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 Processo n.º 5/2001. Recurso jurisdicional em matéria cível.
Recorrente: A.
Recorrido: D.
Assunto: Recursos. Poderes do Tribunal de Última Instância. Sindicabilidade da decisão do Tribunal de Segunda Instância de uso da faculdade atribuída pelo n.º 2 do artigo 712.º do Código de Processo Civil de 1961 (n.º 4, do artigo 629.º do novo Código). Anulação de despacho saneador-sentença. Ampliação da matéria de facto. Deficiência, obscuridade e contraditoriedade da decisão de facto. Matéria de facto e de direito. Venda em execução.
Data da Sessão: 23.5.01
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Sam Hou Fai e Chan Kuong Seng.

SUMÁRIO:
I – Apurar se um facto é ou não destituído de relevância jurídica para a decisão da causa constitui matéria de direito e não de facto.
II - O Tribunal de Última Instância pode sindicar o uso que o Tribunal de Segunda Instância faça do poder de anulação (oficiosa ou não) de despacho saneador-sentença (ou a anulação da decisão do colectivo) por este Tribunal ter entendido indispensável a ampliação da matéria de facto, faculdade essa prevista no art. 712.º, n.º 2, do Código de Processo Civil de 1961 e no art. 629.º, n.º 4, do actual Código de Processo Civil.
III - Em regra, a decisão do Tribunal de Segunda Instância, prevista nas mesmas normas, que anule a decisão de primeira instância por reputar deficiente, obscura ou contraditória a mesma decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, é matéria de facto, insindicável, em princípio, pelo Tribunal de Última Instância, salvo se houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova ou, ainda, quando o tribunal recorrido violar qualquer norma legal, na utilização dos seus poderes.
IV - A venda em execução fundamenta uma aquisição derivada e o comprador só pode adquirir o direito do executado sobre o bem transmitido e nada adquire se aquela parte não for o titular do direito alienado.
V – Se o Tribunal de Segunda Instância, por qualquer motivo, tiver deixado de conhecer do objecto do recurso, o Tribunal de Última Instância revoga a decisão no caso de entender que o motivo não procede e manda que o Tribunal de Segunda Instância, pelos mesmos juízes, conheça do referido objecto, mas não fixa logo o regime jurídico aplicável ao caso.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I - Relatório
A, intentou acção declarativa com processo ordinário contra:
1.ª - B,
2.ª - C,
3.º - D e
4.ª - E, pedindo:
a) Se declarasse revogado o contrato-promessa celebrado em 28 de Janeiro de 1993 entre a 1.ª e a 2.ª Ré;
b) Se declarasse o autor titular do direito de promitente-comprador à aquisição das fracções G e H, do 11.° andar, com lugar de estacionamento n.º 14, [Endereço], emergentes do contrato-promessa celebrado em 16 de Fevereiro de 1996 entre a 1ª Ré, a 2ª Ré e o ora Autor, para todos os efeitos legais, e
c) Se condenasse todos os Réus a reconhecerem os direitos do Autor à aquisição das propriedades supra referidas.

Contestaram apenas o 3.° e 4.ª réus.
Findos os articulados, o M.mo Juiz, tendo decidido as excepções invocadas, proferiu directamente sentença julgando improcedente a acção e absolvendo os réus dos pedidos.
Inconformado com a decisão, recorreu o autor.
Por acórdão de 19.10.2000, o Tribunal de Segunda Instância proferiu a seguinte decisão:
Anulou oficiosamente o despacho saneador-sentença, considerando o disposto no artigo 510.º do Código de Processo Civil de 1961 (hoje artigo 429.º), nos termos do artigo 629.º, n.º 4, do actual Código de Processo Civil, por ter considerado imprescindível a ampliação da matéria de facto, entendendo que o Tribunal não tinha averiguado – com junção do pertinente documento aos autos – um facto relevante alegado, a venda judicial, por hasta pública, dos imóveis discutidos nos autos e de que esta ré fora arrematante (em bom rigor, o que as partes alegaram - e nisto não há divergências - é que ocorrera venda judicial por hasta pública, não de imóveis, como se diz na decisão recorrida, mas dos direitos emergentes de contrato-promessa de duas fracções, de que era titular a 1.ª ré, na qualidade de promitente-compradora de tais fracções).

