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Processo n.º 4/2002 Conflito negativo de competência
Juízes em conflito: Ex. mos Juízes do Tribunal de Segunda Instância.
Assunto: Conflito de competência. Impedimento. Substituição de juiz. Competência para conhecer de conflito de competência entre juízes do Tribunal de Segunda Instância.
Data da sessão: 10 de Abril de 2002.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Sam Hou Fai e Chu Kin.

Sumário:

I – Quando a divergência sobre a respectiva competência entre juízes do mesmo tribunal de primeira instância é de carácter jurisdicional deve entender-se que se trata de um conflito de competência a ser resolvido pelo tribunal imediatamente superior. Quando a divergência é de carácter administrativo pode cair no âmbito do art. 156.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
II – O conflito de competência entre juízes do Tribunal de Segunda Instância acerca de quem deve intervir como Adjunto em julgamento de recurso deve ser solucionado pelo processo de resolução de conflitos de competência.
III – O processo para resolução de conflitos de competência deve ser utilizado em casos em que há bloqueamento quanto a saber que juiz deve intervir em determinado julgamento, mesmo que tecnicamente se não trate de conflito de competência, se nenhuma outra via se afigura possível em concreto.
IV – Verifica-se a situação prevista na conclusão anterior quando um Juiz intervindo como Adjunto em recurso penal no Tribunal de Segunda Instância deduz impedimento, o juiz que o deve substituir se recusa a intervir por discordar do fundamento invocado pelo Colega, e o Relator do Processo e o Presidente declinaram fazer intervir um outro juiz como adjunto, em substituição dos anteriores.
V - Compete ao Tribunal de Última Instância conhecer dos conflitos de competência, ou a tal equiparados, entre juízes do Tribunal de Segunda Instância.
VI – O juiz a quem cabe substituir um juiz que se declarou impedido não pode recusar-se a substituí-lo com fundamento na ilegalidade da declaração de impedimento.
O Relator
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório, factos e outros elementos com interesse para a decisão

