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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau




Recurso de decisão jurisdicional em matéria administrativa
N.° 14 / 2002

Recorrente: A
Recorrido: Secretário para a Segurança
   
   
   
   
   
   
   1. Relatório
   A interpôs recurso contencioso, perante o Tribunal de Segunda Instância, do despacho do Secretário para a Segurança de 13 de Novembro de 2001 que indeferiu o seu pedido de aposentação voluntária.
   Por acórdão de 13 de Junho de 2002, proferido pelo Tribunal de Segunda Instância no processo n.° 29/2002, foi negado provimento ao recurso contencioso.
   Vem agora A recorrer para este Tribunal contra o acórdão do Tribunal de Segunda Instância, apresentado, nas suas alegações, as seguintes conclusões:
   “1. A entidade recorrida viola o dever de fundamentação que sobre ela recai nos termos do disposto no art.º 114.º do Código do Procedimento Administrativo.
   2. A fundamentação legal do despacho recorrido, por se encontrar manifestamente em contradição com o requerimento apresentado pelo recorrente, não esclarece de forma alguma qual fosse a motivação do acto, o que equivale necessariamente à falta de fundamentação do mesmo nos termos do disposto no art.º 115.º do Código do Procedimento Administrativo.
   3. Ainda que não seja contraditório, o despacho recorrido não deixa de ser obscuro, o que, naturalmente, acarreta, igualmente, a violação, por parte da entidade recorrida, do dever de fundamentação nos termos do disposto nos art.ºs 114.º e 115.º do Código do Procedimento Administrativo.
   4. A invocação da falta de pessoal traduz o preenchimento de um conceito vago e indeterminado da inconveniência para o serviço, cuja invocação, sem mais, não basta.
   5. Ficou demonstrado nos autos que a aposentação do recorrente não iria causar inconveniência aos serviços.
   6. O erro sobre os pressupostos de facto que fundamentam o acto consubstancia uma forma de violação de lei, ainda que no âmbito de um poder discricionário da administração.
   7. Violação essa que se verifica, em qualquer caso, porquanto a invocação da falta de pessoal não é, ainda que correspondesse à verdade, suficiente para, de acordo com o disposto no n.º 4 do art.º 263.º do ETAPM, fundamentar o indeferimento do requerimento do recorrente.
   8. É impossível, tal como os fundamentos do acto foram formulados, concluirmos, através de operações meramente intelectuais, que a inconveniência para o serviço é efectivamente o motivo do indeferimento.
   9. Nesse sentido, é inquestionável que o despacho viola o disposto no n.º 4 do art.º 263.º do ETAPM, o que, mais uma vez, o torna anulável.”
   Pedindo que seja ordenado que o tribunal recorrido venha novamente conhecer o mérito da causa, com respeito, desta feita, pelas normas invocadas.
   
   O recorrido não apresentou alegações.
   
   A Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de Última Instância emitiu o seguinte parecer:
   “Inconformando com o douto acórdão do Tribunal de Segunda Instância no sentido de negar provimento ao seu recurso interposto do despacho do Senhor Secretário para a Segurança que indeferiu o seu pedido de aposentação voluntária formulado nos termos do art.º 263.º, n.º 1, al. b) do ETAPM, vem A interpor recurso para o Tribunal de Última Instância.
   Para o efeito, invoca:
   - A violação, por parte da entidade recorrida, do dever de fundamentação previsto no art.º 114.° do Código do Procedimento Administrativo (CPA);
   - O erro sobre os pressupostos de facto que fundamentam o acto;
   - A violação do disposto no n.º 4 do art.º 263.º do ETAPM.
   Entendemos que não lhe assiste razão.
   
