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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau




Recurso de decisão jurisdicional em matéria administrativa
N.° 20 / 2002

Recorrente: A
Recorrido: Secretário para a Segurança






1. Relatório
   O recorrente interpôs o recurso contencioso contra o despacho n.° 4-I / GSAJ / 98 de 13 de Fevereiro de 1998 do então Secretário-Adjunto para a Justiça que lhe aplicou a pena disciplinar de aposentação compulsiva.
   O Tribunal de Segunda Instância, através do seu acórdão de 30 de Julho de 2002 proferido no processo n.° 1169, julgou procedente o recurso contencioso e anulou, por verificada a nulidade insuprível prevista no art.° 298.°, n.° 1, primeira parte do ETAPM, todo o processado anterior do processo disciplinar n.° 14/97, de 4 de Junho de 1997, da Polícia Judiciária de Macau de que era arguido o recorrente, a partir do momento em que se omitiu a audiência deste após a realização das diligências complementares da prova, ou seja, a partir de fls. 1530 do processo instrutor apensado.
   Inconformado com esta decisão, vem agora o recorrente interpor recurso jurisdicional deste acórdão para o Tribunal de Última Instância, apresentando as seguintes conclusões nas suas alegações:
   “1. O ora recorrente tem legitimidade para interpor recurso para o Tribunal de Última Instância do douto Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 30 de Julho de 2002, porquanto, pese o facto de ter sido considerado procedente o vício formal da falta de audiência do arguido invocado na sua petição de recurso e respectivas alegações, não foram conhecidos vícios de fundo que impediriam a renovação do acto recorrido.
   2. O ora recorrente imputa ao douto Acórdão recorrido o vício de violação de lei porquanto violou a norma do art.º 57.º, n.º 2 da LTPA.
   3. Embora tenham os Distintos Julgadores do Tribunal de Segunda Instância afirmado que iriam conhecer primeiro os vícios cuja procedência impediria a renovação do acto, ficando por conhecer em último lugar o vício formal, a verdade é que, a final, veio a ser explicitada decisão no sentido de que a procedência do invocado vício formal prejudicaria o conhecimento de quatro vícios de fundo.
   4. A doutrina e a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo da República Portuguesa considera unanimemente que o conteúdo da norma do n.º 2 do art.º 57.º da LTPA traduz o sentido de valoração efectiva dos interesses do recorrente através do conhecimento prioritário dos vícios geradores de anulação impeditiva da renovação do acto com igual configuração jurídica e o mesmo sentido decisório.
   5. É verdade que a mesma jurisprudência tem admitido que a tutela mais eficaz dos interesses do recorrente pode alcançar-se com o conhecimento prioritário de um vício de forma desde que com a sua expurgação se possam reunir novos elementos para uma boa decisão dos vícios de fundo.
   6. Assim tal conhecimento prioritário de um vício de forma apenas se imporá ao julgador quando o seu não conhecimento inviabilize decisivamente o conhecimento dos invocados vícios de fundo.
   7. No caso em apreço, os quatro vícios substanciais que o ora recorrente pretende ver conhecidos e decididos são os seguintes: (1) ilegalidade substancial do acto recorrido por errada qualificação dos factos imputados ao recorrente como violação do dever de obediência; (2) falta de ponderação pela autoridade recorrida do facto de se assistir ao incumprimento generalizado do despacho n.º 10/88 e a consequente violação do princípio da igualdade e do art.º 316.º do ETAPM; e (3) e (4) falta de autenticidade e de veracidade do conteúdo dos documentos de fls. 18 a 22 e 47 e a consequente violação dos princípios in dubio pro reo e de inocência do arguido e a verificação de erro sobre os pressupostos de facto.
   8. O vício formal invocado pelo recorrente, qual seja, o da falta de audiência do arguido não é relevante face à invocação dos vícios de fundo, pois uma nova audição do recorrente, como arguido no processo disciplinar, nenhum elemento novo pode trazer para conhecimento dos mesmos.
   9. Nas alegações de recurso para a instância precedente, assinala-se a obscuridade do referido Despacho n.º 10/99 de que decorre a violação do princípio da determinabilidade das normas jurídicas no nosso ordenamento jurídico-disciplinar, desembocando-se no vício de violação de lei por erro nos pressupostos de direito na aplicação do n.º 1 e da alínea b) do n.º 2 do art.º 315.º do ETAPM, ao considerar-se desobediência a (alegada) desconformidade da conduta do recorrente com um comando normativo relativamente ao qual se lhe não podia exigir observância por não poder nele perceber o recorrente o sentido dispositivo que a autoridade recorrida lhe atribui.
   10. O conhecimento e reconhecimento deste vício de fundo alegado importaria não uma simples questão de graduação da pena – entre a pena correspondente à violação do dever de obediência e à violação do dever de assiduidade – mas a absolvição do arguido, uma vez que, não havendo o recorrente atingido, em nenhum dos dois anos civis em causa, o número mínimo de cinco faltas seguidas ou de dez interpoladas, a cominação legal não teria justificado, nessa parte, a instauração do correspondente procedimento disciplinar, pelo que tutelaria mais eficazmente os direitos e interesses do recorrente.
   11. Nas alegações do precedente recurso, escreveu-se que o recorrente demonstrou que a generalidade dos funcionário e agentes da PJ, embora preenchessem diversas vezes o formulário com vista à autorização requerida pelo despacho n.º 10/99, não o faziam em todas as circunstâncias, só pedindo autorização nos casos em que a ausência em questão fosse para local ou por um período de tempo que dificultasse a possibilidade de ser contactado em situações de emergência, e que não era obviamente isso que acontecia quando estavam em causa curtas deslocações à vizinha cidade de Zhu-Hoi.
   12. Perante o generalizado incumprimento do aludido despacho, a autoridade recorrida não poderia – acrescentou-se – deixar de tomar em consideração, no momento da aplicação da pena disciplinar ao recorrente, as exigências advenientes do princípio da igualdade, enfaticamente sublinhado na legislação ordinária da RAEM, como o era na Constituição da República Portuguesa e o é, hoje, na Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China (cfr. Art.º 25.º).
   13. A consequência legal do conhecimento desse invocado vício pelo Venerando Tribunal de Segunda Instância, acolhida que fosse a tese do recorrente, não poderia ser outra que não a sua absolvição com fundamento na não exigibilidade de conduta diversa por força da prescrição dos art.ºs 316.º e 284.º, alínea d) do ETAPM, decisão que asseguraria mais eficazmente a tutela dos direitos e interesses que o recorrente defende no processo através do recurso contencioso interposto.
   14. Na precedente alegação de recurso, invocou-se, em resumo, que toda a prova carreada para os autos pretensamente integradora dos ilícitos disciplinares imputados ao recorrente se estriba num conjunto de documentos não assinados exarados pela Repartição de Investigação da Alfândega de Hong Pak (RPC) que têm um carácter meramente interno aos quais falta a categórica eficácia probatória que é própria dos documentos públicos.
   15. Trata-se – ali se escreveu – de documentos estrangeiros (ao tempo) que, sob a capa do mesmo nomen iuris, não apresentam os elementos essenciais exigidos pela lei de Macau (nomeadamente o art.º 365.º, n.º 1 do C. Civil e o art.º 540.º, n.º 1 do C.P Civil) pelo que, por não legalizados, lhes falta qualquer força probatória, não oferecendo quaisquer garantias de que a verificação dos factos nele atestados resulta do exercício de funções públicas cercado de cautelas especiais idóneas a assegurar a sua veracidade.
   16. Nos processos sancionatórios em geral, há razões acrescidas para concluir que a regra de que se consideram provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado, enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa, só vale em relação a documentos estrangeiros que ofereçam inequívocas garantias de veracidade análogas àquelas estabelecidas pela legislação de Macau.
   17. A protecção do arguido em face do ius puniendi do Estado assume, neste tipo de processos, uma importância fundamental, pelo que os interesses fundamentais em jogo impedem que se prescinda de uma averiguação total do objecto do processo e postulam que o encargo de averiguar a verdade dos factos não recaia sobre o arguido.
   18. Acresce que o princípio da livre apreciação das provas impõe, desde há muito, a natureza excepcional das regras de provas legais, isto é, das regras que comportam a pré-fixação pelo legislador da valoração dos meios de prova, tudo apontando no sentido de que a atribuição de uma força probatória específica aos documentos autênticos constitui, neste domínio, uma disposição rigorosamente excepcional.
   19. Impondo o princípio in dubio pro reo a preferência do risco da absolvição do culpado ao risco da condenação de um inocente, a procedência do conhecimento do aludido vício pelo Tribunal recorrido no sentido da não tolerância da atribuição de uma força probatória específica a documentos que não estão assinados por quaisquer autoridades ou funcionários e que não oferecem quaisquer garantias de que a verificação dos factos nele atestados resulta do exercício de funções públicas cercado de cautelas especiais idóneas a assegurar a sua veracidade, tal conhecimento – dizia-se – poderia importar a absolvição pura e simples do arguido ora recorrente, o que tutelaria mais eficazmente os direitos e interesses que prossegue no processo por via do recurso contencioso interposto.
   20. Ainda que os métodos de prova fossem em abstracto admissíveis – o que se contesta – sempre a sua utilização se teria feito com erro que, sendo indesmentível na sua concretização, é indeterminado quanto à sua amplitude, o que impõe nesta parte, a título subsidiário, a existência do vício do erro nos pressupostos de facto e, logo, de violação de lei, pelo que o seu conhecimento tutelaria mais eficazmente os direitos que o recorrente pretende fazer valer, qual seja, a anulação do acto punitivo em termos de obviar a que um juízo de oportunidade da autoridade recorrida dê novo andamento ao processo.
   21. O art.º 57.º, n.º 1 da LTPA, ao estabelecer a ordem pela qual os vícios apontados ao acto impugnado devem ser apreciados, tem um duplo objectivo: 1. – garantir uma tutela judicial efectiva, traduzida por uma sentença eficaz e efluente, que não seja o resultado de um mero exercício formal e 2. – acudir a preocupações de celeridade e de respeito pelo princípio da economia processual.
   22. O douto Acórdão recorrido violou as normas dos n.ºs 1 e 2 do art.º 57.º da LTPA na medida em que conheceu em primeiro lugar um vício formal não impeditivo da renovação do acto recorrido, considerando prejudicado o conhecimento de quatro vícios substanciais em sede de recurso, cuja apreciação não dependia da procedência ou não do aludido vício de forma, proferindo, assim, uma decisão que colide com o princípio da economia processual.”
   Pedindo que seja julgado procedente o recurso, revogado o acórdão recorrido e proferida decisão a fim de ordenar a baixa do processo ao Tribunal de Segunda Instância para ali serem apreciados e decididos os vícios substanciais de violação de lei invocados pelo recorrente.
   