Recorreu o autor, que formulou as seguintes conclusões:
a) Os contratos trilaterais ou tripartidos são contratos-promessa atípicos que preenchem uma função económica, qual é facilitar o crédito bancário conferindo uma garantia obrigacional sobre fracções autonomizáveis de prédios aos bancos mutuantes;
b) Os contratos trilaterais devem ser interpretados teleologicamente, em atenção à sua função económica, de modo que
c) Perante dois sentidos possíveis, o intérprete deve escolher aquele que confira protecção mais eficaz ao crédito do banco, desde que haja correspondência no texto;
d) O contrato de 1996, que se intitula “Contrato de Transmissão”, pertence a esta categoria e a letra da sua cláusula 3 dispõe a transmissão dos direitos de promitente-comprador ao recorrente com efeito imediato, isto é, logo com na data do contrato;
e) Essa cláusula 3 deve ser interpretada coincidentemente, por respeito para com a letra e a função económica do contrato;
f) O contrato de 1996 modifica as relações entre a 1ª R. e a 2ª R., reestruturando-as globalmente, em substituição do que se convencionara nos contratos anteriores, que foram por isso revogados, salvo talvez quanto a algumas obrigações acessórias;
g) Pode aceitar-se como verdadeiro o facto da venda judicial, à 4ª R., dos direitos de promitente-comprador emergentes dos contratos de 1993, realizada no quadro da execução que o 3º R. instaurou contra a 1ª R., mas esse facto é irrelevante porque ultrapassa os limites da jurisdição apreciar o efeito da procedência dos pedidos sobre aquela venda.
h) O acórdão recorrido aplicou erradamente a norma do artigo 629.º, n.º 4, violou a norma do artigo 571.º, d), segunda parte, aplicou erradamente a norma do artigo 650.º, n.º 2, primeira parte, e violou a norma do artigo 630.º, todos do C.P.C.
Contra-alegou apenas o 3.º réu, pugnando pela manutenção do julgado.

II - Os factos
O Tribunal deu como provados os seguintes factos, no despacho saneador-sentença:
Em 28 de Janeiro de 1993, a 1.ª e a 2.ª rés celebraram dois acordos em relação às fracções G e H do 11.° andar, com lugar de estacionamento n.° 14, do [Endereço], conforme os documentos n. os 1 e 1-A juntos pelo autor a fls. 4 e 5 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
A 1.ª e a 2.ª rés, em 16 de Fevereiro de 1996, celebraram, deste vez com o autor também a intervir, um novo acordo em relação às mesmas fracções e lugar de estacionamento, conforme o documento junto pelo autor a fls. 11 e 12 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

III – O Direito
As questões que cumpre solucionar
1. São, eventualmente, três as questões a tratar neste recurso.
A primeira consiste em saber se o Tribunal de Última Instância pode censurar o uso que o Tribunal de Segunda Instância faça do poder de anulação (oficiosa ou não) de despacho saneador-sentença, por este Tribunal de Segunda Instância ter entendido indispensável a ampliação da matéria de facto (ou da anulação da decisão do colectivo, pelo mesmo motivo), faculdade essa prevista no art. 712.º, n.º 2, do Código de Processo Civil de 1961 e no art. 629.º, n.º 4, do actual Código de Processo Civil.
A segunda questão (suposta a resposta positiva à anterior) respeita ao fundo da decisão recorrida, isto é, se o facto alegado por uma das partes, a venda judicial, por hasta pública, dos direitos emergentes de contrato-promessa de duas fracções, de que era titular a 1.ª ré, na qualidade de promitente-compradora de tais fracções e que a 4.ª ré terá arrematado, releva para a decisão final da acção, «segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito».
A terceira questão, alínea a) (suposta a procedência do recurso, da irrelevância do referido facto para a decisão final) residirá em saber se este Tribunal, ao mesmo tempo que revoga a decisão recorrida e remete o processo para o Tribunal de Segunda Instância, poderá fixar logo o regime jurídico aplicável ao caso ou se deve limitar a revogar a referida decisão, a fim de que o Tribunal de Segunda Instância conheça do mérito do recurso do despacho saneador-sentença.
A terceira questão, alínea b) (suposta a improcedência do recurso) consistirá em apurar qual o valor jurídico da passagem do acórdão recorrido, segundo a qual se provado o facto da venda judicial, por hasta pública, dos imóveis discutidos nos autos, haveria inutilidade ou impossibilidade da lide, «por ser inatacável aquela venda judicial».

