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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso penal
N.° 6 / 2002

Recorrente: A





1. Relatório
   Por acórdão de 26 de Outubro de 2001 do Tribunal Judicial de Base proferido no processo comum colectivo n.° PCC-030-01-2 foram julgados oito arguidos, entre os quais, a arguida A foi condenada por autoria de:
   - um crime previsto e punido pelos art.°s 8.°, n.° 1 e 18.°, n.° 2 do Decreto-Lei n.° 5/91/M na pena de quatro anos e nove meses de prisão e dez mil patacas de multa ou em alternativa de sessenta e seis dias de prisão;
   - um crime previsto e punido pelo art.° 23.°, al. a) do Decreto-Lei n.° 5/91/M na pena de um mês de prisão.
   Em cúmulo foi condenada na pena de quatro anos, nove meses e quinze dias de prisão e dez mil patacas de multa ou em alternativa de sessenta e seis dias de prisão caso não for paga nem substituída por trabalho.
   Seguidamente, a arguida A recorreu deste acórdão para o Tribunal de Segunda Instância, suscitando as questões como métodos proibidos de prova, a qualificação do crime de traficante-consumidor e a medida da pena. O Tribunal de Segunda Instância proferiu acórdão em 21 de Março de 2002 no recurso n.° 4/2002 no sentido de rejeitar o recurso apresentado pela arguida A.
   Vem agora a arguida A recorrer para este Tribunal contra o acórdão do Tribunal de Segunda Instância.
   
   A recorrente apresentou as seguintes conclusões da motivação:
   “a. De acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 410.º do Código de Processo Penal de Macau, o recurso apenas só deverá ser rejeitado quando faltar a motivação ou for manifesta a sua improcedência.
   b. O acórdão recorrido não se dignou sequer a revelar qual o fundamento da sua rejeição.
   c. Os fundamentos alegados pelo tribunal recorrido são, em rigor, fundamentos do decaimento do recurso mas não, naturalmente, da sua rejeição.
   d. Logo, sendo manifesta a ilegalidade da rejeição, deverá ser anulada a decisão do acórdão recorrido e, consequentemente, ser reenviado o processo para o Tribunal de Segunda Instância de Macau por forma a ser dado prosseguimento ao mesmo, nos termos do disposto nos art.ºs 411.º e seguintes do Código de Processo Penal de Macau.
   e. Caso o 4º arguido não tivesse simuladamente pretendido adquirir estupefacientes à recorrente, os produtos que a mesma detinha destinar-se-iam, necessariamente, ou ao seu consumo pessoal ou, nem sequer, teriam sido por si adquiridos.
   f. Existe manifestamente violação do disposto sobre a proibição de meios de prova.
   g. O art.º 36.º do DL n.° 5/91/M permite o recurso ao homem de confiança apenas para, em prol da finalidade preventiva, se provarem factos que seriam espontaneamente praticados pelo agente, independentemente da intervenção do homem de confiança.
   h. Não podiam as provas em causa ter sido utilizadas porquanto as mesmas são nulas, nomeadamente as declarações dos agentes da polícia e das outras testemunhas, bem como as declarações da própria recorrente, mesmo quanto à parte da sua confissão parcial, uma vez que as mesmas são obtidas na sequência de meios de prova ilicitamente realizados.
   i. Não tem qualquer sentido a interpretação invocada pelo Ministério Público, secundada pelo acórdão recorrido, a qual, efectivamente, tem tido algum eco na jurisprudência dos tribunais de Macau, em que, para efeitos de afastar a referida proibição dos meios de prova utilizados, é feita a distinção entre estes últimos e o objecto da prova em si.
   j. Nem se diga, como defendem o Tribunal recorrido e o Ministério Público, que, pelo facto de a recorrida já anteriormente ter praticado, por uma vez, o mesmo crime, a liberdade de decisão da mesma não terá sido perturbada.
   k. Dos factos apontados decore claramente que o tráfico realizado tinha por finalidade exclusiva a aquisição de substâncias para consumo pessoal da recorrente.
   l. Daí que nem seja relevante o facto de a decisão recorrida não mencionar a “finalidade exclusiva”, uma vez que, através dos factos descritos, não restam dúvidas que o produto era apenas traficado por forma a que a recorrente pudesse retirar uma pequena parte para o seu consumo pessoal.
   m. O Acórdão nem sequer indica como não provados quaisquer factos que pudessem, de alguma maneira, afastar a dita qualificação.
   n. Compete pois ao Tribunal verificar se, nesses casos, estão preenchidos os pressupostos da punição nos moldes do tipo previsto para o crime de traficante-consumidor.
   o. O Acórdão ignora por completo tais elementos, pelo se desconhece na íntegra quais possam ter sido os critérios lógicos utilizados que conduziram a que a convicção do tribunal se formasse no sentido da inexistência do crime de traficante-consumidor.
   p. A falta de motivação constitui nulidade.
   q. Ficando demonstrado que o único proveito que a recorrente recolhia do tráfico equivalia à possibilidade de retirar e destinar uma pequena parte da droga traficada ao seu consumo pessoal, fica igualmente atestado que o tráfico praticado pela arguida tinha como finalidade exclusiva conseguir substâncias para o seu uso pessoal.
   r. Logo, caso não seja possível decidir da causa, deve o Tribunal a que o recurso se dirige determinar o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do disposto no art.º 418.º, n.º 1 do Código de Processo Penal de Macau.
   s. Por fim, a atenuação não cumpre os termos legais.
   Termos em que, e dando provimento ao recurso, se deverá decidir pelo reenvio do processo para o Tribunal de Segunda Instância ou, alternativamente, pela alteração do acórdão nos termos supra referidos.”
   
   O Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal de Segunda Instância emitiu o parecer que consiste essencialmente em:
   A recorrente começa por reportar-se à decisão de rejeição do recurso.
   E acaba por reconhecer, apesar da alegada falta de especificação, que essa rejeição se ficou a dever à “manifesta improcedência do mesmo”.
   Não deixa, de qualquer forma, de contestar a decisão em questão.
   A mesma, no entanto, não merece qualquer reparo.
   Este Tribunal, debruçando-se sobre as questões suscitadas concluiu – e bem – que o recurso estava, na sua totalidade, irremediavelmente votado ao insucesso.
   Daí que, em conformidade, tenha optado pela via da rejeição.
   A sugestão de que houve, na hipótese vertente, excesso de fundamentação causa natural perplexidade.
   É que sempre seria preferível, nessa matéria, pecar por excesso a fazê-lo por defeito.
   Não houve, assim, in casu, qualquer “ilegalidade”, sendo descabido falar, também, a propósito, no reenvio do processo (por não se vislumbrar, efectivamente, qualquer das situações referidas no art.º 400.º, n.º 2, do C. P. Penal).
   A recorrente parte, aliás, de uma premissa errada.
   Afirma, na verdade, logo no início da motivação, que, ao rejeitar o recurso, os Mmºs. Juízes deste Tribunal “se abstiveram … de o julgar”.
   E essa é uma asserção descabida, uma vez que a rejeição em foco pressupõe, necessariamente, o julgamento do recurso (ainda que em conferência).
   Só se a recorrente lograsse demonstrar que a falta de audiência afectou a boa decisão da causa é que esse Venerando Tribunal poderia, no nosso entender, intervir no âmbito em apreço.
   Isso, porém, não aconteceu.
   Sintomaticamente, de resto, nem sequer é alegado pela mesma.
   