1. No processo comum colectivo n.º 242/2001, do Tribunal Judicial de Base, foram julgados vários arguidos, tendo três deles interposto recurso ordinário para o Tribunal de Segunda Instância.
2. O Senhor Dr. António Dias Azedo, advogado em Macau, tinha e tem procuração de dois dos arguidos, não recorrentes, tendo substabelecido os seus poderes forenses noutro advogado.
3. No Tribunal de Segunda Instância o recurso foi distribuído ao Relator, Senhor Dr. Choi Mou Pan, cabendo-lhe, portanto, como Adjuntos, o Ex.mo Presidente e o Senhor Dr. José Maria Dias Azedo, este por ser o juiz que se segue em antiguidade ao relator (n.º 4, do art. 25.º da Lei de Bases da Organização Judiciária).
4. Tendo o recurso sido presente ao Ex.mo Juiz Dr. José Maria Dias Azedo para efeitos de aposição de visto, declarou-se o mesmo impedido de intervir no julgamento, nos termos dos arts. 311.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil e 4.º do Código de Processo Penal, com fundamento em que o referido Senhor Dr. António Dias Azedo, seu irmão, era mandatário judicial de arguidos, embora tivesse substabelecido, mas que o substabelecimento por não ser «sem reserva» não excluía o mandato. Ponderou, ainda que poderia vir a ocorrer a declaração de nulidade do acórdão recorrido e do próprio julgamento, o que aproveitaria aos arguidos não recorrentes, incluindo os patrocinados por seu irmão.
5. Foi então o processo concluso ao Juiz que se segue em antiguidade ao Senhor Dr. José Maria Dias Azedo, o Senhor Dr. Chan Kuong Seng, com vista à substituição do adjunto que se declarara impedido de intervir (art. 43.º, n.º 2, da já mencionada Lei de Bases da Organização Judiciária).
O Ex.mo Juiz Dr. Chan Kuong Seng apreciou os fundamentos pelos quais o Ex.mo Juiz Dr. José Maria Dias Azedo se declara impedido, entendendo que os fundamentos de impedimento constantes dos arts. 28.º e 29.º do Código de Processo Penal são taxativos, pelo que se não pode socorrer dos fundamentos de impedimentos previstos no Código de Processo Civil. Ora, acrescenta, não constando como impedimento no Código de Processo Penal a intervenção na causa, como mandatário judicial, de parente no segundo grau da linha colateral do juiz, não pode este declarar-se impedido.
Numa segunda linha de argumentação o Ex.mo Juiz Dr. Chan Kuong Seng, defendeu que, ainda que se sufragasse a tese de que a situação mencionada constitui impedimento em processo penal, o certo é que, apesar de ter procuração nos autos, o Senhor Dr. António Dias Azedo não alegou, nem recorreu, nem subscreveu qualquer contramotivação nos recursos em nome dos arguidos. Ora, acrescenta, só a efectiva intervenção como mandatário justificaria a declaração de impedimento.
O Senhor Dr. Chan Kuong Seng ponderou, ainda, que os representados pelo Senhor Dr. António Dias Azedo foram condenados pela prática de um crime previsto e punível pelo art. 23.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 5/91/M, enquanto que os recorrentes o foram pelo crime previsto e punível pelo art. 8.º, n.º 1 do mesmo Decreto-Lei n.º 5/91/M, pelo que o recurso não aproveita aos primeiros, não podendo os não recorrentes ser afectados em novo julgamento.
Terminou o Ex.mo Juiz Dr. Chan Kuong Seng declarando não poder substituir o Ex.mo Juiz Dr. José Maria Dias Azedo no processo, determinando que os autos fossem conclusos ao Relator. Para tal, disse «não existir impedimento por parte do M.mo Juiz Colega signatário do despacho que antecede como tal por este ai declarado, e atendendo à necessidade de zelar pela observância do precioso princípio processual do juiz natural ou, sob outro prisma, da “proibição do desaforamento” no processo penal, subjacente maxime ao art. 22.º, n.º 2, da Lei n.º 9/1999, de 20 de Dezembro, de Bases da Organização Judiciária da R.A.E.M., bem como para se prevenir dos efeitos eventualmente a relevar do art. 106.º, proémio, e al. a), segunda parte, do CPP, desde já declaro que não posso substituir o M.mo Juiz Colega Dr. Dias Azedo nas suas funções de 1.º Juiz Adjunto no julgamento do presente Processo n.º 242/2001, deste Tribunal de Segunda Instância».
6. Sendo os autos conclusos ao Ex.mo Relator, entendeu este que não se tratava de um conflito de competência, mas de uma questão de distribuição do processo, pelo que remeteu os autos ao Ex.mo Presidente do Tribunal, nos termos e para os efeitos do art. 42.º, alínea 3) da Lei de Bases da Organização Judiciária.
7. O Ex.mo Presidente considerou que não estava em causa uma questão de distribuição, mas se tratava antes de uma questão de composição do Tribunal, pelo que entendeu nada ter a ordenar e devolveu os autos ao Ex.mo Relator.
8. O Ex.mo Relator, perante o despacho antecedente, entendeu explicitar melhor o seu pensamento e fê-lo da seguinte forma:
- As competências do relator estão previstas nos arts. 407.º, 408.º, n.º 1, 414.º e 417.º do Código de Processo Penal e não tem outras competências próprias;
