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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso penal
N.° 23 / 2002

Recorrente: A







1. Relatório
   Por acórdão do Tribunal Judicial de Base de 28 de Junho de 2002 proferido no âmbito do processo comum colectivo n.° PCC-027-02-1, o arguido, ora recorrente, foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de droga previsto e punido pelo art.° 8.°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 5/91/M na pena de 8 anos e 3 meses de prisão e 8000 patacas de multa ou em alternativa de 50 dias de prisão.
   Não conformado com o acórdão de primeira instância, o arguido recorreu para o Tribunal de Segunda Instância. Por seu acórdão de 7 de Novembro de 2002 proferido no processo n.° 159/2002, foi negado provimento ao recurso.
   Vem agora o arguido recorrer para o Tribunal de Última Instância, formulando as seguintes conclusões da motivação:
“1. O Tribunal Judicial de Base não deu cumprimento ao disposto no art.º 355.º, n.º 2 do CPP, limitando-se a um mero enunciado das provas, sem que, o Acórdão recorrido, contenha a verdadeira motivação da matéria de facto e de direito que fundamentam a decisão.
   2. A decisão também se baseia em fundamentos de direito. As razões de direito que servem para fundamentar a decisão devem também ser especificadas na fundamentação da sentença.
   3. Só a consagração da correcta fundamentação de facto e de direito das decisões, nos termos que vimos a aludir, permitirá um efectivo controle da sua motivação, evitando-se assim, avaliações “caprichosas” ou “arbitrárias” da prova, como aliás, salvo o devido respeito, se nos afigura no caso do Acórdão em apreço, sendo o mesmo, gerador de uma menor credibilidade da justiça.
   4. A falta de fundamentação insanável do acórdão do TJB impõe, nos termos do art.º 360.º, alínea a) do CPP, a nulidade do mesmo.
   5. A actividade judicial de aplicação do direito na determinação da medida da pena está dependente de regras escritas que estabelecem os critérios que presidem a essa operação, sendo a actividade do Juiz uma actividade juridicamente vinculada. Não estamos mais na época da discricionariedade livre.
   6. No processo de determinação concreta da pena, o TJB, não deu cumprimento aos critérios enunciados pelo legislador, nomeadamente os previstos nas disposições consagradas nos art.ºs 40.º e 65.º do Código Penal de Macau.
   7. Só a prevenção geral positiva de integração e a prevenção especial positiva de socialização, servem a função do direito penal e só elas podem ser levadas em consideração na determinação da pena concreta.
   8. Assim a determinação da medida da pena “dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção criminal” (cfr. art.º 65.º CPM).
   9. O Tribunal recorrido não se pronunciou sobre esta questão, não colmatando o vício enunciado de que enfermava o Acórdão do TJB.
   10. No Acórdão do TJB não são expressamente referidos, os fundamentos da determinação da pena violando-se, deste modo, o estipulado no art.º 65.º, n.º 3 do Código Penal e o art.º 356.º, n.º 1 do CPP.
   11. A moldura penal abstracta prevista para o crime de tráfico, é de 8 a 12 anos de prisão. Trata-se, contudo, e salvo melhor opinião, de uma norma que não respeita (maxime no seu limite inferior), o princípio da legalidade, necessidade e da proporcionalidade do direito penal, por prever uma privação de liberdade injustificada, desnecessária, desproporcional e como tal inadmissível e ilegítima nos quadros de um ordenamento jurídico que se pretenda protector da dignidade humana.
   12. É inadmissível que pena mínima para os casos de tráfico de droga seja 8 anos de prisão. Trata-se de um limite exageradamente elevado, senão vejamos:
   13. A lei vigente pune o tráfico com uma pena de 8 anos a 12 anos de prisão (art.º 8.º, n.º 1) ao passo que o tráfico de quantidades diminutas é punível com uma pena de 1 a 2 anos de prisão (e multa; art.º 9.º).
   14. Existe assim, um “fosso abissal” entre a pena do tipo fundamental (8 a 12 anos) e a pena do tipo privilegiado (1 a 2 anos).
   15. A conclusão natural que podemos retirar é a de que o limite mínimo da pena consagrado para o tipo de crime de tráfico – 8 anos de prisão – é desproporcionalmente elevado comparativamente com o limite máximo estabelecido para o tipo do crime de tráfico de quantidades diminutas – 2 anos.
   16. Para além do mais, o referido mínimo da penalidade do crime de tráfico de estupefacientes, fixado em 8 anos, deverá ser considerado “inconstitucional”, por violação dos art.º 25.º, art.º 29.º e art.º 30.º, da Lei Básica da RAEM.
   17. Nestes termos, julgando-se contrário à lei básica a estipulação do limite mínimo de 8 anos, caberá pois à jurisprudência graduar a pena em medida inferior, nos casos de condenação pelo crime previsto no n.º 1 do art.º 8.º do Decreto-Lei n.º 5/91/M, de 28 de Janeiro.