   A entidade recorrida contra-alegou no sentido de oferecer o merecimento dos autos e tudo o que, de direito, concorre para a manutenção do acórdão recorrido confortando-se na bondade da fundamentação que o suporta, pugnando pelo não provimento do recurso.
   
   A Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de Última Instância emitiu o seguinte parecer:
   “Inconformando com o douto acórdão proferido pelo TSI que decidiu anular, por verificada a nulidade insuprível prevista no art.º 298.º, n.º 1 do ETAPM, todo o processado anterior do Processo Disciplinar n.º 14/97 da Polícia Judiciária em que era arguido A, a partir do momento em que se omitiu a audiência, julgando prejudicado o conhecimento dos quatro vícios invocados, vem o mesmo interpor o recurso para TUI, imputando ao douto acórdão recorrido tão só o vício de violação de lei porque entendeu que foi violada a norma do art.º 57.º, n.º 2 da LTPA.
   
   O referido art.º 57.º da LTPA, aplicável aos presentes autos, estabelece a ordem de conhecimento dos vícios: deve o tribunal conhecer prioritariamente dos vícios que conduzam à declaração de invalidade do acto recorrido e depois dos vícios arguidos que conduzam à anulação deste. E dentro deste segundo grupo, são apreciados em primeiro lugar “os vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos” no caso de o recorrente não ter estabelecido entre vários vícios indicados uma relação de subsidiariedade nem o Ministério Público ter arguido outros vícios.
   
