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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau




Recurso de decisão jurisdicional em matéria administrativa
N.° 10 / 2003

Recorrente: Secretário para a Economia e Finanças
Recorrido: A





1. Relatório
   A interpôs recurso contencioso perante o Tribunal de Segunda Instância, impugnando o acto praticado em 22 de Novembro de 1999 pelo então Secretário-Adjunto para os Assuntos Sociais e Orçamento.
   Por acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 6 de Março de 2003 proferido no processo de recurso contencioso n.° 33/2000, foi dado provimento ao recurso e anulado o acto recorrido.
   Inconformado com este acórdão, vem o Secretário para a Economia e Finanças recorrer para este Tribunal de Última Instância com a apresentação das seguintes conclusões de alegação:
“1. Cabe ao Tribunal ad quem a apreciação da fundamentação do presente recurso (artigo 152.º do CPAC), e não ao Tribunal a quo.
2. Uma vez que, fora dos casos expressamente previstos na lei, a lei indica taxativamente os fundamentos passíveis de rejeição do recurso (vide artigo 594.º do CPC). São eles a irrecorribilidade da decisão, caducidade do direito de recorrer, por ter passado o prazo para isso estipulado pela lei e não ter o recorrente as condições necessárias para recorrer, o que se refere especialmente à legitimidade para recorrer.
3. Nunca a DSF pretendeu atribuir valor normativo e inovatório à circular ora em causa.
4. O que se pretendeu foi definir um critério que permitisse evitar a verificação de situações anormais, mormente pondo termo à evasão fiscal verificada no âmbito do Imposto sobre Veículos Motorizados, que penalizam, de sobremaneira, os agentes económicos congéneres que actuam na mais estrita observância das suas obrigações fiscais.
5. De facto, os limites estabelecidos apenas se referem aos valores declarados relativamente aos aparelhos de som sem suporte documental susceptível de garantir à administração fiscal a veracidade dos mesmos, já que se refere expressamente que podem ser mais elevados caso seja apresentada documentação idónea da incorporação dos referidos aparelhos, nomeadamente através da apresentação de facturação e recibos de aquisição do referido material por parte do vendedor do veículo automóvel, resumindo-se a questão ao direito que a administração fiscal possui de não aceitação de valores que carecem de suporte documental susceptível de prova da sua veracidade.
6. Ora, o que é um facto é que, ainda sem a existência da Circular não nos restam dúvidas que a Administração Fiscal não poderia nunca deixar de ter em conta a existência de prova dos valores declarados em obediência aos princípios de direito já referidos; e que não foram nunca facultados pela A.
   7. Ora, face ao exposto, verifica-se que o douto acórdão procede a uma errada interpretação dos dispositivos legais em causa, por demasiado restritiva e susceptível de configurar o vício de violação de lei.”
   Pedindo que seja revogado o acórdão recorrido, mantendo o despacho impugnado.
   
   Notificada, a recorrida não apresentou alegação.
   
