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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

1. A, Limitada interpôs recurso contencioso de anulação do despacho do Secretário-Adjunto para os Transportes e Obras Públicas, de 15 de Janeiro de 1997, que, em recurso hierárquico, manteve a decisão da Comissão de Abertura de Propostas que não admitiu a proposta da ora recorrente, em concurso para aproveitamento de um terreno (Lote TN 27), junto à Estrada Coronel Mesquita, na Ilha da Taipa, ao abrigo dos contratos de desenvolvimento para a habitação.
Por Acórdão de 16 de Março de 2000, do Tribunal de Segunda Instância, foi rejeitado o recurso, com o fundamento de que a recorrente, convidada a apresentar nova petição identificando os contra-interessados a quem o eventual provimento do recurso pudesse directamente prejudicar, não o ter feito, pois se limitou a juntar uma adenda (e não uma nova petição) enumerando todos os concorrentes ao concurso público, olvidando ostensivamente que o único concorrente que poderia ser prejudicado seria o concorrente vencedor, a quem a obra foi adjudicada.
   É deste Acórdão que vem interposto o presente recurso jurisdicional, terminando a recorrente a sua alegação com a formulação das seguintes conclusões:
   - A recorrente acedeu ao “convite-despacho” de aperfeiçoamento de fls. 121 v., ao indicar, mediante o requerimento de fls. 123 e ss., a denominação, morada e informação comercial dos contra-interessados a quem o provimento do recurso pudesse eventualmente prejudicar, os quais, por não ter havido concursante vencedor, seriam todos os concorrentes, mantendo expressamente, nos seus precisos termos, a petição de recurso;
   - Constam dos autos todos os elementos necessários à decisão do recurso contencioso de anulação interposto pela recorrente;
   - O acórdão recorrido violou o disposto nos arts. 477.° n.° 1 do Código de Processo Civil, aprovado pelo D.L. n° 44.129 de 28 de Dezembro de 1961 e 40.° n.° 1 alínea b) da LPTA.
   A entidade recorrida, actualmente o Secretário para os Transportes e Obras Públicas, não apresentou alegação.
   Neste recurso jurisdicional, a Exma Procuradora-Adjunta emitiu o seguinte parecer:
   «Cremos que não lhe assiste razão (à recorrente).
   A fls. 121v. dos presentes autos, o juiz relator convidou, nos termos do art. 40.º n.º 1 alínea b) da LPTA, a recorrente para “apresentar nova petição corrigida onde identifique os interessados a quem o eventual provimento do recurso possa directamente prejudicar”.
   Na sequência desse despacho, a recorrente veio indicar os restantes candidatos do recurso (deveria querer referir-se a concurso), ao qual foram apresentadas 10 propostas (incluindo a da ora recorrente) e admitidos 8 candidatos. Ou seja, a recorrente indicou, como contra-interessado, também um outro que não tinha sido admitido no concurso.
   Com a não indicação, devida e precisa, dos contra-interessados (como lhe tinha sido pedido pelo tribunal), a recorrente não acatou o convite a aperfeiçoamento, já que o tribunal não a convidou a indicar todos os ostros concursantes.
   Por outro lado, com o despacho de aperfeiçoamento o tribunal pretendeu obter uma nova petição, como deixou muito claro no seu despacho.
   No entanto, o que a recorrente fez – limitou-se a manter nos seus precisos termos a petição anterior, sem juntar a nova petição – não pode ser considerado como cumprimento do convite feito pelo tribunal.
   E “seja qual for a situação que tenha levado o juiz a dirigir ao recorrente para regularização da petição temos para nós que ao tribunal está vedada a possibilidade de convidar mais de uma vez o recorrente, a corrigir ou a suprir a mesma deficiência ou irregularidade.” (Santos Botelho; contencioso Administrativo, pag. 203).
   Assim sendo, uma vez que se verifica o incumprimento do convite e o tribunal não pode formular novo convite de aperfeiçoamento, é de rejeitar o recurso interposto.
   Concluindo, deve-se manter o douto acórdão do Tribunal de Segunda Instância, negando provimento ao recurso interposto».
   
