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Processo n.º 8/2002. Recurso jurisdicional em matéria cível.
Recorrente: Ministério Público.
Recorrido: A.
Assunto: Revisão e confirmação de sentença do exterior de Macau. Competência exclusiva dos tribunais de Macau. Acção de divórcio. Acção relativa a direito real sobre imóvel situado em Macau.
Data da Sessão: 17 de Julho de 2002.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Sam Hou Fai e Chu Kin.

SUMÁRIO:
I - Uma decisão proferida por tribunal do exterior de Macau não pode aqui ser revista e confirmada se versar sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais de Macau, nos termos dos arts. 1200.º, n.º 1, alínea c), segunda parte e 20.º do Código de Processo Civil.
II - A acção é relativa a direito real sobre imóvel sempre que na sua base esteja o domínio ou a titularidade de um direito real, sem que haja ao mesmo tempo qualquer vínculo pessoal entre o autor e o réu, vínculo que a acção se proponha efectivar, ou seja quando o autor e réu não estejam interligados por relações pessoais, que obriguem o réu à entrega da coisa ao autor.
III - Não é acção real sobre imóvel a acção de divórcio, na parte em que o juiz, em consequência da dissolução do casamento, determina que uma das partes transfira todos os direitos sobre imóvel do casal para a outra parte.

O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU

I – Relatório
A requereu ao Tribunal de Segunda Instância a revisão e confirmação de sentença proferida pelo Tribunal Distrital da Região Administrativa Especial de Hong Kong, em 24 de Março de 1999, que decretou a dissolução do casamento celebrado entre a requerente e B.
Por Acórdão de 13 de Dezembro de 2001, o Tribunal de Segunda Instância concedeu a revisão e confirmou a decisão proferida pelo referido Tribunal de Hong Kong, relativa à dissolução do casamento entre a requerente A e B, com homologação do acordo sobre a regulação do exercício do poder paternal sobre a filha do casal, C, excepto na parte respeitante ao acordo dos cônjuges quanto ao imóvel situado no [Endereço], em Macau (de acordo com a decisão do Tribunal de Hong Kong, “após o Decreto de Divórcio ter sido concedido, o autor- o ora requerido - transferirá todo o interesse legal e real no mencionado imóvel para a ora requerente).
Para tal, o Tribunal de Segunda Instância entendeu que a decisão confirmanda violava o disposto na alínea a) do art. 20.º do Código de Processo Civil, de acordo com a qual “A competência dos tribunais de Macau é exclusiva para apreciar ... As acções relativas a direitos reais sobre imóveis situados em Macau”, conjugado com a alínea c), do n.º 1, do art. 1200.º do mesmo diploma legal.
Recorre do Acórdão o Ministério Público, pedindo a confirmação da sentença revidenda na sua totalidade e terminando o Ex. mo Procurador-Adjunto a sua alegação, com as seguintes conclusões:
A - A sentença revidenda decretou o divórcio da requerente e do requerido, tendo homologado, igualmente, o acordo sobre o destino de um imóvel sito em Macau;
B - O tribunal sentenciador tinha competência para a homologação desse acordo - que deve ter-se como um modo de fazer a partilha do imóvel em causa; na verdade,
C - A al. c) do n.° 1 do art. 1200.° do C. P. Civil, consagra a doutrina da unilateralidade atenuada, devendo ter-se em consideração as normas da lei do Estado de origem e não as da lex fori, com ressalva da fraude à lei e da competência exclusiva dos tribunais da RAEM; e
D - Não há quaisquer indícios de que a competência desse tribunal tenha sido provocada em fraude à lei; por outro lado,
E - A decisão revidenda não versa sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais de Macau, tal como a define o art. 20°, al. a), do C. P. Civil; com efeito,
F - Esse dispositivo reporta-se a "acções relativas a direitos reais sobre imóveis situados em Macau"; e
G - O que a decisão revidenda apreciou e decidiu foi uma questão de direito matrimonial, inscrita, segundo o C. Civil de Macau, no âmbito dos "efeitos do casamento quando às pessoas e aos bens dos cônjuges" (cfr. Capítulo VIII, Título li, Livro IV e seu art. 1556°); ora,
H - Em matéria de divórcio, não está fixada a competência exclusiva dos tribunais de Macau;
I - A partilha de bens entre ex-cônjuges, subsequente a um divórcio, não envolve discussão em matéria de direitos reais - estando apenas em jogo, na mesma, a consideração do direito de família; de facto,
J - Uma partilha pressupõe uma propriedade colectiva e não uma compropriedade; assim,
L - Um processo de inventário não constitui, no sistema de Macau, uma acção relativa a direitos reais sobre imóveis;
M - Decidindo em sentido contrário, o douto acórdão recorrido violou as supracitadas normas legais.
A requerente da revisão da sentença veio dar o seu acordo ao recurso interposto pelo Digno Magistrado do Ministério Público.
Distribuído o recurso neste Tribunal de Última Instância em 8 de Maio de 2002, o relator proferiu o seguinte despacho:
“...as dúvidas mais sérias sobre o sentido e alcance da decisão (e recorde-se que se trata de direito da «common law», para os quais os quadros do nosso Direito são imprestáveis) relacionam-se com os efeitos da decisão. Na verdade, a decisão revidenda determina que o autor transfira todo o interesse no imóvel para a ré. A decisão recorrida interpretou esta determinação como uma obrigação de o autor transferir a propriedade do imóvel para a ré, que não se trataria de transferência real. Por seu lado, na sua alegação, o ilustre Recorrente opina que a decisão revidenda procedeu à partilha do imóvel”.
Considerou o relator que tratando-se de direito do exterior, sobretudo de uma família de direito com poucas semelhanças com o de Macau, não se sentir habilitado, sem mais, a interpretar o sentido e alcance da decisão judicial na parte em apreço. E assim, sem prejuízo do estudo da questão a que o Tribunal irá proceder oficiosamente, convidou “o ilustre Recorrente, nos termos do art. 341.º, n.º 1, do Código Civil a, em 20 dias, vir aos autos comprovar o sentido e alcance da decisão judicial na parte em apreço, designadamente, esclarecendo:
- Se o imóvel se situasse em Hong Kong, se a ré, com base na decisão, poderia logo proceder ao registo da propriedade do imóvel a seu favor, ou
- Se haveria necessidade de colaboração do autor, praticando os actos negociais próprios (em abstracto, com a possibilidade de ele não se prestar a isso) para que a propriedade do imóvel fosse transferida para a ré”.