   A Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de Última Instância emitiu o seguinte parecer:
“Não conformando com o douto acórdão do Tribunal de Segunda Instância, o Senhor Secretário para a Economia e Finanças veio interpor recurso para o Tribunal de Última Instância, imputando ao mesmo o vício de violação de lei uma vez que ‘procede a uma errada interpretação dos dispositivos legais em causa, por demasiado restritiva’.
As normas que estão em discussão são as contidas nos art.°s 8.º, n.° 5 e 9.º, n.° 1 do Regulamento do Imposto sobre Veículos Motorizados (RIVM), que prevêem que ‘o valor tributável que serve de base ao cálculo do IVM a pagar é o preço de venda ao público declarado nos termos do artigo anterior’ (art.° 9.º, n.° 1) e ‘o preço de venda ao público representa o preço a pagar pelos consumidores e inclui, designadamente, os valores referentes a garantias de manutenção, assistência e substituição de peças, bem como a todos os acessórios’, sendo certo que ‘o preço de venda ao público não inclui, porém, os aparelhos receptores e reprodutores de som’ (art.° 8.º n.°s 4 e 5).
É verdade que a lei confere ao chefe da Repartição de Finanças a faculdade de fixar um preço de venda ao público superior ao declarado ‘sempre que disponha de elementos que indiciem que este é manifestamente inferior ao praticado’ (art.° 8.º, n.° 6) e o Chefe da Repartição de Finanças procede à liquidação oficiosa do imposto, com base em elementos ao dispor dos serviços, nos termos e nas situações previstas nas várias alíneas do n.° 1 do art.° 15.º do RIVM, incluindo o caso de ‘falta total ou parcial de liquidação do imposto por parte do sujeito passivo, omissões ou erros de que haja resultado prejuízo para o Território’ (al. a) do n.° 1 do referido art.° 15.º).
No entanto, temos de ver se, com base neste poder de liquidação oficiosa, a administração fiscal pode ou não proceder à liquidação oficiosa do imposto sobre a parte da preço declarado dos aparelhos receptores e reprodutores de som que seja superior a 10% do preço de venda ao público do veículo ou superior a 25.000,00 patacas, emanando a circular n.° 001/DIR/98 que determinou que ‘...os preços unitários dos aparelhos receptores e reprodutores de som declarados que forem superiores a 10% do preço de venda ao público (PVP) do veículo, ou superior a 25.000,00 patacas não sejam aceites pela administração fiscal, passando o diferencial a integrar o valor tributável do mesmo’.
No entendimento da recorrente, não se trata de ‘um alargamento da incidência do imposto mas sim de uma tentativa de combate à evasão fiscal latente com base na interpretação de uma norma cujo objectivo não era, com certeza esse’.
Ora, sobre a interpretação da lei prevista no art.° 8.º do Código Civil, escrevem Pires de Lima e Antunes Varela no seu Código Civil:
‘O facto de o artigo afirmar que a reconstituição do pensamento legislativo deve fazer-se a partir dos textos, não significa, de modo nenhum, que o intérprete não possa ou não deva socorrer-se de outros elementos para o efeito, nomeadamente do espírito da lei (mens legis).
Resumindo, embora sem grande rigor, o pensamento geral desta disposição, pode-se dizer que o sentido definitivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório do diploma ou dos próprios trabalhos preparatórios da lei.’
E também é certo que, conforme o n.° 2 do referido art.° 8.º do C.C., não pode ser considerado pelo intérprete ‘o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso’.
Daí que, antes de mais, a interpretação da lei tem que ter a sua base na literalidade da norma. E se a literalidade da fórmula legislativa deixa dúvidas sobre o seu real alcance e sentido, então há que ir ao encontro dos elementos lógicos, que incluem: a) o sistemático, que tem em conta a unidade do sistema jurídico; b) o histórico, constituído por precedentes normativos, trabalhos preparatórios e ‘occasio legis’ e c) o teleológico, que é a justificação social da lei, tendo em conta a razão de ser da lei, o fim visado pelo legislador ao elaborar a lei.
Voltando ao nosso caso concreto, concordamos com o entendimento do Magistrado do MP junto do TSI no seu parecer apresentado, e também acolhido pelo Tribunal de Segunda Instância, quando afirma que ‘a norma em questão é clara e expressa no sentido de o preço de venda ao público não incluir os aparelhos receptores e reprodutores de som, não fazendo a mínima alusão a valores ou preços respectivos, matéria donde se possa colher matéria interpretativa.
Isto é : em nosso critério, a norma não permite qualquer outra leitura que não seja a claramente dispõe. Nada nela permite inferir interpretação, designadamente como o faz a circular em questão ao precisar em termos quantitativos (10% do preço de venda ao público ou superiores a 25.000,00 patacas) os limites do permitido pela norma’.

Claramente que não queremos pôr em causa a preocupação por parte da administração fiscal de evitar e combater à evasão fiscal, que motivou a elaboração da circular em causa - antes pelo contrário, compreendemos perfeitamente tal preocupação -, o que só pode ter êxito através do meio próprio.
Como se sabe, no âmbito do direito fiscal de Macau, vigora o princípio da legalidade do imposto, que se apresenta como uma reserva absoluta de lei formal, uma vez que, considerando a data da prática do acto recorrido, é o órgão legislativo por excelência - a Assembleia Legislativa - que tem a competência reservada de legislar sobre os elementos essenciais do regime tributário, incluindo a incidência, a taxa de cada imposto e os benefícios fiscais (cfr. art.° 31.º, n.° 1, al. h) do Estatuto Orgânico de Macau, hoje art.° 71.º, n.° 3 da Lei Básica da RAEM), salvo no caso em que o Governador legisla, com a devida autorização da Assembleia Legislativa, sobre a mesma matéria. (cfr. Hermínio Rato Rainha, Apontamentos de Direito Fiscal, pág. 76 e seguintes)
A incidência abrange fundamentalmente os três elementos de natureza qualitativa: matéria colectável, contribuinte e facto gerador do imposto.
Uma vez que o RIVM dispõe claramente que o valor tributável para efeito de cálculo do IVM é o preço de venda ao público declarado, que por sua vez não inclui os aparelhos receptores e reprodutores de som, ficando assim afastado o preço desta parte, é difícil de aceitar a actuação da administração fiscal que, através de uma circular interna, procede à liquidação oficiosa do imposto sobre a parte do preço do aparelho receptor e reprodutor de som que seja superior aos limites fixados pela administração, o que traduz no fundo a cobrança do imposto sobre o valor declarado respeitante aos aparelhos receptores e reprodutores de som, o que equivale a uma nova definição da matéria colectável, alterando materialmente a incidência do Imposto sobre Veículos Motorizados.