   Parece-nos que tal norma, ao estabelecer a ordem de conhecimento dos vícios, deixa ao julgador ampla margem para conferir prioridade dentro de cada grupo.
   
   Nota-se que no douto acórdão ora recorrido, o tribunal teve presente o comando do citado artigo, chegando mesmo a conhecer e apreciar alguns vícios substanciais invocados pelo recorrente, tais como violação de lei por erro de direito na aplicação do n.º 1 e da al. b) do n.º 2 do art.º 315.º do ETAPM, violação de lei por erro na aplicação do Despacho n.º 10/88 e violação de lei por ofensa do princípio da imparcialidade e do art.º 327.º do ETAPM (cfr. fls. 561v e 562 dos autos).
   Em relação aos restantes vícios substanciais também indicados, que são violação de lei por erro de direito na aplicação do n.º 1 e da al. b) do n.º 2 do art.º 315.º do ETAPM (devido à errada qualificação jurídica dos factos imputados ao recorrente), violação de lei por não aplicação do art.º 316.º, n.ºs 1 e 2 do ETAPM, violação de lei por ofensa aos princípios de in dubio pro reo e da presunção da inocência e violação de lei por erro nos pressupostos de facto, entendeu o tribunal que a apreciação ou não dos mesmos “depende da procedência ou não do vício de forma”, pelo que a final com a procedência deste último vício, ficou prejudicado o conhecimento daqueles.
   Pelo contrário, no entendimento do recorrente, ao conhecer o vício formal da falta de audiência do arguido em detrimento do conhecimento dos outros vícios de fundo ou substancial, o Tribunal a quo não cumpriu a norma contida no referido art.º 57.º.
   Como se sabe, o preceito em causa “visa, no essencial, reagir contra a tendência que durante muito tempo foi generalizada de começar por conhecer da forma e deixar para depois o exame dos vícios de fundo” ou “contra uma concepção puramente instrumental do conflito através da restrição ou proibição da possibilidade de o juiz anular o acto por vício de forma sem conhecer do fundo” (cfr. José Manuel dos Santos Botelho, Contencioso Administrativo, 4.ª edição, pág. 484).
   Tanto na jurisprudência de Macau como de Portugal, é de entendimento uniforme que segundo o art.º 57.º, n.º 2 da LTPA, se deve dar prioridade à apreciação dos vícios de violação de lei substantiva sobre os vícios de forma, ou seja, devem ser conhecidos, antes de vício de forma, os vícios cuja procedência impeça renovação do acto por permitir mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos.
   No entanto, tal ordem e orientação deve ser vista “em termos hábeis e não sem atender às circunstâncias concretas do caso em apreciação”, havendo casos em que, é lícito ao juiz começar por conhecer prioritariamente do vício de forma (na obra citada, pág. 485).
   Pode o tribunal fixar, atenta a especificidade de cada caso e segundo o seu prudente critério, a ordem de prioridade de apreciação dos vícios arguidos contra o acto administrativo posto em causa.
   O TSI chegou a decidir no seu acórdão de 27-1-2000 (processo n.º 1176) que “se o vício de forma puder originar toda uma reapreciação do processo com eventual preclusão de ulterior alegação de outros vícios, pode o seu conhecimento preceder o da violação de lei” e citou o acórdão do STA de Portugal de 12-5-1988 que julgou ser de conhecer prioritariamente o vício de forma resultante da falta de realização de diligências requeridas em processo disciplinar, uma vez que a procedência se repercute na decisão punitiva.
   E mais, “o conhecimento do vício de forma, na modalidade de preterição de formalidade essencial, poderá preceder o de violação de lei por tutelar eficazmente os direitos e interesses lesados, já que não permite uma imediata, e automática, renovação do acto” (Ac. do TSI, de 22-2-2001, processo n.º 144/2000).
   No acórdão do STA, de 12-10-1989, processo n.º 25539 foi decidido que “deve ser conhecida antes do vício de erro nos pressupostos de facto, a arguição de nulidade insuprível do processo disciplinar, por omissão de diligências para a descoberta da verdade ou por formulação, sem os requisitos legais, dos artigos de acusação.”
   
   Afirma o recorrente que, em termos do conhecimento e decisão sobre a existência dos vícios substanciais, mesmo a sua nova audição não poderia trazer aos autos nenhum elemento novo, porque não diria mais do que já disse na sua petição de recurso e nas respectivas alegações.
   No entanto, certo é que, mesmo assim e com a nova audiência, suprindo deste modo a omissão verificada, a Administração terá que renovar o procedimento, ponderar de novo a prova constante nos autos, reapreciando todos os elementos coligidos, e decidir novamente do caso.
   Tratando-se dum vício procedimental, a falta de audição afecta a formação da vontade da Administração e a procedência de tal vício, atinente às formalidades, tem projecção no próprio processo onde se preferiu a decisão punitiva.
   