   2. Com interesse para a decisão, resulta dos autos o seguinte:
   A) A, Limitada interpôs recurso contencioso de anulação do despacho do Secretário-Adjunto para os Transportes e Obras Públicas, de 15 de Janeiro de 1997, que, em recurso hierárquico, manteve a decisão da Comissão de Abertura de Propostas que não admitiu a proposta da ora recorrente, em concurso para aproveitamento de um terreno (lote TN 27) junto à Estrada Coronel Mesquita, na Ilha da Taipa, ao abrigo dos contratos de desenvolvimento para a habitação;
   B) Já depois de apresentadas as alegações finais e sob promoção do Digno Magistrado do Ministério Público, o Exmo Relator no Tribunal de Segunda Instância proferiu o seguinte despacho:
   «Nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 40.º da L.P.T.A., convido a recorrente a apresentar nova petição corrigida onde identifique os interessados a quem o eventual provimento do recurso possa directamente prejudicar»;
C) Na sequência deste despacho veio a recorrente apresentar a seguinte peça:

   «A,
Tendo sido notificada para, nos termos da alínea b) do n° 1 do art. 40.° da LPTA, apresentar nova petição corrigida onde identifique os interessados a quem o eventual provimento do recurso possa prejudicar,
Vem expor e requerer o seguinte:

Veio a recorrente, em 18/03/1997, interpor o presente recurso contencioso de anulação do despacho exarado em 15 de Janeiro de 1997 pelo Secretário-Adjunto para os Transportes e Obras Públicas de Macau, que não admitiu a sua proposta de aproveitamento apresentada em sede de concurso público.

Nos termos da Acta do acto público de abertura das propostas, constante dos presentes autos, foram apresentadas dez propostas, entre as quais a da recorrente.

A haver algum interessado a quem o eventual provimento do recurso possa directamente prejudicar, terão que ser os restantes concorrentes, a seguir descriminados:
1. – Comércio e Construção Limitada, com sede em [Endereço (1)] (vd. Doc. n° 1);
2. – Sociedade de Construção e Investimento Predial Limitada (1), com sede em [Endereço (2)] (vd. Doc. n° 2);
3. Companhia de Construção e Investimento Predial, Limitada, com sede em [Endereço (3)] (vd. Doc. n° 3);
4. – Sociedade de Construção e Investimento Predial Limitada (2), com sede em [Endereço (4)] (vd. Doc. n° 4);
5. Engenharia Limitada, com sede em [Endereço (5)] (vd. Doc. n° 3);
6. Sociedade de Engenharia e Construção Limitada, com sede em [Endereço (6)] (vd. Doc. n° 6);
7. – Obras Públicas e Cimento Armado S.A., com sede em [Endereço (7)] (vd. Doc. n° 7);
8. Sociedade de Fomento Predial Limitada (1), com sede em [Endereço (8)] (vd. Doc. n° 8);
9. Sociedade de Fomento Predial, Limitada (2), com sede em [Endereço (9)] (vd. Doc. n° 9).
Nada mais tendo a corrigir, para além da indicação dos eventuais interessados acima discriminados, mantém nos seus precisos a petição de recurso constante dos autos.
Termos em que requer a junção do presente aos autos e o deferimento dos ulteriores termos processuais.
Junta: Substabelecimento, 9 documentos e cópia»;
   D) Após parecer do Digno Magistrado do Ministério Público, foi proferido o Acórdão recorrido, rejeitando o recurso, por entender, nomeadamente:
«A recorrente foi convidada a apresentar “nova petição” identificando os contra-interessados.
Pediu-se-lhe um novo articulado, que se bastasse a si próprio, e dirigido, também, contra os que pudessem ser prejudicados com o provimento do recurso.
Uma peça nova a ser-lhes entregue no acto da citação.
Acontece, porém, que não só não apresentou um novo articulado – antes, se limitando a uma mera adenda ao primitivo – como nem sequer identificou o contra-interessado.
Neste ponto, enumerou todos os concorrentes ao concurso público, olvidando, ostensivamente, que o único que poderia ser prejudicado com anulação do acto seria o concursante vencedor, aquele a quem a obra foi adjudicada.
Fica-se sem saber qual deles – se é que a algum o foi – já que a recorrente nem sequer esclarece este ponto.
Há, pois, incumprimento do convite a aperfeiçoar.
Situação que, como se acenou gera a rejeição do recurso (v.g. os Acórdãos do S.T.A., de Portugal, de 15 de Junho de 1979 – P.12437 – de 29 de Janeiro de 1991 – P. 28639 - ).
E nem se diga que à recorrente deveria ser dada outra oportunidade, através de novo convite.
Neste ponto adere-se à jurisprudência do S.T.A., de Portugal, ao julgar que “o convite de aperfeiçoamento de petição irregular não pode formular-se mais do que uma vez”. (Ac. de 4 de Março de 1992 – P. 29904)».