Concluindo, deve-se manter o douto acórdão do Tribunal de Segunda Instância, negando provimento ao recurso interposto.”
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 Foram dados como provados os seguintes factos pelo Tribunal de Segunda Instância:
“Por carta subscrita em 25 de Março de 1999 e dirigida ao Chefe da Repartição de Finanças (cfr. fls. 12 a 13 do processo instrutor), A, pediu a este que tratasse de novo e de acordo com a lei, da questão de liquidação oficiosa (feita nos termos do art.º 15.º, n.º 1, al. a) do Regulamento do Imposto sobre Veículos Motorizados (RIVM), aprovado pelo n.º 2 do art.º 1.º da Lei n.º 20/96/M, de 19 de Agosto) do Imposto sobre Veículos Motorizados dos 32 veículos de marca ‘Daihatsu’ por ela vendidos no período de Dezembro de 1997 a Agosto de 1998, a que se referem as correspondentes notificações através de impressos ‘modelo M/6’ numeradas de 19990129 a 19990148 (cfr. a documentação de fls. 14 a 195 do processo instrutor).
Pedido-reclamação esse que foi decidido nomeadamente com base na Circular n.º 00l/DIR/98, de 18 de Dezembro de 1998, por Despacho de 18 de Agosto de 1999 do mesmo Chefe da Repartição de Finanças, proferido sobre a Informação n.º R88/NVT-IVM/99, de 17 de Agosto de 1999, no sentido de A, ter que pagar ainda o montante do imposto em falta com juros devidos no valor de MOP$42.458,00 (cfr. fls. 2 a 11 do processo instrutor).
Desse Despacho de 18 de Agosto de 1999, interpôs A, recurso hierárquico para o então Senhor Governador de Macau por carta subscrita em 14 de Setembro de 1999, pedindo a reconsideração do assunto e resolução do problema dentro das leis vigentes (cfr. fls. 19 a 21 dos autos).
Recurso hierárquico esse que acabou por ser indeferido por Despacho de 22 de Novembro de 1999 do então Senhor Secretário-Adjunto para os Assuntos Sociais e Orçamento, exarado mormente na Informação n.º 112/NAJ/MP/99, de 19 de Novembro de 1999, pelos seguintes termos:
«1. Concordo. Indefiro o presente recurso hierárquico, nos termos e pelos fundamentos da presente informação.
2. A DSF notificará a empresa recorrente.» (cfr. fls. 12 dos autos).
Sendo certo que antes da decisão final pelo então Secretário-Adjunto, a referida Informação n.º 112/NAJ/MP/99 foi objecto de parecer emitido em 19 de Novembro de 1999 pelo Coordenador do NAJ da Direcção dos Serviços de Finanças, e dirigido ao Director desses Serviços de seguinte teor:
«Exmo. Senhor Director dos Serviços:
Concordo na íntegra com o teor do presente parecer, uma vez que a Circular n.º 001/DIR/98, de 18.12, tem carácter meramente interpretativo da norma do RIVM em apreço (forma de taxação ou não de aparelhos receptores e reprodutores de som). Esta posição é, aliás, pacificamente acolhida por todas as empresas ‘operando legalmente’ em Macau e tem o acordo da Associação representativa do sector, da qual a recorrente é associada.
Ponderados estes factos e o direito julgo de indeferir o presente recurso hierárquico, proposto que, a merecer concordância de V. Ex.ª, deverá ser levada à superior consideração do Senhor SAASO.
À consideração superior.» (cfr. fls. 12 a 13 dos autos, e sic).
Parecer esse que, por sua vez, mereceu a concordância do Director dos Serviços de Finanças por meio do seu Despacho emitido na mesma data, de seguinte teor:
«Exmo. Sr. S.A.A.S.O.
Submeto à devida apreciação de V. Ex.ª o presente parecer, julgando ser de indeferir a pretensão do requerente pelos fundamentos de facto e de direito aqui referidos.» (cfr. fls. 13 dos autos, e sic).
E da acima aludida Informação n.º 112/NAJ/MP/99, de 19 de Novembro de 1999, consta o seguinte:
«O presente recurso da sociedade acima identificada, incide sobre a notificação do pagamento de diferencial de Imposto sobre Veículos Motorizados, na sequência da Circular n.° 001/DIR/98, emitida pelo Exmo. Sr. Director dos Serviços de Finanças.
Refere ainda que desde 1997, altura em que a DSF passou a encarregar-se da cobrança, que a recorrente sempre cumpriu com o estipulado no número 1 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.° 20/96/M, declarando devidamente os preços de venda ao público. Valor esse que nos termos do número 5 não inclui os aparelhos receptores e reprodutores de som.
Não tendo a recorrente anteriormente recebido qualquer notificação da DSF contestando os PVP declarados por ela.
Cumprindo com os seus deveres fiscais, apresentando atempadamente as respectivas declarações e procedendo à liquidação dos respectivos impostos, os quais foram sempre recebidos e aceites pela DSF.
Mais refere que, após a recepção da supra mencionada Circular n.° 001/DIR/98, de 18 de Dezembro de 1998, de imediato passou a cumprir com o determinado pelo Exmo. Sr. Director dos Serviços de Finanças, passando, nas respectivas Declarações M/3, a constarem valores de aparelhos receptores e reprodutores de som 10% inferiores aos PVP.
Não compreendendo por isso, como pode agora a DSF vir a exigir o diferencial de preços dos aparelhos receptores e reprodutores de som, constantes das declarações entregues no decurso dos meses respeitantes aos anos de 1997 e 1998, antes da emissão da acima mencionada circular, a qual relembre-se apenas foi dada à estampa em finais de 1998.
Alega igualmente que se a Lei n.º 20/96/M, de 19 de Agosto apenas foi alterada pela Lei n.° 7/98/M, de 24 de Agosto e se a Circular n.º 001/DIR/98, de 18 de Dezembro de 1998, apenas foi levada ao conhecimento da recorrente em Janeiro de 1999, como pode a administração exigir a sua aplicação retroactiva?!