   Como se sabe, são previstos no ETAPM dois tipos de aposentação:
   Voluntária ou obrigatória, sendo esta resultante de determinação do ETAPM ou imposição da autoridade competente (art.ºs 261.º e 262.º do ETAPM)
   A aposentação voluntária tem lugar a requerimento ou declaração do interessado, cujo regime é regulado no art.º 263.º do ETAPM.
   São previstas no citado art.º 263.º, n.º 1 duas situações diferentes:
   “Há lugar a aposentação voluntária quando o funcionário ou agente:
   a) Declare desejar aposentar-se após 30 anos de serviço contados para efeitos de aposentação e tenha 55 ou mais anos de idade;
   b) Requeira a sua aposentação após 30 anos de serviço contados para efeitos de aposentação.”
   E na situação referida na al. b), a aposentação voluntária “pode ser indeferida com invocação, designadamente, de razões de ordem financeira, de política geral ou sectorial em matéria de gestão de pessoal ou de fundamentada inconveniência para o serviço”. (n.º 4 do citado artigo)
   
   Nos termos do art.º 114.º do CPA a Administração deve fundamentar os seus actos administrativos e o art.º 115.º, n.º 2 estabelece a equivalência entre a falta de fundamentação e “a adopção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do acto”.
   A lei exige que a fundamentação seja congruente, clara e suficiente.
   A congruência exige a coerência ente os fundamentos considerados e a decisão tomada, enquanto a clareza da declaração dos pressupostos e motivos significa que as expressões, fórmulas, termos e argumentos utilizados na explicitação dos fundamentos têm que ser inteligíveis, não podendo ser confusas, ambíguas, dúbias, obscuras.
   E para haver falta de fundamentação, não basta qualquer obscuridade, contradição ou insuficiência dos fundamentos invocados, sendo necessário ainda que eles não possibilitem um “esclarecimento concreto” das razões que levaram a autoridade administrativa a praticar o acto. (cfr. Código do Procedimento Administrativo de Macau, anotado e comentado, Lino José Baptista Rodriques Ribeiro e José Cândido de Pinho, pág. 639 e 640)
   
   Resulta claramente dos autos que o requerimento formulado pelo recorrente para efeito de aposentação voluntária foi indeferido ao abrigo do disposto no n.º 4 do art.º 263.º.
   Na proposta do Sr. Comandante substituto do Corpo de Polícia de Segurança Pública, que merece a concordância do Sr. Secretário para a Segurança e com base na qual foi indeferido o requerimento do recorrente, consta o seguinte:
   “Por motivo da falta de pessoal desta Corporação, e o requerente ainda não reúne as condições constantes nos art.ºs 262.º ou 263.º, n.º 1, alínea a) do ETAPM em vigor, pelo que se propõe que seja indeferido o presente requerimento.”
   
   Do ponto de vista do recorrente, “é óbvio que o destinatário normal do acto não pode aperceber-se do raciocínio que culminou na decisão pois se, por um lado, lhe é dito que reúne as condições para a aposentação, por outro, conclui-se que afinal aquele não reúne essas condições nos termos dos art.ºs 262.º e 263.º, n.º 1, alínea a) do ETAPM”.
   No entanto, não nos parece que existe contradição no despacho recorrido.
   Ao proferir a decisão posta em causa, a entidade recorrida está perfeitamente ciente quer em relação ao pedido do recorrente quer em relação ao poder que tem de indeferir o requerimento do recorrente, pelo que invoca “a falta de pessoal” daquela Corporação para fundamentar o indeferimento em crise, uma vez que o recorrente já está em condições de requerer aposentação voluntária nos termos do art.º 263.º, n.º 1, al. b) do ETAPM.
   E com a invocação dos art.ºs 262.º e 263.º, n.º 1, al. a) do ETAPM, a entidade recorrida pretende afastar a hipótese de que o recorrente já reúne as condições para aposentação obrigatória ou para aposentação voluntária que tem lugar por mera declaração do interessado (desde que tenha 30 anos de serviço e com 55 ou mais de idade), casos em que não há possibilidade de indeferir a pretensão de aposentação.
   Ora, por um lado, ficam afastadas as situações em que a Administração não detém o poder de indeferir a aposentação, restando apenas a aposentação voluntária prevista na al. b) do n.º 1 do art.º 263.º do ETAPM, que é o pressuposto para a Administração poder lançar mão da faculdade conferida no n.º 4 do art.º 263.º do ETAPM, e por outro a entidade recorrida invoca como fundamento “a falta de pessoal ” para indeferir o pedido do recorrente.
   Neste raciocínio não se vê a contradição apontada pelo recorrente.
   Também não se verifica no despacho recorrido nenhuma obscuridade alegada pelo recorrente.
   Em relação à expressão “falta de pessoal”, o recorrente aponta alguma vez para a obscuridade da fundamentação e outra vez para a insuficiência da fundamentação (cfr. os pontos 23 a 31 da motivação do recurso)
   Seja como for, se é verdade que “a conveniência do serviço” não pode ser invocado como fundamento válido por ser obscura ou insuficiente, o mesmo já não se pode dizer em relação à falta de pessoal, que não é expressão vaga mas sim um facto concreto e determinado.
   
