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Processo n.º 14/2003. Recurso jurisdicional em matéria administrativa.
Recorrente: Ministério Público.
Recorrido: Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura.
Assunto: Competência para apreciar pedido de provimento em categoria superior de funcionário do IAS. Ratificação. Sanação. Acto pertencente às atribuições de outra pessoa colectiva. Vício de incompetência. Nulidade e anulabilidade. Recurso hierárquico. Dupla função do presidente do IAS. Indeferimento tácito.
Data da Sessão: 30 de Julho de 2003.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Sam Hou Fai e Chu Kin.
SUMÁRIO:
I – A competência para o provimento em categoria superior, dos funcionários e agentes do IAS, pertence ao Chefe do Executivo.
II – O vício de incompetência pode ter como sanção jurídica a nulidade ou a anulabilidade, consoante os casos:
- São nulos os actos estranhos às atribuições da pessoa colectiva em que o seu autor se integre [art. 122.º, n.º 2, alínea b] do CPA].
- São anuláveis os actos viciados de outra forma de incompetência, ou seja, quando um órgão invada a competência de outro órgão da mesma pessoa colectiva (art. 124.º do CPA).
III - Os actos nulos não são susceptíveis de ratificação-sanação; mas já o são os actos anuláveis.
IV – O presidente do IAS exerce uma dupla função de órgão deste instituto e de órgão da RAEM, neste caso, designadamente, quando exerce competências delegadas ou subdelegadas do Governo.
V – Quando o presidente do IAS, fora de qualquer hipótese de delegação, invade a competência governamental relativa ao IAS, actuando como órgão deste, pratica um acto estranho às suas atribuições, portanto viciado de incompetência absoluta e ferido de nulidade. Mas, se o fizer como órgão da RAEM, pratica apenas um acto alheio à sua competência, portanto viciado de incompetência relativa e ferido de mera anulabilidade.
VI - O acto é ratificável na hipótese descrita em segundo lugar na conclusão anterior, mas não na descrita em primeiro lugar.
VII – O acto de indeferimento tácito praticado pelo órgão competente para a prática de acto administrativo, em recurso hierárquico interposto do acto viciado de incompetência praticado pelo órgão subalterno, sana este.
O Relator
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A, técnica superior de 1.ª classe, interpôs recurso contencioso de anulação do acto de indeferimento tácito do Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, formado na sequência de recurso administrativo interposto da decisão do Presidente do Instituto de Acção Social (IAS), de 31 de Julho de 2001, que indeferiu o pedido de alteração de categoria.
Por acórdão de 27 de Março de 2003, do Tribunal de Segunda Instância, foi negado provimento ao recurso.
Além do mais, o acórdão recorrido decidiu que o Presidente do IAS não tinha competência para a prática do acto (alteração de categoria), mas que o vício ficou sanado pelo acto de indeferimento tácito do Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, que era a entidade com competência na matéria, acto esse proferido no recurso hierárquico necessário.
É desta questão que vem interposto o presente recurso jurisdicional, pelo Digno Magistrado do Ministério Público, que termina a respectiva alegação com a formulação das seguintes conclusões:
   1. A formação de acto de indeferimento tácito em sede de recurso hierárquico não tem a virtualidade de sanar vício de incompetência do subalterno, autor do acto primitivo expresso.
   2. Tratando-se de mera ficção de acto administrativo com cariz instrumental ou reactivo, visando um objectivo garantístico, tal seja o possibilitar aos interessados o exercício dos meios impugnatórios, dele apenas se poderá extrair que manteve, na íntegra o acto primário, mantendo-se consequentemente o vício de que o mesmo padecia - incompetência relativa - a determinar a respectiva anulação.
A entidade recorrida não apresentou alegação.

II – Os factos
Os factos considerados provados no acórdão recorrido são os seguintes (com subordinação a alíneas da nossa autoria, para facilitar a remissão que houver que fazer):
   A) A Recorrente interpôs recurso hierárquico, em 13 de Setembro de 2001, para o Exm.º Senhor Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, da decisão do Presidente do IAS, de 31.07.01, que lhe negou provimento ao pedido de alteração de categoria.
