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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso civil
N.° 3 / 2003

Recorrente: A
Recorrida: B







1. Relatório
   A, ora recorrente, instaurou uma acção de processo comum de declaração na forma ordinária sob o n.° CAO-009-00-5 do Tribunal Judicial de Base contra B, ora recorrida, pedindo que esta seja condenada a pagar ao autor a quantia de MOP$128.349,00 acrescida de juros vincendos.
   A acção foi julgada parcialmente procedente e a ré foi condenada a pagar ao autor a quantia de MOP$103.829,00 e o mais que se venha a fixar até ao montante de MOP$400,00 relativamente às despesas de reboque a liquidar em execução de sentença, quantias a que acrescem os juros vincendos até efectivo pagamento.
   Inconformada, a ré recorreu desta sentença para o Tribunal de Segunda Instância, pedindo a revogação da sentença com a absolvição da mesma ré do pedido em relação aos honorários de advogado de valor de MOP$15.000,00. Por acórdão de 23 de Maio de 2002 proferido no processo n.° 77/2002, o Tribunal de Segunda Instância julgou procedente o recurso e absolveu a ré do pedido na parte referente aos honorários de advogado de valor de MOP$15.000,00, mantendo, no mais, a sentença da primeira instância.
   Deste acórdão vem o autor recorrer para este Tribunal de Última Instância com fundamento na violação das regras da competência ou na ofensa de caso julgado ao abrigo do art.° 583.°, n.° 2, al. a) do Código de Processo Civil (CPC).
   O recurso não foi admitido pelo relator do processo no Tribunal de Segunda Instância mas admitido finalmente por despacho do Presidente do Tribunal de Última Instância de 26 de Novembro de 2002 proferido nos autos de reclamação de n.° 1/2002/R.
   
   O recorrente do presente recurso, autor da acção, apresentou as seguintes conclusões da alegação:
   “1. B, ora recorrida, restringiu o seu recurso interposto da sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Base à matéria relativa ao pedido de condenação da mesma no pagamento dos honorários dos advogados.
   2. Os honorários em causa correspondiam à quantia de MOP$15.000,00.
   3. De acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 583.º do Código de Processo Civil de Macau, o recurso ordinário só é admissível nas causas de valor superior à alçada do tribunal de que se recorre, desde que a decisão impugnada seja desfavorável à pretensão do recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal.
   4. A decisão impugnada não é desfavorável à pretensão do recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal.
   5. O valor do decaimento a considerar para efeito de recurso quando este é objectivamente delimitado pelo recorrente terá que ser, necessariamente, o valor da decisão concretamente impugnada.
   6. Não seria razoável que a decisão concretamente impugnada, que não é desfavorável em quantidade superior ao valor legal da sucumbência, se tornasse recorrível apenas porque a parte restante da decisão que não é objecto de um pedido de revisão satisfaz o requisito do valor da sucumbência.
   7. O recurso interposto da sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Base pela B não era, desde logo, admissível.
   8. Cabe, desse acórdão, recurso para a instância superior, fundado na incompetência absoluta do tribunal recorrido ou na ofensa de caso julgado.”
   Pedindo o provimento do recurso e a revogação do acórdão recorrido.
   