- É o Presidente do Tribunal que tem competência para designar dia para a audiência e proceder às diligências necessárias, devendo mandar completar os vistos, se for caso disso;
- A declaração de impedimento é irrecorrível (art. 33.º do Código de Processo Penal), pelo que está afastada a via da resolução de conflito para apreciar a declaração de impedimento;
- Tendo o M.mo Juiz seguinte recusado intervir em substituição, cabe ao Presidente intervir para garantir o normal funcionamento do Tribunal e decidir uma questão que se prende com a distribuição ou afectação de um processo ao 1.º Juiz-Adjunto.
E remeteu, novamente os autos ao Ex.mo Presidente.
9. O Ex.mo Presidente rebateu os argumentos utilizados pelo Ex.mo Relator, tendo expendido, nomeadamente, que:
- A irrecorribilidade da declaração de impedimento não obsta a que não possa ser sindicada através do instituto de conflito de competência a suscitar por um juiz;
- A não se entender assim, se o Adjunto se declarar impedido e o seu substituto legal entender não dever ser substituto, por ser infundado o impedimento invocado, se viesse a intervir outro juiz como adjunto, poderia não aceitar essa indicação e assim sucessivamente, com o que não haveria substituto;
- Deve ser o Tribunal de Última Instância a dirimir o conflito entre os dois juízes, dado que já não existe o Tribunal Superior de Justiça, pelo que de acordo com interpretação actualista do art. 25.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, deve ser o órgão supremo da hierarquia dos tribunais a dirimir o conflito, por ser o Tribunal imediatamente superior às autoridades em conflito.
E suscitou o conflito negativo entre os dois Juízes já referidos, Senhores Drs. José Maria Dias Azedo e Chan Kuong Seng.
10. Já neste Tribunal de Última Instância foram ouvidos os Juízes em conflito.
O Senhor Dr. José Maria Dias Azedo remeteu para o seu despacho proferido nos autos.
O Senhor Dr. Chan Kuong Seng na sua resposta, acentuou que:
- Os fundamentos indicados pelo Ex.mo Juiz Senhor Dr. José Maria Dias Azedo não relevam em sede de impedimento, só poderiam relevar em sede de escusa;
- Ao ter decidido nos termos constantes dos autos, o signatário não estava a fazê-lo ao abrigo do instituto de impedimento ou de escusa de juiz, mas sob a égide da regra geral de conhecimento oficioso da incompetência do tribunal;
- Afigura-se adequada a via do conflito de competência para solucionar o conflito.
O Ex.mo Procurador-Adjunto veio dizer o seguinte:
«Suscitam-se dúvidas sobre se a questão em apreço não assume uma natureza meramente administrativa, devendo, em consonância, ter uma solução igualmente administrativa.
E ocorre, nessa perspectiva, a chamada à colação do art. 156.°, n.° 2, do C. P. Civil.
Haveria, entretanto, no âmbito desse Diploma, que lançar mão da analogia.
E, a propósito, emergem, de facto, não poucas reservas.
O art. 9°, n.º 2, do C. Civil, prescreve que "há analogia sempre que no caso omisso procedam as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei".
E o subsequente art. 10.° dispõe que "as normas excepcionais não comportam aplicação analógica ...".
Tarefa extremamente difícil, todavia, é a de saber onde há e onde não há analogia - colocando-se, também, na definição e na análise das regras excepcionais, problemas complexos e de difícil resolução (cfr Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e Teoria Geral, Uma Perspectiva Luso-Brasileira, 10.ª Ed., pgs. 445 e sgs.).
E, no caso presente, propendemos, efectivamente, para a exclusão da "analogia legis".
A peculiaridade da "ratio" da norma em causa não permite, na verdade, na nossa óptica, a sua extensão (por analogia) a outros casos.
As "divergências ...entre juízes", a que se reporta a mesma, não podem, em nosso juízo, deixar de ter-se como específicas e conexionadas com o respectivo caso concreto.
Há, assim, do nosso ponto de vista, que enveredar por uma solução jurisdicional.
O Ex.mo Juiz Dr. José Maria Dias Azedo declarou-se impedido de intervir no julgamento do recurso.
E está consagrada, como é sabido, no C. P. Penal, a regra da irrecorribilidade dessa decisão (cfr. art. 31.°, n.º 1).
Deve concluir-se, assim, que a posição assumida por aquele Ilustre Magistrado só pode ser apreciada em sede inspectiva ou disciplinar.
O Ex.mo Juiz Dr. Chan Kuong Seng, entretanto, declarou que não podia substituir o seu Ex.mo Colega, por entender infundado o impedimento invocado.
Estava-lhe vedada, porém, a nosso ver, a assunção dessa posição.
Não cabia, na realidade, na sua jurisdição, o poder de ajuizar da bondade do impedimento deduzido.
O que equivale a afirmar - salvo o devido respeito - que tomou uma decisão sem ter, para tanto, o necessário poder jurisdicional.
Deve, pelo exposto, decidir-se pela intervenção no processo do Ex.mo Juiz Dr. Chan Kuong Seng».