A lei processual aplicável aos recursos
2. Antes de entrar propriamente na abordagem da primeira questão, temos que definir qual a lei processual aplicável no recurso da decisão do Tribunal de Competência Genérica e no recurso da decisão do Tribunal de Segunda Instância.
A norma de direito transitório que disciplina a matéria é a da alínea a), do n.º 6, do art. 2.º do Decreto-Lei n.º 55/99/M, de 8.10, que aprovou o novo Código de Processo Civil, nos termos da qual:
   «6. Em matéria de recursos observa-se o seguinte:
   As disposições processuais civis em vigor antes de 1 de Novembro de 1999 aplicam-se aos recursos interpostos até à data do início de funcionamento do Tribunal de Segunda Instância e do Tribunal de Última Instância, continuando a aplicar-se a esses recursos enquanto os mesmos se encontrarem pendentes;».
Ora, o recurso do despacho saneador-sentença foi interposto a 8.10.99, pelo que a sua tramitação teria forçosamente de seguir o Código de Processo Civil de 1961.
Mas já o recurso para o Tribunal de Última Instância foi interposto, pela própria natureza das coisas, após 20.12.99, pelo que ao presente recurso se aplicará o novo Código de Processo Civil.
Enfrentemos, pois, a questão colocada.

A questão de saber se o Tribunal de Última Instância pode censurar o uso que o Tribunal de Segunda Instância faça do poder de anulação de despacho saneador-sentença, por entender indispensável a ampliação da matéria de facto
3. Como se disse, a primeira questão que importa solucionar consiste em saber se o Tribunal de Última Instância pode censurar o uso que o Tribunal de Segunda Instância faça do poder de anulação (oficiosa ou não) de despacho saneador-sentença, por este Tribunal ter entendido indispensável a ampliação da matéria de facto (ou a anulação da decisão do colectivo, pelo mesmo motivo), faculdade essa prevista no art. 712.º, n.º 2, do Código de Processo Civil de 1961 e no art. 629.º, n.º 4, do actual Código de Processo Civil.
O art. 712.º, n.º 2, do Código de Processo Civil de 1961, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 242/85, de 9.7, dispunha:

   «2. Pode a relação anular, porém, a decisão do colectivo, mesmo oficiosamente, quando repute deficientes, obscuras ou contraditórias as respostas aos quesitos formulados ou quando considere indispensável a formulação de outros quesitos nos termos da alínea f) do artigo 650.º; a repetição do julgamento não abrangerá as respostas que não se mostrem viciadas, podendo, no entanto, o colectivo pronunciar-se sobre outros quesitos, com o fim exclusivo de evitar contradições entre as respostas».
   
A faculdade mencionada do tribunal de segunda instância está prevista no art. 629.º, n.º 4, do novo Código de Processo Civil em termos substancialmente semelhantes:

   «4. Se não constarem do processo todos os elementos probatórios que, nos termos da alínea a) do n.º 1, permitam a reapreciação da matéria de facto, pode o Tribunal de Segunda Instância anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na primeira instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta; a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, podendo, no entanto, o tribunal ampliar o julgamento de modo a apreciar outros pontos da matéria de facto, com o fim exclusivo de evitar contradições na decisão».
   