   B) A Recorrente iniciou funções no IAS em 14 de Novembro de 1994, em regime de contrato de assalariamento pelo período de 6 meses, como Técnica Superior de 2.ª classe, 1.º escalão, tendo passado, a partir do termo desse contrato (14 de Maio de 1995), a ser contratada em regime de contrato além do quadro, com a mesma categoria e escalão.
   C) Em 14 de Maio de 1998, progrediu para a categoria de Técnica Superior de 1.ª classe, tendo completado, em 14 de Maio de 2001, 3 anos nesta categoria, sempre com classificação de serviço de Muito Bom e por despacho de 11 de Maio de 2001, o seu contrato além do quadro foi renovado pelo período de um ano, com efeitos a partir de 1 de Agosto de 2001.
   D) A Recorrente solicitou, por escrito, ao IAS a mudança de categoria para categoria imediatamente superior, vindo a ser notificada em 14.08.01 do teor do despacho de indeferimento do Exm.º Presidente do IAS, exarado na informação 14/DAF/2001, que propõe o não deferimento do pedido, com o teor seguinte:
   "Acesso da A
   Informação 14/DAF/2001 31/07/2001
   1. Este Departamento recebeu em 25 de Julho um requerimento formulado pela A, contratada além do quadro do DEP, para a revisão da sua situação sobre a progressão na carreia (ver anexo I). Junto do qual foi apresentada também um parecer jurídico referente ao "Acesso ou promoção de trabalhadores contratados além do quadro" dado pela Direcção dos Serviços de Administração e Função Pública.
   2. Em 14 de Maio de 1998, a mesma progrediu para a categoria de Técnica Superior de 1.ª Classe, tendo completado 3 anos nesta categoria, sempre com classificação de serviço de Muito Bom. Portanto, vem nos termos do n.° 3 do artigo 25.° do ETAPM pedir o acesso à categoria imediatamente superior.
   3. Interpretando as disposições do "Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública" e o parecer jurídico em anexo, entendemos o seguinte: como a requerente é trabalhadora provida em contrato além do quadro, as regras gerais que vinculam o acesso ou promoção profissional dos trabalhadores do quadro não são aplicáveis. Para além disso, conforme o ponto 5 do parecer jurídico do SAFP, o direito à carreira é apanágio do pessoal do quadro, não se aplicando aos contratos, por um lado, e por outro, a progressão de escalão, a mudança de categoria ou a alteração do índice não decorrem automaticamente, devendo a leitura dos requisitos ou princípios gerais ser efectuada somente quando haja intenção. por parte da Administração. Isto quer dizer que, quanto ao acesso dos funcionários recrutados por forma de contrato de além do quadro, o regime aplicado a eles é diferente ao destinado aos trabalhadores do quadro. É por isso que a mudança automática de categoria ou o acesso na carreira não pode ser considerado como um "direito adquirido" mesmo que a requerente reuna os requisitos de tempo. De facto, existe urna grande diferença entre os dois regimes acima mencionados, e isto não é difícil de compreender porque o consentimento mútuo dos contraentes e o acto de celebração são indispensáveis para estabelecimento de qualquer relação contratual, portanto, pode-se dizer que a vontade de ambas as partes é o ponto chave para manutenção destas relações. Conforme o ponto 6 do parecer jurídico da Direcção dos Serviços de Administração e Função Pública, os trabalhadores providos em contrato além do quadro apenas têm os direitos que lhe advêm do próprio contrato e do regime legal considerando para tal modalidade de provimento. A Administração Pública encontra-se apenas vinculada, na situação de acordar a mudança de categoria ou de escalão dos trabalhadores providos em contrato além do quadro, a respeitar as regras de acesso nas carreiras. A Administração Pública deve, sem dúvida nenhuma, respeitar os princípios fundamentais, nomeadamente princípios de justiça e imparcialidade, para lidar com as questões relacionadas com a promoção do pessoal.