   Quanto às demais questões suscitadas, a recorrente limita-se a reproduzir a argumentação já aduzida perante este Tribunal.
   A nossa resposta não pode, por isso, também, deixar de ser a mesma.
   
   Não se verifica, de facto, desde logo, a alegada violação do art.º 113.º, n.º 2, al. a) do C. P. Penal, devendo ter-se por legítima a questionada actuação policial.
   No sentido propugnado sempre decidiu, como se frisa no acórdão recorrido, o então Tribunal Superior de Justiça e o Supremo Tribunal de Justiça de Portugal.
   Conforme salienta o arresto do STJ de 15 de Janeiro de 1997, “a lei aceita uma colaboração com uma actividade criminosa em curso mas não a adopção de uma conduta de impulso ou instigação dessa actividade”.
   Como se sublinha noutro acórdão do mesmo tribunal de 2 de Junho de 1999, por seu turno, “resulta da própria al. a) do n.º 2 do citado art.º 126.º do C. P. Penal de Portugal – correspondente à mencionada al. a) do n.º 2 do art.º 113.º do C. P. Penal de Macau – que os meios enganosos só poderão ser considerados ofensivos da integridade física ou moral das pessoas e como tais proibidos, se causarem perturbação da liberdade da vontade ou da decisão”.
   E, no caso presente – tal como no referido nesse acórdão – “não houve … propriamente uma perturbação da liberdade de vontade ou de decisão do agente, mas apenas a revelação pela astúcia da sua actividade criminosa que até já estava em curso”.
   
   A actuação da recorrente, por outro lado, não pode ser subsumida à previsão do art.º 11.º do DL n.º 5/91/M, de 28-1.
   Tal normativo prevê a figura do traficante-consumidor, isto é, a situação em que “o agente tiver por finalidade exclusiva conseguir substâncias ou preparados para uso pessoal”.
   E essa situação não encontrou, na verdade, qualquer apoio na matéria de facto fixada.
   E não se apurou, sequer, que a recorrente fosse toxicodependente ... .
   A recorrente insurge-se, ainda, contra a motivação fáctica do acórdão da 1ª instância.
   Conforme se sabe, contudo, há que afastar, nesse âmbito, uma perspectiva maximalista – devendo ter-se em conta, sempre, os ingredientes trazidos pelo caso concreto.
   E a indicação dos meios de prova permite, na nossa óptica, “conhecer as razões essenciais da convicção a que chegou o Tribunal”.
   Não podem, em nosso juízo, subsistir quaisquer dúvidas acerca da razão de ciência dos arguidos: participação nos factos tidos como assentes.
   E deve ter-se por evidente, igualmente, a razão de ciência das testemunhas da P.J.: a sua intervenção na investigação da actualidade dada como provada.
   A fundamentação em questão deve, em suma, ter-se como bastante.
   
   A pena imposta, finalmente, só pode pecar por defeito.
   Basta atentar que apenas se averiguou, em beneficio da recorrente, a confissão parcial dos factos.
   Daí, também, que as suas declarações, prestadas no MP, tivessem que ser lidas na audiência, ao abrigo do art.º 338.º, n.º 1, al. b) do C. P. Penal.
   O recurso em análise é, pelo exposto, manifestamente improcedente.
   Deve, consequentemente, ser rejeitado (cfr. art.ºs 407.º, n.º 3, al. c), 409.º, n.º 2, al. a) e 410.º do C. P. Penal).
   
   A Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de Última Instância entendeu assim no seu parecer:
   Acompanhamos e subscrevemos as judiciosas considerações expendidas na resposta à motivação do recurso, apresentada pelo Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal de Segunda Instância.
   1. Antes de mais, a recorrente entende que o Tribunal de Segunda Instância não especificou qual o fundamento da rejeição do seu recurso e a decisão de rejeição é manifestamente ilegal.
   Se é verdade que o Tribunal de Segunda Instância no seu acórdão não indicou expressamente a razão da rejeição do recurso, não é menos certo que da leitura do acórdão resulta claramente que o recurso foi rejeitado por ser manifesta a sua improcedência, como a própria recorrente também já percebeu, uma vez que tinha sido apresentada a motivação do recurso (art.º 410.º, n.º 1 do CPPM).
   Assim sendo e no caso de rejeição do recurso por manifesta improcedência, o mais essencial é especificar os fundamentos que levaram o Tribunal a concluir pela manifesta improcedência do recurso interposto, o que foi feito no acórdão recorrido através da análise e apreciação de todas as questões levantadas pela recorrente.
   Por outro lado, não tem razão a recorrente quando pede o reenvio do processo para o Tribunal de Segunda Instância com base na manifesta ilegalidade da rejeição.
   Ora, em caso de rejeição do recurso, a lei exige que consta da decisão a identificação do tribunal recorrido, do processo e dos seus sujeitos bem como a especificação sumária dos fundamentos da decisão (art.º 410.º, n.º 3 do CPPM).
   No entanto, nada impede que o tribunal faça análise de todas as questões suscitadas pelo recorrente e, no fim, tire a conclusão de que o recurso interposto é manifestamente improcedente.
   E não há fundamentos (ainda que mínimos) para a recorrente requerer o reenvio do processo para o Tribunal de Segunda Instância e nem a própria recorrente conseguiu indicar norma com base na qual é admissível o reenvio do processo.
   
   2. A seguir a recorrente levanta a questão de meios proibidos de prova, entendendo que a prática do crime foi provocada pelo arguido B, enquanto este previamente instigado pelos agentes policiais, pelo que o acórdão recorrido violou o disposto no art.º 113.º, n.º 2, al. a) do CPPM.
   Ora, salvo devido respeito, entendemos que, no nosso caso concreto, na actuação da polícia não se consubstancia um meio enganoso que causa perturbação na liberdade ou na decisão da recorrente.
   Com decidiu, e muito bem, no acórdão recorrido, “não houve propriamente uma perturbação da liberdade de vontade ou de decisão da arguida recorrente, que agia voluntariamente, pois a arguida ora recorrente, perante um pedido de produto, embora “fingido”, estava completamente livre para (re)agir e a sua vontade não estava limitada”.
   Face a esta matéria de facto provada, constatamos que, antes de ser detida pelos agentes policiais e para além dos produtos apreendidos na altura da sua detenção, a recorrente já vendeu, por duas vezes, Cannabis Sativa L ao arguido B, sendo uma vez nos dias anteriores (dado que a apreensão de Cannabis Sativa L na posse deste foi mesmo no dia anterior).
   E em todas as vezes, incluindo a última vez em que foi detida, a recorrente utilizou sempre o mesmo mecanismo: adquiriu a droga ao arguido C e depois vendeu ao arguido B.
   O que nos permite falar duma actividade criminosa já em curso, ou percurso criminal já em curso.
   