O Ilustre Recorrente veio, então juntar uma informação do Sector de Cooperação Judiciária, da Secção de Direito Internacional, do Departamento de Justiça da Região Administrativa Especial de Hong Kong, onde se esclarece o seguinte:
“Nos termos do Direito Matrimonial de Hong Kong, as partes envolvidas na acção de divórcio têm respectivamente a designação de requerente (“petitioner”, neste caso se refere ao B) e de respondente (“respondent” que se refere à A, adiante designada por A).
Na sentença de divórcio proferida, mesmo que antes ou depois de a sentença ser transitada em julgado, o Tribunal pode ordenar a alienação de bens, nos termos do "Procedimento Jurídico de Matrimónio e Disposições de Património" (Art. 6°(1) do Capítulo 192 da Legislação da Região Administrativa Especial de Hong Kong.
Relativamente aos autos em causa, quando foi proferida a decisão provisória por parte do tribunal da Comarca, foi passada a ordem de consentimento, no sentido de ordenar o requerente (B) a alienar todos os direitos legais e reais dos bens à respondente (A), depois de a sentença ser transitada em julgado. No entanto, não foi ordenada a alienação da propriedade legal dos bens a favor da respondente (A). Para ser alienada a propriedade legal à respondente (A), deverão esta e o requerente outorgar uma escritura de alienação.
Se, uma vez transitada em julgado a sentença do tribunal, o requerente (B) vier a recusar outorgar a referida escritura, poderá a respondente (A) requerer junto do tribunal para que o caso seja remetido ao Tribunal Superior nos termos do art. 26°, Cap. 192 da Legislação de Hong Kong, no sentido de que fosse este tribunal a mandar ao requerente (B) para outorgar a escritura.
E, se efectivamente for decretada a referida ordem pelo Tribunal Superior, poder-se-á, ainda, designar um terceiro para substituir a pessoa que foi, por ordem, sujeita à outorga da escritura de alienação de bens (neste caso o requerente), para proceder à outorga de tal escritura, nos termos do art. 25A da Lei do Tribunal Superior (Cap. IV da Legislação da Região de Administração Especial de Hong Kong).
Por outro lado, com o pedido da alienação de bens (isto é, Modelo 9 anexado ao Regulamento da Acção de Divórcio (Cap. 179A da Lei Subsidiária) -"Notificação da pretensão de prosseguimento do pedido de apoio económico anexado ao requerimento ou à resposta), podem os autos, nos termos da Lei de Inscrição de Terras (Cap. 128 da Lei da RAEHK), ficar averbados como "processo pendente" (acção ou procedimento relacionado com terras ou com o direito ou hipoteca de terras, em estado pendente no tribunal ou em Magistracy). Depois de averbado, a propriedade constante do Livro de Averbamentos fica de certa forma "congelada", podendo assim o pedido constante da acção pendente ficar assegurado. E, salvo se for decidido pelo tribunal, na fase de pendência da acção, que fosse cancelado o averbamento, a sua validade continua a manter-se até que para o caso pendente seja pronunciada uma decisão (art. 190 do Cap. 128)”.

