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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA
DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU


Recurso em processo penal
N.° 17 / 2000
Recorrente: A
Recorrido: Ministério Público



   
   1. Relatório
   Por acórdão de 11 de Julho de 2000 e no âmbito do processo comum colectivo n.° PCC-040-00-2, o Tribunal Judicial de Base condenou o arguido A:
   a) pela prática de um crime previsto e punido pelo art.° 8.°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 5/91/M na pena de oito anos e seis meses de prisão e oito mil patacas de multa ou em alternativa de cento e seis dias de prisão;
   b) pela prática de um crime previsto e punido pelo art.° 23.°, al. a) do Decreto-Lei n.° 5/91/M na pena de duas mil patacas de multa ou em alternativa de vinte e seis dias de prisão;
   c) Em cúmulo, na pena única de oito anos e seis meses de prisão e na multa de dez mil patacas, ou em alternativa de cento e trinta e dois dias de prisão.
   
   Por acórdão de 14 de Setembro de 2000 proferido no recurso n.° 137/2000, o Tribunal de Segunda Instância rejeitou o recurso interposto pelo arguido.
   
   Vem agora o arguido interpor recurso para este tribunal formulando as seguintes conclusões:
   1) O tribunal recorrido não aceitou a argumentação do recorrido e rejeitou o recurso interposto do acórdão do tribunal colectivo por não ocorrerem os vícios apontados na respectiva motivação.
   2) No caso dos autos ocorrem todos os vícios contemplados no n.° 2 do art.° 400.° do Código de Processo Penal, além da nulidade do Acórdão recorrido e do Acórdão do Tribunal Colectivo.
   3) É oficioso pelo Tribunal de Recurso o conhecimento desses vícios, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.
   4) O Tribunal Colectivo deu como provado que o recorrente tinha vendido há duas semanas marijuana aos toxicodependentes nas discotecas (1) e (2) e num outro sítio junto da sua residência em Macau.
   5) Nos termos da douta acusação, a venda referida no número anterior está indissoluvelmente ligada à marijuana com o peso de 170 gramas, conforme resulta evidente do conjunto n.° 4 atrás referido (O recorrente tinha vendido há duas semanas cerca de 170 gramas de marijuana aos toxicodependentes nas discotecas (1) e (2) e num outro sítio, junto da sua residência. Vendeu cada onça de marijuana com o peso de cerca de 28 gramas cada, pelo preço de MOP$1.200,00.).
   6) A matéria dada como provada e referida no número 4 destas conclusões entra em contradição com um dos factos dados como não provados: que o recorrente tenha vendido 170 gramas de marijuana.
   7) A douta acusação em nenhuma outra passagem se refere a 170 gramas de marijuana.
   8) Se porventura se entender que a venda referida no n.° 4 destas conclusões teve como objecto marijuana diversa desses 170 gramas, haverá que concluir que o Acórdão do Tribunal Colectivo está ferido de nulidade por tomar em consideração factos não constantes da acusação e pronúncia, ocorrendo assim a violação do art.° 360.°, al. b) do Código de Processo Penal, nulidade que, à cautela, se invoca para todos os efeitos legais.