   4. Face ao pedido de mudança de categoria da referida trabalhadora, é claro que para além de tomar em consideração o tempo de serviços prestados pela mesma, também deve ser ouvido o chefe a quem está subordinada imediatamente, cujo parecer constitui um factor fundamental para determinar a intenção da outra parte contraente, nomeadamente da Administração.
   5. Hoje recebemos a resposta do Chefe do Departamento de Estudos e Planeamento (anexo 2) que diz assim: A performance da técnica superior em questão nas tarefas que lhe são incumbidas é boa, não satisfazendo contudo o critério exigido para ser avaliada como "excepcionalmente excelente ", pelo que não se propõe o deferimento do pedido da mudança de categoria da requerente.
   À consideração superior:
O Chefe do DAF
                         Zhang Hongxi"
   E) O parecer que incidiu sobre esta informação, por parte do respectivo Chefe de Departamento foi o seguinte:
   "Parecer:
   Estou de acordo com o ponto de vista do Sr. Zhang, Chefe Departamento, exposto nesta informação.
   É certo que o acesso dos trabalhadores contratados por contrato alem do quadro deve proceder segundo o ETAPM. Sempre que haja proposta de acesso, temos que pôr em consideração o tempo de serviço prestado pelo trabalhador, bem como o "desempenho real" das suas funções que é um facto essencial.
   Como o chefe a que esta trabalhadora está directamente subordinada, achar que a mesma ainda não reuna as condições para o acesso, não é necessário que este Instituto promover especialmente esta trabalhadora.
   31.07.2001
   Iong Kóng Io"
   F) E o despacho do Exm.º Presidente do IAS:
   "Despacho:
   Visto.
   Sintetizando as opiniões dos chefes de departamento, mantém-se inalterável a situação do contrato da referida trabalhadora.
   Aquando do tratamento deste caso, este Instituto procurou sempre respeitar os princípios de justiça e de imparcialidade. Depois de ter esta informação traduzida comunique à trabalhadora.
   31-07-2001
   O Presidente: Ip Peng Kin"
   G) É do seguinte teor o despacho de subdelegação de competências do Exm.º Senhor Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura n.° 74/2000 de 16 de Outubro de 2000:
   “1. É subdelegada no presidente do Instituto de Acção Social, licenciado Ip Peng Kin, a competência para a prática dos seguintes actos:
   1) Assinar os diplomas de provimento;
   2) Conferir posse e receber a prestação de compromisso de honra;
   3) Conceder licença especial e licença de curta duração e decidir sobre a acumulação de férias, por motivos pessoais ou por conveniência de serviço;
   4) Autorizar a nomeação provisória e a recondução e converter as nomeações provisórias ou em comissão de serviço em definitivas;
   5) Autorizar a mudança de escalão nas categorias das carreiras de pessoal dos quadros e do pessoal contratado além do quadro, em regime de assalariamento e de direito privado;
   6) Autorizar a renovação dos contratos além do quadro, de assalariamento e de direito privado, desde que não implique alteração das condições remuneratórias;
   7) Conceder a exoneração e rescisão de contratos além do quadro, de assalariamento e de direito privado, nos termos legais;
   8) Outorgar, em representação da Região Administrativa Especial de Macau, em todos os contratos além do quadro, de assalariamento e de direito privado;
   9) Assinar os diplomas de contagem e liquidação de tempo de serviço prestado pelo pessoal do Instituto de Acção Social;
   10) Autorizar a prestação de serviço em regime de horas extraordinárias ou por turnos;
   11) Autorizar a recuperação do vencimento de exercício perdido por motivo de doença;
   12) Autorizar a apresentação de funcionários e agentes e seus familiares às Juntas Médicas que funcionem no âmbito dos Serviços de Saúde;
   13) Autorizar a atribuição de prémios de antiguidade e dos subsídios previstos no ETAPM, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 87/89/M, de 21 de Dezembro, ao respectivo pessoal, nos termos legais;