   A recorrida, ré da acção, formulou as seguintes conclusões na sua resposta:
   “1. A sentença proferida nos presentes autos pelo Meritíssimo Juiz do 5.º Juízo do Tribunal Judicial de Base ainda não transitou em julgado porque objecto de recurso pela ré. (art.º 582.º do CPCM).
   2. A causa tem valor superior à alçada do Tribunal recorrido.
   3. A decisão impugnada foi desfavorável à pretensão da ré no valor de MOP$103.829,00 e no mais que se venha a liquidar até MOP$400,00, ou seja, em valor superior a metade da alçada do Tribunal Judicial de Base recorrido nos termos do art.º 583.º, n.º 1 do CPCM.
   4. O valor do objecto material do recurso é correspondente ao valor da decisão recorrida na sua parte dispositiva.
   5. No caso de dúvida acerca do valor da sucumbência atende-se somente ao valor da causa.
   6. A parte dispositiva da sentença – o objecto do recurso – não contém decisões distintas quanto aos diversos pedidos do autor pelo que o recurso não podia ser limitado objectivamente pela ré (cfr. o art.º 589.º do CPCM).
   7. A limitação objectiva do recurso apenas se admite quando a parte dispositiva da sentença contém decisões distintas e de resto tal não se confunde com o âmbito do recurso.
   8. A decisão recorrida foi especificada pela ré no requerimento de recurso e nas alegações sendo susceptível de recurso ordinário nos termos do art.º 583.º do CPCM.”
   Pedindo a confirmação do acórdão recorrido com a improcedência do recurso.
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 Pelos Tribunal Judicial de Base e Tribunal de Segunda Instância foram dados como provados os seguintes factos:
   “1. O autor é proprietário do veículo automóvel com a matrícula de Macau MH-XX-XX.
   2. A ré é uma companhia de seguros de Macau, cuja actividade consiste, entre outras, na celebração de contratos de seguros de responsabilidade civil no ramo automóvel.
   3. No dia 24/08/1999, por volta de meia noite e meia, o autor, quando circulava no veículo de que é proprietário, sofreu um acidente de viação.
   4. O acidente ocorreu na Taipa entre o veículo do autor e o veículo Hyundai Excel GLS com a matrícula de Macau MF-XX-XX, conduzido, na altura, pelo seu proprietário, C.
   5. O autor circulava, então, na Avenida Nordeste.
   6. A PSP foi chamada ao local do acidente, tendo tomado conta da ocorrência.
   7. Pelo contrato de seguro titulado pela apólice PVT-XX-XXXXXX-X, a ré obrigou-se a cobrir o risco de surgir para C a obrigação de indemnizar terceiro pelos prejuízos resultantes dos acidentes causados pelo seu automóvel.
   8. Por carta datada de 17/01/2000, a ré foi interpelada para pagar ao autor todos os prejuízos causados pelo seu segurado, não se tendo até à data dignado apresentar qualquer resposta.
   9. Antes de atravessar o cruzamento com a Avenida Primeiro de Maio, o autor imobilizou a marcha do seu veículo junto ao semáforo que aí se encontra, assim que se apercebeu que este estava encarnado para o trânsito que circulava naquele sentido.
   10. Assim que o semáforo ficou verde, o autor iniciou a passagem do cruzamento, tendo, imediatamente, sido embatido pelo veículo com a matrícula MF-XX-XX.
   11. O semáforo da Avenida Primeiro de Maio, na altura, estava encarnado, pelo que o veículo de matrícula MF-XX-XX não podia avançar.
   12. O acidente provocou pequenos ferimentos no autor e causou danos avultados no seu automóvel.
   13. Por força dos ferimentos causados, o autor foi submetido a alguns tratamentos que o obrigaram a despender a quantia de MOP$300,00.
   14. O autor viu-se, igualmente, obrigado a recorrer a um serviço de reboque de forma a transportar o seu automóvel do local do acidente, onde este ficara imobilizado, para a oficina que representa a marca, tendo, com isso, despendido quantia não apurada.
   15. Até à data da acção, o automóvel do autor ainda não foi reparado, razão pela qual é este forçado a deslocar-se taxi, o que lhe acarreta uma despesa média acrescida de, pelo menos, vinte patacas por dia, o que desde então até à data da acção perfaz um total de MOP$5.400,00.
   16. A fim de intentar a presente acção, o autor obrigou-se a realizar despesas com o pagamento de honorários de advogados no valor de MOP$15.000,00.
   17. Finalmente, o custo total da reparação do automóvel cifra-se no montante total de MOP$83.129,00.”
   
   
   2.2 Âmbito do recurso interposto pela ré perante o Tribunal de Segunda Instância
   Segundo a sentença da primeira instância, a ré foi condenada a indemnizar o autor pelos danos sofridos e relacionados com um acidente de viação no valor de MOP$103.829,00, em que inclui as despesas dispendidas pelo autor com a reparação do seu automóvel, o tratamento recebido e as deslocações em táxi, mais os honorários com advogados no valor de MOP$15.000,00, além das despesas com o reboque até MOP$400,00 a liquidar em execução de sentença, quantias a que acrescem os juros vincendos até efectivo pagamento.
   Notificada da sentença, a ré não se conformou com esta e interpôs recurso ordinário da mesma através do requerimento a fls. 109. O recurso foi admitido pelo despacho do juiz do processo na primeira instância.
   Embora no requerimento para a interposição do recurso a ré referiu simplesmente que não estava de acordo com a sentença, na alegação do recurso e nas suas conclusões ela limitava a fundamentar o recurso com a errada interpretação do art.° 557.° do Código Civil por parte do tribunal recorrido relacionada com os honorários suportados pelo autor. Em parte alguma desta peça se verifica qualquer desacordo da ré sobre as restantes quantias a que foi condenada a pagar pela sentença de primeira instância, a saber: os danos patrimoniais emergentes da reparação do automóvel, dos tratamentos médicos, das deslocações em táxi e do reboque.
   E na parte final da alegação a ré pede que seja revogada a sentença e ela mesma absolvida “do pedido em relação aos honorários de advogado, por falta de fundamento legal da pretensão”.
   Daí resulta evidente que a ré apresentou os fundamentos e pedido do recurso que visa a parte da sentença recorrida respeitante à condenação no pagamento dos honorários de advogado do autor.
   