   Neste contexto, concordamos com o entendimento do Tribunal ora recorrido no sentido de dar prioridade ao vício de forma, com cuja procedência ficando prejudicado o conhecimento dos outros vícios arguidos.
   Termos em que nos parece ser de negar provimento ao recurso interposto.”
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 Foram dados como provados os seguintes factos pelo Tribunal de Segunda Instância:
  “A (ora recorrente) desempenhava as funções de subinspector da carreira de investigação criminal na Polícia Judiciária de Macau;
  Em 3 de Junho de 1997, o então Director daquela Polícia instaurou contra ele um processo disciplinar, autuado e registado com o n.º 14/97, de 4 de Junho de 1997 (cfr. o teor de fls. 2 do volume A-1 do processo administrativo instrutor ora apensado);
  Em 13 de Outubro de 1997, foi contra ele formulada a acusação disciplinar pelo instrutor do processo (a fls. 491 a 594 do volume A-2 do processo instrutor);
  Notificado em 13 de Outubro de 1997 pessoalmente desta peça acusatória, na qual se fixou em 15 (quinze) dias o prazo para a apresentação da defesa por escrito, o arguido apresentou, em 28 de Outubro de 1997, a sua resposta escrita, pronunciando-se aí nuclearmente que “O presente processo disciplinar não tem qualquer razão de ser e é determinado por perseguição pessoal.” (cfr. a certidão de notificação de fls. 506 do volume A-2 do processo instrutor, e o teor das suas fls. 521 a 579, e, em especial, da fls. 576, respectivamente);
  No âmbito do mesmo processo disciplinar, foram realizadas diversas diligências complementares da prova ordenadas pelo respectivo instrutor (já devidamente mencionadas a fls. 1546 a 1548 do volume A-5 do processo instrutor, no seio do relatório final do instrutor apresentado em 21 de Janeiro de 1998 a fls. 1530 a 1614 do mesmo volume A-5);
  Entretanto, antes da elaboração do relatório final de 21 de Janeiro de 1998, o arguido não chegou a ser ouvido pelo instrutor pessoalmente em audiência acerca das aludidas diligências de prova complementares (conforme o que se pode retirar, a contrario sensu, do processado constante de fls. 1294 do volume A-4 do processo instrutor (onde, nessa mesma fls. 1294, o instrutor deferiu os pontos 2 e 3 do requerimento de fls. 1284 do arguido, respeitantes à realização de diligências probatórias aí especificadas) a fls. 1529 do volume A-5 do processo instrutor, facto de falta de audiência este que foi também afirmado pela entidade recorrida inicial no art.º 63.º da sua resposta apresentada ao presente recurso, a fls. 398 dos presentes autos);
  A final, foi exarado, em 13 de Fevereiro de 1998, o Despacho n.º 4-I/GSAJ/98 do então Senhor Secretário-Adjunto para a Justiça, pelo qual o arguido (ora recorrente) foi punido disciplinarmente na pena de aposentação compulsiva prevista no n.º 1 e na al. b) do n.º 2 do art.º 315.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (texto vigente nessa altura) (ETAPM), bem como na al. b) do art.º 46.° do Decreto-Lei n.º 61/90/M, de 24 de Setembro, tendo o tal despacho punitivo o seguinte teor:
<   1. Para efeitos do disposto no n.º 3 artigo 338.° do ETAPM foram analisados os autos do processo disciplinar instaurado pelo Director da Polícia Judiciária (PJ), em 3 de Junho de 1997, contra A, Subinspector da carreira de investigação criminal daquela Polícia.
  2. Tendo em conta as diligências instrutórias desenvolvidas, a matéria fáctica carreada para os autos e o teor do relatório final do processo, com o qual concordo, considero provados os factos que nele são imputados ao arguido, concordando, por isso e de igual modo, com o enquadramento jurídico-disciplinar do seu comportamento, o qual não pode deixar de ser valorado no contexto em que foi assumido, qual seja o da pertença do arguido a uma instituição como é a Polícia Judiciária que sempre, mas especialmente num momento em que o combate à criminalidade, particularmente a organizada, assume acentuada acuidade, tem especial incumbência de projectar uma imagem de operacionalidade e eficácia baseada numa disciplina interfuncional que, de modo objectivo e no caso em apreço, se considera ter sido gravemente posta em causa.
  Com efeito, decorre com evidência do processo que o arguido, ao assumir as condutas ali descritas, violou não só o dever genérico previsto no n.º 1 do artigo 279.º do ETAPM, como os deveres de zelo, obediência, lealdade e assiduidade, previstos e definidos, respectivamente, nas alíneas b), c), d) e g) do n.º 2 e nos n.os 4, 5, 6 e 9 daquele artigo.
  E tal, tendo presente que, por um lado, muito embora o serviço naquela instituição seja da carácter permanente, estão os funcionários da carreira de investigação criminal sujeitos ao cumprimento do horário normal vigente para a generalidade dos trabalhadores da Administração Pública e, por outro, que o Despacho n.º 10/88 constitui uma ordem de natureza genérica dirigida a todos quantos exercem funções na PJ, emitida pelo respectivo Director no exercício do seu poder de direcção e no estrito cumprimento do disposto no artigo 10.º da respectiva lei orgânica (D.L. n.º 61/90/M, de 24/9).
  Despacho esse, de resto, generalizadamente cumprido por todos os funcionários, como resulta dos autos, e pelo próprio arguido que, ao seu abrigo, por várias vezes formulou pedidos de ausência do Território.
  3. Assim sendo, e porque a conduta do arguido é tanto mais censurável quanto é certo que, à data da prática dos factos, ele exercia funções de elevada responsabilidade na estrutura organizativa da PJ, concordo com o enquadramento jurídico-disciplinar que da mesma é feita no relatório final, bem como com as considerações tecidas a propósito da inviabilização da manutenção da situação jurídico-funcional existente, certo como é que com o seu comportamento, gravemente desrespeitador dos seus deveres funcionais, o arguido desmereceu por completo a confiança que nele depositavam os seus superiores hierárquicos, aspecto fulcral e decisivo, particularmente exigível neste momento, em termos de assegurar a eficiência e operacionalidade duma instituição como a Polícia Judiciária que, no contexto em que se insere, tem a seu cargo importantes tarefas de prevenção e investigação criminal só passíveis de levar a bom termo com a colaboração dum corpo de funcionários disciplinado e eminentemente cumpridor das regras, directrizes e instruções ditadas, nos termos da lei, pelos respectivos dirigentes.
  4. Do registo biográfico e disciplinar do arguido, com especial relevância para o que ora interessa, resulta que o mesmo exerce funções na PJ há cerca de 19 anos, 13 dos quais, aproximadamente, na carreira de investigação criminal, tendo sido nomeado na categoria de subinspector em 25/6/97 e tendo o seu serviço sido classificado de Bom e de Muito Bom, respectivamente, nos anos de 1979 a 1988 e de 1989 a 1996.
  Do mesmo documento resulta que em 1978 foi punido com a pena de censura e no de 1988 com a de multa, suspensa por um ano.
  5. Conforme decorre dos autos, o arguido beneficia da circunstância atenuante prevista na alínea a) do artigo 282.° do ETAPM, militando contra ele as circunstâncias agravantes das alíneas h) e j) do artigo 283.° do mesmo Estatuto, neste particular não se acompanhando a tese do instrutor que inclui nestas últimas a sucessão de infracções prevista na alínea g) do citado artigo, por se entender que, se as infracções cometidas no passado pelo arguido foram amnistiadas, não podem as mesmas determinar aquela agravante.
   6. Nestes termos, considerando o determinado no n.° 1 do artigo 316.° do ETAPM, designadamente, e por um lado, os antecedentes profissionais do arguido e a circunstância atenuante que milita a seu favor e, por outro, o facto de entender que, não obstante isso, o seu comportamento inviabiliza a manutenção da situação jurídico-funcional que detém com a PJ, dada a absoluta quebra de confiança que o mesmo gerou, a que há que juntar as circunstâncias agravantes referidas, tendo em conta o disposto no artigo 322.° do aludido estatuto e usando da competência que me foi delegada pela alínea d) do n.° 1 da Portaria n.º 190/96/M, de 31/7, aplico ao arguido a pena de aposentação compulsiva prevista no n.º 1 e na alínea b) do n.º 2 do artigo 315.° do ETAPM, bem como na alínea b) do artigo 46.° do D.L. n.º 61/90/M, de 24/9.
  7. Nos termos do artigo 107.° do Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo D.L. n.º 35/94/M, de 18/7, junte-se cópia do relatório do instrutor, do qual constam os factos dados como provados e que, nessa medida, fazem parte integrante do presente despacho.
  8. Relativamente ao recurso hierárquico de fls. 1022, porque se entende não caber à Administração, por ora, pronunciar-se sobre se estão reunidos os pressupostos processuais do recurso contencioso e em homenagem ao direito de informação constitucionalmente garantido, tanto mais que o pedido das certidões está conforme com o disposto nos artigos 60.° a 62.° do CPA, considera-se que devem as mesmas ser passadas ao interessado.
  9. Envie-se à Polícia Judiciária, que deve providenciar pela notificação do despacho nos termos legais.
  Gabinete do Secretário-Adjunto para a Justiça, Macau, 13 de Fevereiro de 1998.
O Secretário–Adjunto para a Justiça
                      (...)>>
  E foi deste despacho punitivo que o recorrente veio recorrer contenciosamente no âmbito dos presentes autos.”
   