   Ao despacho recorrido o recorrente imputa ainda o erro sobre os pressupostos de facto, pois o Chefe do Gabinete Jurídico do CPSP informa no seu relatório referente ao requerimento do recorrente que a aposentação requerida pelo recorrente não iria causar inconveniência ao serviço.
   O Tribunal de Segunda Instância não deixou de ter em consideração este ponto e entende que “quem tem competência para a final decidir do requerimento do recorrente é a entidade recorrida e não a pessoa autora do tal relatório, e ao decidir como decidiu, goza efectivamente de grande margem de discricionariedade supra expendida, e, in casu, insindicável conforme os termos acima vistos”.
   No que tange à violação do disposto no art.º 263.º, n.º 4 do ETAPM, entendemos que a invocação da falta de pessoal constitui perfeitamente uma das razões de indeferimento aí previstas, que são muito abrangente, pelo que a Administração possui uma margem muito grande de decidir.
   Concordamos na íntegra as considerações do Magistrado do Ministério Público expendidas no seu parecer dado no Tribunal de Segunda Instância, a falta de pessoal corresponde “à avaliação efectuada pela entidade recorrida relativamente à disponibilidade, no momento, dos recursos humanos na corporação, na sua globalidade (razão por que a opinião do chefe do gabinete de justiça da corporação tem um valor limitado, já que apenas se poderá restringir ao seu sector específico), poderá enquadrar-se quer numa quer noutra das aludidas razões, legalmente permitidas, ... ”.
   Ou seja, a invocação da falta de pessoal da Corporação tem a ver necessariamente com a política geral em matéria de gestão de pessoal e tal falta consubstancia inconveniência para o serviço em geral.
   E nem se diga que a falta de pessoal pode ser suprida facilmente pela contratação de novos funcionários, já que é sabido que a contratação de novos agentes, com qualidade, não é tão fácil como pensa, sobretudo quando está em causa a substituição dum agente que supõe ter muita experiência.
   Ao invocar a falta de pessoal para indeferir a pretensão do recorrente, a entidade recorrida está a actuar no âmbito do poder discricionário, podendo agir segundo o seu critério de livre apreciação e dentro dos limites permitidos pela realização de certo fim.
   
   Pelo exposto, deve negar-se provimento ao recurso interposto.”
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 No acórdão recorrido foram considerados assentes os seguintes factos:
   “1. Em 22 de Junho de 2001, A (e ora recorrente) formulou um requerimento de seguinte teor (cfr. fls. 8 do apenso):
   “Senhor Chefe do Executivo da RAEM
   Excelência
   A, Chefe n.º XXXXXX, do Corpo de Polícia de Segurança Pública de Macau, encontrando-se abrangido pela alínea b) do n.º 1 do art.º 263.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 87/89/M, de 21DEZ, com nova redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 62/98/M, de 28DEZ, e desejando ser desligado do serviço para efeitos de aposentação, com efeitos a partir de 23 de Janeiro de 2002.
   
   (assinatura)
   Pede deferimento
   Macau, 22 de Junho de 2001”
   2. Segundo a Declaração n.º 1050/2001, de 24 de Outubro de 2001, do Departamento de Gestão de Recursos do CPSP, o recorrente possui 24 anos e 10 meses e 20 dias de tempo de serviço efectivo prestado na mesma Corporação, o que equivale a 31 anos e 5 meses de tempo de serviço para efeitos de aposentação (cfr. fls. 7 do apenso).
   3. Segundo a Informação n.º 380/2001, de 24 de Outubro de 2001, do Departamento de Gestão de Recursos do CPSP , o recorrente tem 45 anos de idade e o pedido dele de desligação do serviço para efeitos de aposentação a partir de 23 de Janeiro de 2002 acarreta inconveniência para o serviço (cfr. fls. 5 e 6 do apenso).
   4. Em 24 de Outubro de 2001, o Comandante Substituto do CPSP apresentou o requerimento do ora recorrente à consideração do Senhor Secretário para a Segurança, através da Proposta n.º 129/DRH/DGR/2001 por ele assinada, de seguinte teor (cfr. fls. 3 e 4 do apenso):
   “(...)
   Assunto: Processo de desligação de serviço PROPOSTA N.º 129/DRH/DGR/2001
    para efeitos de aposentação Data: 24/OUT/2001
   