   9) O facto dado como não provado e referido no n.° 6 destas conclusões está também em contradição, por motivos atrás referidos, com estoutro facto dado como provado: O recorrente vendeu cada onça de marijuana – Leia-se vendeu cada onça de marijuana daqueles 170 gramas – com o peso de 28g. cada pelo preço de MOP$1,200.
   10) Ocorre assim o vício referido na al. b) do n.° 2 do art.° 400.° do Código de Processo Penal: contradição insanável de fundamentação, a qual salta à vista do próprio texto da decisão.
   11) Não tendo dado como provado que o recorrente vendeu os 170 gramas de marijuana não podia nem devia o Tribunal Colectivo dar como assente que o mesmo recorrente ganhou MOP$6,000 montante que representa, na perspectiva da acusação, o somatório das 1,000 da venda feita a C e da transacção daquela quantidade de marijuana.
   12) Ocorre, assim, o vício referido na al. c) do n.° 2 do art.° 400.° do Código de Processo Penal: erro notório na apreciação da prova.
   13) Deu-se como provado que o recorrente é toxicodependente e que na sua posse foram encontrados apenas 47 gramas de marijuana.
   14) Deu-se também como provado que esse estupefaciente se destinava à venda e também ao consumo do recorrente.
   15) É consabido que os toxicodependentes acumulam droga que seja suficiente para satisfazer o vício por vários dias.
   16) Relativamente ao estupefaciente referido na conclusão 13, cujo consumo, por via de regra não põe em risco a vida do toxicodependente, o Tribunal Colectivo não quantificou a marijuana que o recorrente destinava, por um lado, ao seu consumo e, por outro, à venda, quantificação absolutamente necessária para se decidir da correcta incriminação.
   17) Também não ficou determinada a quantidade de marijuana que terá sido vendida ao tal C.
   18) Nada permite afirmar que o recorrente haja cometido o crime do art.° 8.° do Decreto-Lei n.° 5/91/M pois bem pode acontecer que apenas tenha cometido o do art.° 9.° do mesmo diploma.
   19) Com base na matéria das conclusões 16 e 17 conclui-se que o Acórdão do Tribunal Colectivo enferma do vício referido na al. a) do n.° 2 do art.° 400.° do Código de Processo Penal.
   20) O Acórdão do Tribunal Colectivo deu como provado que as três embalagens apreendidas ao recorrente continham 4g., 6g. e 12g. de marijuana, quando de acordo com a douta acusação as mesmas continham 3g., 5g., 11g. de marijuana.
   21) Tanto o Acórdão do Tribunal Colectivo como o Acórdão recorrido deram como assentes tais factos e tomaram-nos em consideração.
   22) Tais Acórdãos estão por isso feridos de nulidade, tendo sido violado o disposto no art.° 360.°, al. b) do Código de Processo Penal.
   23) O Acórdão recorrido violou também o disposto nos art.°s 400.°, n.° 2, al.s a), b) e c), 409.°, n.° 2, al. a), 410.°, n.° 1.° e 411.° do Código de Processo Penal, assim como nos art.°s 8.° e 9.° do Decreto-Lei n.° 5/91/M de 28 de Janeiro.
   24) Em provimento do recurso deve ser revogado o Acórdão recorrido com todas as consequências legais.
   25) Consequentemente, devem os autos ser remetidos para o Tribunal de Segunda Instância para os efeitos do julgamento atento designadamente o disposto no art.° 650.° do Código de Processo Civil, a não ser que se entenda deveram ser reenviados, para os mesmos efeitos, para o competente Tribunal Colectivo, pedido que, à cautela, subsidiariamente se formula.
   