   18. Por outro lado, a decisão viola ainda o princípio da culpa decorrente do art.º 40.º do CPM bem como o princípio da necessidade da pena, nomeadamente, na parte em que (des)respeita as necessidades de prevenção geral e especial sentidas no caso concreto.
   19. O princípio da culpa obsta à punição que exceda a medida da culpa. Todavia, no caso concreto, e apesar de não ter sido fundamentada a medida da pena, ao determinar-se tal medida da pena em 3 meses acima do limite mínimo, faz depreender que a culpa atribuída ao recorrente é também ela diminuta, como diminutas são as necessidades de prevenção geral e especial.
   20. Como bem se admite no Acórdão recorrido, a quantidade de estupefaciente encontrado na posse do recorrente não é uma “quantidade elevada”, no sentido de ser “abundante” ou “excessiva”.
   21. Ademais, como refere, e bem, o Acórdão recorrido, por remissão ao Acórdão do TSI de 08.06.2000 “no crime de tráfico de estupefacientes, está em causa não só a droga concretamente apreendida, num determinado processo, mas também a quantidade de droga que durante uma determinada época foi traficada pelo agente”.
   22. Ora “in casu” não ficou provado qual a quantidade de droga traficada pelo recorrente naquele período de 3 meses, provando-se, apenas, que o recorrente vendeu por 15 vezes comprimidos e a um só comprador.
   23. Assim, na determinação da ilicitude e da medida da culpa, só deveria ser tomada em consideração a quantidade de droga, efectivamente detida pelo recorrente, visto não se ter feito prova da quantidade de estupefaciente traficada no período referido de três meses.
   24. Relativamente ao estupefaciente Ketamina e por ser um produto de recente penalização ainda não se conhece referência jurisprudencial atinente ao respectivo consumo diário.
   25. Também não será suficiente a opinião de um único perito visto tratar-se de uma droga relativamente nova e da qual ainda não se conhecem exactamente os seus contornos, efeitos e necessidades diárias.
   26. Não poderá assim afirmar-se, com total segurança, por falta de demonstração científica, que o necessário para consumo individual durante três dias será de 2 gramas.
   27. A ser assim, ficaríamos com um excesso de 2,50 gramas de Ketamina, relativamente ao permitido pelo n.º 3 do art.º 9.º respeitante ao tráfico de quantidades diminutas.
   28. Por ter na sua posse, a mais 2,50 gr., a sua pena aplicável passou automaticamente de um limite máximo de 2 anos para um limite mínimo de 8 anos. A simples operação matemática conduziu a um acréscimo de pena aplicável no mínimo de 6 anos.
   29. O julgador não tem de ater-se unicamente às prescrições legais; ele pode procurar, através da melhor hermenêutica, a mais justa solução para o caso concreto.
   30. No caso dos autos, o Tribunal, puniu com uma pena de 8 anos e 3 meses um arguido que:
   a) ao tempo da prática dos factos tinha 23 anos de idade,
   b) detinha 2,50 gr. de Ketamina a mais do que o permitido pelo tipo de crime de tráfico de quantidades diminutas,
   c) a droga que permite ao Tribunal aplicar-lhe uma pena é a Ketamina, droga essa de punição recente (Lei 4/2001) e sobre a qual ainda não há estudos e jurisprudência suficientemente fixada e estabilizada quanto à necessária dose diária para consumo,
   d) não foi apurado o lucro obtido nas suas transacções, pelo que é concerteza irrelevante em termos de tráfico,
   e) só foi provado que vendeu 15 vezes e a um só comprador, não se apurando a quantidade efectivamente transaccionada,
   f) a ilicitude do seu comportamento e a sua culpa são diminutas,
   g) não há exigências acrescidas de prevenção geral e muito menos de prevenção especial,
   h) o facto de estar desempregado à altura e ter a namorada e filha a cargo constituiu um factor de solicitação e tentação ao cometimento do crime,
   i) é primário,
   j) demonstrou o seu arrependimento e confessou os factos.
   31. Da análise global da situação seria permitido ao Tribunal, de forma a mitigar a inadequação da moldura abstracta à culpa do agente, uma de duas posições:
   32. Ter em conta que, no caso concreto, a ilicitude e a culpa do recorrente são diminutas e que sobretudo face ao circunstancialismo apurado não há necessidade da aplicação de uma pena de oito anos e três meses de prisão tendo em vista sobretudo a culpa e as necessidades de prevenção quer geral quer especial que no caso se fazem sentir, podendo assim fazer uso do instituto da atenuação especial da pena previsto no art.º 66.º do CPM.
   33. Ou, punir o recorrente pelo art.º 9.º do DL 5/91/M como traficante de quantidades diminutas, situação que não repugnará à consciência jurídica pois será essa ainda uma solução justa para o caso concreto, tendo em vista o tipo de droga, a Ketamina, e sobretudo porque, de facto, a quantidade apreendida foi diminuta como bem refere o Acórdão recorrido.”
   Pedindo que seja julgado procedente o recurso e, em consequência, proferida nova decisão.
   