   1. 警長編號XXXXXX,A,符合12月21日第87/89/M號法令核准之《澳門公行政工作人員通則》第263條第1款b)項規定,並申請由2002年1月23日起,離職退休。
   O chefe n.º XXXXXX, A, encontra-se abrangido pela alínea b) do n.º 1 do art.º 263.º do ETAPM, aprovado pelo Dec-Lei n.º 87/89/M de 21DEZ e requer que deseja desligar-se de serviço para efeitos de aposentação com efeitos a partir de 23 de Janeiro de 2002.
   2. 集合了各項有關條件於附上之報告書上。
   Reúne as condições conforme informação que se junta em anexo.
   3. 由於本局出現人員短缺之情況,而申請人並未符合現行《公共行政工作人員通則》第262條及第263條第一款a)項之條件,因此建議不批准有關申請。
   Por motivo da falta de pessoal desta corporação, e o requerente ainda não reúne as condições constantes nos art.ºs 262.º ou 263.º, n.º 1 alínea a) do ETAPM em vigor, pelo que, se propõe que seja indeferido o presente requerimento.
   4. 呈保安司司長閣下考慮。
   À consideração do Exmº. Secretário p/a Segurança.
   
代局長
O COMANDANTE SUBSTº.,
(assinatura)
李小平副警務總監
LEI SIU PENG
SUPERINTENDENTE ”
   5. E sobre esta proposta, recaiu finalmente o Despacho ora recorrido do Senhor Secretário para a Segurança, de seguinte teor (cfr. fls. 3 do apenso):
   “Concordo. Indefiro.
   13/11/01
   (assinatura)”
   
   
   2.2 O recorrente entende que foram apontados basicamente três vícios ao acto recorrido: a violação do dever de fundamentação, o erro sobre os pressupostos de facto e a violação de lei.
   
   
   2.3 A violação do dever de fundamentação
   Em relação ao primeiro vício apontado, o recorrente considera contraditória a fundamentação do acto recorrido, conducente à anulação deste porque o pedido de aposentação do recorrente foi indeferido, para além da alegada falta de pessoal, por não ter reunido as condições previstas nos art.°s 262.° ou 263.°, n.° 1, al. a) do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (ETAPM) quando afinal o recorrente havia requerido a sua aposentação voluntária apenas ao abrigo da al. b) do n.° 1 do art.° 263.° do mesmo Estatuto, e quando o mesmo acto é ainda peremptório ao afirmar que o recorrente reúne as condições para a aposentação.
   No acórdão ora recorrido, consideram-se que “não é de afirmar que um destinatário normal, colocado na posição do ora recorrente como real declaratário do acto recorrido, fica perplexo com a fundamentação nele ínsita, ...”
   “Então, da expressão empregue no ponto 3 da fundamentação da decisão de indeferimento ora recorrida de que “Por motivo da falta de pessoal desta Corporação, e o requerente ainda não reúne as condições constantes nos art.ºs 262.º ou 263.º, n.º 1, alínea a) do ETAPM em vigor” (...), se deve deduzir lógica, clara e congruentemente que o pedido de desligação do serviço para efeitos de aposentação feito pelo requerente ora recorrente nos termos do art.º 263.º, n.º 1, al. b) do ETAPM, é indeferido por motivo da falta de pessoal da Corporação da PSP nos termos do n.º 4 do art.º 263.º do mesmo Estatuto para o caso de pedido de desligação do serviço para efeitos de aposentação voluntária requerido à luz da al. b) do n.º 1 do art.º 263.º, já que por outra banda o requerente ainda não reúne as condições constantes nos art.ºs 262.º ou 263.º, n.º 1, al. a) do mesmo Estatuto que conduzam às hipóteses da sua aposentação obrigatória (cfr. o art.º 262.º) ou da aposentação voluntária mediante mera declaração (cfr. o art.º263.º, n.º 1, al. a)), ambas impeditivas da decisão de indeferimento assim tomada (...).
   Por aí se demonstra, aliás, que a fundamentação do acto recorrido nesta parte, devidamente interpretada em conjugação necessária com o ponto 1 dela (no sentido claro e expresso de que o requerente se encontra abrangido pela alínea b) do n.º 1 do art.º 263.º do ETAPM), não só não se contradiz consigo mesma nem com esse ponto 1, como também serve para reforçar o entendimento da entidade recorrida de que o requerente, à data da tomada da decisão ora recorrida, ainda não teve outras hipóteses de desligação do serviço para efeitos de aposentação quer prevista nos termos do art.º 262.º do ETAPM, quer referida nos termos do art.º 263.º, n.º 1, al. a) do mesmo diploma legal, impeditivas do indeferimento do pedido em causa nos termos do n.º 4 do mesmo art.º 263.º.”
   
