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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Processo de habeas corpus
N.N 2 / 2001

Peticionante: A





1. Relatório
A, réu no processo de querela n.° 4401/99- 4° do Tribunal Judicial de Base, apresentou, nos termos do art.° 206.° do Código de Processo Penal (CPP), uma petição de habeas corpus pedindo que se declare ilegal a prisão e ordene a sua imediata libertação ao abrigo do art.° 207.°, n.° 4, al. d) do mesmo código.
O peticionante alegou, em síntese, o seguinte:
Foi notificado pessoalmente, no dia da leitura do acórdão, da decisão proferida em que foi condenado na pena de onze meses de prisão suspensa por um período de três anos com a condição de pagar aos lesados a quantia de vinte e cinco mil patacas e juros no prazo de trinta dias.
Com base numa informação prestada por uma funcionária judicial, o peticionante tentou localizar os ofendidos para lhes entregar a indemnização no tribunal mas foi infrutífero.
Por despacho de Julho de 2000, a juiz titular do processo ordenou que fosse notificado o peticionante para no prazo de dez dias justificar a razão de ainda não ter liquidado a indemnização aos ofendidos.
Decorrido o prazo de dez dias sem que o peticionante tenha localizado os ofendidos, por despacho de Setembro de 2000, a juiz titular do processo revogou a suspensão da execução da pena. Foram passados mandados de detenção e o peticionante foi detido e conduzido ao Estabelecimento Prisional de Macau para cumprir a pena que lhe foi imposta.
Em 24 de Outubro de 2000, o peticionante constituíu mandatários e foi requerido, ao abrigo do disposto nos art.°s 53.°, 54.° e 49.°, n.° 2 do Código Penal e art.° 473.° do Código de Processo Penal, que fosse instruído o competente incidente, passadas as guias para depósito de indemnização e a sua restituição imediata à liberdade.
A verdade é que foi feito descaso absoluto desta situação, o incidente não foi instruído, a funcionária não foi localizada, o despacho não foi revogado nem alterado, depositou a indemnização, mas continua preso apesar de o acórdão dizer que é condição da suspensão da execução da pena o pagamento da indemnização aos ofendidos.
Parece-lhe que se trata de uma situação ilegal, injusta e contra legis. Em suma, encontra-se ilegalmente privado da liberdade.
Caso o despacho que revogou a suspensão da sua prisão não fosse alterado, interpôs, por mera cautela de patrocínio, recurso para o tribunal competente em 26 de Outubro de 2000. Contudo, a juiz titular do processo nunca ordenou, até ao dia da apresentação desta petição, a subida do recurso, nem alterou o despacho em questão, nem sequer se dignou a instruir o incidente.

A juiz titular do processo de querela apresentou a informação nos termos do art.° 207.°, n.° 1 do CPP onde foi feita a síntese do processado a partir da leitura do acórdão e referiu que o réu encontra-se ainda preso à ordem daquele processo de querela.

Foi convocada a secção deste tribunal de acordo com o art.° 207.°, n.° 2 do CPP.