   3. A recorrente invoca ainda a figura do “traficante-consumidor”, considerando que dos autos resulta claramente que o tráfico praticado por si tinha como finalidade exclusiva conseguir produtos estupefacientes para o seu consumo próprio.
   Não podemos acompanhar, de modo nenhum, este entendimento.
   Um dos elementos essenciais do tipo previsto no art.º 11.º do DL n.º 5/91/M é a finalidade exclusiva de conseguir substâncias ou preparados para uso pessoal.
   A jurisprudência dos tribunais de Macau tem decidido que “o facto de o traficante ser também consumidor não permite, per si, que seja considerado traficante consumidor”; antes “tem de demonstrar-se que o único motivo determinante da sua actividade de traficante foi afectar o produto ou os lucros obtidos com esse comércio exclusivamente ao seu consumo ou à aquisição de estupefacientes para seu uso”.
   Ora, nos autos está provado que uma parte (com peso de 9,958 gramas) dos estupefacientes encontrados na posse da recorrente iriam ser fornecidos ao arguido B e a outra parte (com peso de 3,078 e 0,203 gramas) se destinavam a consumo próprio.
   Tal facto, como já foi citado, não permite, por si só, tirar a conclusão de que a recorrente é traficante consumidor.
   Por outro lado, não resulta provado que a conduta descrita nos autos da recorrente tinha como finalidade exclusiva conseguir droga para o seu consumo próprio.
   Quer as quantidades apreendidas (incluindo na residência do arguido B com peso líquido de 9,818 gramas que foram adquiridos à recorrente) quer a profissão bem como o vencimento da recorrente, nada nos oferece algum indício de que a recorrente praticou o crime de trafico com a finalidade exclusiva exigida pelo art.º 11.º do DL n.º 5/91/M.
   
   4. A recorrente alega depois a falta de motivação fáctica do acórdão do colectivo.
   A recorrente entende que o acórdão do Tribunal Colectivo não indica sequer como não provados quaisquer factos que pudessem afastar a qualificação de traficante consumidor.
   Ora, não podemos deixar de dizer que o tribunal não é obrigado a enumerar todos e quaisquer factos que sejam essenciais no entendimento do arguido, mas sim aqueles que constam da acusação, da defesa e outras que o tribunal entenda como imprescindíveis para a decisão, cumprindo necessariamente o contraditório.
   Sobre a matéria, o Tribunal de Última Instância decidiu, no seu acórdão de 20-3-2002 e no processo n.º 3/2002, que “a falta da enumeração de factos provados ou não provados só se refere aos factos constantes da acusação, da defesa ou da acção cível conexa com a acção penal, quando a haja. Relativamente a factos não constantes destas peças nunca pode pôr-se qualquer exigência de que os mesmos se considerem provados e, portanto, que se faça a sua enumeração como factos provados ou não provados”.
   No caso em apreço, como não consta daquelas peças os elementos sobre a finalidade exclusiva da recorrente na prática da actividade e o tribunal também não considera provado tal facto, não há que indicá-lo com provado ou não provado.
   Por outro lado, os tribunais de Macau (quer antigo Tribunal Superior de Justiça, quer Tribunal de Segunda Instância quer ainda Tribunal de Última Instância) já se pronunciaram, por muitas vezes, sobre a questão da fundamentação da sentença, assumindo a posição de que, nesta matéria, há que afastar uma perspectiva maximalista – devendo ter-se em conta, sempre, os ingredientes trazidos pelo caso concreto.
   No nosso caso concreto, o tribunal “a quo” expôs os factos provados e não provados.
   Indicou ainda as provas que serviram para formar a sua convicção.
   E expôs o enquadramento jurídico-penal dos factos, explicando as razões que justificaram a condenação da recorrente.
   Resumindo, entendemos que na forma como o Tribunal Colectivo fundamentou a sua decisão, indicando os factos provados e não provados bem como as provas que serviram para formar a sua convicção, satisfez as exigência da lei na parte respeitante à fundamentação da sentença, pelo que não se verifica a violação do art.º 355.º, n.º 2 do CPPM.
   
   5. A recorrente pede também o reenvio do processo para novo julgamento, invocando o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
   Mas sem razão.
   Ao invocar tal vício, a recorrente parte da ideia, errada, de que ela deveria ter sido considerada como traficante consumidor, uma vez que se demonstra nos autos que o único proveito que ela recolhia do tráfico era retirar e destinar uma pequena parte da droga traficada para uso pessoal e que ela tinha como finalidade exclusiva conseguir substâncias para consumo próprio.
   Ora, se a recorrente fosse condenada como traficante consumidor, teria o tribunal incorrido no referido vício por não enumerar nos factos provados elementos relativos a tal finalidade exclusiva.
   No entanto, como a recorrente foi condenada pela prática do crime de tráfico de estupefaciente, entendemos que a matéria de facto dada como assente é suficiente para serem preenchidos os elementos constitutivos de tal crime.
   
