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Processo n.º 6/2003. Recurso jurisdicional em matéria administrativa.
Recorrente: Secretário para a Segurança.
Recorrido: A.
Assunto: Poderes do Tribunal de Última Instância em matéria de facto. Prova plena. Alteração da qualificação jurídica. Processo disciplinar. Audiência do arguido.
Data da Sessão: 23 de Abril de 2003.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Sam Hou Fai e Chu Kin.

SUMÁRIO:
   I – Quando o Tribunal de Segunda Instância considere não provado um facto que esteja provado por meio de prova que constitua prova plena, pode o Tribunal de Última Instância alterar a decisão, nos termos do n.º 2 do artigo 649.º do Código de Processo Civil.
   II – O Tribunal de Última Instância, em recurso jurisdicional, não pode censurar a convicção formada pelas instâncias quanto à prova; mas pode reconhecer e declarar que há obstáculo legal a que tal convicção se tivesse formado, quando tenham sido violadas normas ou princípios jurídicos no julgamento da matéria de facto. É uma censura que se confina à legalidade do apuramento dos factos e não respeita directamente à existência ou inexistência destes.
   III - A questão da alteração da qualificação jurídica da acusação para a sentença, em processo penal, não está regulada expressamente no Código de Processo Penal.
IV - À alteração da qualificação jurídica deve aplicar-se, por analogia, o disposto no n.º 1, do art. 339.º do Código de Processo Penal, devendo o juiz comunicar a alteração ao arguido e conceder-lhe, se ele requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
V – Quando a alteração implicar a aplicação de penalidade mais elevada o juiz tem sempre de observar o contraditório.
VI – A doutrina mencionada em III, IV e V aplica-se, com as necessárias adaptações, em processo disciplinar.

O Relator
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A, Guarda do Corpo de Polícia de Segurança Pública (PSP) interpôs recurso contencioso de anulação do despacho do Secretário para a Segurança, de 31 de Janeiro de 2000, que lhe aplicou a pena disciplinar de demissão.
Por acórdão de 12 de Dezembro de 2002, do Tribunal de Segunda Instância, foi dado provimento ao recurso e anulado o acto recorrido.
É deste acórdão que vem interposto o presente recurso jurisdicional, terminando a entidade recorrida no recurso contencioso, ora recorrente, a respectiva alegação com a formulação das seguintes conclusões:
1. À luz do Código do Procedimento Administrativo de 1994, a tutela dos interesses da defesa do arguido no caso de alteração da qualificação jurídica dos factos, - quanto à moldura sancionatória disciplinar aplicável -, basta-se com o conhecimento da modificação, nos termos, aliás do artigo 339.°, n.º 1 do Código de Processo Penal de Macau.
2. Para aquele mesmo CPA, o direito de audiência do interessado não constitui uma formalidade essencial, sendo que o conhecimento da possibilidade de agravação da pena aplicável degrada a consequência de nulidade insuprível porquanto ele constitui motivação bastante para que o arguido exercite o seu direito de audiência, de que, no caso subjudice, prescindiu.
3. Mesmo admitindo a obrigatoriedade de notificação expressa para o efeito, a Lei - quer o actual CPA (vd. artigo 97.°, al. b)) quer o anterior art.º 92.°, n.º 2, al. a)) dispensa a audiência dos interessados sempre quando: “os interessados já se tiverem pronunciado no procedimento sobre a questões que importem à decisão e sobre as provas produzidas”.
4. No caso subjudice o arguido tinha perfeito domínio dos factos, dos quais se defendeu em sede própria e os mesmos não foram objecto de qualquer alteração material, inclusivé quanto à subsunção legal aos deveres funcionais violados.
5. O douto acórdão recorrido não conheceu do teor da notificação ao arguido de fls. 29 do processo instrutor em que, claramente, é prevenido da possibilidade de agravação da pena.
6. Esta omissão foi decisiva quanto ao sentido do acórdão, pelo menos enquanto conformadora da tese da necessidade de audiência do interessado, a qual não se acompanha pelas razões concluídas em 3. e 4..
7. O douto acórdão recorrido, ao ignorar um elemento probatório essencial para a decisão final violou o “principio da aquisição processual” inscrito no art.º 436.º do Código do Processo Civil.

