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   Acórdão do Tribunal de Última Instância
   da Região Administrativa Especial de Macau
   
   
   
   
Recurso de decisão jurisdicional em matéria administrativa
N.° 19 / 2002

Recorrente: A
Recorrida: B
   
   
   
   
   
   
   1. Relatório
   A interpôs recurso de revisão para o Tribunal de Segunda Instância contra o acórdão do mesmo tribunal de 20 de Setembro de 2001 proferido no processo de recurso jurisdicional n.° 54/2001.
   No processo de recurso de revisão n.° 23/2002, o Tribunal de Segunda Instância, por seu acórdão de 25 de Julho de 2002, indeferiu o tal recurso de revisão por falta de cumprimento do disposto no art.° 171.° do Código de Processo Administrativo Contencioso (CPAC) que exige a instrução do requerimento do recurso de revisão com a certidão de teor da decisão a rever.
   Inconformada com esta decisão, vem a mesma recorrente interpor recurso para o Tribunal de Última Instância, apresentando as seguintes conclusões nas suas alegações:
   “1. A Recorrente interpôs recurso de revisão do douto Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 20 de Setembro de 2001;
   2. A Recorrente juntou ao seu requerimento de recurso uma certidão de teor do Acórdão Contrário;
   3. O original do Acórdão Revidendo consta dos autos aos quais o recurso de revisão está apenso;
   4. O Tribunal a quo entendeu que o recurso de revisão in questio não devia prosseguir porquanto não está instruído com "certidão de teor da decisão a rever", “apesar de o original deste Aresto constar de fls. 465 a 487 destes autos n.º 4/2001”;
   5. Ora, com o devido respeito, que é muito, não assiste razão ao douto tribunal a quo porquanto o espírito das disposições aplicáveis in casu, a saber, o art.º 171.º do CPAC e o n.º 2 do art.º 659.º do CPC apontam num sentido: a certidão cuja junção aos autos é imposta por esta disposição é a certidão da decisão contrária àquela que se pretende que seja revista;
   6. De facto, exigindo as disposições em questão uma - e apenas uma - certidão de teor de uma decisão, a única interpretação possível é a de que deve ser junta ao requerimento de recurso de revisão a certidão, não da decisão cujo original já consta dos autos (ainda que principais), mas da decisão que dos mesmos não consta, logo, da decisão contrária à decisão revidenda;
   7. Tal interpretação impõe-se à luz da regra constante do n.º 1 do art.º 8.º do Código Civil, onde se determina que “A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo (…)”;
   8. E a ratio legis da disposição em análise é munir o tribunal ad quem de todos os elementos necessários para que possa proferir uma decisão sobre a matéria que lhe é posta à consideração, o que só pode acontecer se o tribunal ad quem tiver acesso ao teor da decisão revidenda – cujo original consta dos autos – e da decisão contrária à revidenda – da qual se deve juntar certidão:
   9. Em abono desta interpretação, veja-se a redacção do n.º 1 do art.º 615.º do CPC, de acordo com o qual o Recorrente apenas deverá indicar as peças do processo de que pretende certidão para instruir o recurso quando este suba em separado, sendo certo que, de acordo com o n.º 2 da mesma disposição, “Independente de requerimento, são sempre transcritos, por conta do recorrente, a decisão impugnada e o requerimento de interposição do recurso (…)”.
   Se assim não se entender, o que não se concede e apenas se admite por mera cautela de patrocínio, sempre se dirá que:
   10. A reforma legislativa de 1985 procurou, através de diversos expedientes, contrariar a tendência que vinha sendo seguida pelos tribunais no sentido de não chegar a proferir uma decisão de mérito, terminando os processos com decisões exclusivamente formais;
   11. Um dos corolários dessa reforma foi a consagração do princípio do favorecimento do processo ou princípio pro actione, definido por Vieira de Andrade como um “(…) corolário normativo ou de uma concretização do princípio constitucional do acesso efectivo à justiça (administrativa), que aponta para uma interpretação e aplicação das normas processuais no sentido de favorecer o acesso ao tribunal e de evitar as situações de denegação da justiça, designadamente por excessivo formalismo.”;
   12. Em abono desta moderna tendência do direito administrativo se tem pronunciado a jurisprudência de Macau, onde já se decidiu que, “(…) pode, ainda, invocar-se a tendência anti-formalista e de prevalência da decisão de mérito sobre a decisão de forma, que vem prevalecendo no processo civil, direito subsidiário do processo administrativo contencioso.”
   13. “Em tempos em que se começa pôr em causa a legitimação da função judicial, os tribunais do contencioso administrativo – e não só – devem fazer um esforço no sentido de procurar suprir as excepções dilatórias [e, por maioria de razão, questões formais de menor importância] a fim de se obter, sempre que possível, uma decisão de mérito, para que se não possa afirmar a existência de “tendência que caracterizava a jurisprudência administrativa em multiplicar os pretextos de ordem formal para evitar uma decisão de fundo”;
   14. Nesta conformidade, e como é de justiça, impõe-se que se decida, em obediência ao princípio pro actione, que não assiste razão ao Mmo. Tribunal a quo, porquanto, dispondo este de todos os elementos para proferir decisão de mérito, impõe-se que o faça!”
   Pedindo que seja dado provimento ao presente recurso, revogada a decisão recorrida e ordenado que o tribunal a quo profira decisão de mérito sobre o recurso de revisão interposto pela ora recorrente.
   