   6. Finalmente, não nos parece desajustada a pena fixada para a recorrente.
   Se é verdade que inicialmente a recorrente ofereceu informações aos agentes da PJ e contribuiu para a detenção do 1º arguido C, pelo que o Tribunal Colectivo aplicou o regime de atenuação especial da pena nos termos do art.º 18.º, n.º 2 do DL n.º 5/91/M, não é menos verdade que está provado que a recorrente na audiência confessou parcialmente os factos, que deve ser levado em conta na determinação da pena concreta.
   Por outro lado, dada a gravidade do crime praticado, a quantidade da droga em causa bem como a necessidade de realizar as finalidades da punição, parece nos equilibrado fixar uma pena concreta de 4 anos e 9 meses, quase metade da moldura mínima prevista para casos normais.
   Concluindo, é de rejeitar o recurso interposto por ser manifestamente improcedente.
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   1. Pelos Tribunal Judicial de Base e Tribunal de Segunda Instância foram dados como provados os seguintes factos:
   “Em data não apurada, o arguido C começou a dedicar-se a actividades de tráfico de estupefacientes em Macau. Para tal efeito, o arguido C subarrendou junto do arguido D a fracção sita [Endereço(1)] a fim de utilizar a referida fracção para guardar produtos estupefacientes.
   A maior parte dos produtos estupefacientes que o arguido C vendia eram “Cannabis Sativa L”. Normalmente, o arguido C utilizavam o aparelho de recados (n.º XXXXXXX) para contactar com aqueles que compravam estupefacientes, tendo o mesmo efectuado transacções de produtos estupefacientes directamente com os compradores.
   Em data não apurada, a arguida A começou a adquirir estupefacientes ao arguido C, para posteriormente fornecer a outrem e ficar com parte consumo próprio.
   Em 9 de Outubro de 2000, cerca das 12H00, agentes da P.J. efectuaram uma busca na residência do arguido E sita [Endereço(2)].
   Na altura, encontrava-se na referida fracção a arguida F, namorada do arguido E.
   Agentes da P.J. encontraram na referida fracção um cachimbo para consumo de “Cannabis Sativa L”, um saco de plástico suspeito de conter “Cannabis Sativa L”, 68 sacos de plástico e uma lata de ferro, pertencentes aos arguidos E e F.
   Submetidos a exame laboratorial, as matérias contidas no referido saco de plástico suspeito de conter “Cannabis Sativa L” foram identificadas como substâncias com componentes de Cannabis Sativa L, produto abrangido pela Tabela I-C da lista anexa ao DL n.º 5/91/M, com peso líquido de 1,707 gramas. As matérias contidas no cachimbo, 68 sacos de plástico e lata de ferro acima referidos foram identificadas como substâncias com componentes de Cannabis Sativa L.
   Os aludidos produtos estupefacientes encontrados na residência dos arguidos E e F destinavam-se para o seu consumo próprio e o aludido cachimbo era utensílio que estes utilizavam para o consumo de estupefacientes.
   Em 9 de Outubro de 2000, cerca das 21H50, agentes da P.J. efectuaram uma busca na residência do arguido B sita [Endereço(3)], tendo sido encontrado um saco de plástico transparente no interior da aludida moradia.
   Submetidos a exame laboratorial, as matérias contidas no referido saco de plástico foram identificadas como substâncias com componentes de Cannabis Sativa L, produto abrangido pela Tabela I-C da lista anexa ao DL n.º 5/91/M, com peso líquido de 9,818 gramas.
   O arguido B adquiriu o aludido Cannabis Sativa L à arguida A para consumo próprio. A arguida A adquiriu o aludido Cannabis Sativa L ao arguido C. Porém, antes a arguida A já tinha adquirido uma vez Cannabis Sativa L ao arguido C para fornecer ao arguido B.
    O arguido B, depois de ser detido, dispôs-se a colaborar com a polícia e de acordo com indicações dos agentes policiais, contactou com a arguida A, fingindo pretender comprar mais uma vez Cannabis Sativa L.
   A arguida A mandou a B para se deslocar, em 10 de Outubro de 2000, cerca das 1H30, à entrada do [Endereço(4)], para efectuar transacções de estupefacientes.
   Agentes policiais deslocaram-se imediatamente ao referido local, capturando a arguida A.
   A arguida A, depois de ser detida, entregou, de livre iniciativa, a agentes policiais, um saco de plástico suspeito de conter Cannabis Sativa L e um cigarro de fabrico artesanal.
   Posteriormente, agentes policiais efectuaram uma busca na residência da arguida A, sita [Endereço(5)], e encontraram um saco de plástico suspeito de conter Cannabis Sativa L e 6 cigarros de fabrico artesanal.
   Submetidos a exame laboratorial, as matérias contidas no saco de plástico suspeito de conter “Cannabis Sativa L” e no cigarro de fabrico artesanal entregues de livre iniciativa pela arguida A foram identificadas como substâncias com componentes de Cannabis Sativa L, produto abrangido pela Tabela I-C da lista anexa ao DL n.º 5/91/M, com peso líquido respectivamente de 9,958 gramas e de 0,203 gramas, num total de 10,161 gramas. As matérias contidas no saco de plástico e nos cigarros de fabrico artesanal apreendidos na residência da arguida por agentes policiais, foram identificadas como substâncias com componentes de Cannabis Sativa L, produto abrangido pela Tabela I-C da lista anexa ao DL n.º 5/91/M, com peso líquido de 3,078 gramas.
   A arguida A adquiriu os aludidos estupefacientes ao arguido C, dos quais, os produtos de Cannabis Sativa L, com peso de 9,958 gramas, entregues de livre iniciativa pela arguida a agentes policiais iriam ser fornecidos ao arguido B e os remanescentes com peso de 3,078 e 0,203 gramas destinavam-se a consumo próprio.
   A arguida A, depois de ser detida, dispôs-se a colaborar com a polícia, e de acordo com as indicações dos agentes policiais, contactou através do número do aparelho de recado (n.º XXXXXXX) com o arguido C fingindo pretender comprar mais uma vez Cannabis Sativa L, tendo combinado que este iria levar Cannabis Sativa L para a residência da arguida A.
   Em 11 de Outubro de 2000, cerca das 00H20, o arguido C quando chegou ao domicílio da arguida A para efectuar transacções de estupefacientes e lhe entregou um saco de plástico suspeito de conter produtos estupefacientes, foi detido por agentes policiais.
   Submetidos a exame laboratorial, as matérias contidas no referido saco de plástico que o arguido C tinha entregue a arguida A foram identificadas como substâncias com componentes de Cannabis Sativa L, produto abrangido pela Tabela I-C da lista anexa ao DL n.º 5/91/M, com peso líquido de 12,413 gramas.
   Agentes policiais, depois de terem detido o arguido C, efectuaram uma busca na moradia onde o arguido D o tinha subarrendado, sita [Endereço(1)], tendo sido encontrados na referida moradia os arguidos D e G.
   Agentes policiais encontraram na referida fracção dez sacos de plástico, contendo no interior produtos em forma de planta, e três cigarros de fabrico artesanal já consumidos.
   Submetidos a exame laboratorial, as matérias contidas nos dez sacos de plástico e nos cigarros de fabrico artesanal acima referidos foram identificadas como substâncias com componentes de Cannabis Sativa L, produto abrangido pela Tabela I-C da lista anexa ao DL n.º 5/91/M. Os dez sacos de plástico de Cannabis Sativa L tinham peso líquido de 457,005 gramas e os três cigarros de fabrico artesanal já consumidos tinham peso líquido de 0,017 gramas.
   O arguido C adquiriu os aludidos sacos de plástico de Cannabis Sativa L a um indivíduo não identificado para os vender a terceiros e ficar com uma parte para consumo próprio.
   Os três cigarros de fabrico artesanal já consumidos eram resíduos dos produtos que o arguido G tinha consumido.
   Os arguidos C, A, B, E, F e G agiram consciente, livre, voluntária e deliberadamente.
   Bem sabendo das características e natureza dos referidos produtos estupefacientes.
   Os 1º, 3º, 4º, 5º, 7º e 8º arguidos não tinham autorização legal para assim preceder e sabiam perfeitamente que as suas condutas eram proibidas e punidas por Lei.
   O 1º arguido era desempregado.
   É casado e tem a mulher, irmão e os pais a ser cargo.
   Confessou parcialmente os factos e é primário.
   O 2º arguido era bate-fichas e auferia o vencimento de vinte mil patacas.
   É solteiro e tem a mulher e a filha a seu cargo.
   Não confessou os factos e é primário.
   A 3ª arguida era angariador de clientes nos casinos e auferia o vencimento de treze mil patacas.
   É solteira e tem dois filhos a seu cargo.
   Confessou parcialmente os factos e é primária.
   O 4º arguido é comerciante de papelaria e aufere o rendimento mensal de cinco mil patacas.
   É solteiro e tem a mãe a seu cargo.
   Confessou parcialmente os factos e é primário.
   O 6º arguido é vendedor de carros e aufere o vencimento de três mil patacas.
   É solteiro e tem os avós a seu cargo.
   Não confessou os factos e não é primário.
   O 7º arguido é estudante-trabalhador da DSTE e aufere o subsídio mensal de mil oitocentas patacas..
   É solteiro e não tem pessoas a seu cargo.
   Confessou os factos e é primário.
   A 8ª arguida é empregada de instituto de beleza e aufere o vencimento de duas mil trezentas patacas.
   É solteira e não tem pessoas a seu cago.
   Confessou os factos e é primária.
   