O recorrente no recurso contencioso, ora recorrido, defendeu a manutenção do julgado, com as seguintes conclusões:
1 - A audiência dos interessados é uma formalidade, ou um conjunto de formalidades, que tem por objectivo permitir o exercício do direito de defesa.
2 - O direito de defesa só é devidamente consubstanciado se, na fase de contraditório e defesa, o arguido se puder pronunciar sobre todas as acusações que lhe são feitas e sobre a qualificação jurídica dos factos (na qual se inclui a medida da pena).
3 - Caso tal não seja feito existe violação do principio do contraditório.
4 - A Lei considera tal direito gerador de nulidade absoluta. (art.º 298 do E.T.A.P.M.)
5 – O direito de defesa e audiência em processos sancionadores é um direito fundamental, tanto antes como depois de 20 de Dezembro de 1999.
6 – A violação deste direito implica a nulidade do acto conclusivo do procedimento em que ela ocorreu. (art.º 122 n.º 2 alínea d) do C.P.A.)
A Ex.ma Procuradora-Adjunta emitiu o seguinte parecer:
“Inconformando com o douto acórdão proferido pelo TSI que decidiu anular o recorrido despacho proferido pelo Senhor Secretário para a Segurança no processo disciplinar n.º XX/XX do Corpo de Polícia de Segurança Pública contra o arguido A, por ter sido preterido o direito de defesa do arguido a cerca da possibilidade da aplicação de uma pena de natureza expulsiva como a de demissão, julgando prejudicado o conhecimento do outro fundamento do recurso contencioso, vem o Senhor Secretário para a Segurança interpor o recurso para TUI, imputando ao douto acórdão ora recorrido o vício de violação de lei porque entende que foi violado o princípio da aquisição processual inscrito no art.º 436.º do Código de Processo Civil.
Estamos perante uma situação em que, perante a imputação dos mesmos factos ilícitos e da violação do mesmos deveres funcionais (referidos na al. a) do n.º 2 do art.º 6.º, na al. e) do n.º 2 do art.º 8.º e nas al.s a), c) e d) do art.º 9.º do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau), todos constantes da acusação, ao arguido A foi aplicada a pena de demissão, em vez da pena de suspensão proposta pelo instrutor quer na acusação quer no relatório elaborado.
Trata-se de uma questão de qualificar diferentemente, na medida mais gravosa, a conduta e os factos constantes da acusação, ou seja, a questão de alteração jurídica da acusação.
No recurso contencioso interposto para o Tribunal de Segunda Instância, o arguido assaca ao despacho recorrido o vício de violação de lei (do disposto no art.º 275.º do referido EMFSM), entre outros, porque lhe aplicou uma pena mais gravosa do que a proposta e que lhe tinha sido comunicada.
Coloca-se a questão de saber se, nessa situação, era necessário proceder à prévia audição do arguido a fim de assegurar o seu direito de defesa sobre a diferente e mais grave qualificação jurídica.
A questão já foi apreciada e decidida em vários acórdãos proferidos pelos tribunais de Macau, nomeadamente no douto Acórdão do Tribunal de Última Instância, proferido em 18-7-2001 no processo n.º 8/2000, sobre um caso semelhante.
É o entendimento do TUI que: em processo disciplinar aplica-se, com as necessárias adaptações, a doutrina em processo penal sobre a mesma questão: não obstante a questão da alteração de qualificação jurídica da acusação para a decisão não estar expressamente regulada no Código de Processo Penal, certo é que "deve aplicar-se, por analogia, o disposto no n.º 1 do art.º 339.º do Código de Processo Penal, devendo o juiz comunicar a alteração ao arguido e conceder-lhe, se ele requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa" e "quando a alteração implicar a aplicação de penalidade mais elevada o juiz tem sempre de observar o contraditório".
Domina-se, pois, a ideia de que o arguido deve ser alertado para a diferente qualificação jurídica dos factos acusados e o tribunal deve conceder, no caso de ser requerido, um tempo suplementar de defesa.
A mesma ideia vale também no presente caso quando a pena aplicada é diferente - mais grave - da constante da acusação.
No douto acórdão ora recorrido, o Tribunal considerou pertinente à decisão um facto, entre os outros, deixando consignar que, em consequência da proposta do Senhor Comandante do CPSP, "foi convocada, em 6 de Julho de 1999, a aludida reunião do Conselho Disciplinar com a finalidade de emitir parecer sobre a mesma proposta de pena expulsiva, não tendo o arguido visado sido previamente notificado e ouvido acerca da eventualidade da aplicação da pena de natureza expulsiva sugerida pelo Senhor Comandante do CPSP", com base no qual concluiu que "a Entidade Recorrida, antes de tomar a decisão final de imposição de pena de demissão ora posta em crise, não chegou a ouvir o guarda A acerca da eventual aplicabilidade da pena de natureza expulsiva, ..., falta de audição prévia essa que fez com que o mesmo guarda ora Recorrente tenha ficado impossibilitado de exercer o seu direito de defesa relativamente à eventual imposição da pena de demissão".
Ora, é verdade que, antes de o Senhor Comandante do CPSP remeter ao Conselho Disciplinar da Corporação a proposta de imposição da pena de demissão, o arguido não foi notificado nem ouvido.
No entanto, tal como foi indicado pela Entidade ora recorrente, reunido o Conselho e confirmada a proposta do Senhor Comandante do CPSP, o arguido tomou conhecimento do parecer do Conselho no sentido de se dever aplicar a pena de natureza expulsiva, que foi depois remetido ao Conselho de Justiça e Disciplina para apreciação e decisão final, conforme o teor de fls. 29 do processo instrutor.
O que vale a dizer que o arguido foi alertado para a eventual aplicabilidade da pena de demissão, tendo sido oferecida a possibilidade de defender-se.
Com tal notificação, foi alterado o conteúdo da acusação, anteriormente já notificada ao arguido, no que tange à pena aplicável, podendo o arguido, se quisesse, exercer o seu direito de defesa sobre a eventual alteração da pena.
Como se sabe, o Conselho Disciplinar da CPSP é o órgão consultivo do comandante da corporação em matéria de disciplina, não tendo competência para tomar decisão, mas sim emitir parecer, sobre a punição disciplinar (art.ºs 315.º n.º 2 e 318.º do EMFSM).
Salvo o devido respeito, parece-nos indiferente proceder-se à notificação do arguido logo após a proposta formulada pelo Senhor Comandante da CPSP no sentido de punir o arguido com a pena de demissão ou depois de o Conselho Disciplinar ter emitido o parecer sobre a mesma proposta, dado que o essencial é alertar o arguido sobre a possibilidade de ser punido com a pena mais gravosa do que a constante da acusação, possibilitando assim o exercício de direito de defesa antes da decisão final.
E não nos parece constituir ónus da administração a notificação para a audiência dos interessados, prévia à decisão, marcando a data para tal efeito, sendo bastante comunicar ao arguido a possibilidade de vir a ser aplicada uma pena diferente, cabendo ao particular, no posse de tal conhecimento, vir aos autos usar o seu direito de requerer a respectiva audiência.
Assim sendo, com base no elemento constante de fls. 29 do processo instrutor, pode-se concluir que a Administração ter cumprido o dever de notificação antes de tomar decisão final no processo disciplinar, pelo que não se verifica a falta de audição do arguido sobre a aplicabilidade da pena de demissão.
Cremos que assiste razão à Entidade ora recorrente, termos em que se deve revogar o douto Acórdão recorrido, julgando procedente o recurso interposto”.