II – Os factos
Os factos dados como provados pelo Tribunal recorrido, são os seguintes:
Em 5 de Fevereiro de 1980, A (ora requerente) e B 1 (ora requerido) casaram-se civilmente e sob registo em Hong Kong (cfr. o certificado de casamento n.o XXXXXX, a fls. 25 dos autos);
E desse casamento, nasceu em 9 de Setembro de 1982 em Hong Kong a filha de ambos, chamada C (cfr. o assento de nascimento n.º XXXX-X, a fls. 26 dos autos);
Por decisão do Primeiro de Fevereiro de 1999 proferida pelo Tribunal Distrital da Região Administrativa Especial de Hong Kong no "Processo Matrimonial" ("Matrimonial Causes") n.º FCMC7750/1998, então pedido por B (como autor) contra A (como ré), foi decretada a dissolução, por consentimento, do casamento entre ambos, e homologados os acordos de regulação do exercício do poder paternal quanto à filha menor e ao destino do imóvel localizado em Macau, no [Endereço], nos seguintes termos (cfr. a cópia certificada da decisão judicial em causa, a fls. 10 a 11 dos autos):
"1. a custódia da filha do casal, nomeadamente C seja concedida à Ré com razoável acesso ao Autor E É ORDENADO que a menor não seja removida de Hong Kong sem autorização até completar 18 anos de idade, mas desde que qualquer dos progenitores se comprometa perante o Tribunal a retomar a dita menor a Hong Kong quando tal lhe for solicitado pelo outro progenitor, e a menos que de outro modo determinado com o consentimento por escrito do outro progenitor, esse progenitor pode levar a menor para fora de Hong Kong por qualquer período especificado nesse consentimento por escrito.
2. Após o Decreto de Divórcio ter sido concedido, o Autor transferirá todo o interesse legal e real no imóvel localizado no [Endereço], em MACAU, para a Ré com as custas e as despesas referentes à transferência a serem suportadas absolutamente pela Ré." (cfr. a tradução para português a fls. 6 a 7 dos autos, da decisão judicial cuja revisão e confirmação ora se requer);
E esta decisão judicial foi comprovadamente tornada final e absoluta ("made final and absolute") em 22 de Março de 1999 (cfr. fls. 17 dos autos).

