打印全文
Processo n.º 21/2002. Recurso em processo penal.
Recorrente: B.
Recorrido: Ministério Público.
Assuntos: Crime de tráfico de droga. Drogas leves e drogas duras.
Data da sessão: 30 de Janeiro de 2003.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Sam Hou Fai e Chu Kin.

SUMÁRIO:
  A distinção entre drogas ditas leves, duras e ultra duras não deve, por si só, ser determinante na medida da pena.

O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

   ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
   
   I – Relatório
O Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base, por Acórdão de 25 de Junho de 2002, condenou:
- O (1.º) arguido A pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo art. 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 5/91/M, de 28.1, na pena especialmente atenuada de cinco anos de prisão e multa de cinco mil patacas, com trinta e três dias de prisão subsidiária.
- O (2.º) arguido B pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo art. 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 5/91/M, na pena de oito anos e seis meses de prisão e multa de dez mil patacas, com sessenta e seis dias de prisão subsidiária.
   Interposto recurso jurisdicional pelo 2.º arguido, B, o Tribunal de Segunda Instância, por Acórdão de 31 de Outubro de 2002, negou provimento ao recurso.
Não conformado, recorreu o mesmo 2.º arguido B, para este Tribunal, terminando a sua motivação com as seguintes conclusões:
1.º O recorrente foi detido na posse do produto estupefaciente, somente após a investigação que ora se impugna, tendo sido através desta que se chegou à sua detenção, devendo considerar-se todos os actos executados até aquele momento como inexistentes por nulos;
2.º Repare-se que acerca da quantidade para consumo individual para três dias fixado jurisprudencialmente, é óbvio que a quantidade apreendida ao recorrente, 55,658g, se destinava ao consumo próprio e para cerca de 1 mês;
3.º Por outro lado, deveria ter-se em conta que se trata de uma detenção na posse de marijuana, estupefaciente considerado pelos especialistas na matéria como uma "droga leve" - apesar da lei "selvagem" que vigora impedir tal função, regulando esta matéria sem consideração pela qualidade do produto estupefaciente, em face dos terríveis malefícios do tráfico das drogas duras tais como a heroína, cocaína, "ice", ópio, "crack", etc., que nada têm a haver com a marijuana e o haxixe e que a lei de Macau pretende confundir - facto esse que deveria ser considerado público e notório e por isso mesmo dispensada a sua prova, logo diferenciada daquela outras tradicionalmente denominadas de "drogas duras ";
4.º Salvo o devido respeito, e pelo que se expôs na motivação do recurso, a recolha da prova da PJ através de métodos proibidos por lei, viola directamente o art.º 113.º, n.º 1, n.º 2 al. a) e d) do CPP, devendo ser encarada na perspectiva da sua nulidade;
5.º O acórdão recorrido ao apreciar o sentido das declarações do 1.º arguido, em contradição com o que o mesmo disse expressamente aquando das suas declarações e que levaria forçosamente a outras conclusões, tratando-se de matéria de direito, deve ser apreciado em termos de se analisar se a actividade interpretativa do TSI se conteve ou não nos limites dos critérios legais.
6.º Salvo o devido respeito, entendemos que o acórdão ao considerar provado que o ora recorrente vendia a terceiros sem mais, indicações ou considerações, violou o disposto nos artigos 1.º, 3.º e 7.º do CP, assim como o princípio da inocência consagrado em Direito Penal.