II – Os factos
Os factos considerados provados no acórdão recorrido são os seguintes (com subordinação a alíneas da nossa autoria, para facilitar a remissão que houver que fazer):
A) Por despacho exarado em 3 de Abril de 1999 pelo Senhor Comandante do Corpo de Polícia de Segurança Pública de Macau (CPSP), sobre o auto de notícia n.º X/XX dessa mesma data, foi determinada a instauração de processo disciplinar contra o guarda n.º XXXXXX, de nome A, por este alegadamente ter deixado uma imigrante ilegal passar pelo balcão de controlo de documentos do Posto Fronteiriço da Porta do Cerco, em data e hora em que estava a desempenhar funções nesse balcão (cfr. fls. 35 do processo instrutor apenso);
B) No processo disciplinar assim aberto e registado sob o n.º XX/XX, o Senhor Instrutor do mesmo acabou por deduzir a acusação de 12 de Maio de 1999, cuja parte final tinha o seguinte teor (cfr. o teor de fls. 69v do apenso, e sic):
«9°.
--- Com este comportamento, o arguido praticou uma infracção disciplinar que constitui a violação aos deveres na alínea a) do n.° 2 do Artigo 6.°, na alínea e) do n.° 2 do Artigo 8.° e ainda nas alíneas a), c) e d) do artigo 9.° todos do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau, a que corresponde a pena de SUSPENSÃO, prevista no Artigo 237.° do mesmo Estatuto.----------------------------------
10°.
--- O arguido tem como as circunstâncias agravantes nas alíneas d) e e) do n.° 2 do Artigo 201.° do Estatuto dos Militarizados das FSM. e tem como circunstâncias atenuante na alínea b) do n.º 2 do Artigo 200.° do mesmo Estatuto.--------------------------
Macau, 12 de Maio de 1999
O Instrutor
(assinatura)> >;
C) Notificado dessa peça acusatória, o guarda A respondeu por escrito em 27 de Maio de 1999, tendo opinado inclusivamente que «Trata-se, [...], de um acto negligente do arguido, o qual não merece ser sancionado com a pena de suspensão prevista no art.° 237 do Estatuto dos Militarizados das F.S.M., mas sim com a pena de suspensão prevista no art.° 236 do mesmo diploma legal.» (cfr. o teor do art.º 16.º da defesa escrita, e sic, a fls. 43v do apenso);
D) No relatório final elaborado pelo Instrutor em 3 de Junho de 1999, este propôs a aplicação ao guarda visado da pena de SUSPENSÃO, nos termos do Artigo 237.° Do EMFSM.” (cfr. o teor de fls. 48v do apenso, e sic);
E) Submetido o mesmo relatório ao Senhor Comandante do CPSP, este exarou o despacho de 22 de Junho de 1999, nele afirmando que «[...] Nos presentes autos vem suficientemente provado que o arguido praticou os factos de que foi acusado [...]// Constitui uma das principais atribuições das FSM e do CPSP em particular o combate à imigração clandestina, pelo que as infracções aos deveres de obediência, de zelo, de lealdade e de aprumo (conforme preceitos legais constantes da acusação) cometidas pelo arguido, são graves e inviabilizam a manutenção da relação funcional, conforme art.º 238 No. n) 2a. parte, do EMFSM, devendo, por isso, ser-lhe aplicada a pena de natureza expulsiva adequada ao seu tempo de serviço, contrariamente ao proposto pelo Sr. Instrutor.// Assim, nos termos das disposições conjugadas dos arts. [...] do Estatuto, determino que se reuna o Conselho Disciplinar da Corporação, a fim de apreciar e emitir parecer sobre a proposta de pena expulsiva ora formulada nos presentes autos. [...]» (cfr. o teor de fls. 80 do apenso, e sic);
F) Subsequentemente, foi convocada, em 6 de Julho de 1999, a aludida reunião do Conselho Disciplinar com a finalidade de emitir parecer sobre a mesma proposta de pena expulsiva, não tendo o arguido visado sido previamente notificado e ouvido acerca da eventualidade da aplicação da “pena de natureza expulsiva” sugerida pelo Senhor Comandante do CPSP (cfr. o processado de fls. 80 a 91 do apenso);
G) E o processo disciplinar acabou por culminar com o proferimento do despacho n.º XX/XXX/XXXX, de 31 de Janeiro de 2000, pelo Senhor Secretário para a Segurança, que puniu o guarda visado com a pena de demissão, nos termos da alínea n) do artigo 238.°, n.º 2, do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau (EMFSM) (cfr. o teor de fls. 2 a 4 do apenso).
O acto recorrido é o constante da alínea G).

III - Apreciação jurídica da matéria de facto
1. Consabidamente, no contencioso administrativo, em recurso jurisdicional correspondente a segundo grau de jurisdição, o Tribunal de Última Instância (TUI) apenas conhece de matéria de direito, nos termos do art. 152.º do Código de Processo Administrativo Contencioso.
Mas, atinente aos poderes de cognição do TUI, dispõe o art. 649.º do Código de Processo Civil, o seguinte:
“Artigo 649.º
(Âmbito do julgamento)
1. Aos factos materiais que o tribunal recorrido considerou provados, o Tribunal de Última Instância aplica definitivamente o regime que julgue adequado em face do direito vigente.
2. A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo se houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

