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 Processo n.º 1/2001. Recurso extraordinário para fixação de jurisprudência em processo penal.
Recorrente: Ministério Público.
Recorrido: A e outros.
Assunto: Recurso extraordinário para fixação de jurisprudência em processo penal. Oposição de acórdãos. Acórdão do Tribunal Superior de Justiça.
Data da Sessão: 17.1.2001.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Sam Hou Fai e Chu Kin.

SUMÁRIO:
Para efeitos do n.º 2, do art. 419.º, do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pelo art. 73.º da Lei n.º 9/1999, de 20.12, pode constituir acórdão fundamento, ou seja o acórdão proferido em primeiro lugar, um acórdão do Tribunal Superior de Justiça.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

Relatório.
1. O Ex.mo Procurador-Adjunto, junto do Tribunal de Segunda Instância, interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, para o Tribunal de Última Instância, do Acórdão de 21.9.2000, do Tribunal de Segunda Instância, no Processo n.º 132/2000, invocando que este Acórdão estava em oposição, sobre a mesma questão de direito, com o Acórdão do Tribunal Superior de Justiça, de 30.9.98, no Processo n.º 911, publicado na Jurisprudência, 1998, Tomo II, p. 473 e segs.
De acordo com o Ilustre Recorrente, a questão sobre a qual há divergência é a seguinte:
O acórdão recorrido decidiu que:
- O art. 120.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal impede os co-arguidos de prestar declarações, nesta qualidade, contra outros arguidos, na audiência de julgamento;
- Considerar essas declarações, nesses termos e com esse âmbito, na motivação da convicção do Tribunal constitui, pois, um meio proibido de prova, por violação daquela disposição.
Por sua vez, no Acórdão de 30.9.98, do Tribunal Superior de Justiça, decidiu-se que:
- O mencionado 120.º, n.º 1, alínea a) apenas proíbe os co-arguidos de depor, como testemunhas, contra outros arguidos, na audiência de julgamento;
- As declarações dos co-arguidos, nesta qualidade, contra outros arguidos podem, pois, ser consideradas na motivação da convicção do Tribunal (sem prejuízo de terem de ser corroboradas com outros meios de prova), não constituindo um meio proibido de prova.

Os pressupostos processuais do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, em processo penal.
2. Cabe proferir a decisão a que se refere o n.º 1, do art. 423.º, do Código de Processo Penal, isto é, decidir se o recurso deve prosseguir ou se deve ser rejeitado, por ocorrer motivo de inadmissibilidade ou por não existir oposição de julgados.
Dispõe o art. 419.º do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pelo art. 73.º da Lei n.º 9/1999, de 20.12:
«Artigo 419 º
Fundamento do recurso
1. Quando, no domínio da mesma legislação, o Tribunal de Última Instância proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, o Ministério Público, o arguido, o assistente ou a parte civil podem recorrer, para uniformização de jurisprudência, do acórdão proferido em último lugar.
2. É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando o Tribunal de Segunda Instância proferir acórdão que esteja em oposição com outro do mesmo tribunal ou do Tribunal de Última Instância, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Tribunal de Última Instância.
3. Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.
4. Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado».

Trata-se de saber:
- Se foram proferidos dois acórdãos que, relativamente, à mesma questão de direito, assentam em soluções opostas;
- Se as decisões foram proferidas no domínio da mesma legislação;
- Se o acórdão fundamento é anterior ao acórdão recorrido e se transitou em julgado;
- Se do acórdão recorrido não era admissível recurso ordinário.
   - Se o recurso foi interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar (n.º 1, do art. 420.º do Código de Processo Penal).
De acordo com a letra do referido art. 419.º, os acórdãos em oposição terão de ser do Tribunal de Última Instância ou do Tribunal de Segunda Instância.
Ora, o acórdão fundamento é do Tribunal Superior de Justiça.
Preliminarmente, importa, assim, decidir se, para efeitos do n.º 2, do art. 419.º, pode constituir acórdão fundamento, ou seja o acórdão proferido em primeiro lugar, um acórdão do Tribunal Superior de Justiça.

A interpretação teleológica do art. 419.º do Código de Processo Penal.
3. Seguir-se-á, nesta parte, de perto o despacho do presente Relator1, que decidiu reclamação contra despacho do Ex.mo Relator do Tribunal de Segunda Instância, que não admitira o recurso.
Entende-se ser possível o recurso.
E as razões para a interpretação extensiva da referida norma, ou seja, para admitir que o legislador disse menos do que queria dizer2, quando apenas referiu os acórdãos do Tribunal de Segunda Instância e não também os do Tribunal Superior de Justiça, como podendo constituir o acórdão anterior, em oposição com o acórdão recorrido, do Tribunal de Segunda Instância, são as seguintes:
Como é sabido, de acordo com os arts. 8.º e 18.º da Lei Básica, os actos normativos previamente vigentes em Macau (antes de 20 de Dezembro de 1999) mantiveram-se em vigor, com excepção dos que contrariavam esta Lei e dos entretanto alterados ou revogados.
A regra foi, pois, a da continuidade do sistema jurídico.
No que respeita aos processos judiciais, a regra foi, também, a da continuidade, continuando seus termos nos novos tribunais, de acordo com o art. 10.º da Lei de Reunificação, Lei n.º 1/1999, e com as alíneas 1) e 2), do n.º 2, do art. 70.º da Lei n.º 9/1999.