O Ministério Público respondeu à motivação do recurso, formulando as seguintes conclusões:
1 - A nulidade da prova foi invocada pelo recorrente apenas com base nas declarações do 1.º arguido A, que nem foram lidas em audiência de julgamento, pelo que não podiam ser valorizadas pelo tribunal nos termos do art.º 336.º do CPPM; e mesmo que fossem produzidas em audiência, o tribunal é livre na sua apreciação.
2 - No exercício do seu poder de cognição delimitado por lei, é com base nos factos apurados nos autos que o Tribunal de Última Instância conhece as questões colocadas à sua apreciação.
3 - Pelo que não seria possível concluir que a intervenção da PJ na investigação foi exactamente aquela que o recorrente alegou e a contribuição do 1.º arguido não foi aquela que o tribunal deu como provada.
4 - A verdade é que o tribunal deu como provado que o 1.º arguido “prestou auxílio na investigação, colaborando com as autoridades policiais”.
5 - E não se vê qualquer vício no auxílio e na colaboração prestada pelo 1.º arguido enquanto revelou a prática de actividades criminosas pelo recorrente, com a vontade completamente livre.
6 - O Tribunal de Última Instância decidiu que “quando a intenção do arguido de praticar continuamente a actividade de tráfico de droga forma-se com a total liberdade e a compra simulada de droga montada pela polícia não provoca a actividade criminosa que tem realizado ou a intenção do arguido de praticar crime, mas apenas as revelou, não constitui a recolha de prova mediante meio enganoso prevista na al. a) do n.º 2 do art.º 113.º do CPP, nem excede o âmbito permitido pelo art.º 36.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 5/91/M.”
7 - Perante os argumentos deduzidos pelo recorrente sobre a intenção de vender droga, facilmente se percebe que o que o recorrente questiona foi se a prova produzida é ou não suficiente para considerar provada que o recorrente detinha marijuana com finalidade de vender a terceiros, pondo em causa o processo do raciocínio do juiz que fixou os factos e a livre convicção do juiz formada segundo as regras da experiência e o princípio de livre apreciação de prova, o que não é permitido pois é insindicável.
8 - E não obstante a não indicação no acórdão de elementos relacionados com a venda, tais como local, preço, forma, destinatário de estupefacientes, etc., certo é que, para condenar um indivíduo como traficante, basta provar que o mesmo indivíduo detém estupefacientes para serem vendidos ou cedidos a outrem, não sendo necessária a concretização de alguma venda.
9 – “É irrelevante que não se tenha apurado no inquérito e no julgamento a quem iria o arguido vender o produto, quando, em que local, etc.”, uma vez que “tal circunstancialismo não integra os elementos objectivos do tipo criminal em questão”.
10 - Face aos factos dados como provados, sobretudo o de que o recorrente detinha 55,658 gramas de Cannabis, com excepção de “uma pequena parte” que era para o seu consumo, a fim de “obter ou com intenção de obter recompensa monetária”, é de crer que a incriminação ao recorrente foi feita logicamente com base na factualidade considerada assente.
11 - Não foram violadas as disposições indicadas pelo recorrente nem o princípio de presunção da inocência.
Neste Tribunal, a Ex.ma Procuradora-Adjunta manteve a posição assumida na resposta à motivação do recurso.
  