   Não ficaram provados os seguintes factos:
   Os restantes factos que constam da acusação e contestação, designadamente:
   O arguido D dedicava-se a actividades de tráfico de estupefacientes em Macau juntamente com o arguido C. Designadamente forneceu estupefacientes à arguida A.
   Os produtos estupefacientes encontrados na residência do arguido C pertenciam ao arguido D.
   O arguido D consumia estupefacientes.
   O arguido B forneceu estupefacientes a terceiros.
   O arguido H forneceu estupefacientes aos arguidos E e F.
   Os arguidos D e H sabiam perfeitamente que as suas condutas eram proibidas e punidas por Lei.
   
   2. A rejeição do recurso pelo Tribunal de Segunda Instância
   Para o recorrente, de acordo com o disposto no n.° 1 do art.° 410.° do Código de Processo Penal de Macau (CPP), o recurso só deverá ser rejeitado quando faltar a motivação ou for manifesta a sua improcedência. O Tribunal de Segunda Instância não revelou expressamente no seu acórdão os fundamentos da rejeição do recurso. Estes são, em rigor, fundamentos do decaimento do recurso mas não, manifestamente, da sua rejeição.
   
   Rejeitar o recurso é uma decisão possível após o julgamento do mesmo. Nos termos do art.° 410.°, n.° 1 do CPP, o recurso é rejeitado sempre que faltar a motivação ou for manifesta a improcedência daquele.
   Embora não tivessem sido mencionados expressamente os fundamentos da rejeição do recurso, mas da fundamentação do acórdão resulta evidente que o recurso apresentado pela recorrente foi rejeitado por ser manifestamente improcedente. Na realidade, a recorrente considera também, na sua motivação do recurso, que deveria ser esta razão pela qual o Tribunal de Segunda Instância rejeitou o recurso.
   Limitamos agora a considerar a situação em que o recurso é rejeitado por ser manifestamente improcedente. Para rejeitar o recurso com base nesta razão, o tribunal não pode chegar a esta conclusão sem antes começar por examinar se os fundamentos apresentados por recorrente forem manifestamente improcedentes. Se for o caso da rejeição, a lei exige apenas que o acórdão se limita a especificar sumariamente os fundamentos da decisão, para além de identificar o tribunal recorrido, o respectivo processo e os seus sujeitos processuais (art.° 410.°, n.° 3 do CPP). Segundo esta prescrição legal, o juiz deve explicar sucintamente, no acórdão, as razões de considerar os fundamentos do recurso manifestamente improcedentes. Por isso, no acórdão recorrido, está conforme com o disposto no art.° 410.° do CPP quando o Tribunal de Segunda Instância só proferiu a decisão de rejeição depois de apreciar todos os fundamentos apresentados pela recorrente.
   A recorrente entende ainda não ser necessário explicitar detalhadamente as razões de improcedência do recurso e os fundamentos alegados pelo tribunal recorrido são, em rigor, fundamentos do decaimento do recurso mas não simplesmente da sua rejeição.
   Embora o disposto no n.° 3 do art.° 410.° do CPP limita a exigir que sejam especificados sumariamente os fundamentos da decisão, não se pode considerar violação da referida norma quando o tribunal explicar com pormenor na decisão de rejeição do recurso as razões de improcedência manifesta dos fundamentos do recurso. O objectivo da mencionada disposição é permitir ao tribunal elaborar o respectivo acórdão na forma mais simplificada, perante os recursos de improcedência manifesta, sem necessidade de analisar pormenorizadamente as questões suscitadas no recurso. No entanto, não é proibido pelo Código ao tribunal a especificação relativamente mais pormenorizada e necessária dos fundamentos da rejeição, o que não prejudica, de maneira nenhuma, o recorrente, antes facilita a compreensão da decisão do tribunal pelos interessados, sem afectar a própria estrutura do acórdão. Assim, na situação em apreço não há violação da lei nem conduz à anulação do acórdão recorrido.
   Para além disso, a recorrente não tem direito a exigir que o recurso seja julgado necessariamente com audiência. Não especificou, por outro lado, qual foi a consequência sobre a recorrente ou a própria estrutura do acórdão provocada pela realização do julgamento do recurso pelo Tribunal de Segunda Instância na forma de conferência e não de audiência. Por isso, a recorrente não pode pedir o reenvio do processo para o Tribunal de Segunda Instância no sentido de dar prosseguimento ao recurso com a audiência.
   
   3. Métodos proibidos de prova
   A recorrente sustenta que caso o arguido B não tivesse simuladamente pretendido adquirir droga a ela, os produtos que a mesma detinha destinar-se-iam necessariamente ou ao seu consumo pessoal ou, nem sequer, teriam sido por si adquiridos. Existe manifestamente violação do disposto sobre a proibição de meios de prova. Não podiam as provas em causa ter sido utilizadas porquanto as mesmas são nulas, nomeadamente as declarações dos agentes da polícia e das outras testemunhas, bem como as declarações da própria recorrente, mesmo quanto à parte da sua confissão parcial, uma vez que as mesmas são obtidas na sequência de meios de prova ilicitamente realizados. Nem pode concordar com o entendimento do tribunal recorrido e do Ministério Público de que, pelo facto de a recorrente já anteriormente ter praticado, por uma vez, o mesmo crime, a liberdade de decisão da mesma não terá sido perturbada.
   A recorrente resume a questão em causa à do “homem de confiança” tratada na doutrina e considera como um meio enganoso e é método proibido de prova previsto na al. a) do n.° 2 do art.° 113.° do CPP.
   