   
   2.2 Legitimidade do recorrente em apresentar recurso jurisdicional
   Apesar de obter o provimento, o recorrente do recurso contencioso vem recorrer do acórdão final por não se conformar com a decisão de, com fundamento na verificação de um vício formal, julgar prejudicado o conhecimento dos quatro vícios substanciais do acto recorrido invocados pelo recorrente, entendendo que foi violado o disposto no art.° 57.°, n.° 2 da LPTA.
   
   O presente processo de recurso contencioso foi interposto antes de entrar em vigor o Código de Processo Administrativo Contencioso, concretamente em 16 de Abril de 1998, pelo que, nos termos do art.° 9.°, n.° 3 do Decreto-Lei n.° 110/99/M, é de aplicar a legislação revogada por este, nomeadamente a LPTA (Decreto-Lei n.° 267/85 de 16 de Julho – Lei de Processo nos Tribunais Administrativos).
   
   Segundo o art.° 104.°, n.° 1 da LPTA, podem recorrer a parte ou interveniente no processo que fique vencido, a pessoa directa e efectivamente prejudicada pela decisão e o Ministério Público.
   No presente caso, é de indagar se o recorrente caiba na situação da parte vencida que a lei a legitima para impugnar uma decisão judicial aparentemente favorável a ela. O problema consiste em saber se, quando o tribunal julgou procedente o recurso contencioso com base na verificação de algum ou alguns vícios invocados pelo recorrente, preterindo o conhecimento dos outros vícios por considerar ser prejudicado, ele pode recorrer da decisão alegando a inobservância, por parte do tribunal, da ordem de conhecimento dos vícios prevista no art.° 57.° da LPTA.
   
   No processo civil, é semelhante a regra de legitimidade para interpor recurso. Conforme o art.° 680.°, n.° 1 do Código de Processo Civil (CPC) de 1961 ou o correspondente art.° 585.°, n.° 1 do Código de Processo Civil de 1999, os recursos, exceptuada a oposição de terceiro, só podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido.
   “Vencido significa aqui afectado objectivamente pela decisão.” “Afectado – ou seja, que não obteve a decisão mais favorável possível aos seus interesses.”1
   
   Para saber se o recorrente obteve a melhor solução possível no recurso contencioso, há de atender a especialidade desta forma de processo.
   São designadamente fundamentos do recurso contencioso os vícios do acto referidos nas várias alíneas do art.° 21.°, n.°s 1 e 2 do Código de Processo Administrativo Contencioso (CPAC), aos quais a lei comina com a consequência de nulidade ou anulabilidade do acto (art.°s 122.° e 124.° do Código do Procedimento Administrativo), para além dos que conduzem à sua inexistência jurídica.
   A verificação de qualquer um destes fundamentos leva já a procedência do recurso contencioso. Mas o alcance da sentença pode variar conforme o vício determinante do provimento. Na realidade, quando se invoca vários vícios do acto impugnado, cada um destes constitui uma causa de pedir diferente correspondentes às pretensões também distintas entre si, embora sob a aparente finalidade unitária desta forma de processo: anulação do acto recorrido ou declaração da sua nulidade ou inexistência jurídica (art.° 20.° do CPAC).
   Assim, quando o pedido formulado é um só, por exemplo o de anulação do acto, mas são invocados vários vícios do acto impugnado, o problema posto à apreciação do tribunal não é único, antes se desdobra em tantas questões distintas quantos os vícios ou causas de pedir alegados.
   Para o recorrente, não é indiferente o provimento do recurso contencioso com base na procedência da arguição de um ou outro dos vícios invocados. Embora o sentido da sentença final aponta sempre para a anulação do acto, os efeitos da sentença podem variar conforme o vício determinante da anulação. Perante uma sentença anulatória, é possível que a Administração, expurgando os vícios anteriores, renove o acto exactamente com o mesmo conteúdo. A situação já é completamente diferente relativamente aos vícios substanciais, já que a Administração não pode renovar o acto com o mesmo conteúdo sob pena de nulidade por violar a autoridade do caso julgado (art.° 122.°, n.° 2, al. h) do Código do Procedimento Administrativo). A diversidade do conteúdo da execução da sentença é bem ilustrativa.
   De facto, um dos princípios a observar na execução da sentença do recurso contencioso é “o da limitação da eficácia do caso julgado aos vícios determinantes da anulação, ou seja, o princípio de que o respeito do caso julgado não impede a substituição do acto anulado por um acto idêntico, se a substituição se fizer sem repetição dos vícios determinantes da anulação.
   Deste princípio resulta, segundo o conceito de execução adoptado, que a execução a realizar pode consistir, conforme os casos, ou na substituição do acto anulado por um acto legal de sentido contrário ou, diferentemente, na substituição do acto anulado por um acto legal idêntico, em que todavia se não repitam os vícios que determinaram a anulação.”2
   Perante uma sentença de provimento, embora já é aparentemente favorável ao recorrente, a este é mais preferível se o tribunal julga verificado um vício que obsta à renovação do acto do que vê a Administração, apesar de ser anulado o seu acto, colocada novamente na situação de poder proferir outro acto com o mesmo conteúdo que o acto anulado.
   