Entendemos que o acórdão recorrido violou normas legais que fixam a força de determinado meio de prova, pelo que, de acordo com o n.º 2, do art. 649.º do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente, nos termos do art. 1.º do Código de Processo Administrativo Contencioso, se alterará a matéria de facto fixada no referido acórdão.
Na verdade, na alínea F) que antecede, o acórdão recorrido menciona que “...foi convocada, em 6 de Julho de 1999, a aludida reunião do Conselho Disciplinar com a finalidade de emitir parecer sobre a mesma proposta de pena expulsiva, não tendo o arguido visado sido previamente notificado e ouvido acerca da eventualidade da aplicação da “pena de natureza expulsiva” sugerida pelo Senhor Comandante do CPSP...”1
E no texto subsequente do acórdão diz-se “...que a Entidade Recorrida, antes de tomar a decisão final de imposição de pena de demissão ora posta em crise, não chegou a ouvir o guarda A acerca da eventual aplicabilidade da pena de natureza expulsiva...”
Ora, importa considerar como assente um facto, que contradiz parcialmente a matéria de facto considerada assente pelo acórdão recorrido.
E é este, consubstanciado no documento, escrito em português e chinês, constante a fls 29 do processo administrativo instrutor apenso:
“FORÇAS DE SEGURANÇA DE MACAU
CORPO DE POLÍCIA DE SEGURANÇA PÚBLICA
GABINETE DE JUSTIÇA
NOTIFICAÇÃO
- - - Para os devidos efeitos, leva-se ao conhecimento que na Reunião do Conselho Disciplinar realizada no dia 06JUL99, para apreciação do Processo Disciplinar n.º XX/XX, do Guarda n.º XXXXXX, A nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 318.º do D.L. n.º 66/94/M, de 30 de Dezembro, foi de parecer dos seus membros daquele Conselho por unanimidade, que a pena de natureza expulsiva deveria ser aplicada ao mesmo, subindo os presentes autos ao Conselho de Justiça e Disciplina para apreciação e decisão final.
Macau, 09 de Julho de 1999
O Chefe do Gabinete de Justiça
Leong Hon San
Tomei conhecimento,
Em, 09/07/1999
   A
XXXXXX “

2. No documento em causa, o Chefe do Gabinete de Justiça da PSP, em 9 de Julho de 1999, declara ter dado conhecimento ao Guarda ora recorrido que o Conselho Disciplinar tinha dado parecer que lhe deveria ser aplicada a pena expulsiva. E consta do mesmo documento que, na mesma data, o ora recorrido apôs nele a sua assinatura, tendo declarado ter tomado conhecimento.
O documento mencionado é autêntico, por se tratar de documento exarado, com as formalidades legais, por autoridade pública nos limites da sua competência (art. 356.º, n.º 2 do Código Civil).
Ora, os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade, oficial público ou notário respectivo (art. 365.º, n.º 1 do Código Civil).
Por outro lado, o ora recorrido não impugnou a sua assinatura constante do documento, pela que a mesma se considera verdadeira (art. 368.º, n.º 1 do Código Civil).
Logo, o documento na parte respeitante à declaração do recorrido também faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, nos termos do n.º 1 do art. 370.º do Código Civil.
E os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante, como é o caso (art. 370.º, n.º 2 do Código Civil).

Em conclusão, o documento faz prova plena de que:
- O Chefe do Gabinete de Justiça da PSP, em 9 de Julho de 1999, deu conhecimento ao Guarda, ora recorrido, que o Conselho Disciplinar tinha dado parecer no sentido de lhe ser aplicada a pena expulsiva;
- E que, na mesma data, o ora recorrido declarou ter tomado conhecimento deste facto e que, efectivamente, tomou conhecimento do facto.
Aliás, o ora recorrido não só não impugnou o documento, como também, nas alegações de recurso jurisdicional, confirma que lhe foi dado conhecimento da possibilidade de agravação da pena.
Como é sabido, a prova plena está subtraída à convicção do julgador, constituindo uma excepção ao princípio da livre apreciação das provas, constante do art. 558.º do Código de Processo Civil.2
Pois bem, o acórdão recorrido, ao entender que o recorrido não foi notificado da eventualidade da aplicação da “pena de natureza expulsiva” violou disposições expressas da lei (arts. 356.º, n.º 2, 365.º, n.º 1, 368.º, n.º 1 e 370.º, n. os 1 e 2 do Código Civil) que fixam a força de determinado meio de prova, pelo que o TUI pode alterar, nos termos do n.º 2, do art. 649.º do Código de Processo Civil, a decisão recorrida quanto àquele facto.3
É que, como referimos no acórdão de 27 de Novembro de 2002, no Processo n.º 12/2002, citando «RODRIGUES BASTOS, 4 em anotação a preceito semelhante do Código de Processo Civil português, “repare-se, porém, que ainda aqui – e sempre – a actividade do Tribunal se situa no estrito campo da observância da lei; ele não faz a censura da convicção formada pelas instâncias quanto à prova; limita-se a reconhecer e a declarar, em qualquer dos casos, que havia obstáculo legal a que tal convicção se tivesse formado. É uma censura que se confina à legalidade do apuramento dos factos – e não respeita directamente à existência ou inexistência destes”».

IV – O Direito
1. A questão a resolver é a de saber se o ora recorrido poderia ter sido punido com a pena de demissão, quando a acusação mencionou como pena aplicável à infracção a de suspensão, sem ter sido expressamente convidado a pronunciar-se sobre a alteração jurídica em causa.
Isto porque, como se disse, já depois de o ora recorrido ter apresentado defesa à nota de culpa, foi expressa e pessoalmente notificado de que o Conselho de Disciplina dera parecer favorável a que lhe fosse aplicada pena expulsiva.

