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(Tradução)

Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso de Decisões Jurisdicionais em Matéria Administrativa, Fiscal e Aduaneira
Processo n.P 10 / 2000

Recorrente: Secretário para a Economia e Finanças
Recorrida: A






1. Relatório
Foi proferido o acórdão pelo Tribunal de Segunda Instância da Região Administrativa Especial de Macau em 24 de Fevereiro de 2000 no âmbito do processo n.F 1163 em que anulou a decisão de 12 de Janeiro de 1999 do então Secretário-Adjunto para os Assuntos Sociais e Orçamento sobre o recurso hierárquico facultativo que negou o pedido da A, mantendo a liquidação oficiosa realizada pelo Chefe da Repartição de Finanças de Macau da Direcção dos Serviços de Finanças.
Posteriormente, o Secretário para a Economia e Finanças interpôs recurso perante o nosso tribunal pedindo que seja anulado o acórdão do Tribunal de Segunda Instância. Os principais fundamentos do recurso constantes das alegações são:
1) Antes de mais, o recorrente aceita que a liquidação adicional tenha a natureza de acto tributário. No entanto, não aceita que o poder discricionário do Chefe da Repartição de Finanças de Macau esteja condicionado por momentos de vinculação e que tenha sido mal exercido, nomeadamente através da utilização de um critério (recorrer aos preços de venda de veículos em Hong Kong, divulgados numa revista de automobilismo) classificado como claramente desacertado.
2) Não era possível ao Chefe da Repartição de Finanças conjugar tal critério com outros “items” como o preço de venda declarado por outros agentes, pois, como é do conhecimento geral e reconhecido expressamente pela própria sociedade “A”, esta empresa era ao tempo a única representante desta marca em Macau, sendo a importadora e agente exclusivo desses veículos Mazda nesta região.
3) Sendo esta sociedade o único “dealer” autorizado da Mazda em Macau, a Administração Fiscal apenas se podia socorrer do preço de venda ao público (PVP) praticado em Hong Kong por forma a determinar o PVP dos dois modelos de veículos em causa, tendo em conta a similitude dos dois mercados.
4) É manifesto que existem erros e omissões no tocante às declarações de liquidação modelo M/4 apresentadas pela A, de que resultou prejuízo manifesto para o Território, nos termos do art.° 15.º, n.°1, al. a) do Regulamento do Imposto Sobre Veículos Motorizados (RIVM), e é ainda inquestionável que o preço de venda dos veículos em causa foi claramente superior ao declarado.
5) As considerações vertidas pela sociedade não merecem credibilidade, mormente os valores discriminados, respeitantes ao alarme e às garantias concedidas pelo “dealer” de Hong Kong e de Macau, nunca justificariam a diferença abismal entre o preço de venda ao público declarado pela sociedade e o valor efectivamente praticado e adoptado pela Administração Fiscal.
Sendo ainda totalmente infundadas as considerações da sociedade no que respeita aos mercados de Hong Kong e de Macau, sobretudo quando refere, sem razão, que a crise económica e a forte retracção do consumo atingiram muito violentamente os “dealers” de automóveis de Macau do que os de Hong Kong.
6) Noutro prisma, entendemos que seria sempre desnecessária a consulta a outras autoridades fiscais, porquanto é do conhecimento geral que, em todo o mundo, as revistas de especialidade automóvel apresentam hoje listas de preços de veículos, com a discriminação do PVP, bem como do fraccionamento desse valor, constando desses documentos o valor exacto que é cobrado a título de imposto por país, como acontece em Portugal, em Hong Kong, ou em qualquer outro país em que se publiquem essas revistas especializadas.
De resto, entendemos que essas revistas privadas prestam um serviço público, que é o de apresentarem listas com informações fidedignas e verdadeiras aos compradores de veículos em geral, sob risco de, faltando à verdade, não sobreviverem no mercado. E somos em crer que o respectivo estatuto editorial não poderá deixar de se nortear por esse objectivo.
Mais, a informação prestada nessas listas terá que assentar sempre em critérios objectivos, como sejam o das características técnicas dos veículos, a que corresponderá um determinado preço de venda ao público. Não entram na sua elaboração quaisquer critérios subjectivos como sejam o da apreciação das linhas estéticas do modelo em causa ou das respectivas performances.
A própria sociedade veio ratificar os preços de venda ao público adoptados pela Administração Fiscal, apresentando para o efeito dois documentos (doc. n.f 48 e 49) que, segundo mesma, são duas listas de preços fornecidas pelo “dealer ”, e que confirmam na íntegra esses valores.
7) Sendo pacífico que o preço de venda das viaturas, da mesma marca e do mesmo modelo, será, à partida, superior em Macau comparativamente com Hong Kong, em face dos custos acrescidos de transporte.
8) O Chefe da Repartição de Finanças de Macau limitou-se a fixar um preço de venda ao público superior ao declarado pelo contribuinte, com base em elementos e informações credíveis que dispunha e que indiciavam claramente que este era manifestamente inferior ao praticado, tudo nos termos e ao abrigo do disposto no art.° 8.º, n.° 6 do RIVM.
Conclui-se assim que o critério adoptado pelo Chefe da Repartição de Finanças de Macau, tomando como preço de referência o praticado no território vizinho de Hong Kong, é perfeitamente legítimo, encontrando-se a coberto da discricionariedade técnica que a Administração Fiscal goza nesta área.
9) Entendemos que os Venerandos Juízes do Tribunal de Segunda Instância deveriam ter apreciado a questão do desvio de poder, arguido pela sociedade, nos termos do art.° 660.º, n.° 1 do Código de Processo Civil (CPC) de 1961, aplicável por força do disposto no art.° 2.º do Decreto-Lei n.º 55/99/M que aprovou o novo CPC.
Segundo esse regime, o Tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuando aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Não tendo o tribunal recorrido pronunciado sobre a questão suscitada com referência ao desvio de poder, peca assim a decisão por deficiência.
Enferma assim de nulidade a sentença recorrida, nos termos da al. d) do n.° 1 do art.° 668.º do CPC de 1961.