II – O Direito
As questões a decidir

1. São de três ordens as questões a resolver.
A) O primeiro grupo de questões consiste em saber se existe conflito (negativo) de competência que importe ser dirimido.
Dentro desta, importa considerar a seguinte subquestão prévia:
A) 1) Se o conflito de competência respeita necessariamente a tribunais diferentes ou se pode ocorrer entre juízes do mesmo tribunal.
B) O segundo, no caso de a resposta à questão anterior ser positiva, é a de apurar qual o Tribunal competente para resolver o conflito.
C) A terceira grande questão, no caso de a resposta à questão anterior apontar para a competência deste Tribunal de Última Instância, é a de mérito da causa, ou seja, qual o Juiz que deve intervir como Adjunto no recurso penal.

Se existe conflito negativo de competência entre os Juízes do Tribunal de Segunda Instância, Senhores Drs. José Maria Dias Azedo e Chan Kuong Seng

2. De acordo com o n.º 1, do art. 24.º, do Código de Processo Penal «há conflito, positivo ou negativo, de competência quando, em qualquer estado do processo, dois ou mais tribunais se consideram competentes ou incompetentes para conhecer do mesmo crime imputado ao arguido».
Talvez, com maior rigor, o n.º 1, do art. 35.º do Código de Processo Civil estatui que «há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais de Macau se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão». Isto porque, em processo penal pode não estar em causa conhecer de um crime, mas de outra questão lateral, sobre a qual se suscite conflito.
Nos presentes autos, um Juiz do Tribunal de Segunda Instância considerou haver uma situação de impedimento e, por isso, declarou-se impedido de continuar a intervir como Adjunto em recurso jurisdicional, em matéria penal.
O Juiz a quem competia substituir o anterior recusou-se a fazê-lo, entendendo que o primeiro não tinha fundamento legal para declarar o impedimento.
Estes despachos transitaram em julgado.
Entretanto, o Relator do processo considera que deve ser o Presidente do Tribunal a solucionar o impasse - designadamente indicando o Adjunto que deve intervir - e não ele.
O Presidente do Tribunal entende que não lhe cabe dar a solução ao problema, pois se está perante um conflito de competência e não de distribuição.
Como se retira da exposição feita, há aqui não uma, mas duas, situações de impasse:
- A primeira, entre dois Juízes, acerca da questão de saber quem deve intervir como Adjunto no recurso;
- A segunda, entre o Relator do processo e o Presidente, acerca de quem deve (e como) solucionar o impasse anterior.
Este Tribunal só foi chamado a resolver a primeira.

Se o conflito de competência respeita necessariamente a tribunais diferentes ou se pode ocorrer entre juízes do mesmo tribunal

3. A lei, como se viu, na sua letra, considera haver conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais de Macau se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão.
A competência era definida por CASTRO MENDES1 como a medida de jurisdição atribuída a cada tribunal.
Face à letra da lei, o conflito parece só poder existir entre tribunais diferentes, não entre juízes do mesmo tribunal. Reflexo deste entendimento é o facto de a lei que regula a competência para resolver conflitos, só os configurar entre tribunais diversos, de primeira instância ou entre tribunais de primeira instância e o Tribunal de Segunda Instância [arts. 44.º, alínea 14) e 36.º, alínea 13) da Lei de Bases da Organização Judiciária].
Tendo-se suscitado conflitos em Portugal entre juízes dos tribunais cíveis de Lisboa e Porto, em face da divisão de competência entre Varas e Juízos, o legislador da Reforma Processual de 1961 criou uma nova norma, a do n.º 2, do art. 210.º do Código de Processo Civil,2 diploma este que vigorou em Macau até 31 de Outubro de 1999. Dispunha tal norma:
   «As divergências que se suscitem entre juízes da mesma comarca sobre a designação do juízo ou vara em que o processo há-de correr são resolvidas pelo presidente da Relação do respectivo distrito, observando-se processo semelhante ao estabelecido nos artigos 117.º e seguintes».
Pretendeu-se com esta norma que os conflitos entre juízes do mesmo tribunal de primeira instância fossem resolvidos pelo presidente do tribunal de 2.ª instância da respectiva área.3
Simplesmente, a jurisprudência não se orientou unanimemente no sentido aparentemente pretendido pelo legislador com a inovação. E dividiu-se em dois sentidos.4 Para uns, o conflito entre juízes do mesmo tribunal configura-se sempre como questão a decidir pelo presidente do tribunal superior. Para outros, há que distinguir: “Se o problema que se suscita é o de saber como distribuir entre os juízes da mesma comarca os processos que aí ingressam, a dúvida é resolvida pelo presidente da Relação respectiva, como matéria administrativa que é; porém, se a divergência exceder o âmbito da mera distribuição do serviço, como sucede, por exemplo, se o juiz de uma comarca e o juiz de círculo divergirem quanto a saber qual deles tem competência para decidir determinada acção, está configurado um conflito de competência a resolver pela Relação”.5
O art. 156.º, n.º 2, do actual Código de Processo Civil, tem redacção semelhante ao referido art. 210.º, n.º 2 do Código de Processo Civil de 1961.
Em Macau, o Tribunal de Segunda Instância considerou tratar-se de um conflito impróprio de competência o ocorrido entre um juiz do Tribunal Judicial de Base e um juiz presidente de tribunal colectivo do mesmo Tribunal, que declinaram a competência do tribunal singular e do tribunal colectivo, respectivamente, para proceder ao julgamento da matéria de facto de acção para declaração de falência.6
Ainda o mesmo Tribunal de Segunda Instância considerou no seu Acórdão de 14.12.2000, Processo n.º 191/2000,7que quando dois Juízos do mesmo Tribunal se arroguem ou declinem a sua competência para conhecer de determinado litígio, se está perante conflito de competência.
O mesmo Tribunal tratou como conflito negativo de competência o ocorrido entre dois juízes presidentes de tribunal colectivo sobre a competência para presidir ao tribunal colectivo de um processo-crime cujo julgamento havia sido anulado.8
Que dizer de tudo o que fica exposto?
Em geral, quando a divergência sobre a respectiva competência entre juízes do mesmo tribunal de primeira instância é de carácter jurisdicional deve entender-se que se trata de um conflito de competência a ser resolvido pelo tribunal imediatamente superior. Quando a divergência é de carácter administrativo pode cair no âmbito do art. 156.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
De qualquer modo, mesmo as divergências a que alude o art. 156.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, referem-se apenas às ocorridas entre juízes de primeira instância, pelo que a dos autos ficaria sempre fora do seu âmbito, visto que as disposições excepcionais 9 não comportam aplicação analógica (art. 10.º do Código Civil).
De resto, como notam J. LEBRE DE FREITAS, JOÃO REDINHA e RUI PINTO,10 e resulta dos arts. 25.º, n.os 2, 3, 4 e 5 da Lei de Bases da Organização Judiciária e 155.º do Código de Processo Civil, ao contrário do relator, os juízes-adjuntos não são escolhidos por distribuição, pelo que sempre seria inadequado o recurso ao disposto no n.º 2, do art. 156.º deste último diploma legal.
Em conclusão, o conflito entre juízes do Tribunal de Segunda Instância acerca de quem deve intervir como Adjunto em julgamento de recurso deve ser solucionado pelo processo de resolução de conflitos de competência.