2. O Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau (EMFSM), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 66/94/M, de 30 de Dezembro, não contém norma expressa sobre estas questões.
Contudo, dispõe o art. 281.º, n.º 1, deste diploma legal que, finda a produção de prova oferecida pelo arguido, podem, ainda ordenar-se novas diligências que se tornem indispensáveis para o completo esclarecimento da verdade.
E acrescenta o n.º 2, do mesmo artigo que, “Se das diligências efectuadas resultarem factos novos, o processo deve ser facultado outra vez ao arguido, ainda que não exista matéria nova de acusação, a fim de o mesmo se pronunciar, querendo, sobre o valor probatório desses elementos.”
E nos termos do n.º 3, do mesmo art. 281.º, estatui-se que se se revelarem factos novos puníveis ou circunstâncias diferentes na sua comissão ou que possam influir na respectiva qualificação e avaliação, deverá o instrutor deduzir novos artigos de acusação, seguindo-se os demais termos, evidentemente, com nova possibilidade de defesa.
A situação dos autos não é rigorosamente a prevista nestas normas, pois não estão em causa “factos novos”.
De toda a sorte, a lei manda que o processo deva ser facultado ao arguido para se pronunciar sobre os factos novos, ainda que não exista matéria nova de acusação.
Donde se deduz que a lei pretende que se observe o contraditório quando surjam questões novas.
De outra banda, de acordo com o art. 256.º do EMFSM, “O processo disciplinar rege-se pelas normas constantes do presente Estatuto e, na sua falta ou omissão, pelas regras aplicáveis do regime disciplinar vigente para os trabalhadores da Administração Pública de Macau e da legislação processual penal”.
Ora, o TUI já apreciou a questão em apreço - a alteração da qualificação jurídica de aspectos relevantes da punição disciplinar, depois de deduzida a acusação - a propósito do recurso contencioso de punição de um funcionário administrativo da Polícia Judiciária, no acórdão de 18 de Julho de 2001, no Processo n.º 8/2001, em termos que se consideram aplicáveis no presente processo. Aí se disse o seguinte:

“O Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (doravante ETAPM), designadamente quando aborda o regime disciplinar (arts. 276.º a 358.º), não se pronuncia expressamente sobre a questão.
Impõe-se, assim, procurar a solução no processo penal, dado que é subsidiário do processo disciplinar, conforme princípio que se extrai do n.º 4, do art. 293.º do ETAPM, como já decidiu este Tribunal no acórdão de 16.2.2000, Processo n.º 5/2000.
Face ao enunciado da questão a resolver, importa delimitar negativamente o tema.
Só nos interessa a alteração da qualificação jurídica, pelo que a alteração dos factos da acusação para a decisão, está fora do nosso campo de análise.
Dentro do tema da alteração da qualificação jurídica também não nos importam todos os aspectos como, por exemplo, a alteração entre a acusação e a instrução (cfr. o art. 285.º do Código de Processo Penal) ou a pronúncia. Dado o paralelismo entre o julgamento (e sentença) em processo penal e a decisão em processo disciplinar, só abordaremos o problema da alteração da qualificação jurídica entre a acusação e o julgamento.

Alteração da qualificação jurídica no Código de Processo Penal de 1929
2. No Código de Processo Penal de 1929, que vigorou em Macau até 31.3.97 (art. 6.º do Decreto-Lei n.º 48/96/M, de 2.9), sem prejuízo da continuação da sua aplicação aos processos então pendentes, e que vigorou em Portugal até 31.5.87, com a mesma ressalva (art. 7.º do Decreto-Lei n.º 78/87, de 17.2), a questão estava regulada no art. 447.º, onde se dispunha:

«Artigo 447.º
(Convolação para infracção diversa da acusação)
O tribunal poderá condenar por infracção diversa daquela por que o réu foi acusado, ainda que seja mais grave, desde que os seus elementos constitutivos sejam factos que constem do despacho de pronúncia ou equivalente.
§ 1.º ...
§ 2.º ...».
A interpretação relativamente consensual 5 era a de que o tribunal era livre na qualificação jurídica, desde que os factos não se alterassem, podendo condenar por crime mais grave do que o constante da acusação.
A ideia que estava na base da norma foi explicitada por BELEZA DOS SANTOS 6, da seguinte maneira:

“Compreende-se bem a razão de ser da independência que possui a sentença final na qualificação jurídica dos factos constantes da pronúncia ou equivalente.
Desde que esses factos constem da acusação formulada contra o réu, este tem possibilidade de organizar a sua defesa contra eles: não é colhido de surpresa por uma acusação que não esperava, por factos com que não contava e que, por isso, não pôde contestar a tempo.
Quanto à qualificação jurídica – isto é, à aplicação e interpretação da lei -, é manifesto que o réu não pode contar com aquela que o despacho de pronúncia adoptou.
Ela pode evidentemente ser alterada, sem que se prejudique os legítimos interesses do réu, a quem fica sempre aberto o caminho de discutir livremente a qualificação jurídica dos factos e de recorrer contra sentenças que façam uma apreciação ou interpretação da lei que julgue erróneas.
Seria exorbitante e injustificado que se atribuísse ao réu a vantagem de beneficiar com qualquer erro de apreciação jurídica feita no despacho de pronúncia ou equivalente. Da mesma maneira seria injustificado e vexatório que se vinculasse o tribunal que tem de julgar a certa interpretação da lei seguida pelo juiz que pronunciou”.

A norma tinha contra si diversas opiniões no plano «de jure condendo»7 e veio a ser posta em crise, por inconstitucionalidade, por se entender que violava as garantias de defesa do réu, na medida em que este não fosse prevenido da nova qualificação e lhe não fosse dada a oportunidade de se defender8.