   A questão ora em apreciação tem por origem a simulação de mais uma compra de marijuana pedida pelo arguido B após a sua detenção pela polícia, mostrando-se disposto a colaborar com a polícia, através do contacto estabelecido com a recorrente A sob a instrução da polícia. No local combinado, a recorrente foi detida pela polícia e foram encontrados um saco de marijuana com o peso líquido de 9,958g e um cigarro com marijuana de peso líquido de 0,203g. Estes factos constituíram uma das provas para acusar a recorrente.
   
   Em princípio, são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (art.° 112.° do CPP). No entanto, as provas devem ser obtidas por meios lícitos sob pena de ser consideradas nulas. Nos termos do art.° 113.°, n.° 1 do CPP, “são nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral da pessoa.” Constituem ofensivas da integridade física ou moral da pessoa as provas obtidas, mesmo que com consentimento dela, mediante perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos (al. a) do n.° 2 do art.° 113.° do CPP).
   Tendo em vista os crimes relacionados com o tráfico de droga, está prevista na lei uma forma especial de investigação e recolha de provas. Prescreve o n.° 1 do art.° 36.° do Decreto-Lei n.° 5/91/M: “Não é punível a conduta do funcionário de investigação criminal que, para fins de inquérito, e sem revelação da sua qualidade e identidade, aceitar directamente ou por intermédio de um terceiro a entrega de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas.”
   De acordo com a disposição desta norma, no âmbito da investigação criminal, os agentes de investigação podem simular a colaboração com os criminosos para recolher provas de crimes de tráfico de droga através da aquisição, directamente ou por meio de terceiros, da droga fornecida por aqueles. Trata-se de norma destinada especialmente ao combate, com eficácia, dos crimes relacionados com droga. Mas a execução dos respectivos actos, no âmbito definido pela referida norma, não deve violar o disposto no art.° 113.° do CPP sobre os métodos proibidos de prova.
   Os funcionários que procedem à investigação no domínio permitido pela referida norma são apenas agentes infiltrados, ou seja, agente de autoridade ou cidadão particular em colaboração com este que, sem revelar a sua identidade verdadeira e com o fim de obter notícia do crime ou provas para a incriminação dos suspeitos, ganha a sua confiança pessoal, acompanhando a execução dos factos do crime, praticando actos de execução se necessário for, por forma a conseguir a informação necessária ao fim a que se propõe. Mas eles são diferentes do agente provocador. Embora ambos sejam igualmente uma polícia ou um cidadão normal e o crime em si não constitua o seu fim, o agente provocador convence outrem à prática de um crime para submeter essa pessoa, com esta prova, a um processo criminal e a uma pena.1
   Os actos de investigação do agente infiltrado só podem consistir em colaborar com uma actividade criminosa já em curso para obter conhecimento sobre as situações dessa actividade. Contudo, os referidos actos de investigação não se podem tornar em impulso ou instigação para a prática da actividade criminosa. Há que distinguir com rigor entre proporcionar uma ocasião para descobrir um crime que já existe, daquela em que se provoca uma intenção criminosa que ainda não existia.2
   Em relação à posição de Manuel da Costa Andrade sobre a figura do “homem de confiança”, convém ter em conta que é empregado aqui um conceito extensivo de homem de confiança, nele abrange “todas as testemunhas que colaboram com as instâncias formais da perseguição penal, tendo como contrapartida a promessa da confidencialidade da sua identidade e actividade. Cabem aqui tanto os particulares como os agentes das instâncias formais, nomeadamente da polícia que disfarçadamente se introduzem naquele submundo ou com ele entrem em contracto; e quer se limitem à recolha de informações, quer vão ao ponto de provocar eles próprios a prática do crime.” Por isso, o homem de confiança aqui tratado engloba o agente infiltrado e o agente provocador. Segundo a doutrina do mesmo autor, ele só aceita como lícito o meio de recolha de prova através do homem de confiança quando este prossiga finalidades exclusiva ou prevalentemente preventivas.3
   
   São seguintes os factos provados relacionados com a presente questão:
   “Em data não apurada, a arguida A começou a adquirir estupefacientes ao arguido C, para posteriormente fornecer a outrem e ficar com parte consumo próprio.”
   “Em 9 de Outubro de 2000, cerca das 21H50, agentes da P.J. efectuaram uma busca na residência do arguido B sita [Endereço(3)], tendo sido encontrado um saco de plástico transparente no interior da aludida moradia.
   Submetidos a exame laboratorial, as matérias contidas no referido saco de plástico foram identificadas como substâncias com componentes de Cannabis Sativa L, produto abrangido pela Tabela I-C da lista anexa ao DL n.º 5/91/M, com peso líquido de 9,818 gramas.
   O arguido B adquiriu o aludido Cannabis Sativa L à arguida A para consumo próprio. A arguida A adquiriu o aludido Cannabis Sativa L ao arguido C. Porém, antes a arguida A já tinha adquirido uma vez Cannabis Sativa L ao arguido C para fornecer ao arguido B.
    O arguido B, depois de ser detido, dispôs-se a colaborar com a polícia e de acordo com indicações dos agentes policiais, contactou com a arguida A, fingindo pretender comprar mais uma vez Cannabis Sativa L.
   A arguida A mandou a B para se deslocar, em 10 de Outubro de 2000, cerca das 1H30, à entrada do [Endereço(4)], para efectuar transacções de estupefacientes.
   Agentes policiais deslocaram-se imediatamente ao referido local, capturando a arguida A.
   A arguida A, depois de ser detida, entregou, de livre iniciativa, a agentes policiais, um saco de plástico suspeito de conter Cannabis Sativa L e um cigarro de fabrico artesanal.
   Posteriormente, agentes policiais efectuaram uma busca na residência da arguida A, sita [Endereço(5)], e encontraram um saco de plástico suspeito de conter Cannabis Sativa L e 6 cigarros de fabrico artesanal.
   Submetidos a exame laboratorial, as matérias contidas no saco de plástico suspeito de conter “Cannabis Sativa L” e no cigarro de fabrico artesanal entregues de livre iniciativa pela arguida A foram identificadas como substâncias com componentes de Cannabis Sativa L, produto abrangido pela Tabela I-C da lista anexa ao DL n.º 5/91/M, com peso líquido respectivamente de 9,958 gramas e de 0,203 gramas, num total de 10,161 gramas. As matérias contidas no saco de plástico e nos cigarros de fabrico artesanal apreendidos na residência da arguida por agentes policiais, foram identificadas como substâncias com componentes de Cannabis Sativa L, produto abrangido pela Tabela I-C da lista anexa ao DL n.º 5/91/M, com peso líquido de 3,078 gramas.
   A arguida A adquiriu os aludidos estupefacientes ao arguido C, dos quais, os produtos de Cannabis Sativa L, com peso de 9,958 gramas, entregues de livre iniciativa pela arguida a agentes policiais iriam ser fornecidos ao arguido B e os remanescentes com peso de 3,078 e 0,203 gramas destinavam-se a consumo próprio.”
   