   A recorrida respondeu e concluiu nos termos seguintes:
   “1. Decidiu bem o Tribunal de Segunda Instância ao não admitir o recurso de revisão interposto pelo Recorrente com o fundamento com que o fez.
   2. Isto porque não é admissível a interpretação pretendida pelo Recorrente para o art.º 171.º do CPAC, uma vez que não encontra na letra da lei um mínimo de correspondência verbal (art.º 8.º, n.° 2 do CCM). Na verdade,
   3. Só por absurdo alguém poderá pretender que o legislador, quando escreveu certidão da decisão a rever terá querido dizer exactamente o contrário, ou seja certidão da decisão em que a revisão se funda.
   4. O Recorrente incorreu em erro na espécie de recurso uma vez que, recorrendo com o fundamento com que recorre, o CPAC lhe faculta um recurso próprio, qual seja o recurso com fundamento em oposição de acórdãos regulado nos art.ºs 161.º e ss. do CPAC (ver tb. art.° 5.°, n.° 2 do Decreto-Lei n.° 110/99/M de 13 de Dezembro), sendo certo que,
   5. Ainda que o recurso interposto estivesse suficientemente instruído e pudesse prosseguir, verificado que fosse o erro na espécie de recurso e mandada que fosse seguir a espécie adequada, logo soçobraria por manifesta extemporaneidade, geradora de caducidade do direito de recorrer.
   6. E também por ser patente que nos dois arestos em confronto se não discute a mesma questão fundamental de direito.
   7. Mas ainda que se entendesse que o recurso de revisão era admissível, o que só por mera cautela se hipotisa, manifesta é também a extemporaneidade com que este foi interposto face ao disposto no art.º 169.º do CPAC. Porque,
   8. O prazo de interposição de 90 dias ali previsto estava, à data da interposição (9 de Setembro de 2002), largamente precludido.
   9. O Recorrente visa, através de um meio processual que bem sabe estar-lhe vedado, obter o efeito jurídico que não logrou alcançar mediante o recurso ordinário aludido no ponto 26 destas alegações, e que bem sabia ser processualmente inadmissível.
   10. Ao reincidir no uso de meios processuais excepcionais, anómalos, diremos mesmo aberrantes para tentar abalar a estabilidade e credibilidade de uma decisão transitada, meios esses cuja inadmissibilidade e manifesta falta de fundamento lhe não é lícito desconhecer, o Recorrente faz um uso indevido, abusivo e reprovável do processo, cuja valoração e consequências se deixam ao alto critério de Vossas Excelências atentos os prejuízos que uma tal conduta causa à Recorrida e à própria credibilidade da Justiça.”
   Por fim, pede que se nega provimento ao recurso, mantendo-se em toda a sua plenitude a decisão recorrida.
   