4. Mas a norma decisiva para afirmar a possibilidade de, para efeitos do n.º 2, do art. 419.º do Código de Processo Penal, poder constituir acórdão fundamento, ou seja o acórdão proferido em primeiro lugar, um acórdão do Tribunal Superior de Justiça, é a da alínea b), do n.º 6, do art. 2.º do Decreto-Lei n.º 55/99/M, de 8.10, na redacção introduzida pelo art. 79.º da Lei n.º 9/1999.
Na verdade, o diploma que aprovou o novo Código de Processo Civil, o já referido Decreto-Lei n.º 55/99/M, dispunha na sua redacção original que «Os acórdãos que procedam à uniformização da jurisprudência, nos termos das disposições mencionadas na alínea anterior, bem como os assentos que, até à data da entrada em vigor do Código Civil aprovado pelo Decreto-Lei n.º 39/99/M, de 3 de Agosto, tenham sido proferidos constituem jurisprudência obrigatória para os tribunais de Macau;».
O mencionado art. 79.º da Lei n.º 9/1999, fez uma pequena alteração no texto da alínea b), do n.º 6, do art. 2.º do Decreto-Lei n.º 55/99/M, mas enorme em termos de significado jurídico: intercalou o inciso «pelo Tribunal Superior de Justiça» entre os vocábulos «proferidos» e «constituem».
Em síntese, o legislador da RAEM pretendeu que, de entre as centenas de assentos produzidos pelo Supremo Tribunal de Justiça e dos dois da autoria do Tribunal Superior de Justiça, apenas os deste último passassem a constituir jurisprudência obrigatória para os tribunais de Macau.
E a razão legislativa não é difícil de perscrutar.
As leis anteriormente vigentes que continuaram em vigor foram apenas as emitidas por órgãos normativos da pessoa colectiva pública, Território de Macau, e não as emitidas pelos órgãos normativos da República Portuguesa (n.º 4, do art. 4.º da Lei de Reunificação).
Semelhantemente, com o art. 79.º da Lei n.º 9/1999, pretendeu-se que continuassem a constituir precedente obrigatório para os tribunais de Macau apenas os assentos emitidos por tribunais da organização judiciária de Macau, após a autonomia judiciária, que ocorreu em 1993, afastando os assentos do Supremo Tribunal de Justiça, que não estavam nestas condições.
Pois bem, se foi intenção do legislador da RAEM que continuassem a constituir jurisprudência obrigatória para os tribunais de Macau, incluindo para este Tribunal3, os antigos assentos do Tribunal Superior de Justiça, então por maioria de razão, tem de entender-se que um acórdão do Tribunal Superior de Justiça pode constituir acórdão fundamento, por oposição a outro do Tribunal de Segunda Instância, para que o Tribunal de Última Instância possa ter a última palavra e fixar jurisprudência obrigatória.

5. O argumento, segundo qual o legislador do art. 79.º da Lei n.º 9/1999, é o mesmo que alterou o art. 419.º do Código de Processo Penal, pelo que se pretendesse poderia ter feito constar deste, os acórdãos do Tribunal Superior de Justiça, não procede.
Tal argumento só poderia ter valor se se demonstrasse que as alterações ao Código de Processo Penal, introduzidas pela Lei n.º 9/1999, com vista à adaptação aos novos órgãos judiciais, foram exaustivas e nada foi deixado de fora.
Mas não foi assim, o que se compreende atentas as condições de elaboração da legislação que foi aprovada, publicada e entrou em vigor em 20 de Dezembro de 1999.
Por exemplo, em matéria de impedimento de juízes, não se previu qual o tribunal competente para se conhecer do recurso das decisões em que juízes dos Tribunais de Segunda e de Última Instâncias não reconheçam o seu impedimento (art. 31.º, n.os 2 e 3 do Código de Processo Penal)4.
Por outro lado, é sabido que quando o legislador intervém, produzindo normas jurídicas, por maior que seja a sua imaginação, não pode prever5 toda a panóplia de situações que a vida, no dia a dia, se encarrega de criar.
É por isso que o sistema jurídico fornece ao intérprete os instrumentos necessários a captar a vontade da lei, de modo a não trair o seu espírito, que é o que muitas vezes acontece quando se obedece à mera letra da lei.
Assim, nada obsta a que se faça interpretação extensiva do referido art. 419.º do Código de Processo Penal.

