharam a sua motivação, não terá porventura aparecido a impeli-lo para o facto um valor maior ou igual ao violado, no quadro axiológico a que conduz a aceitação deste último [ ... ]»11.
A questão que se coloca é a de distinguir casos de concurso de crimes que são hoje gravemente punidos, numa exacerbação do sistema punitivo, que não tem confronto com a benevolência instaurada nos Códigos Penais pelo liberalismo do século XIX, dos casos de concurso de crimes nos quais a culpa, considerada no seu conceito integral, tal como deve gizar-se para efeitos de aplicação das penas, se encontra consideravelmente diminuída.
Então, enquanto como regra o concurso de crimes terá como limite máximo da penalidade o cúmulo material de penas se for grave a culpa, o crime continuado (como concurso de crimes) terá como pena aquela correspondente ao facto mais grave cometido (absorção de penas) se a culpa for «sensivelmente diminuída» (Código Penal art. 78.°)”.
É conhecido, por outro lado, que o entusiasmo pelo instituto do crime continuado tem sofrido alguma erosão, sobretudo pela benevolência com que foi acolhida a sua punição relativamente às regras do concurso de crimes e por privilegiar carreiras criminosas longas, sendo que na Alemanha e na Suíça o instituto foi suprimido, como dá conta PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE12.
Certo é que, ao contrário de outras Ordens Jurídicas em que a figura tem carácter jurisprudencial e doutrinal, em Macau e Portugal ela tem como origem a lei, pelo que ao intérprete não cabe discutir a sua pertinência13.
Seja como for, a doutrina tem propendido para que a jurisprudência tenha alguma exigência no preenchimento dos requisitos do crime continuado “… e só admita a existência de um crime continuado quando, em sua convicção, aquela exigibilidade consideravelmente diminuída se tenha verificado. Temos esta condição como indispensável à manutenção da figura, não podendo concordar por isso com os incontáveis casos em que a nossa jurisprudência se tem bastado com frequência com a configuração objectiva da continuação, eventualmente juntando-lhe a afirmação apodíctica de que ela revela uma culpa consideravelmente diminuída.
[…]
As reservas político-criminais que ao crime continuado se possam opor só podem por isso conduzir o intérprete e o aplicador – e, se fundadas, deverão conduzir, de acordo com o princípio do primado da política criminal – a serem particularmente rigorosos e exigentes na aferição dos pressupostos, objectivos mas sobretudo subjectivos, de que depende a existência jurídica da relação de continuação, nos termos do art. 30.º - 2 do CP.”14.
  
3. O caso dos autos
No caso dos autos, os factos não ocorreram no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminuísse consideravelmente a culpa do agente.
O que sabemos é que a arguida praticou 6 burlas, de Abril a Outubro de 2006, convencendo a arguida de que tinha poderes para contratar trabalhadores do Interior da China para trabalharem em Macau, mediante o pagamento de determinadas quantias, por cada um destes trabalhadores. Fê-lo em seis ocasiões diferentes, pretextando a contratação para seis empresas a operar em Macau.
Debalde se procura qualquer situação que diminua consideravelmente a culpa do agente, mas não se encontra. Nem situação exterior, nem qualquer outra. Nem, aliás, a arguida a aponta na sua motivação de recurso.
Pelo que o recurso improcede manifestamente, impondo-se a sua rejeição [artigos 409.º, n.º 2, alínea a) e 410.º, n.º 1, do Código de Processo Penal].

IV – Decisão
Face ao expendido, rejeitam o recurso, por manifesta improcedência.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 4 UC, que pagará ainda MOP$2000.00 (duas mil patacas), nos termos do artigo 410.º, n.º 4, do Código de Processo Penal. Fixa-se em MOP$1200.00 (mil e duzentas patacas) os honorários do Ex.mo Defensor nomeado.
Macau, 16 de Janeiro de 2013.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
     1 EDUARDO CORREIA, Direito Criminal, Coimbra, Almedina, reimpressão, 1971, II volume, pp. 208 e 209.
  2 O problema do crime continuado está, com efeito, intimamente ligado a uma problemática especificamente processual, relacionada nomeadamente com a extensão do caso julgado e a determinação dos poderes cognitivos do juiz. Cf. sobre este ponto EDUARDO CORREIA, A teoria do concurso em direito criminal. Caso julgado e poderes de cognição do juiz, passim, esp, 348 ss.
  3 Neste tipo de construção podem ainda distinguir-se as teorias subjectivas e as objectivas. Para as primeiras o elemento aglutinador das diversas condutas que formam o crime continuado seria a «unidade de determinação da vontade» (SCHROEDER) ou a «unidade de resolução» (MITTERMAIER). Para as segundas ele residiria na homogeneidade das condutas (WORINGEN), na indivisibilidade (SCHWARZ) ou na unidade de objecto (MERKEL).
     4 EDUARDO CORREIA, Direito…, II Volume, p. 209.
5 Ponto é, evidentemente, - como, de resto, em geral pusemos em relevo, ao tratar da não exigibilidade: cf. supra voI. I 455 s. -, que se não trate de um agente com uma personalidade particularmente sensível a pressões exógenas.
     6 J. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2.ª edição, 2007, p. 1031.
  (7) A esta hipótese de pluralidade de resoluções parece CORREIA, Eduardo, II. P.209, restringir a figura: ela abrange “certas actividades que preenchem o mesmo tipo legal de crime – ou mesmo diversos tipos legais tipos legais de crime, mas que fundamentalmente protegem o mesmo bem jurídico – e às quais presidiu uma pluralidade de resoluções (que, portanto, atiraria a situação para o campo da pluralidade de infracções) ”. Se, no entanto, se olhar alguns dos exemplos que aponta de crime continuado (ibid., p. 210, notas 2 e 3, e infra, §46), logo se reconhecerá que esta “pluralidade de resoluções” é compatível com a preexistência de um dolo continuado ou mesmo conjunto.
  (8) KRAUSHAAR, Beitrage zur Lehre von dem fortgesetzten Verbrechen, Der Gerichtssaal 12, 1860, p.258 e ss., CORREIA, Eduardo, nota 2, p. 283 e ss., e II, P.209 e ss.
     9 MANUEL CAVALEIRO DE FERREIRA, Lições de Direito Penal, Parte Geral, I, Lisboa/São Paulo, Verbo, 4.ª edição, 1992, p. 552 e 553.
    10 Na reimp. cit., cf. Pág. 271
    11 Ibid., págs. 234-235
     12 PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2.ª edição, 2010, p. 159.
     13 J. FIGUEIREDO DIAS, Direito…, p. 1041.
     14 J. FIGUEIREDO DIAS, Direito…, p. 1040 e 1041. No mesmo sentido, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário…, p. 162.

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1
Processo n.º 78/2012