III – O Direito

O requisito negativo da segunda parte da alínea c) do n.º 1, do art. 1200.º do Código de Processo Civil

1. Salvo convenção internacional ou acordo no domínio da cooperação judiciária ou de lei especial, as decisões sobre direitos privados, proferidas por tribunais do exterior de Macau, só têm aqui eficácia depois de estarem revistas e confirmadas pelo processo previsto nos arts. 1199.º do Código de Processo Civil e seguintes.
O Tribunal competente para a revisão e confirmação é o Tribunal de Segunda Instância [art. 36.º, alínea 12) da Lei de Bases da Organização Judiciária- Lei n.º 9/1999] e foi no uso de tal competência que foi produzido o Acórdão recorrido.
Um dos requisitos para que uma decisão proferida por tribunal do exterior de Macau seja confirmada é o de que “não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais de Macau” [segunda parte da alínea c), do n.º 1, do art. 1200.º do Código de Processo Civil].
Entendeu-se na decisão recorrida que quaisquer decisões provenientes de jurisdição exterior a Macau com ofensa à competência exclusiva dos tribunais de Macau não podem ser confirmadas e revistas, o que impossibilita a produção da eficácia no nosso ordenamento jurídico. O que está certo.
A competência internacional do tribunal de origem constitui a condição primordial do reconhecimento da sentença dele dimanada, o seu fundamento formal. 2
No Código de Processo Civil de Macau, tal como no Código português, na revisão entrada em vigor em 1997, tal controlo é assegurado por um duplo requisito:
- Exige-se que a competência do tribunal de origem não tenha sido provocada em fraude à lei;
- Exige-se que o tribunal do foro, o de Macau, no caso, não seja exclusivamente competente para o efeito, isto é, exige-se que não se trate de matéria para a qual tenham exclusiva competência os tribunais de Macau.
O primeiro dos requisitos não está em causa.
Sobre o segundo requisito, explica MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, 3 a propósito de norma semelhante do Código português:
“O efeito da competência exclusiva é, portanto, o de impossibilitar a revisão e confirmação de uma sentença estrangeira proferida numa acção para a qual a jurisdição portuguesa se considera exclusivamente competente”.4
Era esta, aliás, a doutrina que já se extraía do art. 65.º-A e da alínea c), do art. 1096.º, do Código de 1961.5

Conceito de “acções relativas a direitos reais”

2. O ponto fulcral do presente recurso reside, pois, em saber, se a matéria em causa é daquelas para conhecimento das quais a Ordem Jurídica de Macau reserva para apreciação pelos seus tribunais, para a qual os tribunais exclusivamente competentes são os locais.
Trata-se de matéria que está prevista no art. 20.º do Código de Processo Civil, onde se estabelece:
“Artigo 20.º
(Competência exclusiva dos tribunais de Macau)
A competência dos tribunais de Macau é exclusiva para apreciar:
a) As acções relativas a direitos reais sobre imóveis situados em Macau;
b) As acções destinadas a declarar a falência ou a insolvência de pessoas colectivas cuja sede se encontre em Macau”.