   O acto recorrido “Concordo. Indefiro.” foi praticado sobre a proposta do Comandante substituto do Corpo de Polícia de Segurança Pública (CPSP) de seguinte teor:
   “O chefe n.º XXXXXX, A, encontra-se abrangido pela alínea b) do n.º 1 do art.º 263.º do ETAPM, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 87/89/M de 21DEZ e requer que deseja desligar-se de serviço para efeitos de aposentação com efeitos a partir de 23 de Janeiro de 2002.
   Reúne as condições conforme informação que se junta em anexo.
   Por motivo da falta de pessoal desta corporação, e o requerente ainda não reúne as condições constantes nos art.º 262.º ou 263.º, n.º 1, alínea a) do ETAPM em vigor, pelo que, se propõe que seja indeferido o presente requerimento.
   À consideração do Exm.° Secretário para a Segurança.”
   
   O acto recorrido faz seus os fundamentos invocados na proposta. Trata-se de fundamentação por integração permitida pelo disposto no art.° 115.°, n.° 1 do Código do Procedimento Administrativo (CPA).
   Os elementos relevantes para fundamentar a decisão de indeferimento recorrida são apenas a falta de pessoal da CPSP e a não verificação das condições previstas nos art.ºs 262.º ou 263.º, n.º 1, al. a) do ETAPM, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 87/89/M.
   De facto, o recorrente pediu a aposentação voluntária nos termos do art.° 263.°, n.° 1, al. b) do ETAPM.
   Dispõe assim o referido artigo:
   “1. Há lugar a aposentação voluntária quando o funcionário ou agente:
   a) Declare desejar aposentar-se após 30 anos de serviço contados para efeitos de aposentação e tenha 55 ou mais anos de idade;
   b) Requeira a sua aposentação após 30 anos de serviço contados para efeitos de aposentação.
   2. ...
   3. ...
   4. A aposentação voluntária, requerida nos termos da alínea b) do n.° 1, pode ser indeferida com invocação, designadamente, de razões de ordem financeira, de política geral ou sectorial em matéria de gestão de pessoal ou de fundamentada inconveniência para o serviço.”
   É certo que, como se refere na proposta, o recorrente reúne as condições para a aposentação voluntária requerida segundo o disposto na al. b) do n.° 1 do art.° 263 do ETAPM, ou seja, já tem 30 anos de serviço contados para efeitos de aposentação. No entanto, o pedido foi indeferido por motivo de falta de pessoal da CPSP. Além disso, a entidade recorrida acrescenta ainda mais uma circunstância de que embora tenha já 30 anos de serviço contados para efeitos de aposentação, ainda não tem 55 ou mais anos de idade, elemento esclarecedor de que o recorrente nem podia conseguir a aposentação voluntária ao abrigo da al. a) do referido número para além da negação do seu pedido fundado na referida al. b).
   É evidente que não há aqui contradição da fundamentação. No entanto, não foi indicado aqui o fundamento de direito do indeferimento no que respeita ao próprio fundamento do pedido do recorrente. Do acto recorrido consta apenas “falta de pessoal desta Corporação”, parte relevante para examinar a fundamentação da decisão.
   