2. Fundamentos
(1) Dos autos resultam provados os seguintes factos:
Por acórdão do Tribunal Judicial de Base proferido em 3 de Fevereiro de 2000 no âmbito do processo de querela n.° 4401/99-4°, o peticionante A foi condenado pela prática de um crime de concussão previsto e punido pelo art.° 344.°, n.° 1 do Código Penal de Macau (CP) na pena de onze meses de prisão e no pagamento aos lesados da quantia de vinte e cinco mil patacas, acrescida dos respectivos juros vencidos e vincendos contados à taxa legal desde as datas referentes ao último dia do mês das entregas e até efectivo pagamento. A execução da pena é suspensa por três anos com a condição de pagar aos lesados a referida quantia e juros no prazo de trinta dias.
O peticionante estava presente na leitura do referido acórdão, foi notificado do mesmo e declarou ficar bem ciente.
O acórdão transitou em julgado no dia 21 de Fevereiro de 2000.
No dia 3 de Julho de 2000, o peticionante foi notificado pessoalmente para, no prazo de dez dias, comprovar o pagamento de indemnização aos lesados nos autos de processo de querela n.° 4401/99 do 4° juízo sob pena de revogação da suspensão da pena.
Apesar de ter sido notificado, o peticionante não veio dizer nada.
Por despacho da juiz titular do processo proferido no dia 15 de Setembro de 2000, foi revogada a suspensão da execução da pena imposta nesse processo e determinou o cumprimento da pena de prisão.
No dia 24 de Setembro de 2000, foram entregues ao Ministério Público os mandados de detenção com cópia do acórdão e do despacho que revogou a execução da suspensão da pena.
O peticionante foi detido pela PSP e conduzido ao Estabelecimento Prisional de Macau no dia 16 de Outubro de 2000.
No dia 26 de Outubro de 2000, o peticionante entregou um requerimento em que pede instruir o “incidente” nos termos do art.° 473.° do Código de Processo Penal e, por mera cautela de patrocínio e caso não ficassem deferidas as diligências requeridas, interpõe recurso do despacho que revogou a suspensão da execução da pena.
Por despacho de 1 de Novembro de 2000 da juiz titular do processo, foi ordenado notificar o peticionante para esclarecer a pretensão do requerimento por considerar que o recurso não podia ser condicional.
No requerimento de 15 de Novembro de 2000, o peticionante reiterou o pedido de instruir o incidente e a interposição do recurso e mais requereu a sua colocação em liberdade “provisória” até pelo menos à conclusão do incidente.
Por despacho de 24 de Novembro de 2000, a juiz reafirmou que o recurso não podia ser condicional e ordenou notificar o peticionante para esclarecer mais uma vez. Pediu ainda parecer ao Ministério Público sobre a liberdade provisória requerida.
Foi depositada uma quantia de vinte e cinco mil patacas no dia 30 de Novembro de 2000 no Banco em nome do peticionante a título de indemnização.
Por requerimento de 1 de Dezembro de 2000, o peticionante requereu mais uma vez a instrução do incidente e a sua libertação e esclareceu a interposição do recurso.
No despacho de 7 de Dezembro de 2000, a juiz ordenou notificar o arguido para regularizar a sua procuração e ratificar o processado. Mais considerou o requerimento de 26 de Outubro de 2000 como interposição do recurso do despacho revogatório da suspensão da execução da pena de prisão e mandou cumprir o disposto do art.° 401.°, n.° 4 do CPP depois da junção da procuração regularizada e relegou a apreciação da liberdade provisória para o momento previsto no art.° 404.°, n.° 1 do CPP.
Por requerimento de 12 de Dezembro de 2000, o peticionante pediu à juiz restituí-lo à liberdade e proferir o despacho final competente.
Por despacho de 18 de Dezembro de 2000, a juiz manteve o seu despacho do dia 7 anterior e entendeu nada a ordenar relativo à segunda parte do último requerimento.

(2) Apreciando:
O peticionante foi condenado na pena de prisão cuja execução era suspensa com a condição de pagar a indemnização num certo prazo. Não pagou a indemnização no prazo fixado nem justificou a falta, foi revogada a suspensão e determinado o cumprimento da pena de prisão.
Depois de ser detido e conduzido ao Estabelecimento Prisional de Macau, o peticionante, através do requerimento subscrito por advogado, pediu que fosse instruído um incidente nos termos do art.° 473.° do CPP e a revogação do despacho que revogou a suspensão e interpôs recurso deste despacho. Continua preso sem o incidente instruído, o despacho revogado nem o recurso subido. Entende que está ilegalmente privado da liberdade. Com base neste fundamento, veio pedir a sua libertação imediata através do habeas corpus previsto no art.° 206.° do CPP.

O habeas corpus é uma medida extraordinária e expedita destinada a pôr termo a detenção ou prisão ilegais. Trata-se de um processo célere, sem grandes formalismos, destinado a garantir o direito fundamental da liberdade das pessoas, contra a sua privação ilegal.
A lei distingue duas modalidades de processo de habeas corpus conforme se está perante uma detenção ilegal ou uma prisão ilegal.
Para decretar o habeas corpus com fundamento na ilegalidade da prisão segundo o art.° 206.°, n.° 2 do CPP, aquela deve ter a proveniência de:
a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;
b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou
c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