A questão de saber se nos autos se verifica um conflito de competência

4. Aproximemo-nos, agora, da questão concreta, que é a de saber se, no caso dos autos, se verifica efectivamente um conflito de competência, cuja resolução se imponha.
Como se disse, há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão.
Já se ponderou que a competência de um tribunal é a fracção do poder jurisdicional atribuída a esse tribunal.
A função dos impedimentos e suspeições é a de garantir a imparcialidade dos juízes em relação a determinada causa.
Os motivos de impedimento originam uma incapacidade absoluta para o exercício da função judicial no processo a que respeitam, não obstante o juiz deter competência para a causa.11
Como se expressa ALBERTO DOS REIS,12 a propósito das garantias de imparcialidade (impedimentos e suspeições), “quando, por qualquer circunstância especial, os interesses particulares em litígio são susceptíveis de comprometer a imparcialidade do julgador, de o afastar da linha honesta da justa composição da lide, estamos em presença dum caso de inidoneidade ou incapacidade do órgão jurisdicional. O juiz tem capacidade para o exercício da função em geral; não a tem para o caso particular de que se trata”.
O Ex.mo Juiz Dr. José Maria Dias Azedo declarou-se impedido de intervir no julgamento do recurso como Adjunto.
Dado que o Dr. José Maria Dias Azedo continua a deter competência para a causa, pareceria que a sua dedução de impedimento, não poderia originar um conflito negativo de competência. Mas, esta conclusão dedutiva pode verificar-se não ser operativa, como se verá mais adiante.
Por seu lado, o Ex.mo Juiz Dr. Chan Kuong Seng declarou não poder substituir o Ex.mo Juiz Dr. José Maria Dias Azedo no processo, por entender que este não tinha fundamento legal para se ter declarado impedido.
Em bom rigor, também não se trata da arguição de incompetência, já que se trata de um Juiz do Tribunal de Segunda Instância regularmente investido, sendo que tem poder para intervir como Adjunto no julgamento do recurso, a título de substituto do primitivo Adjunto. Também não foi invocada qualquer situação de impedimento, de incapacidade por via de relação com o processo concreto.
O certo é que se chegou a uma situação de impasse, de impossibilidade de designação de Adjunto para intervir no julgamento do recurso.
Na verdade, se em abstracto poderia intervir um outro juiz como Adjunto, em concreto tal possibilidade gorou-se, visto que tanto o Ex.mo Relator como o Ex.mo Presidente declinaram fazer intervir um outro Juiz como Adjunto, e que atrás caracterizámos em II – 2., como segunda situação de impasse.
Pois bem, assim sendo, não se divisa possibilidade de designar Juiz Adjunto para intervir no julgamento do recurso, a não ser pela via da resolução do conflito negativo de competência.
Da mesma maneira que a todo o direito corresponde uma acção destinada a fazê-lo reconhecer em juízo (art. 1.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), também a todo o bloqueamento judiciário há-de corresponder uma solução.
Logo, como o sistema judiciário não pode, pela natureza das coisas, ter um bloqueamento, um impasse, numa situação como a presente, e na falta de outra via para a resolução da questão, deve entender-se que o processo para resolução de conflitos de competência deve ser utilizado em casos como o dos autos.