No caso dos autos a revisão e confirmação foi negada a parte da decisão, com fundamento na alínea a).
A norma citada é daquelas que MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA 6 designa por normas de retenção, pois visam evitar que, perante a jurisdição do foro, um tribunal estrangeiro tenha competência para apreciar uma relação jurídica, tendo na base determinado interesse político-legislativo. E a propósito do art. 65.º-A do Código de 1939, acrescentava o mesmo autor que “para o legislador português, relevou fundamentalmente, quanto às matérias de direito privado aí referidas, a protecção de interesses económicos nacionais. São estes que justificam a competência exclusiva dos tribunais portugueses para as acções relativas a direitos reais sobre imóveis (propriedade fundiária e bens de produção, nomeadamente) sitos em território nacional (art. 65.º-A, al. b))”.
O art. 20.º do Código de Processo Civil de Macau tem na sua origem o art. 65.º-A do Código de 1939, que foi introduzido pela Lei n.º 21/78, de 3.5.
Ambas as alíneas a), dos dois artigos, dispõem que a competência dos tribunais locais é exclusiva para as acções relativas a direitos reais sobre imóveis sitos em Macau.
Estas normas têm origem, indiscutivelmente, num preceito sobre competência interna, mais concretamente, em razão do território, do referido Código de Processo Civil anterior, que era o art. 73.º, n.º 1, norma relativa à atribuição de jurisdição aos tribunais de Macau, nos termos do art. 48.º do Decreto-Lei n.º 17/92/M, de 2.3, até à entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, e onde se dispunha:
“Artigo 73.º
Foro da situação dos bens
1. Devem ser propostas no tribunal da situação dos bens as acções relativas a direitos reais sobre imóveis, e bem assim as acções para arbitramento, as de despejo, as de preferência sobre imóveis e ainda as reforço, substituição, redução e expurgação de hipotecas.
2. ...
3. ...”.
Sobre esta norma, A. ANSELMO DE CASTRO 7 escreveu o seguinte:
“Como a lei se limita, na 1.ª parte do n.º 1.º do art. 73.º, a mencionar, como sujeitas ao foro real, as acções relativas a direitos reais sobre imóveis, importa encontrar um critério capaz de as distinguir de quaisquer outras. Só assim poderemos determinar o âmbito de aplicação do preceito legal em causa, para além das acções nele especificamente enumeradas.
Ao referir-se a acções imobiliárias, a lei teve naturalmente em vista aquelas em que há aderência do seu objecto ao imóvel ou móvel em causa. Não serão, portanto, acções reais as que nada tenham a ver, em si mesmo, com eles, visando antes o cumprimento de obrigação, ou que tenham na sua base uma qualquer obrigação que a eles respeite. 8
Protótipo da acção real é a acção de reivindicação, em que, como já notámos, se pretende efectivar o direito à entrega de uma coisa, com base no direito de propriedade sobre ela, sem que medeie ou se invoque qualquer relação obrigacional entre reivindicante e reivindicado.
...
Já não será real, não obstante o seu objecto vir a ser eventualmente a entrega de um imóvel, a acção em que o comprador demande o vendedor a fim de obter a entrega da coisa comprada.
Igualmente o não são as acções em que alguém se propõe a rescisão ou anulação de um negócio jurídico e através delas a reversão de um imóvel (v.g., venda de imóvel arguida de erro substancial). Então, o que está em causa não é a propriedade, mas a nulidade ou o fundamento da rescisão do negócio jurídico que a transmitiu. Uma vez considerada procedente a acção, ela terá como consequência o regresso do imóvel ao património do alienante, sem que haja de curar-se da titularidade ou da existência do respectivo direito.
As acções de rescisão ou anulação de contratos das quais resulte a possibilidade de entrega da coisa ao anterior proprietário, não são portanto reais, mas pessoais: a entrega da coisa dá-se meramente em consequência do vínculo pessoal pelo qual ela se encontra em poder do réu, vínculo esse a declarar como inexistente ou insubsistente.
...
De tudo se conclui que o único critério plausível para destrinçar as acções reais e as acções pessoais vem a ser este: a acção será real sempre que na sua base esteja o domínio ou a titularidade de um direito real, sem que haja ao mesmo tempo qualquer vínculo pessoal entre o autor e o réu, vínculo que a acção se proponha efectivar. Por outras palavras: a acção será real quando o autor e réu não estejam interligados por relações pessoais, que obriguem o réu à entrega da coisa ao autor. 9
Também ALBERTO DOS REIS 10se pronunciou sobre a mesma norma, comparando-a com a do Código brasileiro, nos seguintes termos:
“É evidente que são fórmulas de alcance diverso a do Código brasileiro «acções relativas a imóvel» ou acções sobre imóveis e a do Código português «acção que tenha por objecto fazer valer direitos reais sobre imóveis»; aquela é mais extensa do que esta. A acção pode versar sobre imóveis ou dizer respeito a um imóvel e todavia ter por fim fazer valer, não um direito real, mas um direito de obrigação. É o caso, por exemplo, de acção proposta pelo vendedor contra o comprador para rescindir o contrato de venda de prédio, ou de acção do comprador contra o vendedor a pedir a entrega do imóvel vendido”.