   Dispõe o art.° 589.° do CPC:
   “1. Sendo vários os vencedores, todos eles devem ser notificados do despacho que admita o recurso; mas o recorrente pode, salvo no caso de litisconsórcio necessário, excluir do recurso, no requerimento de interposição, algum ou alguns dos vencedores.
   2. Se a parte dispositiva da sentença contiver decisões distintas, pode o recorrente restringir o recurso a qualquer delas, especificando no requerimento a decisão de que recorre; na falta de especificação, o recurso abrange tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente.
   3. Nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso.
   4. Os efeitos do julgado, na parte não recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso nem pela anulação do processo.”
   
   Nos termos do referido n.° 2, o recorrente pode delimitar objectivamente o recurso a somente algumas decisões da sentença recorrida já no requerimento do recurso. A restrição do objecto inicial do recurso pode ser feita, de forma expressa ou tácita, ainda nas conclusões da alegação, de acordo com o disposto no n.° 3 do mesmo artigo.
   Quer na alegação, quer nas conclusões, a ré-recorrente limitava-se a referir a condenação no pagamento de honorários pagos pelo autor, por isso, o recurso interposto pela ré está objectivamente delimitado a esta parte da sentença de primeira instância recorrida segundo o citado n.° 3 do art.° 589.° do CPC.
   
   
   2.3 Admissibilidade do recurso interposto pela ré perante o Tribunal de Segunda Instância
   Sobre a admissibilidade de recurso ordinário, prescreve o art.° 583.° do CPC, na redacção dada pelo art.° 80.° da Lei n.° 9/1999:
   “1. Salvo disposição em contrário, o recurso ordinário só é admissível nas causas de valor superior à alçada do tribunal de que se recorre, desde que a decisão impugnada seja desfavorável à pretensão do recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal; em caso, porém, de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, atende-se somente ao valor da causa.
   2. O recurso é sempre admissível, independentemente do valor:
   a) Se tiver por fundamento a violação das regras de competência, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 34.º, ou a ofensa de caso julgado;
   b) Se a decisão respeitar ao valor da causa, de incidente ou de procedimento cautelar, com o fundamento de que o seu valor excede a alçada do tribunal de que se recorre;
   c) Se a decisão tiver sido proferida contra jurisprudência obrigatória;
   d) Se se tratar de acórdão do Tribunal de Última Instância que esteja em contradição com outro proferido por este tribunal no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se aquele acórdão for conforme com jurisprudência obrigatória;
   e) Se se tratar de acórdão do Tribunal de Segunda Instância que, não admitindo recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, esteja em contradição com outro por ele proferido no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se aquele acórdão for conforme com jurisprudência obrigatória.
   3. Nos casos previstos nas alíneas c) e d) do número anterior, o recurso é obrigatório para o Ministério Público.”
   
   Ora, salvo os casos previstos no n.° 2 em que o recurso ordinário é sempre admissível, independentemente do valor da causa, são duas condições de cuja verificação cumulativa depende a admissão do recurso segundo o n.° 1:
- ter a causa valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e;
- a decisão impugnada seja desfavorável à pretensão do recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal.
   