   O Digno Magistrado do Ministério Público considera, em síntese, na sua resposta:
   A nulidade prevista no art.° 360.°, al. b) do Código do Processo Penal reporta-se à alegada tomada em consideração de factos não constantes da acusação.
   A mesma, todavia, não sendo insanável, deveria ter sido arguida no recurso interposto para o Tribunal de Segunda Instância, nos termos do art.º 400.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
   Não o tendo sido, não pode agora, naturalmente, deixar de ter-se por sanada. Não deve, pois o Tribunal de Última Instância conhecer da questão em apreço.
   A contradição insanável da fundamentação, como expressamente resulta do texto legal, tem de se apresentar insanável ou irredutível.
   E é inequívoca, “in casu”, a inexistência deste vício.
   O juízo do recorrente prende-se com a circunstância de o douto acórdão ter dado como não provada “a quantidade de 170g de marijuana que foi vendida pelo arguido” e ter dado como provada, do mesmo passo, a venda, pelo mesmo, de várias onças desse estupefaciente (sendo certo que esta venda, nos termos da acusação, está “indissoluvelmente ligada” àquela quantidade de 170 gramas).
   É óbvio, no entanto, que não lhe assiste razão.
   O que o Tribunal Colectivo deu como não provado foi que o recorrente tivesse vendido a quantidade concreta ou certa de 170 gramas da droga em questão.
   Tal facto não contende, pois, com a comprovada venda dessa droga — mas, sim, tão só, com o “quantum” exacto dessa venda.
   O erro notório na apreciação da prova existe quando for evidente, perceptível, pelo cidadão comum, que se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
   E não pode suscitar dúvidas, igualmente, a insubsistência deste segundo vício.
   O raciocínio do arguido tem a ver, ainda, com o facto de não se haver provado a venda dos 170 gramas de marijuana e com a ilação – descabida – que extraiu desse facto.
   Afirma que, não se tendo apurado essa venda, não se podia, também, dar como provado o ganho de 6000 patacas.
   Mas, como se disse atrás, o mesmo só teria razão “se se tivesse dado como não provado que o arguido tivesse vendido qualquer quantidade de droga – ou, noutra perspectiva, se se tivesse dado como provado que o mesmo havia vendido uma porção incompatível com a restante factualidade dada como assente” (nomeadamente com o questionado ganho).
   A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada apenas existirá quando os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão de direito assumida e não também quando há insuficiência da prova para decidir, ou seja, só existirá quando se verifique uma lacuna ou apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito.
   E é incontroversa, de igual modo, a inverificação deste terceiro vício.
   O arguido aponta o facto de o Tribunal não haver quantificado ou determinado o “quantum” da droga vendida e consumida pelo mesmo.
   E isso é certo, conforme se sublinhou, já, a propósito do supracitado facto dado como não provado.
   Trata-se, contudo, de uma questão que nada tem a ver com o vício em análise.
   Está-se, na verdade, perante uma situação de insuficiência de prova.
   O que é incontestável é que matéria de facto fixada propicia – como propiciou – sem qualquer dificuldade, o respectivo enquadramento jurídico.
   O recorrente vendeu, como se acentuou anteriormente, algumas onças de marijuana, sendo que cada uma corresponde a cerca de 28 gramas (tendo ganho, com tal venda, cerca de 6000 patacas).
   Tinha, igualmente, na sua posse, 25 gramas, guardando, ainda, no quarto de banho da sua residência, mais 22 gramas.
   Permite-se expender, entretanto, que o acórdão poderia ter integrado os factos no âmbito do art.° 9.° do Dec. Lei n.° 5/91/M, de 28-1 (depois de, nesta Segunda Instância, ter apontado o 11.°).
   E essa asserção não pode deixar de causar perplexidade.
   O propugnado art.° 9.° contempla o tráfico de quantidades diminutas de estupefacientes.
   E, para os efeitos do seu n.° 3, o Tribunal Superior de Justiça, relativamente à marijuana (“Cannabis Sativa L”), decidiu que a quantidade diária necessária a um consumidor é de 2,4 gramas, o que dá, para o período aí estabelecido, um total de 7,2 gramas – ou 8, por arredondamento (cfr. ac. de 19-5-99, proc. n.° 1068).
   Ora, no caso “sub judice”, as quantidades detidas e vendidas ultrapassam, largamente, esse limite.
   Basta atentar que uma única onça corresponde a mais do triplo do mesmo.
   Conclui-se que o recurso em apreço é manifestamente improcedente e deve, consequentemente, ser rejeitado.
   