Invoca também em sua defesa que nos seus registos contabilísticos se encontra devidamente registado o diferencial da isenção referente aos aparelhos receptores e reprodutores de som, o qual constitui uma receita, que consta da respectiva declaração anual de Imposto Complementar, sendo por isso já tributado pela administração fiscal nessa sede.
Interrogando-se a recorrente se a administração fiscal tem o direito de taxar um imposto quando lhe convém, sem base legal subjacente?
Termina o seu recurso fazendo uma exposição da sua actividade, do volume de vendas declarado ao longo de 30 anos de exercício, nunca tendo faltado nas suas obrigações fiscais decorrentes da transacção de mais de 10 mil veículos, cumprindo sempre com os prazos e legislação vigentes. A par da referência a importadores paralelos que põem em causa a sua condição de agente exclusivo da marca DAIHATSU e da situação económica difícil do Território que a todos afecta, sendo-lhe por isso difícil fazer face a pagamentos inesperados de impostos, que a recorrente julgava já ter liquidado em devido tempo.
Expostas as razões invocadas pela sociedade supra, ora recorrente, importa aferir agora da sua pretensão em face dos normativos legais em causa. Assim:
O regime jurídico do Imposto sobre Veículos Motorizados foi regulado inicialmente pela Lei n.° 20/96/M, de 19 de Agosto, a que sucederam um Despacho n.° 103/GM/96, de 30 de Dezembro, que aprovava o modelo de dístico especial de isenção, a que se refere o RIVM, a par de duas rectificações em 11 de Fevereiro de 1997 e de 11 de Novembro de 1997, sobre uma inexactidão constante da versão portuguesa na alínea i) do número 2 do artigo 4.° e na alínea c) do artigo 15.° e alínea b) do artigo 31.°, respectivamente.
Diploma esse que foi alterado em 24 de Agosto por intermédio da Lei n.º 7/98/M, motivando por parte do legislador uma republicação integral da referida Lei, com as alterações então introduzidas. Destaca-se de entre essas alterações um preceito, mais concretamente o artigo 6.°, com a epígrafe de Produção de efeitos, no qual se refere expressamente que a redacção dada pela presente lei à alínea i) do número 2 do artigo 4.° do RIVM, produz efeitos desde a entrada em vigor da Lei n.° 20/96/M, de 19 de Agosto.
Ora, a retroactividade deste preceito refere-se apenas às isenções de transmissões de veículos motorizados destinados ao transporte de passageiros para uso exclusivo no exercício da actividade de agências de viagens e turismo ou de empreendimentos declarados de utilidade pública, desde que o respectivo movimento, o justifique.
Decorridos 4 meses sobre a aprovação da Lei n.° 7/98/M, o Exmo. Sr. Director dos Serviços de Finanças exarou uma Circular, mais concretamente em 18 de Dezembro, determinando que os preços unitários dos aparelhos receptores e reprodutores declarados que forem superiores a 10% do PVP do veículo, ou superiores a 25.000,00 patacas, não sejam aceites pela administração fiscal, passando o diferencial a integrar o valor tributável do mesmo. Tal medida foi motivada pela verificação de algumas situações anormais, decorrentes de faltas ou inexactidões nas declarações devidas, em clara infracção ao RIVM, que penalizam os agentes económicos congéneres que actuam na mais estrita observância das suas obrigações fiscais, procurando-se assim pôr cobro a situações de evasão fiscal neste âmbito.
De molde a atingir-se a prossecução destes objectivos a administração fiscal procedeu a uma ampla divulgação da referida Circular junto dos agentes económicos, os quais passaram desde meados de Janeiro de 1999 a proceder em conformidade, na entrega das novas Declarações Modelo M/3 e M/4.
Destaque-se que, apesar de em ponto algum da supracitada Circular se referir a efeitos retroactivos, tal entendimento prevaleceu, decorrente de contactos informais entre a administração fiscal e a Associação dos Vendedores de Veículos Automóveis.
Ora, sendo a sociedade recorrente membro dessa associação, muito se estranha que a mesma não só não perfilhe desse entendimento, assumido pela sua associação, como o venha colocar em causa, através da interposição do presente recurso.
Aceite tal entendimento pela representante da sociedade, ora recorrente, nada obsta que o mesmo seja dotado de feitos retroactivos, uma vez, que, como foi devidamente reconhecido pela associação representativa da recorrente, tais procedimentos beneficiam não só a recorrente, como as demais entidades congéneres.
Pelo que, em face do exposto, propomos a V. Ex.ª que, em caso de concordância superior, a pretensão da sociedade recorrente seja indeferida pelo Exmo. Sr. Secretário-Adjunto para os Assuntos Sociais e Orçamento, no uso das competências subdelegadas por Sua Ex.ª o Governador de Macau conferidas na alínea f) do número 1 da Portaria n.º 101/96/M, de 16 de Abril, com o fundamento de que a aceitação explícita por parte da respectiva associação representativa da requerente, subscrevendo o entendimento de que as novas regras determinadas pela Circular n.° 001/DIR/98, de 18 de Dezembro de 1998, eram de aplicação retroactiva aos casos pendentes, devendo os mesmos, por via da liquidação oficiosa prevista no artigo 15.° do RIVM, serem reapreciados pela administração fiscal, conforme se verificou nos casos em apreço.» (cfr. fls. 13 a 17 dos autos, e sic).”
   