   14) Determinar deslocações de funcionários e agentes, de que resulte direito à percepção de ajudas de custo por um dia;
   15) Autorizar a participação de funcionários e agentes em congressos, seminários, colóquios, jornadas e outras actividades semelhantes, quando realizados na Região Administrativa Especial de Macau ou, quando realizados no exterior, nas condições referidas na alínea anterior;
   16) Autorizar a restituição de documentos que não sejam pertinentes à garantia de compromissos ou execução de contratos com a Região Administrativa Especial de Macau;
   17) Autorizar o seguro de pessoal, material e equipamento, imóveis e viaturas;
   18) Outorgar, em nome da Região Administrativa Especial de Macau, em todos os instrumentos públicos, relativos a contratos que devam ser lavrados no Instituto de Acção Social e que sejam precedidos de concurso superiormente autorizado;
   19) Autorizar a informação, consulta ou passagem de certidões de documentos arquivados no Instituto de Acção Social, com exclusão dos excepcionados por lei;
   20) Assinar o expediente dirigido a entidades e organismos da Região Administrativa Especial de Macau e do exterior, no âmbito das atribuições do Instituto de Acção Social.
(...)”

III – O Direito
   
  1. A questão a resolver
Trata-se de saber se o acto administrativo impugnado contenciosamente - da autoria do Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, que é um acto de indeferimento tácito, proferido em recurso administrativo, interposto da decisão do Presidente do IAS - sanou o vício de incompetência deste, em virtude de o órgão competente ser o referido Secretário.

2. Competência para apreciar pedido de provimento em categoria superior de funcionário do IAS.
Previamente, importa confirmar qual era o órgão competente para praticar o acto.
A interessada era técnica superior de 1.ª classe do IAS, na situação de contrato além do quadro. Entendendo ter direito ao provimento à categoria superior, requereu ao Presidente do IAS, que fosse provida na categoria de técnica superior principal, o que foi indeferido por este.
Então, a interessada interpôs recurso administrativo para o Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, tendo arguido dois vícios:
- Violação de lei;
- Incompetência, pois que a competência para autorizar a mudança de categoria não constava das competências próprias do Presidente do IAS ou em si delegadas.
O acórdão recorrido confirma o vício de incompetência (tal como o Digno Magistrado do Ministério Público, ora recorrente), apenas com fundamento em a referida competência não constar do despacho de subdelegação de competência, do Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, no Presidente do IAS (despacho n.º 74/2000, de 16.10.2000, publicado no Boletim Oficial, II Série, de 25 de Outubro de 2000).
Falta, porém, apurar a quem pertence a competência para praticar o acto.
É o que se irá fazer, de seguida.

3. De acordo com o art. 1.º do Decreto-Lei n.º 24/99/M, de 21.6, a lei orgânica do IAS,1 este é um instituto público, dotado de personalidade jurídica, autonomia administrativa e financeira e património próprio, com atribuições no âmbito da acção social e da prevenção e tratamento da toxicodependência (arts. 4.º e 5.º do Decreto-Lei n.º 24/99/M).
O IAS está sujeito à tutela do Chefe do Executivo, cabendo no exercício dos seus poderes de tutela:
“a) Homologar o orçamento privativo do IASM, bem como as respectivas revisões e alterações concretizadas em orçamentos suplementares;
b) Aprovar o plano e as directrizes de gestão financeira;
c) Aprovar a conta anual de gerência do IASM;
d) Nomear os titulares dos órgãos do IASM;
e) Homologar os acordos e protocolos celebrados com outras entidades públicas ou privadas do Território ou do exterior;
f) Definir orientações e emitir directivas com vista a prossecução dos objectivos do IASM;
g) Autorizar a aquisição, alienação, cedência e oneração de bens imóveis do património do IASM” (art. 3.º do Decreto-Lei n.º 24/99/M e art. 4.º, n.º 2 e Anexo IV, ponto 4. da Lei de Reunificação, Lei n.º 1/1999).