   
   A Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de Segunda Instância emitiu a resposta com as seguintes conclusões:
“1. Na fundamentação de facto e de direito da sentença exigida no art.º 355.º, n.º 2 do CPPM, há que afastar uma perspectiva maximalista – devendo ter-se em conta, sempre, os ingredientes trazidos pelo caso concreto.
   2. “Se, em determinado caso, for possível conhecer as razões essenciais da convicção a que chegou o tribunal, pela enumeração dos factos provados e pela indicação dos meios de prova utilizados, torna-se desnecessária a indicação de outros elementos, designadamente a razão de ciência”.
   3. No nosso caso concreto, o tribunal “a quo” expôs os factos provados e considerou não provados “os restantes factos da acusação”, indicou ainda as provas que serviram para formar a sua convicção.
   4. Por outro lado, o Tribunal expôs o enquadramento jurídico-penal dos factos, explicando as razões que justificaram a condenação do recorrente, aludindo aos critérios fixados nos n.ºs 1 e 2 do art.º 65.º do CPM para determinação da pena concreta bem como a alguns elementos constantes dos autos, designadamente a censurabilidade da conduta do recorrente e a gravidade do crime, referindo também as exigências de prevenção criminal.
   5. A forma como o Tribunal “a quo” fundamentou a sua decisão, indicando os factos provados e não provados e as provas que serviram para formar a sua convicção bem como expondo as razões essenciais da sua condenação, satisfaz as exigências da lei na parte respeitante à fundamentação da sentença, pelo que não se verifica a violação do art.º 355.º, n.º 2 do CPPM nem dos art.ºs 65.º do CPM e 356.º do CPPM.
   6. Segundo os dados disponíveis, a quantidade de Ketamina aceitável para consumo durante 3 dias é de 10 comprimidos ou de 2 gramas.
   7. Face aos factos dado como provados, sobretudo à quantidade de 4.5 gramas de Ketamina, que é mais do dobro do limite propugnado e por si só já não constitui quantidade diminuta referida no art.º 9.º do DL n.º 5/91/M, não se pode suscitar quaisquer dúvidas sobre a não qualificação da quantidade apreendida na posse do recorrente como diminuta.
   8. É de acrescentar que para além do peso de Ketamina contida nos 25 comprimidos, há de ter em conta ainda a quantidade das outras substâncias também detectadas nos autos bem como os comprimidos de Ecstasy cujo tráfico pelo recorrente ficou também provado (embora não seja possível determinar a quantidade).
   9. Quanto à pena concreta de 8 anos e 3 meses de prisão aplicada ao recorrente, não nos parece que a mesma é exagerada, tendo em conta a forma de actuação do recorrente, o acentuado grau de ilicitude da sua conduta bem como a sua culpa por ter dedicado à venda de droga durante o período de, pelo menos, 3 meses, embora a um só comprador.
   10. Como está em causa o crime de tráfico de estupefaciente, crime de perigo e de acentuada gravidade, há de ter em consideração a premente necessidade de prevenção geral e especial de crimes desta natureza em Macau.
   Termos em que se deve negar provimento ao recurso.”
   