A recorrida pede, nas suas contra-alegações, que o recurso seja julgado improcedente, mantendo o acórdão recorrido. Os principais fundamentos são:
1) A faculdade atribuída ao Chefe da Repartição de Finanças de Macau (CRFM) pelas disposições conjugadas do n.° 1 do art.° 15.° e do n.° 6 do art.° 8.°, ambos do RIVM, não se trata de um poder discricionário absoluto, uma vez que a lei não deixa dúvidas acerca dos limites daquela faculdade: a mesma deve basear-se em elementos concretos que levem a Administração Fiscal a crer que o valor declarado é manifestamente inferior ao praticado.
Não quaisquer elementos, mas elementos rigorosos, objectivos e credíveis.
O critério de que lançou mão o CRFM para as liquidações adicionais oficiosas em discussão nestes autos é inaceitável, porque nada rigoroso ou objectivo, e bastante preguiçoso e subjectivo. Ao adoptar o referido critério, o CFRM extravasou claramente a faculdade que a lei lhe confere, em termos limitados, de não seguir os PVP declarados pelo contribuinte.
2) O facto de o CRFM não poder lançar mão de outros elementos como o preço de venda declarado por outros agentes por a A ser agente único da Mazda em Macau é uma falsa questão, posto que a referência feita no acórdão a este ponto é meramente lateral e exemplificativa e expressamente respeitante à previsão do n.º 2 do art.º 10.º do RIVM (importação de veículo para uso próprio), ali trazida à liça precisamente para comparar o caso dos autos com aqueles em que a lei autoriza o recurso aos preços de Hong Kong (e mesmo assim apenas como critério subsidiário ou residual).
3) A recorrida em lado algum pôs em causa os predicados das revistas de automóveis. O que a ora recorrida afirmou, clara e objectivamente, foi que uma revista de automóveis de Hong Kong não pode em circunstância alguma servir de suporte – muito menos de único suporte, ou “único dado objectivo ao dispor da administração fiscal”, no dizer do CRFM – à fixação de impostos, ao arrepio de tudo o que detalhadamente a lei estipula quanto a essa matéria.
Inúmeros factores contribuíam, no caso sub judice para que os preços alegadamente praticados em Hong Kong fossem totalmente inaplicáveis a Macau.
Não obstante a ora recorrida ter escalpelizado detalhadamente quais as características que os modelos dos veículos em discussão possuíam em Hong Kong e não eram oferecidos aos consumidores de Macau, a verdade é que o acórdão recorrido não se serviu de tais argumentos na sua fundamentação.
4) As listas a que o recorrente alude (doc. n.s 48 e 49 da petição de recurso contencioso) foram juntas para atestar as diferentes especificações técnicas oferecidas pelos “dealers” de Hong Kong, por um lado, e as oferecidas pela ora recorrida, por outro.
Diferenças essas que justificavam, em larga escala, diferenças de preço acentuadas entre os dois mercados, o que, a par de outros factores, tornavam os preços de Hong Kong inaplicáveis em Macau.
5) Ao decidir pela procedência do recurso na parte relativa ao vício de violação de lei, anulando assim as liquidações adicionais oficiosas conforme peticionado, desnecessária se tornou a apreciação do alegado vício de desvio de poder. O motivo é evidente: qualquer que fosse a posição do Tribunal de Segunda Instância sobre esta última questão, sempre a decisão final seria a mesma.
Por essa razão, a apreciação pelo Tribunal de Segunda Instância deste alegado vício ficou prejudicada pela decisão que recaiu sobre a primeira questão levantada (art.°s 660.º, n.º 2 do CPC de 1961 e 563.º, n.º 2 do actual CPC).