São órgãos do IAS o presidente e o Conselho Administrativo, sendo o primeiro equiparado a director de serviços (art. 6.º, n. os 1 e 3 do Decreto-Lei n.º 24/99/M).
Nos termos do art. 7.º, n.º 1, alínea c) do referido diploma orgânico do IAS, compete ao seu presidente “Gerir o pessoal do IASM, propondo a sua nomeação e contratação, decidir sobre a sua afectação aos diversos serviços e exercer, nos termos da lei, o poder disciplinar”.
O provimento da interessada em categoria superior implicava a celebração de novo contrato ou pelo menos, a sua alteração substancial, pelo que o presidente do IAS só podia fazer a respectiva proposta.
Por outro lado, a competência para a prática dos actos previstos no Estatuto dos Trabalhadores da Função Pública de Macau (ETAPM) é, de acordo com o art. 3.º deste diploma legal,2 do Chefe do Executivo, salvo disposição especial.
O ETAPM é, também, aplicável aos serviços autónomos, ou seja, aos institutos públicos (art. 1.º, n.º 1 deste Estatuto).
Ora, não havendo disposição especial a atribuir tal competência a outro órgão, temos que a competência para o provimento em categoria superior, dos funcionários e agentes do IAS, pertence ao Chefe do Executivo.
Em suma, embora o IAS seja um instituto público, dotado, portanto, de personalidade jurídica, com autonomia administrativa e financeira, os poderes conferidos aos órgãos da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) de controlar a actuação daquele são muito intensos, designadamente em matéria de pessoal.

4. As competências do Chefe do Executivo em relação a todos os assuntos respeitantes ao IAS estão delegadas no Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura.3
E o Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura subdelegou poderes no presidente do IAS,4 mas entre esses não constava a autorização para celebração de contratos além do quadro, nem mesmo a sua alteração, desde que implicasse, como era o caso, alteração das condições remuneratórias.
Em conclusão, a competência para a prática do acto em causa estava delegada no Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, pelo que tendo o Presidente do IAS praticado o acto, está este ferido de incompetência.

5. Ratificação – Sanação. Vício de incompetência. Nulidade e anulabilidade. Acto pertencente às atribuições de outra pessoa colectiva.
Os actos nulos não são susceptíveis de ratificação-sanação; mas já o são os actos anuláveis [art. 126.º, n. os 1 e 2 do Código do Procedimento Administrativo (CPA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 57/99/M, de 11.10].
O vício de incompetência pode ter como sanção jurídica a nulidade ou a anulabilidade, consoante os casos:
- São nulos os actos estranhos às atribuições da pessoa colectiva em que o seu autor se integre [art. 122.º, n.º 2, alínea b) do CPA].
- São anuláveis os actos viciados de outra forma de incompetência, ou seja, quando um órgão invada a competência de outro órgão da mesma pessoa colectiva (art. 124.º do CPA).5
Para saber se o acto do Presidente do IAS - viciado de incompetência - era sanável, cabe apurar se este era nulo ou anulável, o que significa dilucidar se praticou acto das atribuições de outra pessoa colectiva ou se, simplesmente, invadiu acto da competência de outro órgão da pessoa colectiva em que o mesmo se integra.

6. A dupla função do presidente do IAS.
Como se disse, o IAS é um instituto público, dotado de personalidade jurídica. O Chefe do Executivo, o órgão competente para a prática do acto em causa no processo, e o Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, o órgão delegado daquele, são ambos órgãos da pessoa colectiva pública RAEM.
Aparentemente, por conseguinte, o Presidente do IAS praticou acto que pertence às atribuições de outra pessoa colectiva.
Mas será assim? Não é, como se explicará, de seguida.
É inquestionável que o presidente do IAS é órgão deste instituto.