Afirma o peticionante na sua petição que, depois de ser revogada a suspensão da execução da pena, foi detido e conduzido ao Estabelecimento Prisional de Macau para cumprir a pena que lhe foi imposta. Continua ali preso e entende que se encontra ilegalmente privado da liberdade porque:
- Requereu um “incidente” e a consequente alteração ou revogação do despacho revogatório da suspensão da execução da pena de prisão, mas o incidente nunca foi instruído nem o despacho alterado ou revogado;
- Pagou a indemnização e pediu a sua libertação por considerar que isso já é a condição da suspensão da execução da pena de prisão, mas continua preso;
- Tendo em conta o requerimento do “incidente” e da alteração ou revogação do despacho, por cautela do patrocínio, interpôs recurso deste despacho, mas nunca foi ordenada a sua subida.

Antes de mais, é de lembrar que o peticionante está preso no Estabelecimento Prisional de Macau por ordem da juiz titular do processo de querela em consequência da revogação da suspensão da pena de prisão imposta ao peticionante no mesmo processo, ou seja, a prisão foi ordenada por entidade competente. Além disso, o peticionante foi condenado na pena de onze meses de prisão. Assim, da detenção até agora, está ainda dentro da duração da pena de prisão.

Com o primeiro argumento, o peticionante pretende a alteração do sentido do despacho depois da realização das diligências e incidente requeridos. No entanto, o simples requerimento de um incidente alegadamente relacionado com a suspensão da pena de prisão, acompanhado duma exposição dos motivos da falta do pagamento da indemnização não tem a virtualidade de alterar desde já o sentido do despacho. Se quiser questionar a legalidade do despacho revogatório, é evidente que a única via correcta é a do recurso. De facto, uma vez proferido o despacho, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da decisão (art.° 569.° do Código de Processo Civil aplicável por remissão do art.° 4.° do CPP) e o despacho em causa só pode ser impugnado por meio de recurso. Para além deste meio, o peticionante não tem fundamento legal para pedir a alteração ou revogação do despacho. O processo de habeas corpus não pode ser utilizado para discutir os motivos e fundamentos subjacentes ao despacho da revogação da suspensão da pena.

Em relação ao segundo argumento, o peticionante omitiu patentemente um conteúdo importante do acórdão condenatório. De acordo com este, na parte que aqui interessa, a execução da pena de prisão é suspensa por três anos com a condição especial de pagar a indemnização e juros no prazo de trinta dias a partir do trânsito da sentença. Logo, só o pagamento do capital da indemnização não é condição suficiente para suspender definitivamente a execução da pena. Ele tem de ser feito na totalidade e no prazo fixado para se tornar relevante. Por outro lado, depois de ser revogada a suspensão da execução da pena de prisão e determinado o cumprimento da pena, o pagamento tardio da indemnização não tem o efeito automático de alterar por si só o despacho e libertar o peticionante. Tal como foi referido, o despacho só pode ser alterado no recurso.