   
   2.2 Questão prévia: admissão condicional do recurso
   O recorrente questionou, em primeiro lugar, a admissão condicional decidida pelo relator do processo no Tribunal de Segunda Instância em relação ao seu requerimento de recurso interposto para o Tribunal de Última Instância a fls. 213, entendendo que é incorrecta a admissão do recurso sob condição uma vez que só cabe ao tribunal ad quem a apreciação dos fundamentos do recurso e não ao tribunal a quo.
   No entanto, tal como reconhece o recorrente que “... as considerações acima feitas apenas se fazem à cautela e sem prescindir uma vez que, efectivamente, não nos deparamos com uma rejeição do recurso ...”
   De facto, o recorrente não recorreu daquele despacho de admissão condicional do recurso e este foi admitido pelo relator do processo do Tribunal de Segunda Instância após a apresentação da alegação.
   A questão de admissão condicional do recurso invocada na alegação e nas conclusões não tem implicação aos fundamentos referidos nestas nem correspondência no pedido formulado no presente recurso, não constituindo, por isso, objecto deste recurso. Assim, não consideramos simplesmente esta questão denominada prévia pelo recorrente.
   
   
   2.3 Regime legal aplicável
   Discute-se na presente causa a legalidade do acto da Administração Fiscal que exige ao recorrido pagar o diferencial do Imposto sobre Veículos Motorizados em Agosto de 1999. O acto recorrido foi praticado pelo recorrente em Novembro de 1999.
   Sobre a matéria de Imposto sobre Veículos Motorizados estava em vigor, na altura, o Regulamento do Imposto sobre Veículos Motorizados aprovado pela Lei n.° 20/96/M. Apesar de esta lei ser revogada pela Lei n.° 5/2002 que aprova o novo Regulamento do Imposto sobre Veículos Motorizados, a nova lei só entrou em vigor em Julho de 2002, pelo que ao presente caso continua a ser aplicável a legislação revogada.
   