   Precisamente por causa de possível diversidade dos efeitos da sentença anulatória no recurso contencioso sobre a situação jurídica do recorrente, a lei estabelece uma ordem de conhecimento dos vícios a observar pelo tribunal para julgar a causa. Quer no art.° 57.°, n.° 2 da anterior LPTA, quer no art.° 74.°, n.° 3 do actual CPAC, prescreve que, ao apreciar os vícios que conduzem à anulação do acto, deve seguir a ordem indicada pelo recorrente, quando estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade ou, na sua falta, a que permite mais estável ou mais eficaz tutela dos direitos ou interesses lesados, ou seja, deve começar por apreciar os vícios cuja procedência permite a maior protecção ao recorrente.
   
   A ordem do julgamento prevista no art.° 660.°, n.° 2 do CPC de 1961 ou art.° 563.°, n.° 2 do CPC de 1999 deve ser interpretada e aplicada no contencioso administrativo segundo as mencionadas disposições especiais.
   É certo que no processo civil, o juiz não deve resolver as questões cuja decisão já esteja prejudicada pela solução dada a outras. Por exemplo, é o caso dos pedidos subsidiários quando os pedidos primários são julgados procedentes e dos pedidos acessórios perante a improcedência dos pedidos principais.
   Esta regra só pode ser aplicada ao contencioso administrativo sem prejuízo da norma especial do contencioso administrativo sobre a ordem de conhecimento dos vícios fundamento da anulação do acto. Por causa deste regime especial da ordem de conhecimento no contencioso administrativo, o critério para avaliar se a apreciação duma determinada questão está prejudicada pela decisão dada a outra não é a simples procedência da causa, mas sim a mais eficaz ou estável tutela dos direitos ou interesses lesados que uma sentença de provimento possa alcançar.
   Pelo que não é legítimo, para o tribunal, deixar de pronunciar alguns vícios determinantes da anulação do acto simplesmente com o argumento de ser prejudicado o seu conhecimento por ser procedente o recurso contencioso com base logo na verificação de um outro vício.
   
   Os referidos preceitos do contencioso administrativo sobre a ordem de conhecimento dos vícios visam não apenas evitar que os tribunais tendam começar por conhecer os vícios formais, mas também permite ao recorrente alcançar, entre as possíveis soluções favoráveis, a melhor do ponto de vista da protecção dos direitos e interesses lesados, segundo o critério estabelecido pelo próprio recorrente ou, na falta da sua fixação, a prudente convicção do tribunal.
   Assim, se não for observada a ordem de conhecimento dos vícios prevista no art.° 57.° da LPTA ou art.° 74.°, n.°s 2 e 3 do CPAC, a solução a que chega o tribunal pode não ser a melhor para o recorrente. Quando a solução não seja a melhor para proteger os direitos ou interesses lesados, a situação do recorrente equivale a vencido que o legitima a interpor recurso jurisdicional contra uma sentença de provimento.
   Portanto, tem legitimidade para recorrer da sentença final o recorrente que obteve provimento no recurso contencioso invocando a violação do art.° 57.°, n.° 2 da LPTA ou o art.° 74.°, n.° 3 do CPAC por parte do tribunal que consiste na falta de observância da ordem de subsidiariedade indicada por recorrente na apreciação dos vícios determinantes da anulação do acto impugnado ou não apreciou ou julgou improcedentes algum ou alguns daqueles vícios que permitiriam uma mais estável ou mais eficaz tutela dos direitos ou interesses lesados.
   
   Semelhante solução já é adoptada expressamente no art.° 151.°, n.° 2 do actual CPAC: “Em processo de recurso contencioso, tem ainda legitimidade para impugnar a decisão final de provimento o recorrente que tenha ficado vencido relativamente a fundamento cuja procedência pudesse assegurar tutela mais eficaz dos direitos ou interesses lesados pelo acto recorrido.”
   
   O recorrente invoca que foram alegados vários vícios de fundo, nomeadamente os de violação de lei e não têm sido apreciados pelo tribunal recorrido com fundamento em que a verificação da falta de audiência do arguido, ora recorrente, prejudicava o seu conhecimento, a procedência de tais vícios de fundo poderia assegurar tutela mais eficaz dos seus direitos e interesses, concluindo pela violação do art.° 57.° da LPTA no acórdão recorrido.
   Segundo o significado dado a “vencido” referido no art.° 104.°, n.° 1 da LPTA, o recorrente tem legitimidade para interpor o presente recurso jurisdicional.
   
   
   2.3 Ordem de conhecimento dos vícios determinantes da anulação do acto
   O recorrente conformou-se com a decisão do tribunal recorrido de que não se pronunciou sobre os vícios invocados relativos à violação da Constituição da República Portuguesa. Mas insurge contra o acórdão recorrido por ter sido violado o disposto no art.° 57.°, n.° 2 da LPTA, entendendo que o tribunal recorrido não devia optar por não conhecer dos vícios de fundo em consequência da verificação do vício de forma da falta de audiência do arguido.
   