O tribunal competente para conhecer dos conflitos de competência entre juízes do Tribunal de Segunda Instância

5. Esta questão não apresenta grande dificuldade.
Tradicionalmente, a regra geral na matéria é a de que o tribunal competente para conhecer dos conflitos de competência é o tribunal imediatamente superior ao mais elevado dos tribunais em conflito ou, por outras palavras, o tribunal de menor categoria que exercesse jurisdição sobre os tribunais em conflito. Era o que dispunham os arts. 116.º, n.º 1, do Código de Processo Civil de 1961 e 36.º, n.º 4 e 37.º, n.º 4, do Código de Processo Penal de 1929.
Em Macau, no período de autonomia judiciária, após 1993, manteve-se a regra, visto que competia ao Tribunal Superior de Justiça, funcionando em plenário, conhecer dos conflitos de competência entre as suas secções e ao mesmo Tribunal, funcionando por secções, cabia o julgamento dos conflitos entre tribunais de primeira instância [art. 14.º, n. os 1, alínea e) e 3, alínea d), da Lei n.º 112/91, de 29.8]. O mesmo veio a dispor o art. 25.º do Código de Processo Penal de Macau.
Entretanto, de acordo com a da Lei de Bases da Organização Judiciária da Região Administrativa Especial de Macau, manteve-se o mesmo princípio, pois compete ao Tribunal de Última Instância conhecer dos conflitos de competência entre o Tribunal de Segunda Instância e os tribunais de primeira instância e compete ao Tribunal de Segunda Instância conhecer dos conflitos de competência entre tribunais de primeira instância [arts. 44.º, n.º 2, alínea 14) e 36.º, alínea 13)].
Mas, dir-se-ia, a lei não prevê expressamente a resolução de conflitos entre juízes do Tribunal de Segunda Instância. Pois não, dado que, como se disse em II - 3, por força de norma que foi introduzida no art. 209.º, n.º 2 do Código de Processo Civil de 1961, e que se manteve no actual Código de Processo Civil (art. 156.º, n.º 2) a letra da lei só prevê conflitos entre tribunais, mas não entre juízes. E como só existe um tribunal de segunda instância, a lei não prevê expressamente a situação em causa.
Porém, tendo-se já assentado que é possível a existência de verdadeiros conflitos de competência entre juízes – ou, pelo menos, a tal equiparados – e atento o princípio, que resulta da lei, de que o tribunal competente para conhecer dos conflitos de competência é o tribunal imediatamente superior ao mais elevado dos tribunais em conflito, considerando ainda que compete ao Tribunal de Última Instância conhecer dos conflitos de competência entre o Tribunal de Segunda Instância e os tribunais de primeira instância, por identidade de razão há-de competir ao Tribunal de Última Instância conhecer dos conflitos de competência, ou a tal equiparados, entre juízes do Tribunal de Segunda Instância.

O Juiz que deve intervir como Adjunto no recurso penal em causa
O impedimento de juiz em processo penal

6. O Ex.mo Juiz Dr. José Maria Dias Azedo declarou-se impedido de intervir no julgamento do recurso como Adjunto.
Comecemos por apreciar a situação de impedimento.
Já se ponderou que a função das situações de impedimentos e suspeições previstas na lei é a de garantir a imparcialidade dos juízes em relação a determinada causa.
FIGUEIREDO DIAS no seu manual escolar dos anos 70 13 considerava ser a independência a mais irrenunciável característica do «julgar» e, portanto, da função judicial. Mas acrescentava, a propósito dos institutos dos impedimentos e suspeições, “acabamos de ver como, através da característica da independência dos juízes, se asseguram os fundamentos de uma actuação livre dos tribunais perante pressões que se lhes dirijam do exterior. Isto não basta, porém, para que fique do mesmo modo preservada a objectividade de um julgamento: é, ainda necessário, ao lado e para além daquela segurança geral, não permitir que se ponha em dúvida a «imparcialidade» dos juízes, já não em face de pressões exteriores, mas em virtude de especiais relações que os liguem a um caso concreto que devam julgar”.14
Os motivos de impedimento originam uma incapacidade absoluta para o exercício da função judicial no processo a que respeitam, não obstante o juiz deter competência para a causa.15
Importa, também, salientar que a declaração de impedimento é um acto individual do juiz, mesmo que o tribunal seja de estrutura colectiva,16 como é o caso, como decorre o disposto nos arts. 30.º e 31.º do Código de Processo Penal e 312.º do Código de Processo Civil.
Convém dizer algo sobre a questão da recorribilidade da declaração de impedimento e do despacho em que o juiz não reconhece impedimento que lhe tenha sido oposto, pois foi aflorada em várias peças processuais dos autos.
Em processo civil, tanto no domínio do Código de Processo Civil de 1961,17 como no actual,18 é admissível recurso tanto relativamente às decisões em que o juiz se declara impedido, como também em relação às decisões em que o juiz não reconhece impedimento que lhe tenha sido oposto. Com a particularidade de, quanto a estas últimas decisões, haver sempre recurso, seja qual o valor da causa, enquanto que quanto à declaração de impedimento, o recurso depende do valor da causa e da alçada respectiva.19
Em processo penal, na vigência do Código de 1929,20 tanto da declaração, como do despacho que reconhece ou não impedimento cabia recurso.21
O Código de Processo Penal de 1996 foi inovador. Assim, o despacho em que o juiz se considerar impedido é irrecorrível. Do despacho em que o juiz não reconhece impedimento que lhe tenha sido oposto cabe recurso (art. 31.º).