   A Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de Última Instância emitiu o seguinte parecer:
   “1. Nas suas alegações apresentadas, B, recorrida nos autos de revisão, vem suscitar a questão de extemporaneidade na interposição de tal recurso de revisão (por caducidade do direito de recorrer).
   Não nos parece que lhe assiste razão.
   O recurso de revisão em causa foi interposto pela A., que entende que o douto Acórdão proferido em 20-9-2001 pelo Tribunal de Segunda Instância no processo n.º 54/2001 é contrário a outra decisão que constitui caso julgado para as partes, proferida pelo Tribunal Superior de Justiça de Macau nos autos de recurso jurisdicional n.º 928.
   Nos termos do art.º 653.º, al. g) do CPCM, aplicável aos presentes autos por força dos art.ºs 1.º e 149.º, n.º 3 do CPAC, a decisão transitada em julgado pode ser objecto do recurso de revisão “quando seja contrária a outra que constitua caso julgado para as partes, formado anteriormente”.
   O art.º 169.º, n.º 1 do CPAC prevê o prazo para a interposição do recurso de revisão, estipulando que “o direito de recurso de revisão caduca decorrido o prazo de 90 dias contado, conforme as hipóteses, desde o trânsito em julgado da decisão em que se funde o pedido de revisão ou desde o momento em que se tenha obtido o documento ou se tenha tido conhecimento do facto que lhe serve de fundamento”.
   A regra análoga está contida no art.º 656.° do CPCM, que por sua vez fixa o prazo de 60 dias para a interposição do recurso, a contar, nos casos das alíneas a), b) e d) do art.º 653.º do trânsito em julgado da sentença em que o recurso de revisão se funda e, nos outros casos, da data em que a parte obteve o documento ou teve conhecimento do facto que serve de base ao recurso de revisão.
   Não nos parece correcto o entendimento de que o prazo de 90 dias para interpor recurso de revisão começou a contar a partir do trânsito em julgado da sentença anteriormente proferida, ou seja, do douto acórdão proferido pelo Tribunal Superior de Justiça de Macau nos autos de recurso jurisdicional n.º 928, que constitua caso julgado para as partes, formado anteriormente, como a recorrida alegou.
   No nosso entender, a regra de contagem do prazo aplicável ao caso em apreço deve ser a contida na 2.ª parte do n.º 1 do art.º 169.º do CPAC, ou seja, o prazo de 90 dias deve ser contado desde o momento em que a recorrente teve conhecimento do facto de que a sentença proferida é contrária à outra que constitui caso julgado para as partes, formado anteriormente, que é o acórdão proferido no processo n.º 928.
   Assim sendo, o prazo nunca pode começar a contar antes de notificação do douto acórdão proferido no processo n.º 54/2001, que é a decisão a rever.
   Há que chegar à mesma conclusão que o Tribunal de Segunda Instância tirou: o recurso de revisão é próprio, tempestivo e intentado por quem com legitimidade e interesse processuais para o efeito.
   
   2. Por douto acórdão proferido em 25-7-2002, o recurso de revisão interposto pela A. foi indeferido imediatamente por sua desconformidade com o disposto no art.º 171.º do CPAC.
   É exigida por este comando a instrução do requerimento de interposição do recurso de revisão “com certidão de teor da decisão a rever e com os demais documentos necessários à justificação do pedido”.
   Ora, é verdade que o recurso interposto pela recorrente não está instruído com a certidão da decisão a rever, limitando-se a recorrente a juntar ao seu requerimento apenas uma certidão do “Acórdão Contrário”.
   Na interpretação da recorrente, “a certidão cuja junção aos autos é imposta por esta disposição é a certidão da decisão contrária àquela que se pretende que seja revista”.
   Não podemos concordar com este entendimento.
   Por um lado, resulta claramente do texto do art.º 171.º do CPAC que o que a lei impõe é a junção de “certidão de teor da decisão a rever”, para além de outros elementos necessários, incluindo neste caso a certidão da decisão contrária anteriormente proferida, para fundamentar o recurso.
   Por outro lado, não obstante a disposição do n.º 2 do art.º 659.º do CPCM, que exige a apresentação da certidão da sentença ou do documento em que o pedido se funda nos casos a que se referem as alíneas a), b), c), d) e g) do art.º 653.º, certo é que tal disposição é diferente da imposição do CPAC que tem a própria norma a regular o assunto (reparando-se que no art.º 171.º a exigência de junção dos documentos não se diverge consoante os casos ou hipótese) e o disposto da lei de processo civil só é aplicável a título subsidiário.
   