A Exma. Senhora Procuradora-Adjunta emitiu o seguinte parecer:
1) Tal como é expressamente previsto na lei, é de jurisprudência uniforme que não existe a nulidade da al. d) do n.º 1 do art.º 668.º do Código de Processo Civil de 1961 quando se não conhece de questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
No presente caso concreto, como o Tribunal de Segunda Instância entendeu que se verificava o vício de violação de lei no despacho recorrido, que deu origem à anulação do mesmo, a apreciação e a consequente decisão sobre a questão do desvio de poder ficaram já prejudicadas uma vez que, independentemente da sua decisão, o despacho recorrido devia ser sempre anulado, pelo que não existe a nulidade resultante de omissão de pronúncia invocada pelo recorrente.
2) Acompanhamos o entendimento do representante do Ministério Público junto do Tribunal de Segunda Instância no sentido de que o acto da Administração Fiscal praticado ao abrigo do art.º 8.º, n.º 6 da Lei n.° 20/96/M não pode ser considerado como discricionário, mas sim “há momentos de vinculação” como diz muito bem no acórdão recorrido, uma vez que a lei exige a disposição de elementos indiciadores que permitam fixar um preço diferente (superior ao declarado).
Como se sabe, “a violação de lei é um vício exclusivo dos momentos vinculados do acto administrativo, sendo impossível a sua verificação quando se exercem poderes discricionários” (Mário Esteves de Oliveira, Direito Administrativo, volume I). Ou seja, no campo de actividade vinculada é que é possível a verificação do vício de violação de lei.
3) Não obstante a falta de indicação, a título exemplificativo como é feito nos casos previstos nos art.ºs 10.º, n.º 2 e 15.º, n.º 1 da Lei n.° 20/96/M, de elementos que indiciem a diferença dos preços declarados e praticados que a Administração Fiscal dispõe para servir de base à fixação dum valor superior ao preço declarado, cremos que o legislador não quis com isto dizer que qualquer elemento serve para o efeito. De facto, os elementos exigidos por lei têm que ser objectivos com credibilidade e força para validamente porem em causa os valores constantes da documentação apresentada aos autos. E entendemos que os preços constantes na revista “Auto-Magazine”, o único elemento objectivo ao dispor da Administração fiscal, não são suficientes para porem em causa os preços declarados pela sociedade recorrida e para fazer crer que os mesmos preços são efectivamente inferiores aos praticados, nomeadamente face aos documentos – contratos de compra e venda – juntos aos autos e ao facto de que está em causa um contribuinte do Grupo A, com a contabilidade organizada e auditada por contabilistas inscritos nos Serviços de Finanças, factor este que deve merecer atenção.
Não podemos dizer que, como a Administração fiscal dispõe de um único elemento para efeito de comparar os preços, então temos de aceitar esse elemento como suficiente e credível para, em conformidade com ele, fixar um valor superior ao declarado.
E por outro lado, uma coisa é achar que o preço declarado é inferior ao praticado e a outra é encontrar elementos credíveis para comprová-la e fixar um outro montante superior.
Nestes termos, entendemos que é de julgar verificado no acto da entidade recorrida o vício de violação de lei, que necessariamente conduz à anulação do acto.
Concluindo, deve-se manter o acórdão do Tribunal de Segunda Instância, negando provimento ao recurso interposto.

Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.