   3. Estando o processo já na sua fase terminal, para parecer do Ministério Público e decisão final, entendeu-se que a recorrente não havia indicado os interessados a quem o provimento do recurso poderia prejudicar, para poderem ser chamados ao processo, pelo que foi esta convidada, nos termos do art. 40.º, n.º 1, alínea b) do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16.7, também conhecido por Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, ou LPTA, «a apresentar nova petição corrigida onde identifique os interessados a quem o eventual provimento do recurso possa directamente prejudicar».
   A recorrente veio juntar um requerimento indicando todos os restantes oito candidatos ao concurso em questão, como os referidos interessados, acrescentando manter«nos seus precisos a petição de recurso constante dos autos».
   O Tribunal rejeitou o recurso, por considerar que a recorrente não dera cumprimento ao convite, por três ordens de razões:
   1. Não apresentou uma nova petição, mas um mero requerimento indicando os referidos interessados;
2. Enumerou todos os concorrentes e não apenas o vencedor do concurso;
3. O convite ao aperfeiçoamento de petição não pode formular-se mais do que uma vez.
   As questões a decidir são as de saber se são procedentes estes argumentos.
   
Da questão de saber se a falta de indicação, na petição, dos interessados a quem o provimento do recurso pudesse directamente prejudicar, poderia ser corrigida em mero requerimento autónomo, que não, necessariamente, com uma nova petição.

   4. A lei processual aplicável (pois só esta está em causa) é o bloco normativo anterior ao actual Código de Processo Administrativo Contencioso, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 110/99/M, de 13.12, ou seja, fundamentalmente, o já referido Decreto-Lei n.º 267/85, a Lei Orgânica e o Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo.
   O douto Acórdão recorrido começa por referir que a recorrente não apresentou uma nova petição, mas um mero requerimento indicando os interessados a quem o eventual provimento do recurso pudesse directamente prejudicar.
   Para conhecer desta questão, importa relembrar o conteúdo do art. 40.º do Decreto-Lei n.º 267/85:
    «Artigo 40.º
    (Regularização da petição)
   1. Sem prejuízo dos demais casos de regularização da petição de recurso, esta pode ser corrigida a convite do tribunal, até ser proferida decisão final, sempre que se verifique:
   a) A errada identificação do autor do acto recorrido, salvo se o erro for manifestamente indesculpável;
b) A falta ou o erro na indicação de identidade e residência dos interessados a quem o provimento do recurso possa directamente prejudicar.
2. …».
Assim, destas normas resulta que se pretende uma correcção da petição, o que, na verdade, parece apontar para a necessidade de apresentação de nova petição.
Por outro lado, o tribunal pode convidar o recorrente a corrigir a petição, no caso da alínea b), mesmo que a falta ou o erro na indicação de identidade e residência dos interessados a quem o provimento do recurso possa directamente prejudicar constitua um erro manifestamente indesculpável, como se depreende da comparação com o caso de correcção da alínea a)1.
Pois bem, o recorrente apresentou ou não nova petição?
É certo que, formalmente, não a apresentou, mas não deixou de, no requerimento em que elencou as identidades dos interessados, acrescentar que mantinha «nos seus precisos a petição de recurso constante dos autos».
Deste modo, numa visão não formalista parece que se poderia ter dado por cumprida a apresentação de nova petição.