   Considerando o sentido negativo do acto recorrido, é inegável que sob a entidade decisora recai o dever de fundamentação, como resulta claro da al. c) do n.° 1 do art.° 114.° do CPA:
   “1. Para além dos casos em que a lei especialmente o exija, devem ser fundamentados os actos administrativos que, total ou parcialmente:
   a) ...;
   b) ...;
   c) Decidam em contrário de pretensão ou oposição formulada por interessado;
   d) ...;
   e) ...;
   f) ....”
   E quanto aos requisitos da fundamentação, prescreve, assim, o art.° 115.° do CPA:
   “1. A fundamentação deve ser expressa, através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, podendo consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas que constituem neste caso parte integrante do respectivo acto.
   2. Equivale à falta de fundamentação a adopção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do acto.
   3. ...”
   Para além da obrigação de ser expressa, da fundamentação deve constar os fundamentos de facto e de direito, ainda que sucinta. É patente que no acto recorrido não foi cumprido o disposto no n.° 1 do art.° 115.° do CPA por falta da indicação dos fundamentos de direito.
   
   A aplicação do direito a um caso concreto é o momento constitutivo, de importância evidente, do acto administrativo, pois este trata-se de decisão de órgãos da Administração que visem produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta ao abrigo de normas de direito público (art.° 110.° do CPA). É precisamente a parte da fundamentação que facilita o conhecimento da base legal das decisões da Administração Pública, compreendendo a qualificação das situações de facto, o sentido interpretativo da norma jurídica, a ponderação dos interesses em causa e finalmente a própria subsunção.
   A fundamentação consiste num discurso aparentemente capaz de fundar uma decisão administrativa, um discurso ou juízo justificativo.1
   
   A exigência legal da menção expressa dos fundamentos fácticos e jurídicos da decisão administrativa corresponde aos diversos objectivos que demonstram a sua indispensabilidade não só para os interesses dos particulares, mas também para os públicos.
   O imperativo de fundamentação apresenta uma complexidade funcional, em que se articulam três finalidades principais:
   (1) A melhoria da qualidade e a legitimidade da decisão administrativa, decorrentes da ponderação mais cuidadosa dos interesses em jogo e de uma maior atenção à racionalidade objectiva (ou intersubjectiva) na escolha da melhor solução para prosseguir o interesse público no caso concreto; assegurando a correcção jurídica da própria decisão administrativa de maneira a prevenir contra decisões que, por falta de reflexão ou de ponderação, possam ser levianas, desequilibradas ou de outro modo arbitrárias e, por consequência necessária, alheias ou contrárias ao interesse público.
   (2) O aperfeiçoamento dos mecanismos de controlo da legitimidade das decisões administrativas de autoridade, designadamente no que respeita aos seus momentos discricionários, tendo em especial consideração a garantia do exercício efectivo do direito de recursos contenciosos dos particulares face aos actos administrativos; permitindo o aumento da previsibilidade do comportamento administrativo e uma garantia mais efectiva da igualdade de tratamento e, em especial, pelo aperfeiçoamento da racionalidade decisória.
   (3) O alargamento da publicidade administrativa, sobretudo na dimensão informativa e participativa, no plano das relações com os particulares interessados, mas ainda numa dimensão de transparência ou clarificação, ao nível da relação com a comunidade global, como processo de persuasão ou de convencimento dos particulares sobre a justeza da decisão tomada, além de contribuir para a criação de um clima geral de paz e de confiança entre a Administração e o público.2
   A fundamentação da decisão da Administrativa Pública apresenta uma plurifuncionalidade que visa não só a tradicional protecção dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares, mas sobretudo a maior prudência e objectividade no processo conducente à tomada da decisão e a correcção e justeza desta, satisfazendo, deste modo, o interesse público da legalidade e até juridicidade das actividades administrativas, bem como a compreensão do sentido decisório pelo próprio destinatário e o público em geral, evitando a potencial conflitualidade.
   