   Resulta desses factos provados que, antes da sua detenção pela polícia, a recorrente já adquiriu droga ao arguido C do mesmo processo para fornecer a outrem, incluindo as duas vezes que forneceu marijuana ao arguido B (a marijuana que forneceu pela segunda vez foi a encontrada pela polícia na residência deste arguido com o peso de 9,818g), e fica com parte da droga adquirida para consumo próprio. Assim, isso não corresponde à afirmação da recorrente de que se o arguido B não tivesse simuladamente pretendido adquirir droga à recorrente, os produtos que a mesma detinha destinar-se-iam necessariamente, ou ao seu consumo pessoal ou, nem sequer, teriam sido por si adquiridos.
   A recorrente foi detida quando se preparava a proceder novamente à transacção de droga com o arguido B e foram nela encontrados um saco de marijuana de peso líquido de 9,958g e um cigarro de fabrico artesanal com marijuana de peso líquido de 0,203g. Posteriormente, foram encontrados um saco de marijuana e seis cigarros de fabrico artesanal contendo marijuana com peso líquido total de 3,078g. Toda essa marijuana foi adquirida pela recorrente ao arguido C e o saco da marijuana de peso líquido de 9,958g era para fornecer ao arguido B, ficando a restante parte da marijuana encontrada para o consumo próprio da recorrente.
   Na conduta da recorrente objecto da acusação criminal no presente processo inclui os vários fornecimentos da marijuana ao arguido B. Por todos esses actos a recorrente foi acusada pela prática de um crime de tráfico de droga e um crime de consumo de droga. Por ter sido provados esses factos, não pode a recorrente sustentar que se não houvesse a transacção simulada de droga, não cometeria o crime. De facto, os actos conducentes à condenação da recorrente na primeira instância pela prática de um crime de tráfico de droga previsto e punido pelo art.° 8.°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 5/91/M não se limitam à transacção de droga efectuada entre a recorrente e o arguido B sob a orientação da polícia, mas antes abrange uma série dos actos que integram o referido crime realizados pela recorrente ainda antes da sua detenção pela polícia, incluindo os dois fornecimentos de marijuana ao arguido B. Só o fornecimento da marijuana de 9,818g para arguido B pela recorrente antes da sua detenção pela polícia já é suficiente para condená-la pela prática do crime de tráfico de droga.
   Resulta claro dos mencionados factos provados que a intenção da recorrente de praticar o crime era contínua e as suas condutas traduziam-se na violação por várias vez da norma legal reguladora do crime de tráfico de droga. Isto é, a recorrente já estava a realizar a actividade de tráfico de droga antes da sua detenção pela polícia. A transacção da droga que a recorrente preparava a realizar com o arguido B ao ser detida pela polícia foi apenas a continuação do acto criminoso de tráfico de droga. A intenção da recorrente da prática do crime de tráfico de droga já existia antes da sua detenção pela polícia. A transacção de droga entre o arguido B e a recorrente montada pela polícia serve apenas para revelar os elementos da prática do crime pela recorrente tal como a sua intenção, mas não para provocar a recorrente a praticar os actos constitutivos do crime que não tinha intenção de os realizar. A recorrente decidiu infringir mais uma vez a lei na total liberdade perante a solicitação exterior embora simulada. No presente caso, a transacção simulada de droga montada pela polícia não constitui meio enganoso que instiga a recorrente a praticar crime e a sua vontade e liberdade de decisão não foram assim perturbadas.
   O próprio recurso ao agente infiltrado para realizar investigação criminal não é necessariamente um método proibido de prova. No presente processo, a intenção da recorrente de praticar continuamente a actividade de tráfico de droga forma-se com a total liberdade e a compra simulada de droga montada pela polícia não provocou a actividade criminosa que tem realizado ou a intenção da recorrente de praticar crime, mas apenas as revelou. Isso não constitui a recolha de prova mediante meio enganoso prevista na al. a) do n.° 2 do art.° 113.° do CPP, nem excedeu o âmbito permitido pelo art.° 36.°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 5/91/M. Por isso, não é nula a prova assim obtida.
   É de acrescentar que: a pena imposta à recorrente por condenação pela prática do crime de tráfico de droga foi atenuada nos termos do art.° 18.°, n.° 2 do Decreto-Lei n.° 5/91/M precisamente por causa de a recorrente ter mostrado disposta a colaborar com a polícia depois de ser detida por esta e contribuir para identificar o outro traficante de droga através da mesma forma de compra simulada de droga.
   
   4. Os actos da recorrente e o crime de traficante-consumidor e a fundamentação do acórdão
   A recorrente considera evidente, segundo os factos provados, que a sua finalidade exclusiva de traficar droga era a aquisição de droga para o seu consumo pessoal, sem obter qualquer proveito económico através disso. Daí que nem seja relevante o facto de a decisão recorrida não mencionar a finalidade exclusiva do tráfico de droga. E o tribunal também não indicou como não provados quaisquer factos que pudessem, de alguma maneira, afastar a qualificação como crime de traficante-consumidor. Assim, o acórdão é nulo por falta de motivação.
   