2. Fundamentos
(1) Os factos considerados provados no acórdão recorrido:
A recorrente (refere-se à A) é importadora, e venda ao público em Macau, dos veículos automóveis de marca Mazda.
Em 1998 procedeu à venda de catorze veículos, sendo doze do modelo 323 1.3L 4DR SDN e dois do modelo MPV 5DR WAGON;
No primeiro semestre de 1998, entregou na Repartição de Finanças as declarações modelo M/3;
Apresentou, posteriormente, as declarações de liquidação modelo M/4;
De acordo com as declarações M/3 o preço de venda ao público do Mazda 323 1.3L 4DR SDN era de $61.572,00 patacas (em Fevereiro de 1998), $46.439,00 patacas (em Abril de 1998), $56.818,00 patacas (em Junho de 1998), $46.439,00 patacas (em Junho de 1998) e de $36.050,00 patacas (em Julho de 1998);
O preço de venda ao público do Mazda 5DR WAGON era de $98.900,00 patacas (em Junho de 1998);
O Chefe da Repartição de Finanças não aceitou preços declarados, corrigindo-os oficiosamente;
O montante global das liquidações adicionais ascendeu a $195.234,00 patacas;
Justificou a correcção oficiosa nos seguintes termos:
“Com efeito, é apodíctico para qualquer cidadão comum que a grande maioria, se não a totalidade, dos veículos motorizados em venda no território de Macau, provêm de Hong Kong.
Ora, qualquer lei de mercado, ainda que na sua estruturação mais básica evidencia que esses veículos chegam a Macau com um valor naturalmente superior ao de Hong Kong, já que inexistindo um porto de águas profundas no Território, temos de somar ao preço do veículo em Hong Kong o preço do transporte do mesmo, em condições muito mais onerosas para o nosso mercado e, consequentemente, para o adquirente.
A tão propalada crise económica asiática também atingiu esse mercado o que no entanto não levou a que os seus agentes económicos do ramo automóvel aderissem à tentação de distorcer os preços normais de mercado como forma de obter vantagens económicas indevidas.”
O Secretário-Adjunto para os Assuntos Sociais e Orçamento indeferiu o recurso hierárquico necessário adquele despacho, em 12 de Janeiro de 1999, mantendo o acto recorrido.

(2) As questões a apreciar:
- Omissão de pronúncia;
- Liquidação oficiosa.

1. O recorrente entende que o tribunal recorrido não apreciou o vício de desvio de poder invocado pela então recorrente A, que torna o acórdão recorrido deficiente. Este é nulo nos termos do art.n 668. , n., 1, al. d) do CPC de 1961.
Para apreciar esta questão, é necessário determinar, antes de mais, as normas legais aplicáveis.
Segundo o disposto no art.S 9.., n., 3 do Decreto-Lei n. 110/99/M, os processos pendentes à data de entrada em vigor (no dia 20 de Dezembro de 1999) do Código de Processo Administrativo Contencioso continuam a reger-se, até ao trânsito em julgado da decisão que lhes ponha termo, pela legislação ora revogada. Uma vez que o presente recurso foi interposto em 6 de Abril de 1999, ou seja, antes da entrada em vigor daquele Código, é ainda aplicável ao presente recurso a Lei de Processo nos Tribunais Administrativos aprovada pelo Decreto-Lei n.i 267/85, de acordo com o referido preceito. Nos termos do art./ 1. da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, o processo nos tribunais administrativos rege-se, supletivamente, pelo disposto na lei de processo civil com as necessárias adaptações. Assim, é lei subsidiária do contencioso administrativo o Código de Processo Civil devidamente adaptado.

Sobre os dois vícios de violação de lei e de desvio de poder, do acto do então Secretário-Adjunto para os Assuntos Sociais e Orçamento impugnado, indicados pela A no recurso contencioso, o tribunal recorrido entende que ambos são conducentes à anulação do acto impugnado e não possibilitam uma renovação do acto, dando, de igual modo, protecção ao interessado. Por isso, foi seguida a ordem de conhecimento dos vícios indicada pela recorrente, ou seja, foi conhecido, em primeiro lugar, o vício de violação de lei.