   
   2.4 Legalidade das regras fixadas na Circular
   O acto impugnado foi anulado pelo Tribunal de Segunda Instância por vício de violação de lei com base na infracção às disposições conjugadas dos art.°s 9.°, n.° 1 e 8.°, n.° 5 do RIVM.
   O recorrente, entidade recorrida no recurso contencioso, fundamenta o seu recurso na errada interpretação, por parte do tribunal recorrido, dos art.°s 8.°, n.° 5 e 9.°, n.° 1 do Regulamento do Imposto sobre Veículos Motorizados (RIVM) aprovado pela Lei n.° 20/96/M de 19 de Agosto por ser demasiado restritiva e susceptível de configurar o vício de violação de lei, repugnando o entendimento do Tribunal de Segunda Instância de que, com a Circular n.° 001/DIR/98, a Administração Fiscal não estava simplesmente a interpretar as normas em causa, mas a fazer alterar materialmente a incidência do Imposto sobre Veículos Motorizados (IVM).
   O recorrente salienta que a Circular em causa não tem valor normativo ou inovador, tratando-se apenas de uma orientação interna no sentido de definir um critério para evitar as situações anormais, nomeadamente para pôr termo à evasão fiscal.
   
   As regras fixadas na Circular n.° 001/DIR/98 de 18 de Dezembro de 1998 são fundamentais para apreciar a presente causa por constituir base da decisão constante do acto impugnado. A aplicação retroactiva destas regras já é uma questão de segundo plano, pois esta tem por pressuposto a legalidade das referidas regras constantes da Circular. O mesmo acontece com a discussão sobre a natureza jurídica da Circular, pois só está agora em causa o seu conteúdo como fundamento do acto recorrido.
   
   No sentido de corrigir algumas situações anormais decorrentes de faltas ou inexactidões nas declarações apresentadas por algumas empresas do ramo automóvel com infracção ao RIVM, prevenindo a evasão fiscal, foi emitida a Circular acima mencionada que estabeleceu que “os preços unitários dos aparelhos receptores e reprodutores de som declarados que forem superiores a 10% do preço de venda ao público (PVP) do veículo, ou superiores a 25000 patacas não sejam aceites pela administração fiscal, passando o diferencial a integrar o valor tributável do mesmo.”
   Segundo esta regra, quando o preço de aparelhos de receptores e reprodutores de som excedem 10% do PVP ou 25000 patacas, o preço de diferença integra automaticamente no valor tributável do IVM.
   
   Sobre o valor tributável do IVM, dispõe o art.° 9.°, n.° 1 do RIVM:
   “1. O valor tributável que serve de base ao cálculo do IVM a pagar é o preço de venda ao público, declarado nos termos do artigo anterior.”
   Por seu lado, os n.°s 4 e 5 do art.° 8.° do mesmo Regulamento dispõem assim:
   “4. O preço de venda ao público representa o preço a pagar pelos consumidores e inclui, designadamente, os valores referentes a garantias de manutenção, assistência e substituição de peças, bem como a todos os acessórios.
   5. O preço de venda ao público não inclui, porém, os aparelhos receptores e reprodutores de som.”
   Das normas acima transcritas resultam claro que, para efeitos de tributação da venda de veículos automóveis, o preço dos aparelhos receptores e reprodutores de som não faz parte do preço de venda ao público e, consequentemente, da incidência do IVM.
   Comparando o teor da Circular n.° 001/DIR/98 em causa com o disposto nestas normas, verifica-se manifestamente que as regras fixadas naquela não estão em conformidade com a disposição legal.
   