As normas em questão concedem aos tribunais de segunda instância o poder de anular a decisão de facto do tribunal de primeira instância, em dois grupos de casos:
- Quando reputem deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto;
- Quando considerem indispensável a ampliação desta.
ALBERTO DOS REIS1, ao tempo em que a lei apenas concedia aos tribunais de relação o poder referido no primeiro grupo de situações, nos termos da alínea i), do art. 653.º do Código de 1939, pronunciou-se no sentido de que o Supremo podia exercer censura sobre o uso que a Relação faça do referido poder. «Compreende-se, porém, que a censura tem de ser discreta e muito limitada».
Já após a alteração da lei em termos semelhantes aos actuais, a jurisprudência portuguesa dominante entendia2 que o Supremo pode exercer censura sobre o uso que a Relação faça do referido poder. Mas já não o poderá fazer quando a Relação entenda não utilizar tais faculdades. Ou seja, o Supremo pode sindicar o uso feito pelas relações dos poderes conferidos pelo art. 712.º. Mas já não poderá sindicar o não uso de tais poderes pelas relações3.
Ponderemos como se deve resolver a questão, face ao Direito de Macau.

4. A decisão recorrida é recorrível face às normas que regem a admissibilidade geral de recurso para este Tribunal de Última Instância (arts. 583.º, n.º 1 e 638.º, n.º 2, do Código de Processo Civil) pois que o valor da causa é de MOP$1.786.638,00, superior à alçada do Tribunal de Segunda Instância (que é de MOP$1.000.000,00), a decisão foi desfavorável ao ora recorrente (pois que ele pretendia que o tribunal recorrido julgasse a acção procedente de mérito) e o acórdão recorrido não confirmou a sentença de primeira instância.
Dispõe o n.º 2, do art. 47.º da Lei de Bases de Organização Judiciária (Lei n.º 9/1999, de 20.12), que:

   «Excepto disposição em contrário das leis de processo, o Tribunal de Última Instância, quando julgue em recurso não correspondente a segundo grau de jurisdição, apenas conhece de matéria de direito».
   
É o art. 639.º do Código de Processo Civil que estabelece o poder cognitivo deste Tribunal, nos seguintes termos:
«Salvo no caso previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 583.º, o recurso para o Tribunal de Última Instância pode ter como fundamento a violação ou a errada aplicação da lei substantiva ou da lei de processo, bem como a nulidade do acórdão recorrido».
Deste modo, salvo no caso previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 583.º (recurso de decisão proferida contra jurisprudência obrigatória), bem como caso de recurso com base em nulidade4 do acórdão recorrido, o recurso para o Tribunal de Última Instância só pode ter como fundamento matéria de direito, a violação ou a errada aplicação da lei substantiva ou da lei de processo.
Mas há mais duas disposições no Código que relevam para caracterizar o poder cognitivo do Tribunal em matéria cível. São elas os arts. 649.º e 650.º, que estatuem:
   «Artigo 649.º
   (Âmbito do julgamento)
    1. Aos factos materiais que o tribunal recorrido considerou provados, o tribunal de Última Instância aplica definitivamente o regime que julgue adequado em face do direito vigente.
    2. A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo se houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
   Artigo 650.º
    (Insuficiência da matéria de facto e contradição na decisão de facto)
   1. Se entender que a matéria de facto pode e deve ser ampliada para fundamentar a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão de facto que inviabilizam a decisão de direito, o Tribunal de Última Instância manda julgar novamente a causa no Tribunal de Segunda Instância.
   2. O Tribunal de Última Instância fixa logo o regime jurídico aplicável ao caso; se, por insuficiência da matéria de facto, ou contradição na decisão de facto, o não puder fazer, fica a nova decisão que o Tribunal de Segunda Instância proferir sujeita a recurso para o Tribunal de Última Instância, nos mesmos termos que a primeira».
   