5. Mas entendemos que, ainda que a recorrente não tivesse, formalmente, acrescentado que mantinha a petição já apresentada, mesmo assim deu cumprimento ao convite que lhe foi feito. Expliquemos porquê.
No direito de Macau, no âmbito do Código de Processo Civil de 19612, vigorava, quanto à tramitação do processo, o princípio da legalidade da forma, segundo o qual os termos do processo são fixados na lei e não deixados ao prudente critério do juiz3.
A legalidade da forma determina uma maior garantia e certeza para as partes, pois que, quando instauram uma acção ou se defendem no processo, conhecem logo os procedimentos a adoptar.
Foi tendo em vista esta vertente garantística da forma que JHERING4 sentenciou que «a forma é inimiga jurada do arbítrio, a irmã gémea da liberdade».
Não obstante, importa ponderar que o processo civil tem natureza instrumental5 e que, por isso e reflexamente, a forma do processo tem também natureza instrumental, donde, «as formas do processo previstas e prescritas na lei não servem para a realização de um fim próprio e autónomo, antes são estabelecidas como o instrumento mais idóneo para atingir um certo resultado, o qual constitui o único e verdadeiro objectivo da norma que disciplina a forma»6.
Ora, da instrumentalidade da forma aplicada aos actos processuais, retira PEDRO MADEIRA DE BRITO 7 os seguintes enunciados:
«1.º A lei não tipifica formalmente os actos, estes são praticados na forma mais adequada para atingir o fim (artigo 138.º);
2.º O acto a que faltem os requisitos indispensáveis para atingir o escopo é inválido, mas esta invalidade é irrelevante se o acto atingiu o fim para o qual se encontrava destinado (artigo 201.º);
3.º As regras de forma têm por função garantir os interesses das partes, o que se retira da regra da relevância genérica do vício formal no interesse de quem foi estabelecido (artigo 203.º)».
O enunciado sob o n.o 2 conduz-nos a considerar, de uma banda, que ainda que a lei exigisse a apresentação de uma nova petição, no caso dos autos teria de se aceitar a apresentação do requerimento com a identidade e residência dos interessados passivos, pois o fim visado pela norma da alínea b), do n.º 1, do art. 40.º do Decreto-Lei n.º 267/85 - que é o de possibilitar que, a todo o tempo, possam ser chamadas ao processo as partes com legitimidade passiva, com vista a impedir rejeição do recurso com fundamento em ilegitimidade passiva - é evidentemente atingido com o referido requerimento, sem necessidade de uma nova petição.
E, de outra banda, de acordo com o enunciado sob o n.o 3, como as regras de forma têm por função garantir os interesses das partes, seria chocante rejeitar um recurso contencioso, já na sua recta final, em função de regra formal, que não beneficiaria qualquer das partes nem, como se verá adiante, o Direito.
Os princípios enunciados conduzem a interpretar a norma do art. 40.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 267/85 extensivamente, de modo a considerar que a letra da lei expressa apertadamente o espírito da lei, que é o de permitir a apresentação de mero requerimento autónomo indicando os interessados a quem o provimento do recurso possa directamente prejudicar.
De resto, a prática no Tribunal Superior de Justiça e até já no Tribunal de Segunda Instância, era a de aceitar que a falta de indicação, na petição, dos interessados a quem o provimento do recurso pudesse directamente prejudicar, poderia ser corrigida em mero requerimento autónomo, que não, necessariamente, com uma nova petição8.
Concluindo, o Acórdão recorrido deveria ter aceite a indicação feita pela recorrente dos interessados a quem o provimento do recurso pudesse directamente prejudicar, em mero requerimento autónomo.