   A actual alçada dos Tribunais de Primeira Instância em matéria cível é de MOP$50.000,00 (art.° 18.°, n.° 1 da Lei n.° 9/1999).
   No presente caso, o valor de causa é fixado em MOP$128.349,00, então é superior à alçada dos Tribunais de Primeira Instância em matéria cível. A primeira condição está preenchida.
   Em primeira linha, as alçadas determinam o limite da admissibilidade do recurso das decisões judiciais, mas este limite está relacionado ainda com a sucumbência real, e não apenas com o valor formal do processo.
   A norma do referido n.° 1 do art.° 583.° do CPC exige que a decisão impugnada seja desfavorável à pretensão do recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal que proferiu a decisão impugnada.
   Aqui, a decisão impugnada deve ser entendida como a parte da mesma relacionada com a questão concretamente posta pelo recorrente, que pode não ser de toda a sentença ou decisão formal em que se integra a questão suscitada.
   A intenção do legislador é não deixar recorrer para instâncias superiores das questões de reduzido valor económico, isto é, mesmo numa causa em que se discute elevado valor económico, superior à alçada do tribunal que proferiu a decisão recorrida, não se pode recorrer desta se o desacordo consiste apenas numa questão que envolve um valor reduzidíssimo.
   
   No presente caso, o valor de sucumbência deve ser superior a MOP$25.000,00 para poder recorrer da sentença da primeira instância ao abrigo do art.° 583.°, n .° 1 do CPC. Quanto ao recurso interposto pela ré, esta limitou-se a impugnar a sentença de primeira instância na parte em que a condenou no pagamento dos honorários de MOP$15.000,00 pagos pelo autor ao seu advogado. Assim, a sucumbência da ré na questão concreta suscitada no recurso é inferior a metade da alçada dos Tribunais de Primeira Instância, logo, o recurso da ré para o Tribunal de Segunda Instância não é admissível nos termos do referido preceito.
   
   
   
   2.4 Consequência do conhecimento do recurso inadmissível pelo Tribunal de Segunda Instância
   Do exposto resulta que o recurso interposto pela ré por meio do requerimento a fls. 109 não devia ter seguimento por na respectiva alegação a recorrente delimitou o âmbito do recurso de modo que o valor da sucumbência na questão suscitada não ultrapassa a metade da alçada do tribunal recorrido em matéria cível.
   No exame preliminar, o relator não deu conta de que o recurso assim interposto não era admissível e mandou os autos a vistos. Deste modo, o recurso foi finalmente julgado pelo Tribunal de Segunda Instância.
   
   Segundo o art.° 582.° do CPC, a decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja susceptível de recurso ordinário ou de reclamação fundada em nulidade, esclarecimento ou reforma da sentença.
   A sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Base é, em princípio, susceptível de recurso por ter o valor superior à alçada deste tribunal em matéria cível. Só que, o recurso interposto pela ré não é admissível por a questão suscitada ter o valor de sucumbência inferior a metade desta alçada.
   Passado o prazo para recorrer sem que haja recurso interposto mas legalmente admissível, nem reclamações, a decisão transita em julgado.
   Isto é, a admissão e conhecimento efectivo do recurso inadmissível não têm virtualidade para obstar a formação do caso julgado da decisão recorrida. E o acórdão da instância superior que julga o recurso cuja interposição não é permitida incorreria na violação do caso julgado da decisão recorrida entretanto já formado.
   Tal como entende o professor Alberto dos Reis: “Na verdade, se bem considerarmos, o acórdão da Relação importa, em última análise, ofensa de caso julgado. Uma vez que a decisão do juiz de direito era irrecorrível, o caso julgado devia formar-se e formou-se sobre essa decisão; a Relação, se porventura revogou ou alterou o julgamento do tribunal de comarca, ofendeu um caso julgado.”1
   
   Na apreciação do tal recurso interposto pela ré, o Tribunal de Segunda Instância conheceu efectivamente o fundo do recurso e acabou por dar razão à recorrente, absolvendo esta do pedido na parte referente aos honorários de advogado de valor MOP$15.000,00 e mantendo, no mais, a sentença recorrida. Foi, deste modo, alterada a sentença de primeira instância e ficou, consequentemente, violado o caso julgado formado da sentença recorrida.
   A ofensa do caso julgado constitui fundamento do recurso independentemente do valor e causa da revogação do acórdão recorrido, pelo que o acórdão de segunda instância ora recorrido deve ser revogado, mantendo a sentença de primeira instância na sua íntegra.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em julgar procedente o recurso, revogar o acórdão do Tribunal de Segunda Instância, mantendo a sentença do Tribunal Judicial de Base na sua íntegra.
   Custas neste Tribunal de Última Instância e no Tribunal de Segunda Instância pela ré.



           Juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai


   Aos 23 de Julho de 2003.
1 Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. V, Coimbra Editora, 1984, p. 222.
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Processo n.° 3 / 2003 14