A questão relacionada com a omissão de pronúnica invocada pelo recorrente não foi suscitada por este na fase do anterior recurso, mas antes pela outra parte, a então recorrente como um dos fundamentos do seu recurso. Nos termos do art. 203. , n., 1 do CPC de 1961, a nulildade só pode ser invocada, em princípio, pelos respectivos interessados. Só os interessados na declaração de nulidade de um acto ou omissão ilegal têm legitimidade a suscitá-la, pedindo a sua apreciação pelo tribunal.
Agora, o recorrente invocou o omissão de pronúncia susceptível de levar a declarar nulo o acórdão. No entanto, aquele só tem legitimidade para suscitar esta questão se fosse prejudicado pela falta de apreciação do vício de desvio de poder. De facto, foi contrário, uma vez que no acórdão recorrido se considera que existia vício de violação de lei no acto impugnado que levou à anulação deste. Não ia ser alterada a decisão constante do acórdão de anular o acto mesmo que continuasse a apreciar o vício de desvio de poder suscitado pela então recorrente, independentemente de considerar existir ou não o mesmo vício. Por isso, no exclusivo âmbito da questão da falta de pronúncia do vício de desvio de poder, o recorrente não ficou prejudicado e, consequentemente, não tem legitimidade para suscitar a omissão de pronúncia.
À mesma conclusão chegará nos termos do art.À 149. , n., 1 do CPC actual.
Além disso, é muito clara a disposição do art.ç 668. , n., 1, al. d) do CPC de 1961 no sentido de que só provocaria a nulidade de sentença se, entre outras situações, o juiz deixou de pronuciar sobre a questão que devia ser apreciada. De facto, a lei regula com bastante clareza em relação às questões que o juiz deve pronunciar no julgamento. Segundo o art.s 660. , n., 2 do mesmo Código, o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Isso implica que o juiz não precisa de se preocupar com as questões que perdem qualquer influência em relação à decisão final no decurso do julgamento.
Por outro lado, de acordo com o art.P 57. , n., 1 da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos sobre a ordem de conhecimento dos vícios, quando for julgado verificado um vício que determina à declaração de nulidade do acto impugnado, não há necessidade de apreciar os outros vícios, uma vez que se trata da consequência mais grave para o acto impugnado e que se permite a garantia mais completa dos direitos e interesses legais do recorrente.
Pelo que improcede o pedido do recorrente de declarar nulo o acórdão recorrido por omissão de pronúncia.


2. O tribunal recorrido considera que o poder do Chefe da Repartição de Finanças de Macau (CRFM) previsto no art.°s 8.°, n.° 6 e 15.°, n.° 1 do RIVM não tem a natureza puramente discricionária. Há momentos de vinculação e nessa medida o tribunal pode sindicar-se o respectivo acto com base em erro notório ou na adopção de critérios manifestamente desacertados ou inaceitáveis.
Em relação ao próprio acto do então Secretário-Adjunto para os Assuntos Sociais e Orçamento ora impugnado, o tribunal recorrido entende que as autoridades fiscais adoptaram um critério claramente desacertado ao recorrer apenas aos preços praticados em Hong Kong. E os respectivos preços devem ser encontrados com algum rigor que não com base apenas numa listagem de preços de uma revista privada. Face a um contribuinte do grupo A, mais seria de exigir, pelo menos, que partisse de critérios tão rigorosos como o seu sistema contabilístico.