3. Quer dizer, para estes autores, cuja doutrina merece a nossa concordância, acções relativas a direitos reais contrapõem-se a acções pessoais. As primeiras são as que têm na base o domínio ou a titularidade de um direito real. As outras, as pessoais, que até podem versar sobre imóveis, são acções que têm por fim fazer valer um outro tipo de direito, designadamente de obrigação.
A acção será real, como refere ANSELMO DE CASTRO, acima citado, sempre que na sua base esteja o domínio ou a titularidade de um direito real, sem que haja ao mesmo tempo qualquer vínculo pessoal entre o autor e o réu, vínculo que a acção se proponha efectivar, ou seja quando o autor e réu não estejam interligados por relações pessoais, que obriguem o réu à entrega da coisa ao autor.
Não são acções reais as que nada tenham a ver, em si mesmo, com os imóveis, visando antes o cumprimento de obrigação, ou que tenham na sua base uma qualquer obrigação que a eles respeite.
A acção dos autos é uma acção de divórcio proposta nos tribunais de Hong Kong por B (“petioner”) contra A (“respondent”). Com base em acordo das partes, o Juiz ordenou que o B transmitisse para a A todos os direitos de um imóvel do casal sito em Macau. Ora, a obrigação de transmissão do imóvel, a cargo de uma das partes, tem por base o vínculo matrimonial entre as partes, a que a sentença pôs termo, não estando em causa na acção a titularidade do direito de propriedade. Parafraseando ALBERTO DOS REIS, atrás citado, a acção versa acidentalmente sobre imóvel e todavia tem por fim fazer valer, não um direito real, mas um direito de outra natureza. Não é, pois, nem em parte, uma acção relativa a direito real.

4. Acresce que a sentença do Juiz de Hong Kong não operou por si a transmissão do direito, como se esclarece na informação do Departamento de Justiça do Governo de Hong Kong, pelo que, mesmo que não se subscrevessem as considerações anteriores, não se trataria de acção relativa a direito real, pois nem sequer se operou, com a sentença, a transmissão do direito em causa.

5. Também nos parece relevante convocar outros sistemas jurídicos que estabelecem como competência exclusiva em matéria de direitos reais sobre imóveis, os tribunais do Estado (ou território) onde o imóvel se encontre situado. É o caso do sistema instituído pela Convenção Relativa à Competência Judiciária e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial, assinada em Bruxelas em 27 de Setembro de 1968 e a Convenção paralela, com a mesma designação, assinada em Lugano, em 16 de Setembro de 1988, que vigoram na ordem interna da generalidade dos Estados integrantes da União Europeia.11
No art. 16.º, 1) – a) destas Convenções estabelece-se que têm competência exclusiva em matéria de direitos reais sobre imóveis os tribunais do Estado onde o imóvel se encontre situado.
Interpretando a Convenção, tem o Tribunal de Justiça da União Europeia entendido que às acções que tenham por objecto litígios relativos a direitos de crédito relacionados com imóveis não é aplicável o art. 16.º. Foi essa a decisão numa impugnação pauliana da doação de um imóvel.12 E decidiu igualmente não caber no âmbito da aludida norma, uma acção destinada a obter a declaração de que uma pessoa é possuidora de um bem imóvel na qualidade de trustee e uma injunção (ordem do Tribunal) para que o réu prepare os documentos necessários para que o autor se torne titular da legal ownership, pois que não é uma acção em matéria de direitos reais sobre imóveis.13
Em suma, O Tribunal de Justiça da União Europeia, interpretando conceito semelhante ao nosso, tem considerado que as acções sobre direitos reais sobre imóveis são apenas aquelas que se destinam a determinar o alcance, a consistência, a propriedade, a posse de um bem imóvel ou a existência de outros direitos reais sobre esses bens e a garantir aos titulares desses direitos a protecção das prerrogativas ligadas ao seu título. 14 Mas não já aquelas acções em que, estando em causa um imóvel, o litígio reside noutro tipo de direito, que não real.
E é nesse sentido para que também propendemos.
Não sendo os tribunais de Macau exclusivamente competentes para a questão em causa (determinação ao autor para transmitir todos os direitos sobre imóvel do casal, sito em Macau, para a ré) nada obstava à revisão e à confirmação dessa parte da sentença do Tribunal de Hong Kong.