   A fundamentação formal da decisão não corresponde necessariamente à fundamentação material relativa à legitimidade da própria decisão, isto é, os fundamentos de facto e de direito como menção constitutiva do acto administrativo não se confundem com o fundamento material do mesmo.
   “A fundamentação é, então, um requisito formal das decisões, que não se confunde com o seu conteúdo e que, independentemente das implicações entre a declaração de fundamentação e a substância da decisão, tem uma existência e uma dimensão valorativa autónomas.
   Esta autonomia da fundamentação formal expressa-se na separação entre os requisitos da correcção da fundamentação e os requisitos de correcção da decisão, implicando que, embora existam pontos de comunicabilidade, a patologia da fundamentação não determine, como ponto de partida, a deficiência da decisão, por si só considerada. Ou seja, a fundamentação diz apenas respeito à exteriorização dos pontos de sustentação da decisão e não ao que eles são como realidade ontológica intradecisória.”3
   É reconhecida à obrigatoriedade da fundamentação uma dimensão formal autónoma que se apresenta como uma condição de validade dos actos administrativos, em termos de que a sua falta pode ter por consequência a anulação deles, mesmo que não contenham, ou independentemente de conterem ou não, vícios substanciais.4
   
   Como um discurso justificativo, a fundamentação deve ter conteúdo adequado a suportar formalmente o acto administrativo, capaz de revelar a ponderação dos factos e pressupostos legais determinantes para a tomada da decisão.
   Do acto objecto do recurso contencioso não constam os fundamentos de direito do indeferimento. É concebível que a falta de pessoal invocada pela entidade recorrida terá por fundamento, tal como se deduz no acórdão recorrido, o disposto no art.° 263.°, n.° 4 do ETAPM onde estão previstos precisamente os motivos que podem obstar à aposentação voluntária requerida ao abrigo da al. b) do n.° 1 do mesmo artigo, norma com base na qual o recorrente apresentou o seu pedido. Aquela disposição constituirá o fundamento de direito substancial do acto recorrido. No entanto, a fundamentação formal tem as suas próprias funções insubstituíveis pela fundamentação material. A conformidade do motivo de facto invocado e do sentido da decisão com as disposições normativas aplicáveis não dispensa a obrigatoriedade de mencionar no acto os fundamentos de direito nem o iliba da previsível consequência de anulação.
   É irrelevante para apreciar o cumprimento da exigência legal da fundamentação a apresentada na contestação ou alegação pela Administração no recurso contencioso, tal como foi referida no ponto n.° 2 da contestação da entidade recorrida (fls. 21). Assim, perante a falta absoluta da menção dos fundamentos de direito, não se pode, posteriormente no controlo jurisdicional, integrar a lacuna através do enquadramento jurídico feito pelo tribunal, constatar ou declarar a existência de pressupostos legais justificativos da decisão tomada mas não invocados ou até nem ponderados pela Administração, sob pena de violação da reserva da Administração na determinação e definição primárias do acto administrativo.5
   
   Ficou claro que do acto recorrido consta apenas a fundamentação de facto, sem a menção da base legal da decisão. Não há qualquer fundamentação de direito quando se não invoca, no acto administrativo, norma legal ou princípio de direito como justificativos do sentido decisório. Face ao dever legal de fundamentar e as suas funções específicas, não releva a conformidade da decisão recorrida com o regime legal aplicável. Apresenta-se, deste modo, insuficiente a fundamentação do acto6 que equivale à falta de fundamentação, segundo o disposto no art.° 115.°, n.° 2 do CPA, que determina a anulação do acto nos termos do art.° 124.° do mesmo Código.
   Nestes temos, o presente recurso é de proceder.
   
   
   2.4 O erro sobre os pressupostos de facto e a violação de lei
   O recorrente considera que a falta de pessoal não é suficiente para preencher o conceito indeterminado de inconveniência para o serviço, o que consubstancia o vício da violação de lei por não ter sido obedecido o disposto no art.° 263.°, n.° 4 do ETAPM. Em relação ao erro sobre os pressupostos de factos, o recorrente alega que o vício consiste em que a aposentação dele não iria causar inconveniência aos serviços, o que é reconduzível àquele vício por se tratar da mesma questão da interpretação do conceito de inconveniência para o serviço.
   