   A Administração tem todo o direito de emitir instruções ou directivas para orientar as actividades desenvolvidas no desempenho das suas funções, seja na forma de esclarecimento interpretativo de normas, seja na fixação de procedimento para determinadas situações.
   No caso concreto, as referidas regras constantes da Circular podem perfeitamente constituir critério para a Administração Fiscal considerar anormais certas situações de tributação de venda de veículos motorizados a fim de accionar o mecanismo de averiguação e até liquidação oficiosa.
   Mas se a Administração Fiscal resolva fixar um novo PVP superior ao declarado pelo sujeito passivo, já não se pode fundamentar a decisão simplesmente com base em tais regras, porque estas não têm cobertura legal.
   Na realidade, a tributação como IVM da parte do preço de aparelhos receptores e reprodutores de som que excedem 10% do PVP ou 25000 patacas não encontra qualquer correspondência nem a letra nem ao espírito dos art.°s 9.°, n.° 1 e 8.°, n.°s 4 e 5 do RIVM. O referido art.° 8.°, n.° 5 é taxativo no sentido de que o preço dos aparelhos receptores e reprodutores de som não integra o PVP, pelo que a totalidade ou qualquer parte do preço destes aparelhos não podem ser sujeitas ao imposto sobre veículos motorizados.
   
   É certo que, segundo o n.° 1 do art.° 8.° do Código Civil, “A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.”
   No entanto, não se pode perder de vista o disposto no n.° 2 seguinte: “Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.”
   
   O entendimento do recorrente sobre os art.°s 9.°, n.° 1 e 8.°, n.° 5 do RIVM, tal como está expresso na Circular em causa, não tem mínimo apoio na letra destas normas. Nada permite à Administração Fiscal interpretar a norma de incidência fiscal segundo a pura conveniência do exercício das suas funções, mesmo em nome de interesse público, quando extravasa o âmbito da prescrição da norma.
   
   Não se nega que pode existir situações de erros ou omissões na declaração do PVP e do preço dos aparelhos receptores e reprodutores de som e até situações em que se aproveita a exclusão do preço destes aparelhos do PVP, declarando parte do preço real de venda como se fosse preço dos aparelhos de som, a fim de evitar a tributação daquela parte do preço real de venda.
   Nunca está em causa a actuação da Administração Fiscal tendente a corrigir as situações anormais e combater evasão fiscal. Só que, isso deve ser feito segundo o procedimento legal, tal como o mecanismo de liquidação oficiosa.
   De facto, quando se verifica falta de liquidação do IVM, omissões ou erros de que haja resultado prejuízo para a RAEM, a Administração Fiscal pode proceder à liquidação oficiosa do imposto nos termos do art.° 15.°, n.° 1, al. a) do RIVM.
   Concretamente, o chefe da Repartição de Finanças pode fixar um preço de venda ao público superior ao declarado sempre que disponha de elementos que indiciem que este é manifestamente inferior ao praticado, conforme o art.° 8.°, n.° 6 do RIVM.
   Assim, está legalmente prescrito o procedimento a observar pela Administração Fiscal para actuar perante os casos anormais e mesmo de evasão fiscal. Só a lei pode constituir o fundamento da decisão das autoridades, e não os juízos de conveniência que não têm base legal.
   No presente caso, o acto impugnado fundamentou apenas nas regras fixadas na Circular que não têm cobertura legal, violando o disposto nos art.°s 9.°, n.° 1 e 8.°, n.°s 4 e 5 do RIVM. Foi correcta a decisão do acórdão recorrido de anular o acto por este padecer de vício de violação de lei.
   Improcedem os fundamentos do presente recurso.
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
   Não são tributadas as custas por o recorrente estar legalmente isenta.
   
   
   Aos 30 de Julho de 2003.



           Juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

Magistrada do Ministério Público
presente na conferência: Song Man Lei

Processo n.° 10 / 2003 21