O imposto sobre veículos motorizados foi criado pela Lei n.O 20/96/M. Por esta foi aprovado o Regulamento do Imposto sobre Veículos Motorizados. Algumas disposições destes diplomas legais foram alteradas pela Lei n.i 7/98/M.
De acordo com o art.o 1. , n., 1, al. a) do RIVM, o imposto incide sobre, entre outras situações: “As transmissões para os consumidores, de veículos motorizados novos, efectuadas no Território por um sujeito passivo agindo nessa qualidade.”. Segundo o mesmo Regulamento, considera-se transmissões “a alienação, aquisição ou transferência, por qualquer título ou de qualquer natureza, da titularidade sobre os veículos …, por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade.”. Isto é, é sempre tributado quando um sujeito passivo transmite em Macau um novo veículo motorizado ao consumidor.
A base de cálculo do valor tributável é o preço de venda ao público declarado pelo sujeito passivo à Direcção dos Serviços de Finanças (DSF). O preço de venda ao público representa o preço a pagar pelos consumidores e inclui os valores referentes a garantias de manutenção, assistência e substituição de peças, bem como a todos os acessórios (art.i 8. e 9. do RIVM).
Em princípio, o valor tributável é calculado pela Repartição de Finanças de Macau de acordo com o preço de venda ao público declarado pelo sujeito passivo. No entanto, determina o art.E 8. , n., 6 do RIVM: “O chefe da Repartição de Finanças (actualmente o chefe da Repartição de Finanças de Macau) pode fixar um preço de venda ao público superior ao declarado sempre que disponha de elementos que indiciem que este é manifestamente inferior ao praticado.”. Segundo esta disposição, quando houver elementos que mostrem que o preço de venda ao público declarado à DSF pelo sujeito passivo for manifestamente inferior ao praticado, o CRFM pode determinar oficiosamente um preço de venda ao público superior ao declarado que serve de base ao cálculo ao valor do imposto sobre veículos motorizados a pagar.
Está regulada concretamente a liquidação oficiosa no art.E 15. , n., 1 do RIVM:
“1. O chefe da Repartição de Finanças procede à liquidação oficiosa do imposto, com base em elementos ao dispor dos serviços, nomeadamente o montante médio do imposto liquidado no trimestre anterior ou o valor tributável calculado nos termos dos artigos 9.s a 11. , nos seguintes casos:
a) Falta total ou parcial de liquidação do imposto por parte do sujeito passivo, omissões ou erros de que haja resultado prejuízo para o Território;
b) …
c) Fixação de um preço de venda superior ao declarado, nos termos do n.c 6 do artigo 8. ;
d) …
e) …”
Segundo este preceito, há disposições legais claras e concretas sobre os elementos de base para a liquidação oficiosa a efectuar pelo CRFM, nelas refere como exemplo o montante médio do imposto liquidado no trimestre anterior e o preço que serve de base ao cálculo do imposto resultado dos art.rs 9.s a 11. do RIVM.
Está previsto nos art.Es 9.s a 11.1 do RIVM o modo de cálculo do preço a tributar nas situações de venda ao público, importação para uso próprio e afectação para uso próprio. Nos termos destes artigos, quando não tenha sido declarado o preço de venda ao público, o preço a tributar é determinado segundo os seguintes elementos: os preços de venda ao público declarados por outros agentes económicos, o preço de venda ao público praticado em Hong Kong ou nos locais de origem acrescido das respectivas despesas de transporte e seguro, bem como outros elementos à disposição da Administração Fiscal.
Resumindo, quando o CRFM considera que o preço de venda de veículos declarados pelo sujeito passivo seja manifestamente inferior ao preço de venda ao público efectivamente praticado no mercado, pode fixar um preço de venda ao público que serve de base ao cálculo do imposto sobre veículos motorizados de acordo com os elementos disponíveis, nomeadamente:
- o montante médio do imposto liquidado no trimestre anterior;
- os preços de venda ao público declarados por outros agentes económicos;
- o preço de venda ao público praticado em Hong Kong ou nos locais de origem acrescido das respectivas despesas de transporte e seguro;
- outros elementos à disposição da Administração Fiscal.

O recorrente salienta que está no âmbito da discricionariedade técnica quando fixar o preço tributável socorrendo aos preços de venda ao público em Hong Kong, não estando limitado pelos elementos vinculativos. Ao passo que, tanto o tribunal recorrido como a recorrida, considera que o poder conferido ao CRFM pelos art.°s 8.°, n.° 6 e 15.°, n.° 1 do RIVM não é puramente discricionário, contendo elementos vinculativos.
Em bom rigor, o poder previsto nos dois preceitos referidos respeita a duas fases da liquidação adicional. É um dos pressupostos da liquidação oficiosa adicional o que está previsto no art.° 8.°, n.° 6. E o disposto do art.° 15.°, n.° 1 indica os elementos e dados a considerar ao proceder concretamente à liquidação adicional.
A discricionariedade técnica consiste no juízo de valoração feito pela Administração com recurso à aplicação de critérios técnicos e manifesta frequentemente na utilização de conceitos altamente específicos e técnicos de outros ramos de ciência (v.g. física, medicina, engenharia, sociologia, etc.) na área jurídica para delimitar os pressupostos de actividades administrativas.
Nas referidas duas fases não há discricionariedade técnica, uma vez que não é exigido o recurso ao conhecimento específico e técnico de outras ciências nem necessidade de estudos técnicos e especializados.