Constatamos da leitura destas normas que a decisão do Tribunal de Segunda Instância quanto aos factos não pode ser alterada pelo Tribunal de Última Instância, salvo se houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
Mas se o Tribunal de Última Instância entender que a matéria de facto é insuficiente ou que ocorrem contradições na matéria de facto deve mandar baixar o processo para que o Tribunal de Segunda Instância julgue novamente a causa.
Em conclusão, o conhecimento do Tribunal de Última Instância é restrito à matéria de direito, mas pode:
- Alterar a decisão em matéria de facto quando houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova;
- Anular a decisão recorrida quando ocorram contradições na matéria de facto ou mandar ampliar a matéria de facto, quando esta seja insuficiente (desde que os factos pertinentes tenham sido alegados pelas partes5).
É com base nestas directrizes que se deve examinar a questão de saber se o Tribunal de Última Instância pode sindicar o uso que o Tribunal de Segunda Instância faça do poder de anulação oficiosa de despacho saneador-sentença, por este Tribunal ter entendido indispensável a ampliação da matéria de facto (ou da anulação da decisão do colectivo, pelo mesmo motivo), faculdade essa prevista no art. 712.º, n.º 2, do Código de Processo Civil de 1961 e no art. 629.º, n.º 4, do actual Código de Processo Civil.
Ora, apurar se um facto é ou não destituído de relevância jurídica para a decisão da causa constitui, manifestamente, matéria de direito e não de facto.
Neste sentido se pronunciaram, por exemplo, ALBERTO DOS REIS6 e A. ANSELMO DE CASTRO7.
Também ANTUNES VARELA8 se pronunciou, não só sobre este ponto, mas sobre a questão mais vasta, a de saber se o tribunal supremo pode conhecer «dos casos em que a Relação considera indispensável a formulação de outros quesitos, nos termos da alínea f) do n.º 2 do artigo 650.º do mesmo Código.
E esta indispensabilidade da formulação de novos quesitos mede-se por uma regra de direito importantíssima – por um preceito que é uma das regras de ouro da organização do questionário.
Essa regra, que o Código de 1961 explicitamente fixou, baseada na formulação de MANUEL ANDRADE, através da nova redacção do n.º 1 do artigo 511.º do Código de Processo Civil (correspondente ao art.º 515.º do Código de 39), é a de que o questionário deve ser elaborado, tendo em vista, não apenas a solução que o organizador da peça considera a boa decisão da causa, mas todas as soluções plausíveis das questões de direito debatidas na causa.
...
A fiscalização da aplicação desta regra é questão de direito, perfeitamente enquadrada na competência do tribunal de revista (o sublinhado é nosso).
Quer isto dizer que a remissão feita no n.º 2 do artigo 712.º do Código de Processo Civil para o disposto na alínea f) do n.º 2 do artigo 650.º não deve nunca perder de vista o esquema traçado no n.º 1 do artigo 511.º para a organização, tanto da especificação como do questionário, porque é à luz desse programa genérico que cumpre ajuizar da indispensabilidade da formulação de novos quesitos.
A necessidade da inclusão de novos quesitos não se medirá apenas em função da solução que o juiz da causa (ou o próprio presidente do colectivo, ao usar da faculdade conferida pela alínea f) do n.º 2 do artigo 650.º) julgue na altura ser a boa decisão jurídica do litígio, mas em face também das outras soluções plausíveis das questões de direito debatidas na acção».
Pelo contrário, em regra, a decisão do Tribunal de Segunda Instância que anule a decisão de primeira instância por reputar deficiente, obscura ou contraditória a mesma decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, é matéria de facto, insindicável, em princípio, pelo Tribunal de Última Instância9.
E dizemos, em princípio, porque tal decisão do Tribunal de Segunda Instância já estará sujeita a censura do Tribunal de Última Instância, quando houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova ou quando o tribunal recorrido violar qualquer norma legal, na utilização dos seus poderes.
Conclui-se, assim, que este Tribunal pode apreciar a questão de saber se o Tribunal de Segunda Instância agiu correctamente ao anular a decisão de primeira instância, por as alegadas vendas judiciais terem relevância jurídica para a decisão da lide, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.