   De facto, o que foi invocado no acto recorrido para o indeferimento da aposentação voluntária do recorrente é precisamente a falta de pessoal da CPSP. Embora não foi referido o seu enquadramento jurídico na parte da fundamentação do acto, pode ser examinada a idoneidade desta para justificar o indeferimento com base no disposto do mencionado art.° 263.°, n.° 4, norma onde estão previstas as razões que podem levar à negação da aposentação voluntária requerida por interessados.
   De acordo com o n.° 4 do art.° 263.° do ETAPM, a aposentação voluntária, requerida nos termos da alínea b) do n.° 1 do mesmo artigo, pode ser indeferida com invocação, designadamente, de razões de ordem financeira, de política geral ou sectorial em matéria de gestão de pessoal ou de fundamentada inconveniência para o serviço.
   Esta norma confere à Administração grande margem de livre decisão em dois sentidos.
   Em primeiro lugar, a lei permite que a Administração indefere o pedido de aposentação voluntária com base em critérios que julga adequados para justificar a decisão e fixa, apenas a título exemplificativo ao empregar o termo “designadamente”, alguns motivos, sobretudo ligados ao funcionamento da própria Administração, tais como razões financeiras, de gestão pessoal e, em geral, da inconveniência para o serviço, que podem conduzir à negação do pedido.
   Em segundo lugar, os motivos indicados na norma consistem em conceitos indeterminados em sentido próprio que têm os seus significados influenciáveis pela conjuntura social e depende mais da avaliação de situações concretas feita pela Administração. O preenchimento de conceitos indeterminados exige à Administração uma valoração do caso concreto baseada numa prognose, movida na ampla margem de livre decisão consentida pela lei que é semelhante à da discricionariedade.
   Tal como acontece no exercício do poder discricionário, a actividade desenvolvida pela Administração no âmbito da margem de livre decisão traduz, por excelência, o desempenho das funções administrativas e constitui a matéria de mérito da actuação administrativa. O recurso contencioso é concebido na lei como uma forma de controlo da mera legalidade dos actos administrativos (art.° 20.° do Código de Processo Administrativo Contencioso), pelo que o mérito dos actos administrativos praticados com base na margem de livre decisão não é sindicável, em princípio, pelo tribunal através do processo de recurso contencioso, salvo nos casos de erro manifesto, total desrazoabilidade ou, em geral, de manifesta violação dos princípios fundamentais de Direito a que as actividades administrativas devem respeito.7
   
   De facto, existem relatórios constantes do processo administrativo apensado com conclusões contraditórias. No relatório do Gabinete de Justiça entende-se que não há inconveniência para o serviço e no do Departamento de Gestão de Recursos conclui-se que há inconveniência para o serviço. É legítimo questionar se naquele as considerações baseiam mais no aspecto jurídico e neste mais no âmbito do recurso humano da Corporação. De qualquer modo, é apenas na proposta do Comandante substituto, integrada no acto recorrido, que especifica a falta de pessoal como razão de fundo.
   Ora, não se afigura que a falta de pessoal ultrapassa os limites consentidos pela norma do n.° 4 do art.° 263.° do ETAPM, especialmente os de gestão de pessoal e consequentemente da inconveniência para o serviço, nem muito menos os outros princípios fundamentais de Direito a que a Administração está sujeita.
   Portanto, não há violação de lei.
   O presente recurso com esta parte de fundamentos teria de improceder.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em julgar procedente o recurso e revogar o acórdão recorrido, dando, consequentemente, provimento ao recurso contencioso e anulando o acto impugnado.
   Não são tributados o recorrente no recurso contencioso por obter agora vencimento e o recorrido no presente recurso por estar legalmente isento das custas.
   
   
   
   Aos 6 de Dezembro de 2002.


           Juízes:Chu Kin (relator)
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai
  Magistrada do Ministério Público
  presente na conferência: Song Man Lei


1 Cfr. Vieira de Andrade, O Dever da Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, Almedina, Coimbra, 1991, p. 228 a 232.
2 Cfr. Vieira de Andrade, ob. cit., p. 65 a 80. Em sentido semelhante, David Duarte, Procedimentalização, Participação e Fundamentação: Para uma Concretização do Princípio da Imparcialidade Administrativa como Parâmetro Decisório, Almedina, Coimbra, 1996, p. 237 a 241.
3 Cfr. David Duarte, ob. cit., p. 185 e 186.
4 Cfr. Vieira de Andrade, ob. cit., p. 27.
5 Cfr. Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves, João Pacheco de Amorim, Código do Procedimento Administrativo Comentado, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 1997, p. 591.
6 Neste sentido, José Osvaldo Gomes, Fundamentação do Acto Administrativo, 2ª ed., Coimbra Editora, 1981, p. 123.
7 Neste sentido decidiu o TUI no acórdão de 27 de Abril de 2000 proferido no processo n.° 6/2000.
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Processo n.° 14 / 2002 24