Ao apreciar o problema de liquidação oficiosa adicional, deve-se examinar, em primeiro lugar, sobre a verificação dos requisitos da fixação pelo CRFM de um preço de venda ao público superior ao declarado nos termos do art.° 8.°., n.° 6 do RIVM. Esta norma exige às autoridades fiscais elementos indiciadores de que o preço declarado seja manifestamente inferior ao preço praticado, isto é, os elementos que servem de prova indiciária que conseguem mostrar esta situação.
Prescreve o referido art.° 8.°, n.° 6 do RIVM: “O Chefe da Repartição de Finanças de Macau pode … sempre que disponha de elementos que indiciem que este (o preço declarado) é manifestamente inferior ao praticado.”. Por não ter sido suscitado neste recurso o problema de que o preço declarado é manifestamente inferior ao praticado, centramos a nossa atenção à parte inicial desta norma “… sempre que disponha de elementos que indiciem …”. A lei exige aqui indício e não prova, estamos, então, no domínio de prova indiciária. A aplicação desta norma trata-se da concretização de um conceito indeterminado. Isso não implica a valoração volitiva inerente ao exercício do poder discricionário. A interpretação e a aplicação do conceito indeterminado tem por objectivo procurar o seu verdadeiro significado jurídico. A Administração não tem a liberdade de escolher determinada interpretação, mas antes procurar a única interpretação. Trata-se de um acto legalmente vinculado cuja legalidade é susceptível de sindicabilidade judicial.
A partir do processo administrativo juntado aos presentes autos de recurso sabemos que o CRFM considerou os preços de veículos dos mesmos modelos em Hong Kong divulgados numa revista de automóveis, foi feita a análise dos respectivos dados: descontou o preço dos aparelhos receptores e reprodutores de som e os impostos de Hong Kong, chegando, assim, ao preço bruto do automóvel em Hong Kong, e as publicidades de venda de automóveis divulgadas pela recorrida no “Macao Daily” em Fevereiro, Maio e Junho de 1998. De acordo com estes elementos, o CRFM considera que os preços declarados pela recorrida são manifestamente inferiores aos praticados. Atendendo a similitude dos mercados de automóveis de Macau e de Hong Kong, não há grande diferença dos preços de automóveis do mesmo modelo nas duas regiões. As provas indiciárias não servem para provar plenamente um facto, mas antes presumir um facto a partir de um outro já conhecido, com a probabilidade mais positiva do que negativa. Por isso, os mencionados elementos, a partir dos quais se procede a comparação, são mais que suficientes para servir como prova indiciária para mostrar a relação entre os preços de automóveis de Macau e os de Hong Kong.
A decisão do CRFM de proceder oficiosamente à liquidação adicional não violou o disposto no art.° 8.°, n.° 6 do RIVM. Verificado o respectivo pressuposto, passa a realizar concretamente a liquidação prevista no art.° 15.°, n.° 1 do mesmo regulamento.