   Chegado à conclusão de que é necessária a junção da certidão da decisão a rever, é de dizer que o requerimento para interposição do recurso de revisão não está devidamente instruído.
   No entanto, tal como foi alegado pela recorrente, o princípio do favorecimento do processo ou princípio pro actione, vigente no contencioso administrativo, “aponta para uma interpretação e aplicação das normas processuais no sentido de favorecer o acesso ao tribunal e de evitar as situações de denegação da justiça, designadamente por excessivo formalismo”. (José Carlos Vieira Andrade, A Justiça Administrativa, Lições, 2.ª ed., pág. 262)
   Assim, parece-nos que, face à situação verificada no caso sub judice, nada impede o uso da faculdade conferida no n.º 1 do art.º 51.º do CPAC que dispõe o seguinte:
   “Quando a petição ou a sua instrução enfermem de deficiências ou irregularidades formais, o recorrente é notificado para as suprir ou corrigir em prazo fixado pelo juiz ou relator”.
   O Tribunal podia convidar a recorrente para vir apresentar a certidão da decisão a rever, evitando assim a situação de indeferimento imediato do requerimento.
   
   Termos em que se deve julgar parcialmente precedente o recurso interposto.”
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   As questões suscitadas no presente recurso consistem em saber se a recorrente cumpriu o disposto no art.° 171.° do CPAC relativo à entrega de certidão de teor da decisão a rever e examinar a justeza da decisão do tribunal recorrido.
   
   2.1 Sentido do art.° 171.° do CPAC
   A recorrente entende que o tribunal recorrido não podia indeferir o recurso de revisão interposto pela mesma com fundamento na falta da junção da certidão de teor da decisão a rever. Sustenta que a certidão cuja junção aos autos é imposta pelo art.° 171.° do CPAC é a certidão da decisão contrária àquela que se pretende que seja revista. Assim, juntamente com o requerimento do recurso a recorrente apresentou cópia do acórdão contrário àquele que se pretende rever e de duas decisões subsequentes e protestou juntar a respectiva certidão.
   
   Dispõe o art.° 171.° do CPAC:
   “O requerimento é elaborado com os requisitos e os duplicados exigidos para a petição de recurso contencioso de acto administrativo e instruído com certidão de teor da decisão a rever e com os demais documentos necessários à justificação do pedido.”
   Nos termos desta norma, não há dúvida de que a decisão cuja certidão se exige entregar é aquela que se pretende que seja revista e não a outra que serve como fundamento para proceder à revisão. Não pode ser outro sentido uma vez que a letra da lei é muito clara. A interpretação pretendida pela recorrente não tem a mínima correspondência verbal nessa norma.
   É legítimo questionar a verdadeira utilidade da junção da certidão da decisão a rever. De acordo com o art.° 658.° do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por força do art.° 149.°, n.° 3 do CPAC, o recurso de revisão é interposto no tribunal onde se encontrar o processo em que foi proferida a decisão a rever. E o requerimento do recurso de revisão é apensado ao processo a que respeita, nos termos do n.° 1 do art.° 172.° do CPAC. Na prática, isso significa que do processo apensado consta sempre a decisão a rever. Assim, é reduzida a utilidade da junção da certidão desta decisão, que não passa mais que uma exigência formal. É diferente este regime especial em comparação com a norma correspondente constante do art.° 659.°, n.° 2 do CPC. Mesmo assim, não é possível chegar à conclusão diferente quanto ao sentido da “decisão” cuja certidão se exige juntar.
   