  II – Os factos
   
   Os factos que as instâncias deram como provados e não provados são os seguintes:
No dia 25 de Dezembro de 2000, às 22H20, no posto fronteiriço das Portas do Cerco, quando o guarda do Ex-PMF estava a cumprir as suas funções, foi encontrado, 33 comprimidos de "Ecstasy" com o peso líquido cerca de 0.3g em casa, no bolso esquerdo da camisa do arguido A.
Após exame laboratorial, apurou-se que os referidos comprimidos continham substância de MDMA, substância essa sujeita a controlo constante na Tabela II-A do Decreto-Lei n..º 5/91/M, de 28 de Janeiro, contendo na totalidade 0,6g de "Ketamina" e sendo esta substância e a MDMA as componentes principais materiais activas dos referidos comprimidos.
O arguido A adquiriu os supracitados produtos por RMB$1,500.00 no discoteca, em Kong Pak de Zhu Hai, junto de um indivíduo desconhecido, e revendeu-os por MOP$100.00 a cada dos seus amigos e indivíduos que, frequentavam os casinos de Macau, a fim de obter interesses pecuniários.
No dia 14 de Agosto de 2001, às 19H00, os agentes da PJ procederam uma busca no domicílio do arguido A, sito no [Endereço (1)], e foram encontrados, no armário para objectos variados que estava por atrás da cama do quarto do arguido A, um utensílio para enrolar cigarros de cor verde e vermelha da marca "SWAN", uma caixa de cigarros de cor vermelha de "Marlboro" dentro do qual havia 11 cigarros enrolados com peso líquido total de 1.883g de plantas herbáceas e um saco com peso líquido de 1,039g da mesma planta (vide auto de apreendido constante a fls. 106).
Após exame laboratorial, as supracitadas plantas herbáceas eram "Canabis", substância sujeita a controlo constante na tabela I-C do DL n.º 5/91/M de 28 de Janeiro.
Os supracitados produtos foram adquiridos pelo A junto do arguido B.
Dez dias antes do arguido A ser detido, por volta das 22H00, o arguido B conduziu o veículo junto ao Jardim da Vitória a fim de buscar o arguido A, para irem juntamente à Rua do Bispo Medeiros.
O arguido B em dia e local indeterminado entregou uma dose de "canabis" na mão do arguido A e pediu-lhe para vendê-los a terceiro a fim de obter interesses pecuniários.
O arguido B disse ao A que, tinha de cobrir MOP$l,400.00 que obteve de venda da referida dose de canabis a fim de entregar a um indivíduo desconhecido "Lou Pan (patrão)", e ao mesmo tempo retirou MOP$l,800.00 dessa venda para ser entregue ao arguido B como recompensa.
Posteriormente, o arguido A vendeu, cerca de metade da referida "canabis", a um indivíduo de alcunha "C" pelo preço de MOP$l,000.00 e outra metade vendeu-a a um indivíduo de alcunha "D" pelo mesmo preço.
O arguido A retirou uma quantidade diminuta do referido "canabis", e enrolou em 10 cigarros de "canabis", e vendeu ao terceiro por preço de MOP$300.00.
Nessa venda de "canabis", o arguido A obteve MOP$500.00 como recompensa.
Por outro lado, 5 dias antes do arguido A ser detido, o mesmo entregou, a título de recompensa de quantia de MOP$ l,800.00 nas mãos do arguido B que, na altura estava a explorar uma loja de animais de estimação, sita na. Rua do Almirante Costa Cabral.
Ao mesmo tempo, o arguido B entregou ao arguido A, uma outra dose na referida loja, e pediu-lhe novamente para vender a terceiro, a fim de obter interesses pecuniários para eles próprios.
O arguido A vendeu uma metade da referida "canabis" pelo preço de MOP$l,000.00 a um indivíduo desconhecido que trabalhava no casino, e outra metade foi enrolada em 50 cigarros de "canabis", e vendeu-os pelo preço de MOP$100.00 por 2 a 3 cigarros a terceiro para consumo. E os restantes cigarros que ainda não venderam foram encontrados na sua casa pelos agentes da PJ no dia de detenção (isto é no dia 14 de Agosto de 2000).
Posteriormente, os agentes da PJ procederam a busca na casa do arguido B, sita no [Endereço (2)]. No armário, para além de objectos variados, que estava ao lado da cama do seu quarto, foram encontrados 3 sacos plásticos transparentes, os quais continham plantas herbáceas com peso líquido de 55,658g, utensílios para vender produtos proibidos, tais como, um maço de papel do cor branca para enrolar cigarros, da marca "OLA ", um utensílio de cor verde para enrolar cigarros, e, em lugar não apurado, uma balança de plástico de cor branca da marca "SALTER" (vide auto de apreendido constante a fls. 112).
Após exame laboratorial, as supracitadas plantas herbáceas eram "Canabis", substância sujeita a controlo constante na tabela I-C do DL n.º 5/91/M de 28 de Janeiro.
O arguido B destinava uma pequena parte da "canabis" encontrada no seu quarto para o seu consumo.
Ao mesmo tempo, foi apreendido um veículo que na altura pertencia ao arguido B, de matrícula de MG-XX-XX. No veículo, foram encontrados dois "Walkie-talkie" de cor preta (vide auto de apreendido constante a fls. 118 a 120).
Os arguidos sabiam perfeitamente a natureza e as características dos medicamentos acima referidos.
Os arguidos compraram, transportaram, detiveram, cederam, traficaram e venderam os produtos supracitados, a fim de obter ou com intenção de obter recompensa monetária.
Os arguidos agiram livre, consciente e voluntariamente os actos referidos.
Os arguidos, de mútuo acordo e em colaboração, combinaram conjuntamente praticar alguns dos referidos actos.
Os arguidos bem sabiam que as suas condutas eram proibidos e punidos por lei.
O 1.º arguido confessou os factos e mostrou-se arrependido.
Prestou auxílio na investigação, colaborando com as autoridades policiais e contribuiu positivamente para a descoberta e detenção do 2.º arguido.
Também consumia estupefacientes, actividade que iniciou aos 15 anos.
Vivia com a avó e com a tia paterna, vendo os pais poucas vezes.
O 2.º arguido auferia na referida loja cerca de MOP 30.000,00 por mês.
Tem uma filha de 3 anos de idade.
Nada consta em desabono dos arguidos dos seus CRCs juntos aos autos.
*
2. Não se provou:
Foi dentro do veículo que o arguido B entregou uma dose de "canabis" na mão do arguido A.
*
3. A convicção do Tribunal baseou-se na prova constante dos autos de fls. 41 a 46, 274 a 282, exame ordenado em sede de audiência, descrição do apreendido, CRCs juntos aos autos e na prova produzida em audiência, em particular, na confissão e demais declarações do 1.º arguido, declarações do 2.º e no depoimento das testemunhas ouvidas, relatando as diligências feitas e as percepções colhidas, com isenção e imparcialidade, tendo os agentes da PJ referido a colaboração dada pelo 1.º arguido nas investigações.
O Tribunal valorou ainda as declarações da mãe do 2.° arguido sobre a sua situação familiar e pessoal.