   Da questão de saber se a recorrente não cumpriu o convite para aperfeiçoamento da petição, ao indicar como interessados a quem o provimento do recurso pudesse directamente prejudicar, todos os concorrentes ao concurso e não apenas o vencedor, como entendeu o Acórdão recorrido.
   6. Como refere a recorrente, não há nos autos qualquer indício, a não ser o mero decurso do tempo, acrescentamos nós, de que o concurso já tem vencedor. Por isso, não poderia o Acórdão recorrido ter considerado que a recorrente não dera cumprimento ao convite, indicando todos os concorrentes e não apenas o vencedor, já que não havia nos autos qualquer prova de que já haveria um vencedor.
   Mas ainda que fosse exacto que o concurso já estava findo e que já havia um concorrente que o havia vencido - sendo indiscutível que só este seria o prejudicado com o provimento do recurso - então o que se imporia seria que o Tribunal recorrido rejeitasse o recurso na parte relativa aos demais candidatos, por ilegitimidade passiva destes, mas aceitasse o vencedor como interessado e prosseguisse o recurso com este, em consonância com o princípio geral de redução dos actos jurídicos, de que constitui afloramento a norma do art. 292.º do Código Civil de 1966, atinente ao negócio jurídico e seguindo a máxima «utile per inutile non vitiatur», nos termos do art. 474.º, nos 1, alínea b) e 2 do CPC de 1961.
    É que o vício do requerimento só estaria na parte em que indicava como interessados entidades que não o seriam, mas a outra parte, em que indicava o vencedor, não sofreria de qualquer vício e deveria ser aproveitada.
   De resto, da fotocópia de fls. 85 e segs. resulta que foram admitidos ao concurso sete concorrentes, mas como a entidade recorrida não chegou a enviar ao Tribunal o processo instrutor, não se sabe se a oitava proponente, não admitida, mas que não aceitou a decisão da Comissão de abertura de propostas, interpôs ou não recurso gracioso, pelo que se desconhece se, a final, foi admitida ou não.
   Seja como for, não havendo nos autos prova de que já havia um vencedor, todos os concorrentes admitidos – e só se poderá saber quais são pelo processo instrutor - são parte passiva legítima.
   A rejeição só poderia incidir sobre os que não são parte legítima e nunca sobre o recurso como um todo.
Também nesta parte não tem razão o Acórdão recorrido.

   Da questão de saber se o convite ao aperfeiçoamento de petição, nos termos do art. 40.º, n.º 1, alínea b) do Decreto-Lei n.º 267/85, não pode realizar-se mais do que uma vez.
   