Mas, como se verá, o presidente do IAS também pode actuar como órgão da pessoa colectiva pública RAEM, designadamente, quando actua na área da gestão de pessoal, por subdelegação de competência do Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, em virtude de delegação de competência neste, do Chefe do Executivo.
Foi FREITAS DO AMARAL quem primeiro estudou a dupla função de determinados presidentes de pessoa colectivas públicas, por um lado, como órgãos das pessoas colectivas públicas menores, mas, por outro, também como órgãos da pessoa colectiva pública Estado.6
Na verdade, FREITAS DO AMARAL demonstrou que, no direito português, os presidentes dos institutos públicos e outros presidentes de outras pessoas colectivas menores, que agora não importa considerar, são órgãos dos próprios institutos a que pertencem, com funções de representação, de presidência stricto sensu, de gestão e de execução. Mas também exercem funções como órgão do Estado, com funções jurídicas, designadamente, praticando actos por delegação do Governo e outras funções não jurídicas.
Ora, o presidente do IAS é órgão do instituto quando exerce as competências previstas no art. 7.º da respectiva lei orgânica.
  Mas, pela Ordem Executiva n.º 14/2000, publicada no Boletim Oficial, I Série, de 28.2.2000, decretada com base no art. 15.º da Lei n.º 2/1999 e no art. 3.º do Decreto-Lei n.º 85/84/M, de 11.8, o Chefe do Executivo delegou no Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura todas as competências em relação a todos os assuntos respeitantes ao IAS (art. 5.º e Anexo V do Regulamento Administrativo n.º 6/1999).
E o Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura subdelegou poderes no presidente do IAS, em matéria de pessoal e outras.7
Quer isto dizer que, em matéria de pessoal, quanto às competências previstas no ETAPM, o presidente do IAS exerce competências subdelegadas, como órgão da RAEM.8
Ou seja, o presidente do IAS exerce uma dupla função; como órgão do IAS e como órgão da RAEM, sendo certo que praticou o acto administrativo dos autos como órgão da RAEM, embora sem competência para tal, pois que tendo vastas competências subdelegadas, em matéria de pessoal do Instituto,9 não lhe estava subdelegada a competência em causa.
Já não aconteceria assim, se o presidente tivesse invadido as competências dos órgãos da RAEM, por exemplo, na área da tutela sobre o IAS, em que não dispõe de quaisquer delegações ou subdelegações na matéria. Neste caso, o acto seria nulo, porque actuaria como órgão do instituto, e não simplesmente anulável, como no primeiro caso, em que actuou como órgão da RAEM.
Daqui resulta que o presidente do IAS não invadiu atribuições de outra pessoa colectiva, visto que actuou como órgão da RAEM, sendo que o órgão competente, o Chefe do Executivo também é órgão da RAEM.
É o que explica FREITAS DO AMARAL10 quando afirma:
“g) Se o presidente,11 fora de qualquer hipótese de delegação, invadir a competência governamental relativa à pessoa colectiva em causa, actuando como órgão desta, praticará um acto estranho às suas atribuições, portanto viciado de incompetência absoluta e ferido de nulidade. Mas, se o fizer como órgão do Estado, praticará apenas um acto alheio à sua competência, portanto viciado de incompetência relativa e ferido de mera anulabilidade. Daí que o acto seja ratificável no segundo caso, mas não no primeiro”.
Em conclusão, no caso dos autos, o Presidente do IAS actuou como órgão da RAEM, pelo que a incompetência de que enferma o seu acto, sendo meramente relativa, o torna simplesmente anulável e, portanto, passível de ser ratificado ou sanado.

7. Sanação de acto viciado de incompetência, por indeferimento tácito do órgão competente, proferido em recurso hierárquico.
Entremos, directamente, no objecto do recurso, apurando se o acto de indeferimento tácito do Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura sanou a incompetência do acto Presidente do IAS.