   É possível encontrar a explicação para a disposição do actual art.° 171.° do CPAC comparando com o art.° 101.° do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo aprovado pelo Decreto-Lei n.° 41234 de 20 de Agosto de 1957 (cuja vigência em Macau cessa conforme determinado pelo art.° 7.°, al. c) do Decreto-Lei n.° 110/99/M).
   Prescrevia assim o referido art.° 101.°:
   “Os requerimentos de revisão serão apresentados na secretaria no prazo fixado no artigo 772.° do Código de Processo Civil com todas as indicações e os duplicados exigidos para a interposição do recurso e virão instruídos com certidão de teor do acórdão a rever e com os demais documentos necessários para a justificação do pedido.
   § 1.° ...
   § 2.° Autuado o requerimento e feito o preparo, quando devido, a Secretaria, informando por escrito se o processo em que foi proferido o acórdão a rever se encontra ainda no arquivo dela, ou baixou, e em que data, ao tribunal respectivo, dará logo vista ao Ministério Público, se não foi este o requerente.
   § 3.° Ouvido o Ministério Público, o relator apresentará o requerimento à conferência para que o Tribunal decida se deve ou não ter seguimento, à face do artigo anterior, o pedido de revisão.
   § 4.° Se o requerimento dever seguir os termos ulteriores, o relator mandará apensá-lo ao processo a que respeita, e que para isso será avocado ao arquivo onde se encontrar, e ordenará a notificação das autoridades e a citação de todos os interessados particulares que hajam intervindo no processo onde foi proferido o acórdão a rever ou que nele o devessem ter sido na hipótese do n.° 3 do artigo anterior.
   § 5.° ...
   § 6.° ...”
   No regime anterior, a junção da certidão de teor do acórdão a rever era plenamente justificada face aos trâmites nele estabelecidos. Segundo os referidos §3.° e §4.°, o requerimento do recurso de revisão só será apensado ao processo do qual consta a decisão a rever depois de ser apreciado isoladamente e admitido na conferência. Assim, para aferir a admissibilidade do requerimento, naturalmente era necessária a apresentação dos elementos justificativos do pedido, especialmente o teor da decisão a rever, para habilitar o tribunal a decidir.
   A segunda parte do corpo do mencionado art.° 101.° sobre a instrução de documentos passou tal e qual para a parte final do art.° 171.° do CPAC. Isso demonstra bem que a decisão cuja certidão se exige juntar é a que se pretende modificar através da revisão.
   
   A recorrente recorreu ainda o art.° 659.°, n.° 2 do CPC para justificar a sua interpretação do art.° 171.° do CPAC. No entanto, é evidente que não lhe assiste razão.
   Dispõe assim o art.° 659.° do CPC:
   “1. ...
   2. Com o requerimento de interposição deve o requerente apresentar, nos casos a que se referem as alíneas a), b), c), d) e g) do artigo 653.°, a certidão da sentença ou o documento em que o pedido se funda; nos outros casos, o requerente deve procurar mostrar a verificação do fundamento invocado.
   3. ...”
   De acordo com o n.° 2 do art.° 659.° do CPC, se o recurso se funda na al. a) do art.° 653.° do mesmo Código, o recorrente tem de juntar a certidão da sentença que condenou o juiz por prevaricação, concussão ou corrupção; se o fundamento do recurso é a falsidade de documento ou acto judicial, de depoimento ou de declaração de perito, o requerimento tem de ser instruído com certidão sentença que verificou a falsidade (al. b) do art.° 653.°); se o recurso se funda em ter sido declarada nula ou anulada a confissão, desistência ou transacção, o recorrente tem de juntar com o requerimento a certidão da sentença que declarou a respectiva nulidade ou anulação (al. d) do art.° 653.°); se o recurso tem por fundamento a violação do caso julgado, o requerimento tem de ser acompanhado da certidão da sentença anterior que se diz constituir caso julgado para as partes (al. g) do art.° 653.°).1
   É certo que no processo civil, a lei exige a junção da certidão da sentença que serve de fundamento para o recurso de revisão e não da sentença que será modificada. Mas esta disposição constante do art.° 659.°, n.° 2 do CPC é diferente da norma do art.° 171.° do CPAC. Com aquela norma nunca pode chegar à interpretação sustentada pela recorrente.
   