   Para avaliar se o tribunal recorrido observou bem o disposto no art.° 57.° da LPTA, é de elencar primeiro todos os vícios invocados pelo recorrente nas alegações para o recurso contencioso (fls. 404 a 473).
   O recorrente apresentou separadamente quatro grupos de vícios do acto, sem indicar expressamente uma relação de subsidiariedade entre os grupos.
   São seguintes os vícios integrados no primeiro grupo, todos alegados em termos de subsidiariedade, com excepção entre os 1° e 2°:
1. Vício de violação de lei por erro de direito na aplicação do art.° 315.°, n.°s 1 e 2, al. b) do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (ETAPM), ao considerar desobediência a conduta do arguido segundo um comando normativo relativamente ao qual se lhe não pode exigir observância por não poder perceber o seu sentido dispositivo (conclusão al. 1ª, primeira parte, alegações n.° 7);
2. (Em paralelo com o primeiro vício), vício de violação de lei por ofensa do princípio constitucional da legalidade administrativa na vertente da determinabilidade das normas jurídicas (conclusão al. 1ª, segunda parte, alegações n.° 7);
3. Vício de violação de lei (regulamento administrativo) por erro na aplicação do Despacho n.° 10/88 numa parte em que aquele se acharia derrogado pelo Regulamento do Serviço de Piquete da Directoria da Polícia Judiciária de Macau (conclusão al. 2ª, alegações n.° 9);
4. Vício de violação de lei por erro de direito na aplicação do art.° 315.°, n.°s 1 e 2, al. b) do ETAPM por qualificar erradamente a violação do dever de assiduidade como infracção ao dever de obediência (conclusão al. 3ª, alegações n.° 10);
5. Vício de violação de lei por aplicação de um regulamento inconstitucional (conclusão al. 4ª) por violação do princípio da reserva de lei (alegações n.° 16), violação do princípio de proporcionalidade (alegações n.° 17) e violação do dever de citação da lei de habilitação (alegações n.° 18);
6. Vício de violação de lei por erro de direito na aplicação do art.° 315.°, n.°s 1 e 2, al. b) do ETAPM por faltar o dever de obediência em consequência da violação dos direitos consagrados no art.° 44.°, n.° 2 da Constituição da República Portuguesa (conclusão al. 5ª, alegações n.° 22);
7. Vício de violação de lei por desrespeito do princípio constitucional da igualdade (conclusão al. 6ª, primeira parte, alegações n.° 27);
8. Vício de violação de lei por falta de aplicação do art.° 316.° do ETAPM por falta de atender circunstância atenuante na aplicação da pena disciplinar (conclusão al. 6ª, segunda parte, alegações n.° 27);
   
   Do segundo grupo, também apresentados em termos de subsidiariedade:
9. Vício de violação de lei por inobservância dos princípios in dubio pro reo e da presunção de inocência do arguido (conclusão al. 7ª, alegações n.° 34);
10. Vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto (conclusão al. 8ª, alegações n.° 35);
   
   Do terceiro grupo:
11. Vício de violação de lei por ofensa do princípio da imparcialidade e do art.° 327.° do ETAPM (conclusão al. 9ª, alegações n.° 39);
   
   Do quarto grupo:
12. Vícios de forma por violação das garantias de defesa do arguido em processo disciplinar nos termos do art.° 269.°, n.° 3 da Constituição da República Portuguesa (conclusão al. 10ª, alegações n.° 41);
13. Vício de forma por violação do princípio do contraditório e das garantias de defesa do arguido (conclusão al. 11ª, alegações n.° 42).
   
   Em relação aos vícios referidos nos n.°s 2, 6, 7 e 12, por respeitarem à alegada violação da Constituição da República Portuguesa, o tribunal recorrido decidiu não os apreciar segundo o art.° 70.°, n.° 4 da Lei n.° 9/1999 (Lei de Bases da Organização Judiciária), em vez do seu n.° 2, al. 3) como vem invocado no acórdão recorrido.
   Quanto ao vício constante do n.° 5, o tribunal recorrido não tomou posição.
   
   Para os restantes vícios, o tribunal recorrido entende que “..., é de conhecer primeiro, segundo o nosso prudente critério, daqueles cuja procedência determine mais estável ou eficaz tutela dos interesses alegadamente ofendidos, ou seja, daqueles vícios cuja procedência impeça a renovação do acto, ficando assim por conhecer, em último lugar, o arguido vício de forma por preterição da audiência do arguido, como tal referido na conclusão 11ª da alegação do recurso, cuja procedência implique necessariamente a renovação do acto recorrido.”
   Assim avançando, foram julgados improcedentes os vícios de n.°s 1, 3 e 11.
   Finalmente, sobre os restantes cinco vícios de n.°s 4, 8, 9, 10 e 13, o tribunal recorrido decidiu apreciar primeiro o vício de forma de n.° 13 com os seguintes fundamentos:
   “É de notar que o 1° destes cinco vícios tem a ver com o enquadramento jurídico dos factos provados, que o 2° respeita à graduação da pena, e que o 3° e 4° são do foro da valoração da prova, pelo que a apreciação ou não destes quatro vícios depende da procedência ou não do vício de forma, pois caso este último proceda, a Administração terá que ponderar novamente a prova com a ‘repetição’ da audição da pessoa do arguido recorrente em falta, e decidir novamente do caso dele, o que prejudica o conhecimento nesta sede recursória daqueles quatro vícios. Já na hipótese contrária, haverá que conhecer desses mesmo quatro vícios.”
   Há aqui uma contradição entre os critérios que entende dever seguir para apreciar os vícios alegados e os fundamentos que levaram o tribunal recorrido a apreciar primeiro o vício de forma.
   Achamos que o tribunal recorrido não seguiu a melhor ordem para conhecer dos vícios de n.°s 4, 8, 9, 10 e 13.
   