   
   Nesta instância, o Ministério Público mantém-se a posição assumida na resposta à motivação.
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   1. O Tribunal Judicial de Base e o Tribunal de Segunda Instância consideram provados os seguintes factos:
“Em 27 de Novembro de 2001, cerca das 3:20 da madrugada, na Praça do [Hotel], a polícia encontrou no bolso direito das calças do arguido A, dois sacos de plásticos transparentes contendo no interior respectivamente 25 comprimidos imprimidos com letra CC de cor lilás e um pó de cor de iogurte (vide auto de apreensão a fls. 4 e 5).
   Posteriormente, o pessoal da PSP encontrou na porta bagagem do veículo ligeiro de matrícula n.º MD-XX-XX conduzido pelo arguido A que tinha estacionado perto da [Escola], na parte onde se coloca o pneu sobresselente, um comprimido de cor de laranja, imprimido com um desenho de forma de diamante (vide auto de apreensão a fls. 6).
   Após exame laboratorial, o saco de pó de cor de iogurte tratava-se de heroína, com peso líquido de 0.726g, substância essa controlada na tabela I-A do DL n.º 5/91/M; os 25 comprimidos de cor de lilás tratavam-se de Metanfetamina, substância essa controlada na tabela II-B e Ketamina substância essa controlada na tabela II-C, (com alterações dada pela Lei n.º 4/2001) ambas do mesmo DL; quanto ao comprimido de cor de laranja tratava-se de MDMA, substância essa controlada na tabela II-A do mesmo DL, contendo o peso líquido total de “Metanfetamina” em 0.18g e de “Ketamina” em 4.50g.
   O arguido A adquiriu tais produtos no dia 26 de Novembro de 2001 em Kong Pak de Zhuhai, a um indivíduo desconhecido chamado “B”, pelo preço de cinquenta RMB (RMB$50,00) por cada comprimido, e o valor de trezentas RMB (RMB$300,00) pela quantidade de heroína supramencionada.
   Em data indeterminada, o arguido A começou a vender “os supracitados produtos” (sic.) designados vulgarmente por “Estasy” e heroína às pessoas que frequentavam as discotecas do Território, a fim de obter interesses monetários.
   O arguido A, dentro do período de 3 meses, chegou vender por 15 vezes comprimidos de “Estasy” ao C para consumo, pelo preço de cem patacas cada (MOP$100,00).
   Cada vez que C adquiria os comprimidos “Estasy” contactava pelo telemóvel n.° XXXXXXX do arguido A e combinavam a quantidade, a hora e o local de transacção.
   O arguido A conhecia perfeitamente a natureza e as características dos produtos supracitados.
   O arguido A adquiriu, importou, transportou, vendeu e cedeu os supracitados produtos, a fim de obter ou com intuito de obter interesses monetários; o mesmo detinha os produtos não para consumo próprio.
   O arguido agiu livre, consciente e voluntariamente.
   Bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
   O arguido era desempregado.
   É solteiro e tem a namorada e a filha a seu cargo.
   É primário”; (cfr. fls. 223 a 224).
   
   Não ficaram provados os restantes factos da acusação.
   