A ratificação-sanação “é o acto administrativo pelo qual o órgão competente decide sanar um acto inválido anteriormente praticado, suprindo a ilegalidade que o vicia”.12
No caso de acto viciado de incompetência, explica FREITAS DO AMARAL, 13 que a ratificação consiste na “assunção pelo órgão competente de um acto praticado por órgão incompetente”.
É indiscutível que o Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, que era o órgão competente, por virtude da delegação de competência do Chefe do Executivo, tinha poderes para sanar o acto do Presidente do IAS e podia fazê-lo no âmbito do recurso hierárquico.14 Se tivesse praticado um acto de indeferimento expresso ninguém discute que teria sanado o acto do subalterno. Mas o facto de ter sido praticado um acto de indeferimento tácito, poderá fazer alterar a conclusão mencionada?
Afigura-se-nos que não. Como se disse, oportunamente, no recurso hierárquico a recorrente arguiu dois vícios, violação de lei e incompetência, pois que, alegou então, a competência para autorizar a mudança de categoria não constava das competências próprias do Presidente do IAS ou em si delegadas.
Pois bem. O significado do indeferimento tácito só pode ser o de que o órgão que apreciou o recurso discordou que houvesse violação de lei e assumiu o acto do subalterno. É que tendo a recorrente expressamente arguido a incompetência do subalterno no recurso hierárquico, o superior não pode ter deixado de considerar a questão.
Ora, como se viu a ratificação de acto viciado de incompetência consiste na assunção pelo órgão competente de um acto praticado por órgão incompetente.
Logo, em recurso administrativo, o indeferimento tácito sana o acto recorrido, viciado de incompetência.
Em conclusão, o acto contenciosamente recorrido, acto de indeferimento tácito do Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, sanou o acto do Presidente do IAS.

IV - Decisão
Face ao expendido, nega-se provimento ao recurso.
Sem custas.
Macau, 30 de Julho de 2003
Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin
    1 Aquando da aprovação da lei era designado por Instituto de Acção Social de Macau (IASM).
2 Conjugado com os já mencionados art. 4.º, n.º 2 e Anexo IV, ponto 4. da Lei de Reunificação.
    3 Ordem Executiva n.º 14/2000, Boletim Oficial, I Série, de 28.2.2000 e art. 5.º e Anexo V do Regulamento Administrativo n.º 6/1999.
4 Despacho n.º 74/2000, de 16.10.2000, publicado no Boletim Oficial, II Série, de 25 de Outubro de 2000.
    5 Sobre esta matéria, D. FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Livraria Almedina, Coimbra, Vol. I, 2.ª edição, 1994, p. 604 e seg. e Vol. II, 2001, p. 387 e 420 e M. ESTEVES DE OLIVEIRA, P. COSTA GONÇALVES e J. PACHECO AMORIM, Código do Procedimento Administrativo Comentado, Livraria Almedina, Coimbra, 2.ª edição, 1997, p. 644.
    6 D. FREITAS DO AMARAL, A função presidencial nas pessoas colectivas de direito público, em Estudos de Direito Público em Honra do Professor Marcello Caetano, Edições Ática, Lisboa, 1973, p. 9 e seguintes.
7 Despacho n.º 74/2000, de 16.10.2000, publicado no Boletim Oficial, II Série, de 25 de Outubro de 2000.
    8 Embora disponha de algumas competências próprias, como órgão do IAS [art. 7.º, n.º 1, alínea c] do Decreto-Lei n.º 24/99/M].
    9 Cfr. a alínea G) dos factos provados.
    10 D. FREITAS DO AMARAL, A função presidencial..., p. 44 e 45.
    11 Refere-se ao presidente do instituto público.
    12 MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, Livraria Almedina, Coimbra, 10.ª ed., Tomo I, p. 557.
    13 D. FREITAS DO AMARAL, Curso..., Vol. II, p. 475.
    14 Neste momento já é possível classificar o recurso administrativo como hierárquico, pelo que acaba de ficar dito.
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Processo n.º 14/2003