Se a venda judicial, por hasta pública dos direitos emergentes de contrato-promessa de duas fracções, de que era titular a 1.ª ré, na qualidade de promitente-compradora de tais fracções e que a 4.ª ré terá arrematado, releva para a decisão final da acção, «segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito».
5. Examinemos a questão em epígrafe, descrevendo, com maior pormenor, o litígio que se desenhou entre as partes.
É incontroverso que em 28 de Janeiro de 1993, a 1.ª ré prometeu comprar e a 2.ª ré prometeu vender as fracções G e H, do 11.° andar, com lugar de estacionamento n.° 14, do [Endereço], por determinado preço.
Mas, em 16 de Fevereiro de 1996, celebraram, desta vez com o autor também a intervir, um novo acordo em relação às mesmas fracções e lugar de estacionamento, e em que a 1.ª ré prometeu comprar e a 2.ª ré prometeu vender as referidas fracções, pelo mesmo preço.
A diferença em relação ao acordo anterior está em que no segundo as, agora, três partes, acordaram o seguinte:

«Antes de assinar o contrato formal de compra e venda e hipoteca em relação às referidas fracções (as fracções G e H do 11.º andar com lugar de estacionamento n.º 14 do [Endereço]) no notariado, a parte B (1ª ré) aceita transferir todos os seus direitos e interesses sobre as referidas fracções à parte C (o autor) e entrega a este o contrato de compra e venda para guarda, servindo de garantia do dinheiro emprestado à parte C. A partir de agora, sem o consentimento prévio da parte C, (a parte B) não pode voltar a vender, alienar ou transferir os direitos e interesses das referidas fracções a qualquer pessoa. Se a parte B não conseguir reembolsar o dinheiro emprestado à parte C, esta pode, à qualquer altura, vender as referidas fracções a qualquer pessoa para reembolsar o dinheiro emprestado para a parte B e os juros devidos».

A tese do autor é a de que o contrato-promessa de 16 de Fevereiro de 1996 revogou tacitamente o contrato-promessa celebrado entre as mesmas partes e sobre o mesmo objecto, em 28 de Janeiro de 1993 e pretende que o Tribunal declare isso.
Por seu lado, o 3.º réu entende que não ocorreu revogação.
O autor defende, ainda, que nos termos do 2.º contrato-promessa, o incumprimento da 1.ª ré operou imediatamente a transmissão dos direitos de promitente-compradora da 1.ª ré, para o autor.
Por isso, o autor pediu ao Tribunal a declaração de que é titular desse direito.
O 3.º pedido do autor é tão só o de serem os réus condenados a reconhecerem o direito do autor atrás mencionado.
Entretanto, vem alegado - e só não se pode considerar provado pois que não foi junto aos autos a respectiva certidão comprovativa – que o 3.º réu, por ser credor da 1.ª ré, instaurou execução contra ela. Nesta, ofereceu à penhora os direitos da promitente-compradora emergentes do 1.º contrato-promessa celebrado pelas 1.ª e 2.ª rés em 28 de Janeiro de 1993. Este direito acabou por ser vendido, segundo se alega, em hasta pública, sendo compradora, a 4.ª ré.