   
   2. Questões a resolver
   2.1 Impõe-se, desde já, proceder oficiosamente a rectificação de um manifesto lapso na matéria de facto provada onde refere que o comprimido de cor de laranja “tratava-se de MDMA”. No entanto, segundo o relatório de exame de urgência (fls. 30), o relatório de exame (fls. 55 e 56), a acusação (fls. 128v) e a respectiva tradução para português (fls. 190v), refere sempre que o tal comprimido contem a droga MDA e não MDMA.
   Assim, rectifica-se a matéria de facto provada onde se lê “... quanto ao comprimido de cor de laranja tratava-se de MDMA, ...”, leia-se “... quanto ao comprimido de cor de laranja tratava-se de MDA, ...”.
   
   2.2 Falta de fundamentação
   Em primeiro lugar, o recorrente suscita a falta de fundamentação por parte do tribunal de primeira instância resultada do incumprimento do art.° 355.°, n.° 2 do Código de Processo Penal (CPP). Entende que o acórdão do Tribunal Judicial de Base se limita a um mero enunciado das provas, sem que contenha a verdadeira motivação da matéria de facto e de direito que fundamentam a decisão.
   Parece que o recorrente pretende mais impugnar o acórdão recorrido sobre a parte da fundamentação de facto, pois afirma que o Tribunal Judicial de Base se limita a uma mera enumeração das provas e não da indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
   
   Sobre a parte de fundamentação de sentença, prescreve o art.° 355.°, n.° 2 do CPP: “Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”
   O problema de fundamentação de facto da sentença já foi várias vezes apreciado pelo este Tribunal de Última Instância.
   No acórdão de 16 de Março de 2001 do processo 16/2000 decidiu assim:
   “Em relação à parte da convicção do tribunal, obedece aos requisitos do referido preceito (art.° 355.°, n.° 2 do CPP) a sentença que se limita a indicar as fontes das provas que serviram para fundamentar a convicção do julgador, sem necessidade de mencionar as razões que determinaram essa convicção ou o juízo crítico de tais provas. A lei não obriga a indicação desenvolvida dos meios de prova mas tão só a das fontes das provas, pelo que basta a indicação da prova para satisfazer a exigência legal.
   A obrigatoriedade de indicação na sentença das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, destina-se a garantir que na sentença se seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, não sendo uma decisão ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum na apreciação da prova.
   Não há norma processual que exige que o julgador exponha pormenorizada e completamente todo o raciocínio lógico ou indique os meios de prova que se encontram na base da sua convicção de dar como provado ou não provado um determinado facto, nem a apreciação crítica das provas em ordem a permitir a sua apreciação pelo tribunal de recurso, sem prejuízo, naturalmente, de maior desenvolvimento quando o julgador entenda fazer. À outra solução não pode chegar mesmo com o recurso ao art.r 400. do CPP relativamente aos fundamentos de recurso.”
   Posteriormente, o acórdão de 18 de Julho de 2001 do processo n.° 9/2001 toma a seguinte posição semelhante, que também foi reafirmada no acórdão de 9 de Outubro de 2002 do processo n.° 10/2002:
   “A enumeração dos factos provados e não provados, a indicação dos meios de prova utilizados e a exposição dos motivos de facto que fundamentam a decisão devem permitir conhecer as razões essenciais da convicção a que chegou o tribunal, no que se refere à decisão de facto.
   A exposição dos motivos de facto que fundamentam a decisão pode satisfazer-se com a revelação da razão de ciência das declarações e dos depoimentos prestados e que determinaram a convicção do tribunal.”
   
   Do acórdão de primeira instância consta a seguinte motivação de facto:
   “Indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal:
   As declarações do arguido.
   As declarações das testemunhas da acusação, designadamente agentes da PSP, que intervieram na investigação dos factos e detenção do arguido e que relataram com isenção e imparcialidade.
   O relatório de exame da PJ a fls. 52.1
   Os outros documentos juntos aos autos e fotografias.
   Apreciação crítica e valorativa de um conjunto de provas na sua globalidade, e às regras de experiência comum e de normalidade das situações.”
   O tribunal de primeira instância já especificou, nesta parte do acórdão, as provas que serviram para formar a convicção do tribunal e as razões de ciência do depoimento das testemunhas de acusação, os agentes policiais. Entende-se que o acórdão satisfaz a exigência legal de fundamentar de facto a decisão nos termos do referido art.° 355.°, n.° 2 do CPP.
   