O despacho do Ex.mo Juiz Dr. Chan Kuong Seng

7. Apreciemos, agora o acto processual da autoria do Ex.mo Juiz Dr. Chan Kuong Seng.
Adiantemos, desde já que, para o efeito, é irrelevante que a declaração de impedimento seja (como é o caso) ou não irrecorrível. Adiante se verá por que razão.
O Ex.mo Juiz Dr. Chan Kuong Seng declarou não poder substituir o Ex.mo Juiz Dr. José Maria Dias Azedo no processo, por entender que este não tinha fundamento legal para se ter declarado impedido.
Como já se notou, em bom rigor, neste caso também não se trata da arguição de incompetência, já que o Tribunal de Segunda Instância tem indiscutivelmente competência para conhecer do recurso penal de uma decisão condenatória do tribunal colectivo do Tribunal Judicial de Base. O Dr. Chan Kuong Seng é Juiz daquele Tribunal de Segunda Instância regularmente investido, sendo que tem poder para intervir como Adjunto no julgamento do recurso, a título de substituto do primitivo Adjunto. Também não foi invocada qualquer situação de impedimento, de incapacidade por via de relação com o processo concreto.
Trata-se, a todas as luzes, de uma situação atípica.
De facto, relativamente a actos jurisdicionais, isto é, não administrativos, a lei só admite a sua sindicância, ou seja, o seu escrutínio, em regra,22 por via do recurso judicial, que é um meio de impugnação dirigido a um tribunal hierarquicamente superior.
Assim, um juiz não pode sindicar acto de outro juiz, a menos que a lei lhe confira esse poder, o que acontece no caso dos recursos judiciais, na reclamação para o presidente do tribunal imediatamente superior do não recebimento de recursos ou da sua retenção (arts. 595.º e 596.º do Código de Processo Civil), na reclamação do relator para a conferência (art. 620.º do Código de Processo Civil) ou na apreciação de sugestão feita por juiz-adjunto em recurso, de que discorde o relator, e que cabe à conferência (n.º 4, do art. 619.º do Código de Processo Civil).
Se fosse possível ao substituto do juiz vir discutir as razões apontadas por este na declaração de impedimento, a fim de se recusar substituí-lo, estaríamos a admitir que um juiz pudesse sindicar os actos praticados por outro juiz, em caso não previsto na lei.
É que a sindicância de um acto do juiz, pela via do recurso, tem sempre na base um acto de vontade da parte vencida, de quem tenha sido directa e efectivamente prejudicado com a decisão ou do Ministério Público - nos casos em que este pode recorrer sem ser parte no processo, como sucede em processo penal e processo administrativo - que actuam como recorrentes. Ou seja, é o interesse das partes ou das pessoas prejudicadas - interesse privado – ou o interesse público ou da Justiça, personificado pelo Ministério Público, que motivam o recurso a um órgão jurisdicional superior.
Em caso nenhum, a lei erige a vontade de um juiz, ainda que invoque um interesse público, como motor com vista à sindicância de acto de outro juiz.
Por outro lado, um juiz só se pode abster de praticar acto jurisdicional em que tenha de intervir, invocando uma situação de incompetência do tribunal ou falta de competência funcional sua ou se invocar impedimento (ou se pedir escusa de intervir).
Assim, não ofereceria dúvida a legalidade, em abstracto, do acto em que o substituto de juiz se recusasse intervir como tal, alegando, por exemplo, não lhe caber a ele a substituição, isto é, invocando motivos próprios (sem prejuízo de se ter de apurar, em concreto, os respectivos fundamentos, que poderiam ser legais ou ilegais).
Mas mesmo quando o juiz declara o seu tribunal incompetente não tem de se pronunciar sobre a legalidade de despacho de outro tribunal que se tenha, eventualmente, também, já declarado incompetente.
O Ex.mo Juiz Dr. Chan Kuong Seng não invocou nenhuma destas situações.
Não tinha, assim, fundamento legal para recusar intervir no processo, independentemente do bem ou mal fundado dos fundamentos invocados para a declaração do impedimento. Como explicava LUÍS OSÓRIO, 23 salvo caso de recurso, que presentemente não existe em processo penal, como se disse, a ilegalidade da declaração de impedimento só em processo disciplinar pode ser apreciada. Ou em inspecção judicial com vista à atribuição de classificação de serviço, como opina o Ex.mo Magistrado do Ministério Público.
Eis porque é irrelevante que a declaração de impedimento seja irrecorrível (como é o caso) ou seja recorrível (como em processo civil). É que em nenhum caso o juiz substituto a pode sindicar.
Em conclusão, o Ex.mo Juiz Dr. Chan Kuong Seng não tinha fundamento para recusar intervir nos autos como Juiz-Adjunto, por discordar da declaração de impedimento da autoria de outro Juiz.