   Foram colhidos os vistos.
   
   
   
   2. Fundamentação
   (1) Foram considerados provados os seguintes factos nas instâncias:
   No dia 18 de Março de 2000, cerca das 17:30, no [Endereço(1)], em Macau, elementos da PJ efectuaram uma revista ao arguido A e detectaram a sua posse, uma embalagem enrolada com fita cola de cor branca contendo no seu interior um pedaço de erva seca, com o peso líquido de 25 gramas.
   Seguidamente a PJ efectuou uma busca na residência do arguido, sita [Endereço(2)], onde foram encontrados os seguintes produtos:
   − duas embalagens de plástico transparente, contendo no interior de cada uma, um grande pedaço de erva seca, com o peso líquido de 72 gramas e de 189 gramas, respectivamente, produto esse encontrado num quarto ao lado do quarto do arguido; e
   − três embalagens embrulhadas em papel de jornal contendo no interior de cada uma, erva seca, com o peso líquido de 4 gramas, 6 gramas e 12 gramas, respectivamente, produto esse encontrado na casa de banho;
   − uma balança artesanal;
   − uma balança grande cor-de-laranja;
   − um rolo de fita adesiva de cor prateada;
   − três tubos de vidro;
   − dois canivetes;
   − um rolo de papel transparente e três embalagens de “Rolling Paper” marca “Cord”.
   A erva seca submetida a exame laboratorial, constatou-se que era “Cannabis Sativa L”, vulgarmente designada por “Marijuana”, substância estupefaciente abrangida pela Tabela I-C da lista anexa ao DL 5/91/M de 28 de Janeiro.
   Os referidos produtos estupefacientes encontrados na sua posse e na casa de banho pertencem ao arguido e destinava-se à venda e ao seu consumo.
   O arguido veio a Macau em 17 de Fevereiro de 2000, e foi um indivíduo conhecido apenas por “B”, residente de Hong Kong, que entregou a marijuana apreendida num local junto do hotel em Macau, para revender.
   O arguido tinha vendido há duas semanas marijuana aos toxicodependentes nas discotecas “(1)” e “(2)” e, num outro sítio, junto da sua residência em Macau.
   Vendeu cada onça de marijuana com o peso de cerca de 28 gramas cada, pelo preço de MOP$1.200,00.
   Em data indeterminada do mês de Fevereiro de 2000, o C, através do n.° de telemóvel do arguido, n.° XXXXXXX, contactou com ele e comprou 2 vezes marijuana e pagou por cada vez MOP$500,00.
   O arguido ganhou cerca de MOP$6.000,00, no espaço de tempo de duas semanas, pela venda da marijuana aos toxicodependentes.
   O arguido agiu livre, deliberada e voluntariamente.
   Sabendo e conhecendo as características e qualidades do produto estupefacientes.
   Tendo o arguido adquirido, concedido e vendido a referida marijuana com o fim de obter ou procurando obter compensação remuneratória.
   Destinava uma parte da marijuana para seu consumo pessoal por ser toxicodependente.
   Tinha perfeito conhecimento que as suas condutas não era permitida.
   O arguido era empregado de Companhia de tapete e auferia o vencimento mensal cerca de 12000,00.
   É solteiro e tem a mãe a seu cargo.
   Consumiu marijuana há cerca de dez anos.
   
   (2) Factos não provados segundo as instâncias:
   Os produtos estupefacientes encontrados no quarto ao lado do quarto do arguido lhe pertencia (72g e 189g) e destinava-os à venda.
   A quantidade de 170g de marijuana que foi vendida pelo arguido.
   
   (3) Nulidade da sentença
   O recorrente fundamentou o seu recurso nos três vícios previstos no art.° 400.°, n.° 2 do Código de Processo Penal (CPP) e invocou a nulidade dos acórdãos do tribunal colectivo do Tribunal Judicial de Base e do Tribunal de Segunda Instância por violação do disposto do art.° 360.°, al. b) do CPP.
   Segundo o art.° 109.°, n.° 1 do CPP, as nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar. A proceder a nulidade da sentença invocada pelo recorrente, esta será anulada e fica desnecessário o conhecimento dos restantes vícios da sentença arguidos pelo recorrente. Assim, deve ser apreciada em primeiro lugar a nulidade da sentença.
   
   O recorrente sustenta a verificação da nulidade na motivação:
   O acórdão do tribunal colectivo deu como provado que as três embalagens apreendidas ao recorrente continham 4g, 6g e 12g de marijuana, quando de acordo com a acusação as mesmas continham 3g, 5g e 11g. Tanto o acórdão do tribunal colectivo (do Tribunal Judicial de Base) como o do Tribunal de Segunda Instância deram como assentes tais factos e tomaram-nos em consideração. Tais acórdãos estão por isso feridos de nulidade, tendo sido violado o disposto no art.° 360.°, al. b) do CPP.
   