   Em relação à fundamentação de direito, o recorrente entende que é na parte da determinação concreta da pena se verifica a sua falta. Sustenta que ao fixar concretamente a pena, o Tribunal Judicial de Base não deu cumprimento aos critérios enunciados pelo legislador, nomeadamente os previstos nos art.°s 40.° e 65.° do Código Penal (CP), não se pronunciou sobre a culpa do agente e as exigências de prevenção criminal na determinação da medida de pena.
   No entanto, é fácil de constatar a sem razão do recorrente. Foi precisamente em consideração da culpa do recorrente e da necessidade de prevenção criminal que o tribunal de primeira instância fixou concretamente a pena a aplicar ao recorrente nos termos do art.° 65.°, n.° 1 do CP. Embora de uma forma muito sucinta, no acórdão de primeira instância levaram-se em conta, sobretudo, a censurabilidade da conduta do recorrente, a gravidade do crime e as exigências de prevenção criminal para encontrar a pena concreta que está um pouco mais do limite mínimo da moldura da pena do crime pelo qual foi condenado.
   É de considerar manifestamente improcedente o recurso nessa parte.
   
   2.3 Medida da pena
   Nesta questão, o recorrente suscita, em primeiro lugar, que o limite mínimo da moldura penal abstracta do crime de tráfico de droga é desproporcionalmente elevado por violação do princípio da legalidade, necessidade e proporcionalidade do direito penal e, em segundo lugar, que a pena concretamente fixada não respeitou os princípios da culpa e da necessidade da pena.
   
   Sobre a moldura abstracta da pena do crime em causa, é verdade que nos termos dos art.°s 8.°, n.° 1 e 9.°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 5/91/M, e sempre em relação às drogas compreendidas nas tabelas I a III anexas ao mesmo diploma, a pena para o crime de tráfico de droga é de 8 a 12 anos de prisão com multa e a para o crime de tráfico de quantidades diminutas de droga é de 1 a 2 anos com multa.
   É desprovido de sentido quando o recorrente afirma em geral que a moldura penal abstracta do crime de tráfico de droga, sobretudo no seu limite mínimo, viola o princípio da legalidade, necessidade e proporcionalidade do direito penal, para além de não apresentou os fundamentos da sua afirmação.
   A posição do recorrente só tem algum significado prático quando compara o limite mínimo da moldura da pena do crime de tráfico e o limite máximo do crime de tráfico de quantidades diminutas por existir uma diferença de seis anos na parte das penas de prisão. Se em Portugal, exemplo referido pelo recorrente, alterou as legislações dos crimes de droga para passar a prever uma zona de sobreposição das penas dos crimes de tráfico de droga e de tráfico de menor gravidade, em Macau não foi seguida esta via e as situações sociais são diferentes. É de acrescentar que, em comparação com as legislações congéneres de Portugal, o crime de tráfico de menor gravidade deste país não é equivalente ao nosso crime de tráfico de quantidades diminutas por ter elementos típicos diferentes.
   É patente a diferença relativamente grande na punição dos dois crimes em causa e a jurisprudência das diversas instâncias dos tribunais não é insensível sobre esta situação. Basta notar que, em boa parte das decisões de condenação pelo crime de tráfico de droga, as penas concretas são sistematicamente fixadas em poucos meses acima de oito anos, limite mínimo da pena de prisão.
   Ora, o aplicador de direito deve interpretar as normas legais de acordo com o seu pensamento legislativo, tendo em conta a unidade do sistema jurídico. Não pode considerar o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal e deve-se presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e exprimiu adequadamente o seu pensamento (art.° 8.° do Código Civil).
   Até uma alteração legislativa sobre a matéria, a nossa política criminal sobre os crimes ligados à droga continua a ser de perseguição e punição severa, tendo em conta a sua grande perigosidade, alarme social e consequências muito negativas não só no âmbito pessoal e familiar mas também de toda a sociedade em geral.
   Daí, o tráfico de droga é punido com pena relativamente elevada, 8 a 12 anos de prisão e multa. Por outro lado, a lei prevê pena mais baixa, no máximo dois anos de prisão, para os casos de tráfico de quantidades diminutas, estas correspondentes à quantidade de droga necessária para consumo individual durante três dias (n.° 3 do art.° 9.° do Decreto-Lei n.° 5/91/M). Não se verifica com estas disposições violação dos princípios de proporcionalidade, de dignidade humana ou de legalidade. Nem há qualquer mecanismo legal que permite o tribunal graduar a pena em medida inferior, salvo o caso de atenuação especial, sob pena de violar, antes de mais, os princípios de legalidade e de igualdade dos cidadãos perante a lei.
   