Alteração da qualificação jurídica no Código de Processo Penal português de 1987
3. Os novos Códigos de Processo Penal, português, de 1987 e de Macau, de 1996, não contêm uma norma semelhante à do art. 447.º do Código de Processo Penal de 1929.
As normas com relação com a questão em apreço, dispõem o seguinte.
Código de Processo Penal de Macau de 1996:
«Artigo 1.º 9
(Definições)
1. Para efeitos do disposto no presente Código, considera-se:
...
f) Alteração substancial dos factos: aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis;
...»

«Artigo 339.º 10
(Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia)
1. Se do decurso da audiência resultar fundada suspeita da verificação de factos com relevo para a decisão da causa mas não descritos na pronúncia ou, se a não tiver havido, na acusação ou acusações, e que não importem uma alteração substancial dos factos descritos, o juiz que preside ao julgamento, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
2. Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.

Artigo 340.º
(Alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia)
1. Se do decurso da audiência resultar fundada suspeita da verificação de factos não descritos na pronúncia ou, se a não tiver havido, na acusação ou acusações, e que importem uma alteração substancial dos factos descritos, o juiz que preside ao julgamento comunica-os ao Ministério Público, valendo tal comunicação como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, os quais não podem ser tomados em conta para o efeito de condenação no julgamento em curso.
2. Ressalvam-se do disposto no número anterior os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal.
3. Nos casos referidos no número anterior, o juiz que preside ao julgamento concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para preparação da defesa não superior a 10 dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário.».

Face aos arts. 1.º, alínea f), 358.º e 359.º do Código de Processo Penal, português, de 1987, semelhantes, como se disse, às normas citadas, pôs-se, então o problema de saber se o tribunal podia livremente alterar, no julgamento, a qualificação jurídica constante da acusação.
A) Para uns, tratava-se de alteração de factos, podendo ou não ser substancial, o que impedia, sem mais, a alteração da qualificação jurídica.
Era o caso de G. MARQUES DA SILVA11.
Entendia este autor, no seu manual escolar, que, no passado, a liberdade de qualificação jurídica dos factos pelo tribunal assentava na presunção inilidível do conhecimento da lei. A alteração verificada, para além de acentuar da estrutura acusatória do processo, prendeu-se, também, com a exigência de conhecimento da ilicitude que faz agora o Código Penal. Assim, acrescenta, «se nalguns casos é também objecto do conhecimento, no dolo, a norma que incrimina o facto, parece essencial que essa norma conste da acusação para que o arguido se possa defender, ou por outro modo, seria intolerável que o arguido pudesse ser surpreendido com uma condenação por um tipo legal de crime que desconhecia e lhe era indispensável conhecer para que tomasse consciência da ilicitude do facto».
Este autor apenas ressalvava os casos em que a alteração da qualificação não representasse uma alteração essencial do sentido de desvalor dos factos imputados ao arguido em termos de não pôr em causa a consciência da ilicitude do comportamento.
Para tais casos - que exemplifica com as normas que mantêm entre si uma relação de especialidade – qualquer alteração da qualificação, ainda que não essencial, deveria ser comunicada ao arguido e ser-lhe concedido tempo para a defesa, nos termos do art. 358.º do Código de Processo Penal, que trata das alterações não substanciais dos factos12.
B) Para outros autores, como FREDERICO ISASCA13 ou A.Q. DUARTE SOARES14, seguindo alguma jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, o novo Código de Processo Penal era omisso quanto à problemática em discussão, pelo que não estava em causa qualquer alteração de factos, sendo, pois, livre o tribunal na qualificação jurídica, em termos semelhantes aos previstos no Código de Processo Penal de 1929.
C) Para uma terceira corrente, intermédia, o novo Código de Processo Penal era omisso quanto à questão, concordando que não estava em causa qualquer alteração de factos. Mas, ao contrário da tese anterior, entendiam como MARIA JOÃO ANTUNES15 que a lacuna devia ser integrada pela aplicação analógica da norma referente à alteração não substancial dos factos, em nome da tutela efectiva do direito de defesa do arguido, pelo menos «quando a alteração da qualificação jurídica dos factos acarreta uma agravação da pena aplicável» devendo, pois, ser o arguido prevenido da nova qualificação jurídica para se poder defender.
No mesmo sentido, TERESA BELEZA16, expendeu que o Código de Processo Penal, na sua redacção, pressupõe logicamente uma diferença entre alteração de factos e alteração da qualificação jurídica. E adiantando que hoje não é defensável a opinião de Beleza dos Santos, segundo a qual o arguido se defende fundamentalmente de factos e não de qualificações jurídicas, sugere que o Código de Processo Penal deveria ter previsto uma regra do tipo do art. 358.º, pelo que este deve ser aplicado por analogia.
Entretanto, o legislador português, por meio da Lei n.º 59/98, de 25.8, alterou o Código de Processo Penal e acrescentou um n.º 3 ao art. 358.º, nos termos do qual “o disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia”, resolvendo, assim, a querela doutrinal e jurisprudencial.