   Ora, de acordo com o regime das nulidades estatuído no CPP, as nulidades são insanáveis ou dependentes de arguição (art.°s 106.° e 107.° do CPP). São nulidades insanáveis apenas as previstas no art.° 106.° do CPP. Todas as restantes são sanáveis cujo conhecimento depende da arguição dos interessados. Por outro lado, a lei fixa o prazo em que os interessados devem arguir uma nulidade sob pena de ser considerada sanada (art.° 107.°, n.° 3 e 108.°, n.° 1 do CPP).
   O recorrente invocou a nulidade por violação do disposto do art.° 360.°, al. b) do CPP. Segundo este preceito, é nula a sentença que condenar por factos não descritos na pronúncia ou, se a não tiver havido, na acusação ou acusações, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 339.° e 340.° do mesmo código.
   Para o recorrente, quando os tribunais deram como provado o peso de 4 gramas, 6 gramas e 12 gramas das três embalagens de marijuana apreendidas ao mesmo em vez do peso de 3 gramas, 5 gramas e 11 gramas como constava da acusação, os tribunais condenaram o recorrente por factos não descritos na acusação sem comunicar ao arguido nem obter o seu consentimento ou dar oportunidade para defender nos termos previstos nos art.°s 339.° e 340.° do CPP.
   Realmente, o tribunal colectivo do Tribunal Judicial de Base deu como provado que o arguido detinha 4 gramas, 6 gramas e 12 gramas de marijuana, tal como resulta do peso de conteúdo constante do relatório do exame do Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária a fls. 70, em vez de 3 gramas, 5 gramas e 11 gramas como vêm descritos na acusação que correspondem exactamente ao peso do conteúdo do material remanescente após o exame laboratorial. Dos autos, a partir do despacho que designa dia para a audiência e nomeadamente a acta da audiência, não consta o cumprimento das formalidades previstas nos art.°s 339.° e 340.° do CPP relativamente à alteração dos factos descritos na acusação. Esta falta é cominada por nulidade pelo art.° 360.°, al. b) do CPP.
   Só que, esta nulidade não é insanável por não corresponder a nenhuma das nulidades previstas no art.° 106.° do CPP. Logo, trata-se apenas de uma nulidade dependente de arguição ou sanável. Ao recorrente foi devidamente notificado o acórdão do Tribunal Judicial de Base. O recorrente não suscitou esta nulidade no seu recurso interposto perante o Tribunal de Segunda Instância. Assim, a nulidade mostra sanada e por este motivo já não se pode atacar o acórdão do Tribunal de Segunda Instância agora recorrido, com base nesta nulidade entretanto já sanada.
   Improcede, assim, a nulidade invocada pelo recorrente.
   
   (4) A contradição insanável da fundamentação
   O recorrente considera existir a contradição insanável da fundamentação em duas partes entre os factos provados e não provados.
   Em primeiro lugar, quando o tribunal deu como provado que o recorrente tinha vendido há duas semanas marijuana aos toxicodependentes nas discotecas (1) e (2) e num outro sítio junto da sua residência em Macau e vendeu cada onça de marijuana com o peso de cerca de 28 gramas cada, pelo preço de MOP$1.200,00, está em contradição com um dos factos não provados: que o recorrente tenha vendido 170 gramas de marijuana.
   Para o recorrente, a venda que terá sido efectuada nas discotecas (1) e (2) e num outro sítio junto da sua residência está indissoluvelmente ligada à marijuana com o peso de 170 gramas, nos termos da acusação. Dando-se como provado que o recorrente vendeu estupefaciente naquelas discotecas e num outro sítio junto da sua residência é forçoso concluir que essas vendas tiveram por objecto a falada marijuana com o peso de 170 gramas. E nem se diga que essas vendas tiveram por objecto estupefacientes que não se identificam com esses 170 gramas e que portanto não se trata da mesma marijuana. Porque a admitir esta argumentação, teríamos de concluir que o acórdão do tribunal colectivo é nulo por tomar em consideração factos não constantes da acusação.
   Em segundo lugar, a venda dos 170 gramas de marijuana, facto não provado, está em contradição, pelos mesmos motivos, com outro facto dado por provado: vendeu cada onça de marijuana – leia-se vendeu cada onça de marijuana daqueles 170 gramas – com o peso de 28 gramas cada pelo preço de MOP$1.200,00.
   