   Para o recorrente, a sua culpa é mínima e como diminutas são também as necessidades de prevenção geral e especial. Entende que não há necessidade de aplicar uma pena de oito anos e três meses de prisão e que o tribunal devia fazer uso do instituto de atenuação especial prevista no art.° 66.° do CP ou punir o recorrente pelo crime de tráfico de quantidades diminutas.
   Nesta parte dos fundamentos do recurso regista-se a maior confusão técnica da motivação. De qualquer modo, cabe averiguar se a conduta do recorrente é integrável no crime de tráfico de quantidades diminutas previsto e punido pelo art.° 9.°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 5/91/M.
   Segundo os factos provados, foram encontrados na posse do recorrente 0,726g de Heroína, 25 comprimidos com 0,18g de Metanfetamina e 4,5g Ketamina e um comprimido com MDA.
   Para determinar se a conduta do recorrente é integrável no crime de tráfico de quantidades diminutas de droga, é necessário averiguar se a quantidade de droga excede o necessário para consumo individual durante três dias, reportando-se à quantidade total das substâncias ou preparados encontrados na disponibilidade do agente (art.° 9.°, n.° 3 do Decreto-Lei n.° 5/91/M).
   Uma vez que não existe ainda, no plano legislativo, a concretização da quantidade diminuta das substâncias e produtos de droga mais correntes no tráfico, como a Metanfetamina, Ketamina e MDA do nosso caso, para os efeitos do disposto no referido art.° 9.°, resta determinar essa quantidade segundo as regras da experiência e a livre convicção do tribunal nos termos do n.° 5 do mesmo artigo.
   
   Entre as drogas encontradas na posse do recorrente destaca os 25 comprimidos que contêm 4,5g de Ketamina e 0,18g de Metanfetamina.
   Ketamina é uma substância anestésica poderosa que provoca alucinação. A dose reduzida de Ketamina produz sensações de ligeireza e alegria, a dose elevada pode originar sensações de não pertença ao corpo e de próximo de morte. Da intoxicação aguda pode resultar suspensão respiratória, consciência confusa, espasmo súbito em todo o corpo, suspensão de palpitação e até morte.
   Por causa de fortes efeitos de Ketamina, uma pequena dose em menos de 30mg já pode produzir os efeitos.2 A Ketamina tem acção curta, mas o consumidor pode sentir alienado durante 18 a 24 horas.
   As sensações de alegria de Ketamina são semelhantes às produzidas por cocaína, canabis e álcool. Na aplicação clínica de anestesia, a dose de injecção intravenosa para pessoa adulta é de 1-2mg/kg, pelo que para uma pessoa com 60kg, a dose será 60-120mg. E a dose de injecção muscular, sobretudo para crianças, é de 6-10mg/kg.3
   Há informação de que 900mg a 1000mg de Ketamina provoca a morte de uma pessoa adulta e é raro que um consumidor tomar mais de 600mg de Ketamina por dia.
   Para os consumidores, a Ketamina é normalmente consumida através de respiração quando está na forma de pó, injecção na forma de líquido e por via oral na forma de comprimido.
   Considerando a acção e os efeitos da Ketamina, os hábitos dos consumidores deste tipo de droga e as formas de consumir, entende-se que a quantidade de consumo individual diário de Ketamina é cerca de 300mg.
   Assim, para os efeitos do art.° 9.° do Decreto-Lei n.° 5/91/M, é de fixar a quantidade diminuta de Ketamina pura, ou seja, a quantidade líquida necessária para consumo individual durante três dias, em 1000mg (1g).
   