Em terceiro lugar, o peticionante entende que interpôs o recurso do despacho revogatório da suspensão, mas não foi ordenada ainda a sua subida.
Ora, o peticionante foi detido e conduzido ao Estabelecimento Prisional de Macau no dia 16 de Outubro de 2000. Por requerimento subscrito por um advogado do dia 26 posterior, o peticionante requereu a instrução do incidente nos termos do art.° 473.° do CPP e subsidiariamente interpôs recurso.
No dia 1 de Novembro posterior, a juiz titular do processo mandou notificar o peticionante para esclarecer o pedido por entender que o recurso não pode ser condicional. No segundo requerimento, datado de 15 de Novembro de 2000, o peticionante manteve o mesmo pedido e mais pediu a sua colocação em liberdade provisória até pelo menos à data em que se mostre concluído o incidente.
No despacho judicial de 15 de Novembro de 2000, foi ordenado notificar mais uma vez o peticionante a esclarecer a sua pretensão, reafirmando a incondicionalidade do recurso. Pelo terceiro requerimento de 1 de Dezembro posterior, o peticionante reiterou os mesmos pedidos constantes do requerimento anterior.
Sobre este último requerimento recai o despacho de 7 de Dezembro de 2000 em que a juiz titular do processo julgou considerar o requerimento de 26 de Outubro de 2000 como interposição de recurso do despacho que revogou a suspensão da execução da pena de prisão. Mas ordenou que a notificação aos restantes sujeitos processuais afectados pelo recurso prevista no art.° 401.°, n.° 4 do CPP só será efectuada depois da junção da procuração do peticionante devidamente regularizada, uma vez que a juiz, no mesmo despacho, entendeu que a procuração é irregular ao abrigo do art.° 9.°, n.° 2 do Código do Notariado (em vez do artigo citado pelo peticionante, com a mesma numeração mas do Decreto-Lei que aprovou este código), e fixou o prazo de dez dias para a sua regularização. Mais ainda a juiz relegou a apreciação do pedido de liberdade provisória para o momento de admissão do recurso previsto no art.° 404.°, n.° 1 do CPP.
Notificado deste despacho, o peticionante, no seu novo requerimento de 12 de Dezembro de 2000, manifestou a sua discordância sobre o despacho, pediu ainda a instrução do incidente e a restituição à liberdade, bem como o “despacho final competente” para poder recorrer.
De facto, o peticionante não utilizou os meios legalmente permitidos para alcançar a sua pretensão. Se o peticionante não concorda com a ordem da regularização da procuração, bem pode recorrer do despacho e só com o recurso é que se pode alterar o seu sentido.
Em relação ao pedido da liberdade provisória, a decisão da juiz é clara: relega a sua apreciação para o momento previsto no art.° 404.°, n.° 1 do CPP, ou seja, a juiz respondeu ao pedido do peticionante com despacho. Aqui não cabe apreciar o mérito do despacho que tem a sua sede própria no recurso ordinário, mas sem deixar de considerar alguns aspectos que estão relacionados com a apreciação da presente petição. Trata-se de processo com réu preso, aquele deve ser considerado urgente e os actos da secretaria devem ser praticados imediatamente e com preferência sobre qualquer outro serviço (art.° 95.° e 96.° do CPP), pois o que está em causa é o direito fundamental da liberdade da pessoa. A juiz titular do processo deve tomar a posição definitiva em relação ao recurso e fixar desde já o estatuto do réu, logo após a recepção do requerimento da interposição do recurso, embora esta peça esteja longe de ser o melhor modelo em termos da técnica jurídica, a fim de evitar o prolongamento da incerteza do estatuto do réu que está preso, para além de apreciar outros assuntos submetidos à apreciação do tribunal.
O peticionante pretende a sua restituição à liberdade. A juiz proferiu o despacho a relegar a apreciação para mais tarde e o peticionante não viu o seu pedido satisfeito, podendo recorrer. O peticionante nunca estava privado deste meio legal de reacção. Mas não seguiu este meio, não recorreu nem cumpriu o ordenado e limitou-se a manifestar a sua discordância e renovar o mesmo pedido.
Tal como foi referido, o habeas corpus é uma medida de carácter excepcional destinado a salvaguardar a liberdade das pessoas. Assim, se pretender alterar uma decisão judicial, deve, em primeiro lugar, utilizar o meio de recurso. Não é admissível conceder o habeas corpus quando a decisão é passível de recurso ordinário ou quando este já se encontra interposto por forma a evitar a situação de litispendência e a consequente possibilidade de, sobre o mesmo objecto, existir duas decisões judiciais contraditórias. Portanto, a função do habeas corpus não é apreciar o mérito da decisão, mas sim resolver de imediato situações de prisão ilegal, sob pena de criar um novo meio de recurso não previsto legalmente, subvertendo todo o sistema de impugnação de decisões judiciais estabelecido pelas leis adjectivas.
Não utilizou o meio de recurso ordinário, via normal de impugnar decisão judicial, não pode o peticionante vir agora socorrer ao habeas corpus, alegando a ilegalidade da prisão, para alterar o sentido do despacho da juiz.
Em suma, não se verifica a alegada ilegalidade da prisão, pelo que o pedido deve ser indeferido nos termos do art.° 207.°, n.° 4, al. a) do CPP.



3. Decisão
Pelo exposto, o Tribunal julga indeferir o pedido do habeas corpus.
Custas pelo peticionante com a taxa de justiça fixada em três UC’s.



Aos 19 de Janeiro de 2001.



Juízes : Chu Kin (relator)
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai
Processo n.° 2/2001 p. 12-12