   7. Em rigor, esta questão não necessitaria de ser já resolvida, pois da solução dada às anteriores já resulta o provimento do recurso.
   Não obstante, porque os tribunais devem, não apenas decidir as questões que lhe são postas, mas esforçar-se por convencer os destinatários da bondade das soluções, ir-se-á decidi-la.
   A letra da lei não fornece solução directa para a questão de saber se o convite ao aperfeiçoamento de petição, nos termos do art. 40.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 267/85, não pode realizar-se mais do que uma vez.
   SANTOS BOTELHO9 escreve que «seja qual for a situação que tenha levado o juiz a dirigir ao recorrente o convite para regularização da petição temos para nós que, ao tribunal está vedada a possibilidade de convidar mais de uma vez o recorrente, a corrigir ou a suprir a mesma deficiência ou irregularidade».
   Mas não fundamenta a sua afirmação.
   Afigura-se-nos que a solução à questão há-de passar pelo seguinte critério geral:
   - Quando o recorrente não pretenda corrigir a petição ou seja pertinaz na manutenção da irregularidade, então o juiz não deve fazer novo convite para regularização da petição e deve decidir de acordo com a lei;
   - Se o recorrente corrigiu a petição, mostrando vontade de aceder ao convite do juiz, mas este continua a entender que a petição ainda sofre de irregularidade, então nada obsta a que o juiz lavre novo despacho de aperfeiçoamento.
   E as razões para a possibilidade de segundo convite de aperfeiçoamento, no condicionalismo indicado, são várias.
   O princípio do favorecimento do processo, ou princípio pro actione.
   É conhecido que a doutrina verberava, justificadamente, o direito processual administrativo por permitir que numa grande parte dos recursos contenciosos não se alcançasse uma decisão de mérito, terminando os processos com decisões de forma.
   A reforma de 1985 procurou remar contra maré, introduzindo o Decreto-Lei n.º 267/85 várias disposições inovatórias neste domínio.
   Por isso se entende que um dos princípios gerais do processo administrativo é o princípio do favorecimento do processo, ou princípio pro actione.
   Para J.C. VIEIRA DE ANDRADE10 este princípio «trata-se de um corolário normativo ou de uma concretização do princípio constitucional do acesso efectivo à justiça (administrativa), que aponta para uma interpretação e aplicação das normas processuais no sentido de favorecer o acesso ao tribunal ou de evitar as situações de denegação de justiça, designadamente por excessivo formalismo».
   E aponta como expressões do princípio as normas dos arts. 40.º, 4.º, 25.º, n.º 2, 55.º e 56.º do Decreto-Lei n.º 267/85.
   O mesmo autor considera que o mencionado princípio poderá relevar como princípio dirigido à actuação do juiz, na resolução de vários problemas concretos, apontando, entre outros, «os da relevância do erro desculpável quanto à errada identificação do autor do acto recorrido, devendo esta originar indeferimento liminar apenas nos casos de “incerteza absoluta” ou de pertinácia na identificação errónea e, em geral, do poder-dever do juiz de convite à correcção ou completamento da petição ou de outras peças processuais»11.
   E o mesmo já sustentara J.M. SÉRVULO CORREIA12, para quem os casos de manifesta indesculpabilidade do erro, nos termos e para os efeitos da alínea a), do n.º 1, do art. 40.º do Decreto-Lei n.º 267/85, se devem reduzir às situações de incerteza absoluta quanto à identidade do autor do acto e à pertinácia do erro.
   E também, fazendo apelo ao princípio pro actione, a jurisprudência mais recente,13 contra a jurisprudência tradicional, tem entendido ser possível o convite para a correcção da petição, nos termos do já referido art. 40.º, nos processos de suspensão de eficácia e de contencioso eleitoral, embora sem norma expressa nesse sentido.
   
   8. Em abono da solução que se defende, pode, ainda, invocar-se a tendência anti-formalista e de prevalência da decisão de mérito sobre a decisão de forma, que vem prevalecendo no processo civil, direito subsidiário do processo administrativo contencioso.
   Na verdade, embora o Código de Processo Civil de Macau não se aplique no caso dos autos, não será despiciendo invocar a ambiência anti-formalista e de prevalência da decisão de mérito sobre a decisão de forma, do novo Código14 15como linha de orientação interpretativa.
   Em tempos em que se começa a pôr em causa a legitimação da função judicial, os tribunais do contencioso administrativo – e não só - devem fazer um esforço no sentido de procurar suprir as excepções dilatórias a fim de se obter, sempre que possível, uma decisão de mérito, para que se não possa afirmar a existência de «tendência que caracterizava a jurisprudência administrativa em multiplicar os pretextos de ordem formal para evitar uma decisão de fundo»16.
   No caso dos autos a recorrente pretendeu corrigir a petição, pelo que se imporia um segundo convite de aperfeiçoamento, no caso de se entender que a petição continuava a enfermar de irregularidades.
   
   Em conclusão:
   - A falta de indicação, na petição, dos interessados a quem o provimento do recurso pudesse directamente prejudicar, poderia ser corrigida em mero requerimento autónomo, que não, necessariamente, com uma nova petição;.
   - A recorrente cumpriu o convite para aperfeiçoamento da petição, ao indicar como interessados a quem o provimento do recurso pudesse directamente prejudicar, todos os concorrentes ao concurso e não apenas o vencedor, restando ao Tribunal rejeitar a petição relativamente àqueles carecidos de legitimidade passiva, prosseguindo quanto ao(s) restante(s);
- O convite ao aperfeiçoamento de petição, nos termos do art. 40.º, n.º 1, alínea b) do Decreto-Lei n.º 267/85, pode realizar-se mais do que uma vez.