   A contradição insanável da fundamentação relaciona-se com a fundamen- tação da matéria de facto ou a própria matéria de facto como fundamento da decisão de direito. O vício consiste na contradição entre a fundamentação probatória da matéria de facto, bem como entre a matéria de facto dada como provada ou como provada e não provada. A contradição tem de se apresentar insanável ou irredutível, ou seja, que não possa ser ultrapassada com o recurso à decisão recorrida no seu todo e às regras da experiência comum.
   Ora, constam da acusação (fls. 103 a 105) os seguintes factos:
   “O arguido tinha vendido há duas semanas cerca de 170 gramas de marijuana aos toxicodependentes nas discotecas (1) e (2) e, num outro sítio, junto da sua residência em Macau.
   Vendeu cada onça de marijuana com o peso de cerca de 28 gramas cada, pelo preço de MOP$1.200,00.”
   O Tribunal Judicial de Base deu como provado o seguinte:
   “O arguido tinha vendido há duas semanas marijuana aos toxicodependentes nas discotecas (1) e (2) e, num outro sítio, junto da sua residência em Macau.
   Vendeu cada onça de marijuana com o peso de cerca de 28 gramas cada, pelo preço de MOP$1.200,00.”
   E deu como não provado o seguinte facto: “A quantidade de 170 g de marijuana que foi vendida pelo arguido”.
   Assim, da matéria de factos dada por provada e não provada resulta que o recorrente vendeu marijuana no espaço de duas semanas nas discotecas (1) e (2) e num outro sítio junto da sua residência em Macau. Vendeu cada onça pelo preço de mil duzentas patacas. O que não foi apurado no julgamento foi a quantidade de 170 gramas de marijuana, isto é, não ficou provado que a venda de marijuana efectuada pelo recorrente foi exactamente com o peso de 170 gramas.
   Ficou ainda provado, a seguir, de que o arguido ganhou cerca de MOP$6.000,00, no espaço de tempo de duas semanas, pela venda da marijuana aos toxicodependentes. Se o recorrente vendeu cada onça de marijuana pelo preço de mil duzentas patacas, em consideração de todos os factos provados, é de concluir que o recorrente vendeu pelo menos uma onça, cerca de 28 gramas, de marijuana. Realmente o ganho de seis mil patacas corresponde ao preço de cinco onças, cerca de 142 gramas, de marijuana, o que já é uma quantidade apreciável.
   Não é lógico dizer que ao não provar a quantidade de 170 gramas de marijuana significa que o arguido não vendeu nenhuma marijuana. O que não ficou provado foi a quantidade certa de 170 gramas da venda mas não outra quantidade e muito menos o próprio acto de venda de marijuana.
   O recorrente apresentou apenas uma visão incompleta da matéria dada como provada e não provada pelo Tribunal Judicial de Base. Analisados os factos provados e não provados, é patente que não se verifica contradição insanável da fundamentação.
   
   (5) Erro notório na apreciação da prova
   Para o recorrente, não tendo dado como provado que este vendeu os 170 gramas de marijuana, não podia nem devia o tribunal colectivo dar como assente que o mesmo recorrente ganhou MOP$6.000,00, montante que representa, na perspectiva da acusação, o somatório das MOP$1.000,00 da venda feita a C e da transacção de tais 170 gramas de marijuana. Por esta razão, entende o recorrente que o acórdão recorrido enferma do vício do erro notório na apreciação da prova.
   
   O erro notória na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta.
   Considerando o exposto em relação à contradição insanável da fundamentação, embora o tribunal não deu como provado que o recorrente vendeu a quantidade exacta de 170 gramas de marijuana, ficou provado que o mesmo vendeu marijuana não só a C, obtendo o ganho de MOP$1.000,00, mas também outras vendas efectuadas nas discotecas (1) e (2) e num outro sítio junto da sua residência em Macau. O total do ganho pelo recorrente no espaço de duas semanas pela venda da marijuana foi MOP$6.000,00. Assim, examinada a matéria dada como provada e não provada, não há evidentemente erro na apreciação da prova.
   
   (6) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
   Para sustentar este vício, o recorrente entende que o tribunal deu como provado que do estupefaciente apreendido pertenciam a ele as quantidades de 4 gramas, 6 gramas, 12 gramas e 25 gramas e que é confiado para ser revendido, por um lado, e que o recorrente é toxicodependente e destinava parte desse estupefaciente ao seu consumo, por outro. No caso em análise, o tribunal não se cuidou de apurar e fixar as quantidades de marijuana que o recorrente destinava ao seu consumo e à venda. De igual modo não ficou determinada a quantidade de marijuana que o recorrente terá vendido ao C. Assim, nada permite afirmar que a conduta do recorrente integra um crime previsto no art.° 8.°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 5/91/M, pois bem pode acontecer que tenha apenas cometido o previsto no art.° 9.°, n.° 1 e 3 do mesmo diploma.
   