6. O autor pretende que o Tribunal julgue procedente a acção, isto é que declare que o contrato-promessa de 16 de Fevereiro de 1996 revogou tacitamente o contrato-promessa celebrado entre as 1.ª e 2.ª rés, em 28 de Janeiro de 1993, pois que, a ser assim, a venda judicial dos direitos do promitente-comprador emergentes do contrato-promessa de 28 de Janeiro de 1993 ficaria sem objecto. E, por outro lado, pretende o autor que o Tribunal declare que, «ipso facto», por força do incumprimento da 1.ª ré, os seus direitos emergentes do contrato de 16 de Fevereiro de 1996, se transmitiram para o autor.
Não cabe, neste momento, a este Tribunal apurar se o autor tem razão ou não e se o Ex.mo Juiz de primeira instância julgou bem ou mal, absolvendo os réus do pedido.
O que sucede é que a alegada venda judicial dos direitos da promitente-compradora emergentes do 1.º contrato-promessa celebrado pelas 1.ª e 2.ª rés, em 28 de Janeiro de 1993, é completamente irrelevante para a boa decisão da causa.
Em primeiro lugar, o facto de venda ter sido judicial não retira que se trate da venda de um bem. Neste caso, ser venda judicial e não venda particular, fora de processo de execução, não obsta a que a venda sofra de vícios da vontade, que possa ter lugar uma venda de coisa alheia, que o bem objecto da venda não exista, etc.
Em segundo lugar, diz-se na decisão recorrida que a venda judicial é inatacável, pelo que a lide será inútil ou impossível.
Ora, não se percebe por que razão a venda judicial seja inatacável, nem com base em que elementos é que o acórdão recorrido se pronunciou em tal sentido, já que a venda judicial pode ser anulada, designadamente, nos termos dos arts. 908.º e 909.º do Código de Processo Civil de 1961 e 802.º e 803.º do Código de Processo Civil vigente.
A venda em execução fundamenta uma aquisição derivada e «o comprador só pode adquirir o direito do executado sobre o bem transmitido e nada adquire se aquela parte não for o titular do direito alienado».10
Mas ainda que a venda seja inatacável, isso é uma questão que não deve preocupar o Tribunal, pois se refere à autonomia da parte, neste caso, do autor, apenas a ele lhe competindo ajuizar qual a atitude processual ou extrajudicial a tomar face à eventual procedência da acção (ou seja, se o autor pedirá a restituição do dinheiro que mutuou, se pedirá indemnização, a quem a pedirá, se atacará a venda judicial ou não).
Como explica M. TEIXEIRA DE SOUSA11, o processo civil rege-se pelo princípio dispositivo, que assegura a autonomia das partes na definição dos fins que elas procuram obter através da acção.
De toda a sorte, ainda que a venda judicial fosse inatacável, isso não provocaria a inutilidade ou impossibilidade da lide.
É, deste modo, patente que a alegada venda judicial dos direitos da promitente-compradora emergentes do 1.º contrato-promessa celebrado pelas 1.ª e 2.ª rés, em 28 de Janeiro de 1993, é completamente irrelevante para a boa decisão da causa.
A decisão recorrida, ao entender diferentemente, violou o disposto nos arts. 712.º, n.º 2 e 510.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil de 1961.

Se este Tribunal pode fixar já o regime jurídico aplicável ao caso ou se deve limitar a revogar a decisão recorrida, a fim de que o Tribunal de Segunda Instância conheça do mérito do recurso do despacho saneador-sentença.
7. Como se sabe, no nosso direito, a regra geral é a de que os recursos jurisdicionais visam modificar as decisões recorridas e não criar decisões sobre matéria nova, que não foi apreciada pelo tribunal recorrido, salvo matéria de conhecimento oficioso.12
O Tribunal de Segunda Instância, por ter entendido que, para a boa decisão da lide, era necessário averiguar um facto, não conheceu do mérito do recurso.
Se o Tribunal de Última Instância, ao mesmo tempo que revoga a decisão recorrida, conhecesse do mérito do recurso da sentença de primeira instância, estaria a eliminar um grau de recurso e a conhecer de matéria que o Tribunal de Segunda Instância não apreciou. Poderá fazê-lo?
Há um caso em que o Tribunal de Última Instância fixa logo o regime jurídico aplicável ao caso, quando remete o processo para o Tribunal de Segunda Instância: é o previsto no art. 650.º, n. os 1 e 2 do Código de Processo Civil.
Mas trata-se de uma hipótese diversa da que nos ocupa. No caso do art. 650.º, n. os 1 e 2, é o Tribunal de Última Instância que anula a decisão recorrida por insuficiência ou contradição da matéria de facto.
No caso dos autos, o Tribunal de Última Instância revoga a decisão recorrida, mas não determina a ampliação da matéria de facto, pelo que se deve seguir a regra geral de não conhecer de matéria não apreciada na instância inferior, nem eliminar um grau de recurso.
É este o sistema do Código de Processo Civil de 196113, nos termos do n.º 2, do art. 762.º14 e tal norma só não terá sido mantida no novo Código, em virtude de este ter unificado o regime dos recursos, tendo passado a haver apenas um tipo de recurso em cada instância de recurso, sendo certo que aquela norma era privativa do agravo em 2.ª instância. Mas não se detecta qualquer intenção de inovação, nem a mesma faria sentido, face ao regime geral de recursos atrás desenhado.
Assim, impõe-se apenas revogar a decisão recorrida.