   9. Face ao expendido, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando o Acórdão recorrido e ordenando que o Tribunal recorrido mande citar os interessados a quem o provimento do recurso possa directamente prejudicar (depois de apurados quem sejam estes, de rejeitado o recurso apenas relativamente àqueles que não sejam partes legítimas, e de juntos os necessários duplicados).
Sem custas.
   Macau, 28.6.2000
   Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai
                          Chu Kin
   Estive presente:
   Song Man Lei
1 Neste sentido, LINO RIBEIRO, Manual Elementar de Direito Processual Administrativo de Macau, Tomo I, Centro de Formação de Magistrados, Lições ao ano de 1996/97, p. 201 e SANTOS BOTELHO, Contencioso Administrativo, 2ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 1999, p. 287.
2 Doravante designado por CPC de 1961.
3 MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, p. 386.
4 JHERING, Geist des römischen Rechts auf den verschiedenen Stufen seiner Entwicklung, II/2, Leipzig, 1875, p. 471, citado por MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, p. 36 e PEDRO MADEIRA DE BRITO, O Novo Princípio da Adequação Formal, em Aspectos do Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, p. 33.
5 MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Introdução ao Processo Civil, Lisboa, 1993, p. 35 e 36.
6 PEDRO MADEIRA DE BRITO, ob. cit., p. 35.
7 PEDRO MADEIRA DE BRITO, ob. cit., p. 35.
8 Cfr. os Processos n.os 1136 (fls. 30 a 33 e despachos de fls. 50 e 91) e 1172 (fls. 225 e segs., 239, 241, 247 e segs. ).
9 SANTOS BOTELHO, ob. cit., p. 287.

10 J.C. VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa (Lições), 2ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 1999, p. 262.
11 J.C. VIEIRA DE ANDRADE, ob. cit., p. 263.
12 J.M. SÉRVULO CORREIA, Errada identificação do autor do acto recorrido; Direcção do processo pelo juiz; Efectividade da garantia constitucional de recurso contencioso; Repressão da violação da legalidade, na Revista da Ordem dos Advogados, ano 54, Dezembro de 1994, p. 843 a 870.
13 Como dá conta MÁRIO TORRES, Informação de Jurisprudência, Setembro/Outubro de 1999, p. 57 a 59 e Maio/Junho/Julho/Agosto de 1999, p. 64 e 65, nos Cadernos de Justiça Administrativa, respectivamente, nos 18 e 17.
14 Sobre esta matéria, cfr. a nota explicativa do autor do projecto do Código, in Código de Processo Civil de Macau, versão portuguesa, Imprensa Oficial de Macau, 1999, p. VII.
15 Que se traduz, entre outras, nas seguintes medidas:
-Revogação das normas que condicionam o prosseguimento da instância ou o uso de determinada prova documental, à demonstração do cumprimento de certas obrigações tributárias;
-Eliminação dos preceitos que estabelecem posições desvantajosas e impedem a decisão da causa, por incumprimento de obrigações pecuniárias relativas a custas;
-A sanação dos pressupostos processuais como regra;
-A disposição segundo a qual a excepção dilatória que subsista, não dará lugar à absolvição da instância quando, destinando-se a tutelar o interesse de uma das partes, nenhum outro motivo obste a que se conheça do mérito da causa e a decisão seja integralmente favorável a essa parte;
-Estabelecimento do princípio da adequação, facultando ao juiz a adaptação do procedimento à especificidade da causa.
16 MARIA FERNANDA MAÇÃS, Correcção do requerimento de suspensão da eficácia: uma jurisprudência a corrigir, nos Cadernos de Justiça Administrativa, no 2, p. 44.

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11/2000 21