   III - O Direito
  1. O recorrente suscita as seguintes questões:
   - Foram utilizados métodos proibidos de prova, uma vez que o 1.º arguido identificou o recorrente com promessas de ajuda, de liberdade, numa mistura de ameaças e coacção, pelo que foi violado o disposto no art. 113.º do Código de Processo Penal;
   - O Acórdão não levou em conta que se tratou de detenção de droga leve;
   - A apreciação dos factos revela uma certa injustiça, visto que o recorrente nunca foi surpreendido a vender produto estupefaciente, não sendo suficiente para com certeza e segurança dizer-se que o produto seria para vender a terceiros;
   - O Acórdão concluiu que o produto se destinava a venda a terceiros apenas porque o 1.º arguido assim o disse;
   - O Acórdão não identifica os terceiros compradores a quem o 1.º arguido diz ter vendido em nome do recorrente, não identifica as horas, nem locais, pelo que foram violados os arts. 1.º, 3.º e 7.º do Código Penal e o princípio da presunção de inocência.
   
   Métodos proibidos de prova
   2. O recorrente não faz qualquer prova de que o 1.º arguido identificou o recorrente com promessas de ajuda, de liberdade, numa mistura de ameaças e coacção, pelo que improcede a imputação de utilização de métodos proibidos de prova, e de violação do disposto no art. 113.º do Código de Processo Penal.
   
   Questões de facto
   3. Seguidamente, o recorrente insurge-se relativamente a factos que foram dados como provados, pretendendo sindicar a maneira como se formou a convicção do Tribunal.
   Mas trata-se de questões de facto, para as quais este Tribunal não tem poderes de cognição, atento o disposto no art. 47.º, n.º 2, da Lei de Bases da Organização Judiciária, aprovada pela Lei n.º 9/1999, pelo que não se conhece de tal matéria.
   
   Violação dos arts. 1.º, 3.º e 7.º do Código Penal e do princípio da presunção de inocência
   4. Também não se entende a que título é poderiam ter sido violados os arts. 1.º, 3.º e 7.º do Código Penal e o princípio da presunção de inocência, pelo facto de não se ter dado como provado a identificação dos terceiros compradores, a quem o 1.º arguido vendeu por conta (e não em nome) do recorrente, não identificando as horas, nem locais das transacções.
   Tais elementos não têm nenhuma relevância, já que nas transacções não interveio o recorrente, pelo que os depoimentos dos compradores seriam certamente inócuos relativamente ao recorrente, que para eles seria um terceiro que não interveio no negócio e que porventura nem conheceriam.
   
   Drogas leves e drogas duras
   5. Por fim, a questão da não distinção entre drogas leves e drogas duras..
   Trata-se de um tema mais que debatido.
   Como se disse no Acórdão deste Tribunal, de 26 de Setembro de 2001, no Processo n.º 14/2001, a distinção entre drogas ditas leves, duras e ultra duras não deve, por si só, ser determinante na escolha e medida da pena.
   A penalidade pelo qual o recorrente foi condenado também se aplica a produtos estupefacientes do tipo daqueles que era detentor e que cedeu a terceiros para venda, sendo certo que foi condenado numa pena muito próximo do mínimo legal, que não é de censurar.
   É manifesta a improcedência do recurso, pelo que é de rejeitar (art. 410.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
   IV – Decisão
   Face ao expendido, rejeitam o recurso, mantendo a decisão recorrida.
   Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 5 UC. Nos termos do art. 410.º n.º 4 do Código de Processo Penal, pagará 4 UC pela rejeição do recurso.
   Macau, 30 de Janeiro de 2003
   Viriato Manuel Pinheiro de Lima
    Sam Hou Fai
Chu Kin



1
Processo n.º 21/2002

1
Processo n.º 21/2002