A oposição dos acórdãos de 30.9.98 e de 21.9.2000 sobre a mesma questão de direito.
6. O art. 120.º do Código de Processo Penal, inserido num capítulo dedicado à prova testemunhal, estabelece os impedimentos para se ser testemunha. Dispõe na alínea a), do n.º 1, que:
«1. Estão impedidos de depor como testemunhas:
a) O arguido e o co-arguido no mesmo processo ou em processo conexo, enquanto mantiverem aquela qualidade;».

No acórdão do Tribunal Superior de Justiça, de 30.9.98, no Processo n.º 911, publicado na Jurisprudência, 1998, Tomo II, p. 473 e segs., doutrinou-se:
«I. O impedimento da alínea a) do n.º 1 do artigo 120.º do Código de Processo Penal reporta-se ao depoimento, sob juramento, como testemunha de qualquer arguido no mesmo processo ou em processo conexo por forma a incriminar ou ilibar o co-arguido.
II. Nada impede que no âmbito do interrogatório do arguido sejam colocadas questões referentes à actuação do co-arguido ou de arguido em processo conexo.
Essas respostas podem, em conjunto com outros elementos de prova, fundar as respostas à matéria de facto.
III. Tratando-se de crime de tráfico de estupefacientes, o artigo 18.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 5/91/M, de 28 de Janeiro sempre autoriza que o arguido seja interrogado sobre a conduta de outro arguido e que esse interrogatório contribua para o culpabilizar6».
Por sua vez, no Acórdão de 21.9.2000, do Tribunal de Segunda Instância, no Processo n.º 132/2000, decidiu-se:
«2. Os co-arguidos não podem testemunhar uns relativamente aos outros dentro do mesmo processo ou em processo conexo em caso de co-arguição e nos limites desta.
3. Considerar na motivação da convicção do Tribunal declarações de co-arguidos para fazerem prova contra outros é uma forma ínvia de as acolher como depoimentos, sendo por isso um meio de prova proibida, gerador de nulidade7».
Acrescente-se, ainda que, neste Acórdão, tal como no anterior, estava em causa a utilização das declarações de arguido contra outro co-arguido, na audiência de julgamento, tendo o Tribunal fundado nelas a convicção para a condenação deste último.
No Acórdão do Tribunal de Segunda Instância considerou-se, em suma, que a alínea a), do n.º 1, do art. 120.º do Código de Processo Penal não permite que o tribunal funde a sua convicção, no julgamento da matéria de facto, nas declarações de arguido contra outro co-arguido.
No acórdão do Tribunal Superior de Justiça decidiu-se em sentido completamente oposto.
É, pois, evidente a divergência dos dois acórdãos sobre a mesma questão de direito.
Estamos no âmbito da mesma legislação, o Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 48/96/M, de 2 de Setembro, sendo a norma fundamental (o art. 120.º) a mesma, sem qualquer alteração de redacção.
O acórdão fundamento é anterior ao acórdão recorrido e transitou em julgado (cfr. certidão de fls. 133).
Do acórdão recorrido não era admissível recurso ordinário [alínea d), do n.º 1, do art. 390.º do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pelo art. 73.º da Lei n.º 9/1999].
   O presente recurso para a fixação de jurisprudência foi interposto em 31.10.2000, portanto, no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar (que transitou em 3.10.2000, como consta da certidão de fls. 22).
Estão, portanto, reunidos os pressupostos para que o Tribunal de Última Instância profira acórdão de uniformização de jurisprudência, obrigatória para os tribunais.

7. Face ao expendido, determina-se o prosseguimento do processo.
Notifique para alegações, nos termos do n.º 1, do art. 424.º do Código de Processo Penal.
Macau, 17.1.2001
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
                      Sam Hou Fai
Chu Kin
       1 Na qualidade de substituto do Presidente deste Tribunal de Última Instância.
       2 Como refere CLAUS – WILHELM CANARIS, Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito, 2.ª ed., 1996, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, p. 160, no que toca “à relação entre a interpretação teleológica e a gramatical, é geralmente aceite a proposição de que «o sentido e o escopo da lei estão mais altos que o seu teor»”.
       3 Sem prejuízo da sua alteração ou revogação, nos termos legais, pelo Tribunal de Última Instância.
       4 Embora não seja difícil ao intérprete integrar as lacunas, por via das regras constantes das referidas normas.
       5 Nem deve, como demonstra a teoria da interpretação das leis, sob pena de rápida desactualização do texto.
       6 Texto constante do respectivo sumário, que traduz o conteúdo do aresto.
       7 Texto constante do respectivo sumário, que traduz o conteúdo do aresto.
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Proc. n.º 1/2001