Fixar o preço a ser tributado através da realização oficiosa de liquidação adicional significa que o CRFM não adopta como base de cálculo os preços declarados pelo sujeito passivo, mas antes procede à liquidação a partir de outros elementos previstos na lei. Tal como foi referido, os elementos são os que estão na disposição das autoridades fiscais, neles podem incluir o montante médio do imposto liquidado no trimestre anterior; os preços de venda ao público declarados por outros agentes económicos; ou o preço de venda ao público praticado em Hong Kong ou nos locais de origem acrescido das respectivas despesas de transporte e seguro.
Tal como acontece com o poder previsto no art.° 8.°, n.° 6 do RIVM, não há necessidade de recorrer ao conhecimento específico de outros ramos de ciência ao proceder à liquidação adicional pelo CRFM. Na realização concreta da liquidação, não há várias soluções legalmente indiferentes. Normalmente, determinar a matéria colectável é um problema de estrita legalidade em que só há um valor conforme à lei. O respectivo acto das autoridades fiscais é vinculado, nele não comporta juízos de valores relativamente à oportunidade ou conveniência. Por isso, o acto é sindicável judicialmente no âmbito de contencioso administrativo com base na sua legalidade.
No acórdão recorrido foi qualificado claramente desacertado o critério adoptado pelas autoridades fiscais ao considerar apenas os preços de venda de automóveis praticados em Hong Kong. Ao passo que, para o recorrente, é perfeitamente legítimo recorrer aos preços de Hong Kong pelo CRFM para servir como base de cálculo do imposto.
O presente recurso está relacionado com dois modelos de veículos automóveis da marca Mazda. Tal como foi reconhecido pela recorrida, a A é o único agente de representação da marca Mazda em Macau. Face à esta situação, não é possível que haja outro agente em Macau que possa fornecer os preços de venda ao público como referência, tornando necessário recorrer aos preços de venda de automóveis do exterior. Hong Kong é, sem dúvida, o mais adequado mercado de referência. De facto, quase todos os automóveis de Macau são importados através de Hong Kong. A diferença dos critérios de consumo das duas regiões é mínima. Os automóveis têm os semelhantes consumidores particulares. Não há grande diferença dos preços em duas regiões. Fora de diferença dos impostos, é facto notório que raramente verifica diferença significativa entre os preço de venda de automóveis de Macau e os de Hong Kong. Por estas razões, o preços de venda dum determinado modelo de automóvel em Hong Kong pode servir perfeitamente como dado de referência para calcular o imposto de veículo automóvel de Macau ao proceder à avaliação do seu preço efectivamente praticado no mercado. Por outro lado, os veículos em causa foram vendidos entre Fevereiro e Julho de 1998. Não há prova de que os preços de venda de automóveis em Macau sofreram descida muito mais acentuada do que em Hong Kong em consequência da influência da crise financeira.
Na realidade, pode servir como um dos dados de referência na liquidação adicional a realizar oficiosamente o preço de venda ao público praticado em Hong Kong acrescido das despesas de transporte e seguro nos termos do art.° 15.°, n.° 1 e 10.°, n.° 2 do RIVM. Em comparação com o preço de todo o veículo, a diferença de acessórios normais de automóveis nas duas regiões tem pouca influência que não torna inútil socorrer ao preço de venda ao público em Hong Kong. É de notar ainda que o preço de venda de automóveis é normalmente superior ao de Hong Kong por acréscimo das despesas de transporte e diminuta procura em relação ao mercado de Hong Kong. No entanto, o CRFM não fixou um preço mais elevado do que o preço de referência de Hong Kong por este factor.
O tribunal recorrido e a recorrida consideram que uma revista de automóveis não pode servir como base de cálculo do imposto. Conforme o referido, o CRFM socorreu a vários elementos segundo o processo administrativo juntado aos presentes autos, que inclui listas de preços publicadas na revista de automóvel em momentos diferentes. Normalmente, os preços constantes da lista de revistas de automóveis reflectem os preços do mercado local. Realmente, os preços dos dois modelos em causa referidos nas listas de preços (doc. n.°s 48 e 49 juntos com a petição inicial da recorrida a fls. 159 e 160) da Limited apresentadas pela recorrida correspondem exactamente aos preços constantes da informação da revista de automóveis juntada pelo CRFM. Assim mostra que os preços de revistas de automóveis reflectem, pelo menos em alguma medida, os preços no mercado.
A recorrida salienta que a mesma é contribuinte de grupo A e tem a contabilidade organizada e auditada por contabilistas inscritos na DSF nos termos da lei e considera que o CRFM não cuida minimamente os documentos de venda completos juntos com a petição inicial pela recorrida. Face a estas considerações, deve ter em conta, em primeiro lugar, que a rigorosa organização de contabilidade é uma das exigências legais em relação às actividades comerciais. Em segundo lugar, a recorrida confunde o sentido do preço declarado com o do preço praticado que serve de base de cálculo do valor tributável resultado da liquidação adicional realizada oficiosamente pelo CRFM. De facto, os documentos em si suporte das declarações não foram postos em causa pelo CRFM. No entanto, o CRFM não está sempre obrigado a liquidar o imposto segundo o preço declarado. Quando o CRFM considerar que o preço declarado for manifestamente inferior ao preço efectivamente praticado no mercado, em vez de liquidar o imposto simplesmente com base no preço declarado, pode fixar um preço como base do cálculo do valor do imposto no uso do poder previsto no art.° 15.° do RIVM a fim de garantir a igualdade e as receitas públicas. Os valores dos dois preços são necessariamente diferentes, pelo que o preço fixado não resulta directamente dos documentos de declaração apresentados pela recorrida.
Assim, também não há violação da disposição constante do art.° 15.°, n.° 1 do RIVM na liquidação adicional do imposto de veículo motorizado realizada oficiosamente pelo Chefe da Repartição de Finanças de Macau.

Não se verifica o vício de violação de lei no acto em discussão no recurso contencioso, pelo que o pedido do recorrente procede.


3. Decisão
Pelo exposto, o Tribunal julga o recurso procedente e revoga o acórdão do Tribunal de Segunda Instância, devendo este apreciar o outro fundamento do recurso contencioso, se nada obstar ao seu conhecimento.
Custas pela recorrida com a taxa de justiça fixada em seis UC.
Não é tributado o recorrente por estar isento legalmente.


Aos 26 de Julho de 2000.


Juízes: Chu Kin (relator)
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

Magistrada do Ministério Público
presente na conferência: Song Man Lei


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A tradução portuguesa do acórdão é elaborada pelo relator.

O Relator
Chu Kin




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Recurso n.° 10/2000 p. 1-24