Alteração da qualificação jurídica no Código de Processo Penal de Macau, de 1996
4. Vejamos como se deve resolver a questão em face do Código de Processo Penal de Macau.
Consideramos que a questão da alteração da qualificação jurídica não está regulada expressamente no Código. Na verdade, alteração substancial ou não de factos não é o mesmo que alteração da qualificação jurídica.
Mas não é sustentável que dada a omissão o tribunal seja livre na alteração da qualificação jurídica, mormente para infracção mais grave.
Por um lado, o legislador conhecia o consenso doutrinal que se estabeleceu nos anos finais da vigência do art. 447.º do Código de Processo Penal de 1929, no sentido que violava as garantias de defesa do arguido a livre alteração da qualificação jurídica, sem que lhe fosse dada a possibilidade de se pronunciar sobre a mesma.
Como explica G. MARQUES DA SILVA17 a «liberdade de qualificação pelo tribunal significava uma importante derrogação do princípio da acusação e do contraditório, já que o arguido acusado por violação de uma determinada norma poderia ser surpreendido pela condenação por outra sem que tivesse tido oportunidade de alegar as suas razões de facto e de direito sobre a norma que lhe foi aplicada».
Nem se entenderia que a acusação deva conter a indicação das disposições legais aplicáveis sob pena de nulidade [art. 265.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal] e tal indicação não tivesse qualquer efeito vinculativo para o tribunal18.
Nem se diga que o arguido se defende fundamentalmente de factos e não de qualificações jurídicas.
«É que os contornos objectivos do facto relevante só podem determinar-se por referência a determinada norma e, por isso, a prova dos elementos factuais relevantes pressupõe a sua prévia referência à norma que estabelece o modelo de comportamento delituoso»19.
Tomemos o seguinte exemplo: o arguido é acusado de sequestro simples, previsto e punível pelo art. 152.º, n.º 1, do Código Penal, embora na acusação se alegue que a detenção ocorreu ente os dias 3 e 6 de determinado mês (durou, portanto, mais de 2 dias).
Dado que o elemento constitutivo do crime é a detenção ou privação da liberdade de outrem, o arguido pode só se ter preocupado em arrolar meios de prova tendentes a demonstrar que não sequestrou a vítima, sem se ter preocupado em provar que a privação da liberdade durou menos de 2 dias, ou mesmo não ter arrolado quaisquer meios de prova, por aceitar o sequestro, mas não que este se prolongou por tal período.
Se na sentença viesse a ser condenado pelo crime qualificado do art. 152.º, n.º 2, alínea a) do Código Penal (sequestro durante mais de 2 dias), isto representaria uma condenação de surpresa, visto que na incriminação da acusação o tempo de sequestro não era relevante, mas na incriminação da sentença já era e de que maneira, pois a penalidade aplicável passou de 1 a 5 anos de prisão, para a de 3 a 12 anos de prisão! Exemplos como este podem multiplicar-se.
Mas ao lado da defesa factual, em que a mudança da incriminação prejudica a estratégia da defesa, evidente no exemplo dado, o arguido também procede (ou pode proceder) a uma defesa jurídica, tanto na contestação, como na alegação oral em julgamento (arts. 297.º e 341.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
Ora, é natural que, nessas peças processuais, o defensor do arguido se debruce sobre a construção jurídica da acusação que é feita ao arguido. Se na sentença vem a ser condenado com base em outra construção jurídica, toda a estratégia da defesa ficou prejudicada e saíu frustrada por essa surpresa.
Conclui-se, assim, que a questão da alteração da qualificação jurídica não está regulada expressamente no Código e que o tribunal não é livre na alteração da qualificação jurídica.

5. Como se sabe, os casos não previstos na lei são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos, sendo que há analogia sempre que no caso omisso procedam as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei (art. 4.º do Código de Processo Penal e art. 10.º, n.os 1 e 2 do Código Civil).
Os casos com algum paralelismo com a alteração da qualificação jurídica são os que se referem à alteração de factos descritos na acusação, previstos nos arts. 339.º e 340.º do Código de Processo Penal.
Quando ocorre uma alteração substancial dos factos, o juiz que preside ao julgamento comunica-os ao Ministério Público, valendo tal comunicação como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, os quais não podem ser tomados em conta para o efeito de condenação no julgamento em curso (art. 340.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
Não é pacífica na doutrina e na jurisprudência qual a solução para estes casos de factos não autonomizáveis20, já se tendo defendido que o tribunal deverá proceder a uma absolvição da instância, a fim de que o Ministério Público proceda a inquérito pelos novos factos e deduza nova acusação que abranja todos os factos; ou que o tribunal deverá decretar uma suspensão da instância, para que o julgamento proceda depois de os novos factos terem sido investigados e objecto de nova acusação conjunta; ou prosseguir o julgamento com agravação da pena até ao máximo abstracto, sendo os novos factos objecto de julgamento separado21.
Por sua vez, quando se dá uma alteração não substancial dos factos, o juiz que preside ao julgamento, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa (art. 339.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
Pois bem, a analogia com a alteração da qualificação jurídica só pode ser a da alteração não substancial dos factos. Por um lado, porque a alteração da qualificação jurídica é uma alteração não substancial da situação. Por outro, porque as soluções previstas para a alteração substancial dos factos seriam totalmente inadequadas à mera alteração da qualificação jurídica, enquanto que o remédio que a lei prescreve para a alteração não substancial dos factos é adequado à patologia relativa à alteração da qualificação jurídica.
À alteração da qualificação jurídica aplicar-se-á, portanto, por analogia, o disposto no n.º 1, do art. 339.º do Código de Processo Penal.
Acresce, ainda que, hoje, de acordo com o disposto no art. 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil «O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o principio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem».
Esta norma deve considerar-se aplicável em processo disciplinar, por via da dupla subsidiariedade do processo civil relativamente ao processo penal (art. 4.º do Código de Processo Penal) e deste relativamente ao processo disciplinar, nos termos já atrás descritos e a que também nos referimos no acórdão de 16.2.2000”.
Em conclusão, entendemos que à alteração da qualificação jurídica na pena aplicável, da acusação para a decisão, em processo disciplinar, aplica-se, por analogia, o disposto no n.º 1, do art. 339.º do Código de Processo Penal.
E, portanto, só há comunicar a alteração ao arguido e conceder-lhe, se ele requerer, o tempo necessário para a preparação da defesa.
Não era, pois, necessário ter notificado o arguido, o ora recorrido dos autos, para se pronunciar sobre a alteração proposta.
Era o ora recorrido que tinha a obrigação de se pronunciar sobre a questão ou pedir prazo para o efeito.
Importa, por último, esclarecer que, ao contrário do que vem defendido no acórdão recorrido, não é aplicável ao processo disciplinar a audiência dos interessados antes de ser tomada a decisão final, prevista no art. 89.º, n.º 1 do Código de Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 35/94/M, de 18.7, então vigente, ou no art. 93.º do actual Código de Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 110/99/M, de 13.12.
Isto porque, no processo disciplinar, a legislação processual penal, como conjunto normativo subsidiário, prefere ao Código de Procedimento Administrativo.
E aquele prevê como se processa a audiência do arguido em caso de alteração da qualificação jurídica atinente à pena aplicável, sendo certo que outras alterações, referentes a factos novos estão previstas no EMFSM, pelo que não há espaço para aplicação da audiência prevista no Código de Procedimento Administrativo.
Em suma, com a notificação feita, em 9 de Julho de 1999, ao ora recorrido foi cumprida a lei que impõe a audiência do arguido em processo disciplinar, em caso de se propor a agravação da pena constante da acusação.