   Entre tais vícios é de salientar que o de n.° 13 consiste na violação do art.° 298.°, n.° 1 do ETAPM em que prescreve que é insuprível a nulidade resultante da falta de audiência do arguido em artigos de acusação. Esta nulidade é simples nulidade do processo disciplinar, não é a nulidade no sentido em que é tratada nos art.°s 122.° e 123.° do Código do Procedimento Administrativo. Sendo embora insuprível, apenas afecta o acto final de vício de forma, geradora de mera anulabilidade e não de nulidade.
   Assim, todos aqueles vícios são susceptíveis de determinar a anulabilidade do acto impugnado. Para conhecer dos vícios de tipo deste, deve seguir a ordem de conhecimento fixada no art.° 57.° da LPTA:
   “1. Se nada obstar ao julgamento do objecto do recurso, o tribunal conhece, prioritariamente, dos vícios que conduzam à declaração de invalidade do acto recorrido e, depois, dos vícios arguidos que conduzam à anulação deste.
   2. Nos referidos grupos, a apreciação dos vícios é feita pela ordem seguinte:
   a) No primeiro grupo, o dos vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos;
   b) No segundo grupo, a indicada pelo recorrente, quando estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade e não sejam arguidos outros vícios pelo Ministério Público, ou, nos demais casos, a fixada na alínea anterior.”
   Segundo o disposto neste artigo, para apreciar os vícios determinantes da anulação do acto, deve seguir a ordem de subsidiariedade estabelecida por recorrente ou, se não for fixada, conhece primeiro dos vícios cuja procedência permite a mais estável ou eficaz tutela dos direitos ou interesses lesados.
   
   Os vícios que faltam conhecer integram respectivamente no primeiro, segundo e quarto grupo dos vícios invocados pelo recorrente. Os vícios de n.° 4 e 8 integram no primeiro grupo numa relação de subsidiariedade. O mesmo acontece com os dois vícios de n.° 9 e 10 do segundo grupo. Mas o recorrente não estabeleceu a mesma relação entre os diferentes grupos de vícios. Assim, para determinar qual a ordem que o tribunal devia seguir para conhecer de tais vícios, deve primeiro procurar saber qual deles poderá dar a melhor protecção ao recorrente.
   O vício de forma constante do n.° 13 consiste na falta de audiência do arguido, ora recorrente, após a realização das diligências complementares de prova. É certo que, como entende no acórdão recorrido, a proceder este vício, a Administração terá que ponderar os elementos a ser veiculados na audição complementar do arguido e decidir de novo. Mas também não é menos certo que nada impede que a entidade recorrida renove o acto, decidir com o mesmo sentido que o acto agora impugnado, o que implica que a procedência deste vício de forma não faculta a mais estável ou mais eficaz tutela dos interesses do recorrente, em comparação com os restantes vícios substantivos de violação de lei, impeditivos da renovação do acto.
   
   A procedência dos restantes vícios dará melhor protecção aos interesses do recorrente do que a do vício de forma de n.° 13.
   Assim, em relação ao vício n.° 4, o recorrente sustenta que há violação de lei por erro de direito na aplicação do art.° 315.°, n.°s 1 e 2, al. b) do ETAPM porque a conduta do recorrente não integra a violação do dever de obediência, mas no máximo a ofensa ao dever de assiduidade. A proceder este fundamento, a entidade recorrida terá de proceder à nova qualificação da conduta do recorrente conduzindo necessariamente a um novo acto com conteúdo diferente.
   O mesmo acontecerá relativamente aos vícios de n.°s 9 e 10, porque estes respeitam à violação de lei por inobservância dos princípios in dubio pro reo e da presunção de inocência do arguido e por erro nos pressupostos de facto. Ambos estão ligados ao próprio fundamento fáctico da punição disciplinar do recorrente que, no caso de procedência, impedirá a renovação do acto pela Administração.
   Finalmente, a verificação do vício de n.° 8 poderá levar a redução da pena disciplinar aplicada ao recorrente por respeitar à violação de lei por não ter sido consideradas as circunstâncias atenuantes na fixação da pena nos termos do art.° 316.° do ETAPM.
   
   Contudo, a precedência de conhecimento dos vícios substanciais em relação aos vícios de forma não é absoluta, devendo ter sempre em conta a situação concreta de cada caso. Por exemplo, no caso do exercício do poder discricionário, deve conhecer primeiro do vício de forma por falta de fundamentação porque não se permite alcançar o raciocínio do autor do acto inquinado por este vício, elemento essencial para avaliar a legalidade da decisão tomada pela Administração.
   
   No presente caso concreto, o vício de forma verificado no acórdão recorrido consiste na preterição da defesa do recorrente em relação às diligências complementares de prova, isso significa que, em princípio, todos os elementos que fundamentam a acusação e a decisão final da Administração já constam dos autos, uma vez que a audiência do arguido para apresentar a defesa não fornece, em princípio, informação em desfavor a ele. Assim, em nome de dar melhor tutela ao recorrente, deve conhecer também os vícios substanciais do acto impugnado.
   Concluindo, a procedência do vício de forma referido no n.° 13 não permite a mais estável ou mais eficaz tutela dos direitos ou interesses lesados do recorrente em comparação com, pelo menos, os vícios de n.°s 4, 9 e 10 que faltam por conhecer, pelo que o tribunal recorrido não devia começar por conhecer aquele vício de forma e conceder provimento ao recurso contencioso com base somente na verificação deste vício, sem continuar a apreciar os outros vícios invocados por considerar prejudicado o seu conhecimento, violando, deste modo, o disposto no art.° 57.°, n.° 2, al. b) da LPTA, com referência ao n.° 1 do mesmo artigo.
   Em consequência, deve ser julgado procedente o presente recurso jurisdicional, revogando o acórdão recorrido na parte que considera prejudicado o conhecimento dos quatro vícios de n.° 4, 8, 9 e 10, baixando o processo ao tribunal recorrido no sentido de os conhecer nos termos do disposto na norma que acabamos de citar, se para tal nada impede.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em julgar procedente o recurso, revogar o acórdão recorrido na parte que considera prejudicado o conhecimento dos quatro vícios, e determinar a baixa do processo ao tribunal recorrido no sentido de os conhecer nos termos do art.° 57.°, n.° 2, al. b) da LPTA, se para tal nada impede.
   Não são tributadas as custas por a entidade recorrida estar legalmente isenta.
   
   
   Aos 2 de Julho de 2003.


           Juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai
Magistrada do Ministério Público
presente na conferência: Song Man Lei

1 Cfr. João de Castro Mendes, Direito Processual Civil, vol. III, revisto e actualizado, Edição AAFDL, 1989, p. 14 e 15.
2 Cfr. Diogo Freitas do Amaral, A Execução das Sentenças dos Tribunais Administrativos, 2ª ed., Almedina, 1997, p. 54.
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Processo n.° 20 / 2002 32