III – Decisão

Face ao expendido, acordam em determinar que o Ex.mo Juiz Dr. Chan Kuong Seng intervenha nos autos de recurso penal em referência como Juiz-Adjunto.
Sem custas.
Cumpra o disposto no n.º 4, do art. 27.º do Código de Processo Penal.
Macau, 10.4.2002
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai
                       Chu Kin

1 J. CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, edição da AAFDL, I volume, p. 346.
2 Cfr. J. RODRIGUES BASTOS, Notas ao Código de Processo Civil, volume I, Lisboa, 1963, p. 416.
3 Cfr. ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra Editora, 1985, p. 197.
4 J. LEBRE DE FREITAS, JOÃO REDINHA e RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º, Coimbra Editora, 1999, p. 362.
       5 J. RODRIGUES BASTOS, Notas ao Código de Processo Civil, 2.ª ed., volume I, Lisboa, 1999, p. 273 e 274.

6 Acórdão de 15.3.2001, Processo n.º 37/2001, em Acórdãos do Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M., 2001, I Tomo, p. 209.
7 Publicado em Acórdãos do Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M., 2000, II Tomo, p. 594.
8 Acórdão de 22.2.2001, Processo n.º 198/2000, em Acórdãos do Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M., 2001, I Tomo, p. 402.
9 Como parece ser o caso, visto que se estabelece uma disciplina para a resolução de conflitos oposta à regra geral, sendo que esta contém uma orientação fundamental da Ordem Jurídica, no sentido que o conhecimento de conflitos jurisdicionais é da competência de um tribunal superior, que decide colegialmente, e não de um órgão singular.
10 J. LEBRE DE FREITAS, JOÃO REDINHA e RUI PINTO, obra e volume citados, p. 375.
11 J. RODRIGUES BASTOS, Notas ao Código de Processo Civil, 2.ª ed., volume I, p. 187.
12 ALBERTO DOS REIS, Comentário ao Código de Processo Civil, volume I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 1960, p. 388.
13 J. FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, 1.º volume, Coimbra Editora, 1974, p. 303.
14 J. FIGUEIREDO DIAS, obra citada, p. 315.
15 CAVALEIRO DE FERREIRA, Curso de Processo Penal, I volume, Lisboa, 1955, p. 235 e 236.
16 Cfr., neste sentido, J. LEBRE DE FREITAS, JOÃO REDINHA e RUI PINTO, obra e volume citados, p. 225.
17 Art. 123.º.
18 Art. 312.º
19 Sobre esta matéria, J. RODRIGUES BASTOS, Notas ao Código de Processo Civil, volume I, Lisboa, 1963, p. 284 e 285 e do mesmo autor, a mesma obra, 2:ª ed., volume I, p. 190.
20 Art. 110.º.
21 LUÍS OSÓRIO, Comentário ao Código de Processo Penal Português, 2.º volume, Coimbra Editora, 1932, p. 284.
22 Há outros meios específicos, normalmente reclamações para o juiz autor do acto, que não cabe aqui considerar (arts. 430.º, n.º 2, 553.º, n.º 5 e 556.º, n.º 5, do Código de Processo Civil).
23 LUÍS OSÓRIO, obra e volume citados, , p. 249.

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Proc. n.º 4/2002