   É de concluir que, nos termos do art.° 171.° do CPAC, o que se deve juntar com o requerimento do recurso de revisão em processos do contencioso administrativo é a certidão da decisão que se pretende que seja modificada por meio da revisão.
   Com o requerimento do recurso de revisão, a recorrente juntou apenas cópia dos acórdãos que se entende constituir caso julgado para as partes. Assim, mesmo com a certidão destes acórdãos que juntou posteriormente, é evidente que a recorrente não cumpriu o disposto no art.° 171.° do CPAC.
   
   
   2.2 Os princípios do contraditório e de favorecimento do processo
   Recebidos o requerimento do recurso de revisão e a certidão dos acórdãos mencionados, os presentes autos foram remetidos do Tribunal Administrativo, por ordem do juiz deste, para o Tribunal de Segunda Instância.
   Já no Tribunal de Segunda Instância, o relator entende que o recurso não deve prosseguir por não estar instruído com certidão de teor da decisão a rever, como impõe o art.° 171.° do CPAC, e mandou ouvir o Ministério Público. Recebido o parecer do Ministério Público e colhidos os vistos dos juízes-adjuntos, foi proferido o acórdão de 25 de Julho de 2002, objecto do presente recurso, que indeferiu imediatamente o recurso de revisão interposto pela ora recorrente com a mesma razão invocada pelo relator.
   
   Vejamos se merece censura esta decisão do tribunal recorrido.
   Dispõe o n.° 2 do art.° 172.° do CPAC:
   “2. Ouvido o Ministério Público, o tribunal decide se o recurso deve ou não prosseguir, analisando a sua conformidade com, designadamente, o disposto nos artigos 169.° a 171.°.”
   Literalmente, depois de ouvir o Ministério Público pode o tribunal decidir sobre a admissibilidade do recurso. Contudo, como está em causa o direito de acção do interessado, o tribunal devia ter em conta o espírito subjacente ao disposto no art.° 3.°, n.° 3 do CPC: o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
   “O princípio do contraditório impõe, em geral, que seja dada oportunidade de intervenção efectiva a todos os participantes no processo, com a finalidade de permitir ao juiz uma decisão fundada, atendendo às razões de ambas as partes litigantes.
   Contudo, o princípio significa também, e talvez até sobretudo, em especial no processo administrativo, a garantia de que não sejam admitidas provas, nem proferidas pelo tribunal quaisquer decisões, desfavoráveis a um sujeito processual (designadamente a um particular, recorrente ou recorrido) sem que este seja ouvido sobre a matéria (cf. artigo 3.° do CPC), em termos de lhe ser dada previamente ampla e efectiva possibilidade de a discutir – corresponde, nessa medida, ao direito de audiência, que em relação aos particulares, deve ser entendido como um direito fundamental (...) quando esteja em causa a aplicação de uma sanção pessoal.”2
   No caso em apreço, por estar equacionada a hipótese de indeferir o requerimento do recurso de revisão por falta de junção da certidão da decisão a rever, implicando que a recorrente perderia o importante direito de recorrer com a decisão a ser proferida pelo tribunal, deve ser dada oportunidade à recorrente visada para pronunciar sobre a questão.
   O mecanismo previsto no art.° 625.° do CPC para o caso de o tribunal entender não poder conhecer o objecto do recurso é bem ilustrativo da preocupação do legislador de garantir o direito à defesa ou o princípio do contraditório:
   Prescreve o art.° 625.° do CPC:
   “1. Se entender que não pode conhecer-se do objecto do recurso, o relator, antes de proferir decisão, ouve cada uma das partes, pelo prazo de 10 dias.
   2. Sendo a questão suscitada pelo recorrido, na sua alegação, o relator ouve o recorrente que não tenha tido oportunidade de responder.”
   Assim, no recurso ordinário para o Tribunal de Segunda Instância, se considerar que não pode conhecer-se do objecto do recurso, as partes ou o recorrente devem ser ouvidos antes de o tribunal proferir a decisão neste sentido.
   O carácter extraordinário do recurso de revisão não deve justificar a maior rigidez da formalidade processual até ao ponto de privar o recorrente da oportunidade de defender o seu direito de recorrer. Antes pelo contrário, deve ter, na questão em causa, o mesmo tratamento em comparação com os recursos ordinários.
   