V - Decisão
Face ao expendido, dão provimento ao recurso e revogam o acórdão recorrido.
Custas pelo ora recorrido neste Tribunal de Última Instância e no Tribunal de Segunda Instância, fixando a taxa de justiça em 5 UC, e a procuradoria em 2 UC, em ambos os casos.
Após trânsito em julgado, remeta os autos ao Tribunal de Segunda Instância para que conheça dos demais vícios imputados ao acto recorrido, se outro motivo não obstar a tal.
Macau, 23 de Abril de 2003

Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin
Fui presente:
Song Man Lei
1 O sublinhado é nosso.
2 Por todos, neste sentido, J. CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, AAFDL, 1987, II Volume, p. 683 e segs., ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1985, 2.ª ed., p. 471 e J. LEBRE DE FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO e RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 2001, Volume 2.º, p. 635.
3 Este TUI considerou no acórdão de 23 de Maio de 2001, Processo n.º 5/2001, que “decisão do Tribunal de Segunda Instância já estará sujeita a censura do Tribunal de Última Instância, quando houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova ou quando o tribunal recorrido violar qualquer norma legal, na utilização dos seus poderes”.
4 RODRIGUES BASTOS, Notas ao Código de Processo Civil, Lisboa, 2001, vol. III, 3.ª ed., p. 278.
5 Já CASTANHEIRA NEVES, Sumários de Processo Criminal, Coimbra, 1968, p. 262 e segs., propunha uma leitura restritiva do referido art. 447.º.
6 BELEZA DOS SANTOS, A sentença condenatória e a pronúncia em processo penal, em Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 63.º, p. 385 e segs.
7 Exemplificativamente, SILVA e SOUSA, Condenações penais de surpresa, em Revista dos Tribunais, ano 67.º, p. 322, EDUARDO CORREIA, Caso julgado e poderes de cognição do juiz, em A Teoria do Concurso em Direito Criminal, Coimbra, 1983, p. 398 e segs.
8 Cfr., neste sentido, os acórdãos do Tribunal Superior de Justiça (de Macau), de 23.10.96, 9.4.97, 30.4.97 e 29.10.98, respectivamente nos Processos n.os 518, 638, 461 e 903, na Jurisprudência, também respectivamente, no II tomo de 1996, I tomo de 1997, p. 400 e 517 e II tomo de 1998, p. 599.
       9 É semelhante ao art. 1.º, alínea f), do Código português de 1987.
10 Os arts. 339.º e 340.º correspondem, com alterações de pormenor, aos arts. 358.º e 359.º do Código português de 1987, na redacção original.
11 G. MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, Editorial Verbo, 1994, III, p. 269 e segs.
12 Do mesmo autor e no mesmo sentido cfr. Objecto do processo penal: a qualificação jurídica dos factos, comentário ao Assento n.º 2/93, de 27/1/93, em Direito e Justiça (Revista da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa), 1994, volume VIII, tomo I, p. 91 a 116.
13 FREDERICO ISASCA, Alteração substancial dos factos e sua relevância no processo penal português, Livraria Almedina, Coimbra, 1995, p. 100 a 110.
14 A.Q. DUARTE SOARES, Convolações, em Colectânea de Jurisprudência do STJ, ano II, tomo III, p. 20.
15 MARIA JOÃO ANTUNES, Tráfico de menor gravidade – Alteração da qualificação jurídica dos factos – direito de defesa, em Droga, Decisões de Tribunais de 1.ª Instância, 1993, comentários, Gabinete de Planeamento e de Coordenação do Combate à Droga, Ministério da Justiça, Lisboa, 1995, p. 297 e 298.
16 TERESA BELEZA, O objecto do processo penal: o conceito e o regime de alteração substancial dos factos no Código de Processo Penal de 1987, em Apontamentos de Direito Processual Penal, AAFDL, 1995, III volume, p. 88 a 106 e As variações do objecto do processo no Código de Processo Penal de Macau, em Revista Jurídica de Macau, 1997, volume IV, n.º 1, p. 45.
17 G. MARQUES DA SILVA, Curso..., p. 270.
       18 G. MARQUES DA SILVA, Curso..., p. 271.
19 G. MARQUES DA SILVA, Curso..., p. 270, nota (2).
20 Se os novos factos forem independentes dos que constituem o objecto do processo, terá de haver novo processo e o processo pendente prossegue.
21 Sobre estas matérias, ROBALO CORDEIRO, Audiência de julgamento, em O Novo Código de Processo Penal, Jornadas de Direito Processual Penal, Centro de Estudos Judiciários, Livraria Almedina, Coimbra, 1995, p. 305 a 308, FREDERICO ISASCA, obra citada, p. 194 a 210 e TERESA BELEZA, O objecto ..., p. 92 e 102 a 104 e As variações..., p. 45 e 46 e 61 a 63.
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Processo n.º 6/2003

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Processo n.º 6/2003