   No entanto, dos factos provados não resulta, de maneira nenhuma, que a finalidade exclusiva da recorrente de traficar droga é a aquisição de droga para o seu consumo pessoal. O que se pode conclui é: A recorrente adquire droga ao arguido C para fornecer a outrem e fica com parte para consumo próprio. Antes de ser detida, a recorrente forneceu duas vez marijuana ao arguido B, que na segunda vez a marijuana tinha o peso líquido de 9,818g. Ao ser detida pela polícia, a recorrente preparava a fornecer ao arguido B um saco de marijuana de peso líquido de 9,958g. A restante marijuana encontrada na recorrente e na sua residência com peso líquido de 3,281g era destinada ao seu consumo próprio. A conduta da recorrente acima referida preenche perfeitamente os elementos constitutivos dos crimes de tráfico de droga e de consumo de droga previstos nos art.°s 8.°, n.° 1 e 23.°, al. a) do Decreto-Lei n.° 5/91/M. A recorrente até não contesta a qualificação como crime de tráfico de droga (v. o n.° 114 da alegação do recurso).
   Quanto ao entendimento da recorrente de que a sua conduta devia ser qualificada como crime de traficante-consumidor carece de fundamento. Preceitua, assim, o art.° 11.°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 5/91/M: “Quando, pela prática de algum dos actos referidos no artigo 8.°, o agente tiver por finalidade exclusiva conseguir substâncias ou preparados para uso pessoal, a pena será a de prisão até 2 anos e multa de 2000 a 50000 patacas.” Por isso, só no caso de o arguido tiver por finalidade exclusiva conseguir droga para o seu consumo próprio ao praticar qualquer um dos actos previstos no art.° 8.° do mesmo diploma se constitui a infracção do crime de traficante-consumidor.
   Segundo os factos provados, a recorrente trafica droga, por um lado, e consome droga, por outro. Contudo, um traficante que, ao mesmo tempo, consome droga não é necessariamente o traficante-consumidor previsto no art.° 11.°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 5/91/M. Só quando ficar provada a aquisição de droga para consumo pessoal, como a finalidade exclusiva do tráfico, é possível qualificar como crime de traficante-consumidor. Uma vez que não ficou provada essa finalidade exclusiva, não se pode alterar a qualificação da conduta da recorrente como crime de traficante-consumidor.
   O recorrente considera ainda que o tribunal também não indicou como não provados quaisquer factos que pudessem, de alguma maneira, afastar a qualificação como crime de traficante-consumidor e o acórdão é nulo por falta de motivação.
   De acordo com o art.° 355.°, n.° 2 do CPP, na fundamentação da sentença deve constar a enumeração de factos provados e não provados. Sobre esta norma o nosso tribunal determinou no acórdão de 20 de Março de 2002 do recurso penal n.° 3/2002 que os factos que devem constar desta enumeração são de circunscrever aos factos constantes da acusação, da contestação ou da acção cível conexa com a acção penal, quando a haja. Relativamente aos factos não constantes destas peças nunca pode pôr-se qualquer exigência de que os mesmos se considerem provados e que se faça a sua enumeração como factos provados ou não provados, caso não se verificar as situações de alteração substancial ou não substancial dos factos reguladas nos art.°s 339.° e 340.° do CPP.
   No processo penal, o conteúdo da acusação determina o objecto do processo. No presente processo, a recorrente não apresentou contestação escrita, não ocorreu as situações previstas nos art.°s 339.° e 340.° do CPP, nem constam da acusação os factos que a recorrente considera o tribunal obrigado a indicar, pelo que o tribunal não pode integrar tais factos nos factos provados ou não provados.
   Por outro lado, foram ainda indicadas no acórdão de primeira instância, para além da enumeração dos factos provados e não provados, as provas que serviram à formação da convicção do tribunal, em que inclui as declarações dos arguidos, dos polícias que intervieram na investigação e na detenção dos arguidos e os relatórios de exame laboratorial, foi feita apreciação e valoração das provas na sua globalidade com recurso às regras de experiência e consideração da normalidade das situações. Dos referidos elementos percebe-se com clareza a razão essencial da formação da convicção do tribunal, chegando à decisão final com a análise das respectivas normas legais. Por isso, no acórdão de primeira instância não se verifica a violação do disposto no art.° 355.°, n.° 2 do CPP nem a falta de motivação cominada com a nulidade.
   Além disso, tal como foi referido e sempre de acordo com os factos provados, as condutas da recorrente são perfeitamente qualificáveis como crimes de tráfico de droga e de consumo de droga previstos nos art.°s 8.°, n.° 1 e 23.°, al. a) do Decreto-Lei n.° 5/91/M, pelo que não existe o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nem é preciso reenviar o processo para novo julgamento nos termos do art.° 418.°, n.° 1 do CPP.
   
   5. A pena concreta e a medida da atenuação
   Para a recorrente, é consideravelmente pouca a medida de atenuação da pena de que a mesma beneficia ao abrigo do disposto no art.° 18.°, n.° 2 do Decreto-Lei n.° 5/91/M. A medida de atenuação nos termos da referida norma não deve ser inferior à prevista nos art.°s 66.° e 67.° do Código Penal (CP), até pode ser dispensa a pena. Não deve ser condenada a uma pena de quase cinco anos tendo em conta as atenuantes gerais e especiais.
   Prescreve o art.° 18.°, n.° 2 do Decreto-Lei n.° 5/91/M: “No caso de prática dos crimes previstos nos artigos 8.º, 9.º e 15.º, se o agente abandonar voluntariamente a sua actividade, afastar ou fizer diminuir consideravelmente o perigo por ela causado, auxiliar concretamente na recolha de provas decisivas para a identificação ou captura dos outros responsáveis, especialmente no caso de grupos, organizações ou associações, poderá a pena ser-lhe livremente atenuada ou decretar-se mesmo a isenção.”
   A medida de atenuação aqui regulada é fixada livremente pelo tribunal dentro da moldura penal dos referidos crimes cometidos e até pode ser dispensada.
   De acordo com o n.° 1 do art.° 8.° do Decreto-Lei n.° 5/91/M, o crime de tráfico de droga a que a recorrente foi condenada é punido com a pena de oito a doze anos de prisão e multa de 5000 a 700000 patacas. A recorrente foi condenada finalmente por crime de tráfico de droga na pena de 4 anos e 9 meses de prisão e a multa de 10000 patacas. A prisão concreta equivale apenas a metade da pena mínima mais nove meses.
   Considerando as circunstâncias do tráfico de droga da recorrente, tal como os destinatários da venda, o tipo da droga e a sua quantidade, e a colaboração prestada à polícia e o seu efeito, deve ser tido por adequada a pena imposta à recorrente.
   Este tipo de atenuação de pena é diferente da atenuação especial prevista nos art.°s 66.° e 67.° do CP quanto aos aspectos de requisitos da aplicação, objectivos e medida de atenuação. Por isso, não se pode exigir simplesmente que a medida de atenuação regulada no n.° 2 do art.° 18.° do Decreto-Lei n.° 5/91/M nunca pode ser inferior à prevista nos art.°s 66.° e 67.° do CP.
   
   O presente recurso deve ser rejeitado por ser manifestamente improcedentes os fundamentos do recurso (art.° 410.°, n.° 1 do CPP).
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em rejeitar o recurso.
   Nos termos do art.° 410.°, n.° 4 do CPP, condena a recorrente a pagar 4 UC (duas mil patacas). E ainda em 5 UC (duas mil quinhentas patacas) da taxa de justiça e outras custas.
   
   
   
   Aos 27 de Junho de 2002.




           Juízes:Chu Kin (relator)
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

1 Para comparar os conceitos de agente infiltrado e agente provocador, v. Manuel Augusto Alves Meireis, O Regime das Provas Obtidas pelo Agente Provocador em Processo Penal, Almedina, 1999, Coimbra, p. 155, 163 e 164.
2 Cfr. A. G. Lourenço Martins, Droga e Direito, Aequitas e Editorial Notícias, 1994, Lisboa, p. 278.
3 Cfr. Manuel da Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra Editora, 1992, Coimbra, p. 219 a 233.
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Processo n.° 6 / 2002 36