   Por outro lado, também não se deve perder de vista o princípio de favorecimento do processo (ou princípio pro actione) para resolver a questão em causa.
   “Trata-se de um corolário normativo ou de uma concretização do princípio constitucional do acesso efectivo à justiça (administrativa), que aponta para uma interpretação e aplicação das normas processuais no sentido de favorecer o acesso ao tribunal ou de evitar as situações de denegação de justiça, designadamente por excessivo formalismo.”3
   Perante a inobservância de uma exigência formal, e até de importância reduzida face aos trâmites estabelecidos para este tipo de recurso, especialmente pelo n.° 1 do art.° 172.° do CPAC, deve ser dada oportunidade para o recorrente faltoso corrigir este erro formal do requerimento do recurso, tudo em nome do princípio de favorecimento do processo, em consonância com a ambiência anti-formalista e de prevalência da decisão de mérito sobre a de forma como linha de orientação interpretativa do novo Código de Processo Civil, diploma aplicável subsidiariamente aos processos do contencioso administrativo.4
   O disposto no art.° 51.°, n.° 1 do CPAC é o bom exemplo deste princípio. Nos termos do qual o recorrente é notificado para suprir as deficiências ou corrigir as irregularidades formais da petição do recurso contencioso ou da sua instrução.
   Nos presentes autos, antes de decidir indeferir o requerimento do recurso de revisão por falta de junção da certidão de teor da decisão a rever, o tribunal devia convidar a recorrente para suprir a falta, proporcionando-lhe a oportunidade de defender a sua posição processual.
   
   
   Concluindo:
   Nos termos do art.° 171.° do CPAC, o que se deve juntar com o requerimento do recurso de revisão em processos do contencioso administrativo é a certidão da decisão que se pretende que seja modificada por meio da revisão.
   
   Antes de o tribunal indeferir o requerimento do recurso de revisão por falta de junção da certidão da decisão a rever, nos termos do art.° 172.°, n.° 2 do CPAC, por implicar que o recorrente perderia o importante direito de recorrer com a decisão a ser proferida, deve ser dada oportunidade ao recorrente visado para pronunciar sobre a questão.
   
   Perante as deficiências ou irregularidades formais na instrução do recurso, o tribunal deve convidar o recorrente para suprir ou corrigir as faltas, em vez de indeferir logo o recurso.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em julgar procedente o recurso, revogar o acórdão recorrido e determinar que seja proferido novo despacho no sentido de convidar a recorrente para, no prazo a fixar, juntar certidão da decisão a rever, nos termos do art.° 171.° do CPAC, sob pena de o recurso não ter seguimento.
   Custas pela recorrida.
   
   
   
   
   Aos 2 de Abril de 2003.
   
   
   
   
           Juízes:Chu Kin
    Viriato Manuel Pinheiro de Lima
    Sam Hou Fai
    Magistrada do Ministério Público
    presente na conferência: Song Man Lei
   
   
1 Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. VI, Coimbra Editora, 1985, p. 388.
2 Cfr. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 3ª ed., Almedina, 2000, p. 271 e 272.
3 Cfr. Vieira de Andrade, ob. cit., p. 273.
4 Neste sentido, o acórdão do TUI de 28/6/2000, processo n.° 11/2000.
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Processo n.° 19 / 2002 1