IV – Decisão
Face ao expendido, julgam procedente o recurso, revogam em parte o Acórdão recorrido e concedem a revisão e confirmam na totalidade a decisão do Tribunal Distrital da Região Administrativa Especial de Hong Kong, proferida em 1 de Fevereiro de 1999, no Processo Matrimonial n.º FMCC7750/1998 em que foram partes B e A.
Sem custas.
Macau, 17.7.2002
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai
                       Chu Kin
      1 No Acórdão recorrido refere-se “Kau” e não “Lau” por mero lapso.
      2 FERRER CORREIA, «Breves reflexões sobre a competência internacional indirecta» in Estudos vários de Direito, 1982, p. 195, citado por DÁRIO MOURA VICENTE, «A competência internacional no Código de Processo Civil revisto», in Aspectos do Novo processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, p. 89.
      3 MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o novo processo civil, Lex, Lisboa, 1997, 2.ª ed., p. 115.
      4 No mesmo sentido, cfr. RODRIGUES BASTOS, Notas ao Código de Processo Civil, volume I, Lisboa, 1999, 3.ª ed., p. 128.
      5 MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, A competência declarativa dos tribunais comuns, Lex, Lisboa, 1994, p. 59, refere-se à questão nos seguintes termos: “A relevância prática da competência exclusiva dos tribunais portugueses (e, portanto, do funcionamento de uma norma de retenção) reside no seguinte: como nessa hipótese a jurisdição portuguesa não aceita a competência de nenhuma outra jurisdição para apreciar um objecto subsumível à previsão das normas de retenção, nenhuma outra decisão proferida nessa jurisdição estrangeira preenche as condições para ser ou se tornar eficaz na ordem jurídica portuguesa”. No mesmo sentido, cfr. R. MOURA RAMOS, Da lei aplicável ao contrato de trabalho internacional, Livraria Almedina, 1990, p. 778 e 779.
      6 MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, A competência..., p. 57 e 58.
      7 A. ANSELMO DE CASTRO, Direito Processual Civil Declaratório, vol. II, Livraria Almedina, Coimbra, 1982, p. 67 e segs..
      8 A negro, da nossa autoria.
      9 Sublinhado nosso.
      10 J. ALBERTO DOS REIS, Comentário ao Código de Processo Civil, vol, 1.º, Coimbra Editora, 1960, 2.ª ed., p. 174.
      11 Devendo, no entanto, advertir-se que as matérias relativas ao estado das pessoas e aos regimes matrimoniais, como as acções de divórcio e as relações patrimoniais directamente resultantes do vínculo conjugal ou da sua dissolução, estão fora do âmbito material de aplicação das Convenções (art. 1.º), o que é inteiramente irrelevante já que o que se tem em vista é a interpretação do conceito acções «em matéria de direitos reais», que é o que está em causa no nosso processo.
      12 Acórdão de 10.1.90 (Reichert c. Dresdner Bank), citado por MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA e DÁRIO MOURA VICENTE, Comentário à Convenção de Bruxelas, Lex, Lisboa, 1994, p. 115.
      13 Acórdão de17.5.94 (George Laurence Webb c. Laurence Desmond Webb), citado por EDUARDO DOS SANTOS, Convenção de Bruxelas, Rei dos Livros, Lisboa, 1998, 2.ª ed., p. 43.
      14 Acórdão de 10.1.90 (Reichert c. Dresdner Bank), atrás referido.
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