IV – Decisão
Face ao expendido, dão provimento ao recurso e revogam a decisão recorrida, para que o Tribunal de Segunda Instância, pelos mesmos Juízes, conheça do objecto do recurso, se outro motivo a tal não obstar.
Custas pelo recorrido D.
Macau, 23.5.2001
  Viriato Manuel Pinheiro de Lima
                           Sam Hou Fai
                          Chan Kuong Seng

1 ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, Coimbra, 1981, volume IV, p. 563.

2 A questão está hoje ultrapassada, dado que foi aditado um n.º 6, ao art. 712.º do Código de Processo Civil, que não chegou a vigorar em Macau, estabelecendo que «Das decisões da Relação previstas nos números anteriores não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça». (Decreto-Lei n.º 375-A/99, de 20.9).
3 Cfr. ABÍLIO NETO, Código de Processo Civil Anotado, Ediforum, Lisboa, 1999, 15.ª edição, p. 957 a 979.
4 Quando o recurso tem como fundamento a nulidade do acórdão recorrido, ainda se trata de violação ou a errada aplicação da lei de processo, mais concretamente dos arts. 571.º, n.º 1 e 633.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
       5 Sem prejuízo do disposto nos n.os 2 e 3 do art. 5.º do Código de Processo Civil.
6 ALBERTO DOS REIS, obra citada, III volume, p. 197 e 198, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 79.º, p. 94 e nas Actas da Comissão Revisora do Código de Processo Civil, sessão de 23 de Novembro de 1937, em Boletim do Ministério da Justiça, n.º 116, p. 202.
7 A. ANSELMO DE CASTRO, Direito Processual Civil Declaratório, Livraria Almedina, Coimbra, 1982, volume III, p. 279 e 280, que não se acompanha, no entanto, na parte em que considera que todas as questões concernentes à especificação e questionário são questões de direito.
       8 ANTUNES VARELA, em anotação a decisão judicial na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 125.º, p. 331.
       9 ANTUNES VARELA, estudo citado, p. 309, também entende que nestes casos o Supremo não pode conhecer da decisão da Relação, pois que «está-se, efectivamente, numa zona de declarações que, não pertencendo embora ao puro domínio da investigação factual, nem ao puro reino da preceptologia normativa, está mais próxima do alicerce dos factos, porque lhes diz respeito, do que da cimalha das normas jurídicas».
       10 M. TEIXEIRA DE SOUSA, Acção Executiva Singular, Lex, Lisboa, 1998, p. 384.
11 M. TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, 2.ª ed., p. 69.
       12 Sobre esta matéria, cfr. M. TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos..., p. 373 a 375 e 395 a 397.
13 Que ainda vigora em Portugal e que deixou de vigorar em Macau, com a abolição dos recursos de revista e de agravo em 2.ª instância, nos termos do art. 54.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 17/92/M, de 2.3, por força da autonomia judiciária do Território, em 1993, pois que o Código previa três graus de jurisdição (tribunais de primeira e segunda instâncias e Supremo Tribunal de Justiça) e, em Macau, passou a haver dois graus de jurisdição, com tribunais de primeira instância e Tribunal Superior de Justiça.
14 Que dispõe: «Se a Relação, por qualquer motivo, tiver deixado de conhecer do objecto do recurso, o Supremo revogará a decisão no caso de entender que o motivo não procede e mandará que a Relação, pelos mesmos juízes, conheça do referido objecto».
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