   Para se verificar a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é necessário que a matéria de facto provada se apresenta insuficiente, incompleta para a decisão proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito adequada. Aparece o vício quando os factos dados como provados pelo tribunal sejam incompletos para chegar correctamente à solução de direito constante da decisão recorrida. Para poder imputar a prática de um crime a arguido, tem de haver factos provados capazes de preencher os elementos típicos do crime.
   O recorrente foi condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo art.° 8.°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 5/91/M e de um crime de consumo de estupefacientes previsto e punido pelo art.° 23.°, al. a) do mesmo Decreto-Lei.
   Prescreve o referido art.° 8.°, n.° 1:
   “1. Quem, sem se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no art.° 23.°, substâncias e preparados compreendidos nas tabelas I a III será punido com a pena de prisão maior de 8 a 12 anos e multa de 5000 a 700000 patacas.”
   Ficou provada nomeadamente a seguinte matéria:
   “Os referidos produtos estupefacientes encontrados na sua posse (25 gramas) e na casa de banho pertencem ao arguido e destinava-se à venda e ao seu consumo.”
   “... Foi um indivíduo B que entregou (ao recorrente) a marijuana apreendida para revender.
   O arguido tinha vendido há duas semanas marijuana aos toxicodependentes nas discotecas (1) e (2) e, num outro sítio, junto da sua residência em Macau.
   Vendeu cada onça de marijuana com o peso de cerca de 28 gramas cada, pelo preço de MOP$1.2000,00.
   ... C contactou com o arguido e comprou duas vezes marijuana e pagou por cada vez MOP$500,00.
   O arguido ganhou cerca de MOP$6.000,00, no espaço de tempo de duas semanas, pela venda da marijuana aos toxicodependentes.”
   
   Ora, de acordo com estes factos provados, conclui-se, desde logo, que o recorrente vendeu marijuana nas referidas discotecas e noutro sítio junto da sua residência e a C. A quantidade de marijuana apreendida e pertencente ao recorrente atinge, no total, 47 gramas. E doutro passo dos factos provados, consta que o recorrente destinava uma parte da marijuana ao seu consumo pessoal por ser toxicodependente.
   É certo que o tribunal devia apurar melhor a quantidade de marijuana destinada à venda e ao consumo do recorrente para qualificar, com maior clareza, as condutas do recorrente. Embora não ficou provada a quantidade concreta de marijuana que o recorrente pôs à venda, conjugados os factos provados e de acordo com o acima exposto, conclui-se que o recorrente vendeu pelo menos uma onça, cerca de 28 gramas, de marijuana, o que é mais de suficiente para condenar o recorrente pela prática do crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo art.° 8.°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 5/91/M.
   O recorrente considera que bem pode acontecer que este apenas cometeu o crime de tráfico de quantidades diminutas previsto e punido pelo art.° 9.°, n.° 1 do mesmo Decreto-Lei.
   Prescreve, assim, o art.° 9.°, n.° 1 e 3:
   “1. Se os actos referidos no artigo anterior tiverem por objecto quantidades diminutas de substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a III, a pena será a de prisão de 1 a 2 anos e multa de 2000 a 225000 patacas.
   2. ...
   3. Quantidade diminuta para efeitos do disposto neste artigo é a que não excede o necessário para consumo individual durante três dias, reportando-se à quantidade total das substâncias ou preparados encontrados na disponibilidade do agente.”
   Ora, 28 gramas de marijuana excede largamente a quantidade diminuta, ou seja, a do consumo individual durante três dias. Então, seja qual for a quantidade de marijuana destinada para o consumo do recorrente, só a venda de 28 gramas de marijuana torna impossível integrar a conduta do recorrente no crime de tráfico de quantidades diminutas previsto e punido pelo art.° 9.°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 5/91/M.
   Assim, é manifesta a improcedência de todos os fundamentos do recurso apresentado pelo arguido, o que constitui motivo para a rejeição do recurso.
   
   
   
   3. Decisão
   Face aos expostos, o Tribunal julga rejeitar o recurso.
   Condena o recorrente no pagamento da importância em 4 UC (duas mil patacas) nos termos do art.° 410.°, n.° 4 do CPP e das custas com a taxa de justiça fixada em 5 UC (duas mil quinhentas patacas).
   
   
   Aos 22 de Novembro de 2000.




Juízes : Chu Kin (relator)
: Viriato Manuel Pinheiro de Lima
: Sam Hou Fai
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