   Entre as drogas encontradas na posse do recorrente, os 25 comprimidos contêm Metanfetamina e Ketamina.
   A Metanfetamina é um estimulante, ao passo que a Ketamina é um alucinante. Cada substância tem os seus próprios efeitos. O consumo de comprimidos que contêm estas duas substâncias permite o consumidor alcançar a sensação de estimulação e alucinação.
   Tal como foi decidido no acórdão deste Tribunal de 15 de Novembro de 2002 no processo n.° 11/2002, quando estamos perante objectos que contêm duas ou mais drogas incluídas nas tabelas conexas ao Decreto-Lei n.° 5/91/M e os efeitos de cada tipo de drogas contidas não são manifestamente neutralizados, não é subsumível ao crime de tráfico de quantidades diminutas de droga previsto no art.° 9.° do mesmo diploma o tráfico dos referidos objectos quando o peso líquido de uma das drogas contidas exceda a sua quantidade diminuta nos termos do n.° 3 do mesmo artigo.
   No caso em apreço, a quantidade de uma das substâncias contidas nos 25 comprimidos, a Ketamina, atinge 4,5g, o que já excede a respectiva quantidade diminuta acima fixada, e que torna impossível integrar as condutas do recorrente no crime de tráfico de quantidades diminutas de droga previsto no art.° 9.°, n.°s 1 e 3 do referido diploma. Assim, mostra-se correcto o enquadramento jurídico dos actos praticados pelo recorrente no crime de tráfico de droga previsto e punido pelo art.° 8.°, n.° 1 do mesmo diploma.
   
   Este crime de tráfico de droga é punível com a pena de prisão de 8 a 12 anos e multa.
   Não há qualquer circunstância que justifica a atenuação especial da pena, pois não se verifica qualquer das circunstâncias previstas no n.° 2 do art.° 66.° do CP nem outras capazes de diminuir por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena. Na realidade, é evidente a ilicitude da conduta do recorrente e a necessidade de responder a este tipo de crime com a pena legalmente prevista face aos interesses protegidos em causa. A culpa do recorrente não é diminuta face à diversidade e quantidade das drogas apreendidas e às vendas dos comprimidos de ecstasy já efectuadas. Não há possibilidade de atenuar a pena. Tudo isto reflecte na pena concreta fixada que está pouco acima do limite mínimo da moldura: mais três meses. Entendemos que a pena ora fixada é equilibrada tendo em conta todas as circunstâncias do crime.
   Improcedem também os fundamentos do recurso nesta parte.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em:
   - Rectificar a matéria de facto provada onde se lê “... quanto ao comprimido de cor de laranja tratava-se de MDMA, ...”, leia-se “... quanto ao comprimido de cor de laranja tratava-se de MDA, ...”.
   - Julgar improcedente o recurso.
   Custas pelo recorrente com a taxa de justiça fixada em 6 UC (três mil patacas).
   
   
   Aos 5 de Março de 2003.
   


           Juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

   
1 Relatório do exame do Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária sobre o componente da droga apreendida ao recorrente.
2 De acordo com o relatório dos Serviços de Saúde a fls. 350 e conforme o Laboratório do Governo de Hong Kong, 《香港濫用藥物選輯》, (Boletim Informativo de Drogas de Abuso em Hong Kong), 4ª ed., 03/2002, p. 37.
3 Cfr. Zheng Jiwang, Liu Zhimin,《氯胺酮的一般藥理、毒理作用與濫用問題》, (A Farmacologia Geral, Toxicologia e os Problemas de Abuso de Ketamina), em《中國藥物依賴性雜志》, (Revista de Dependência de Droga da China), vol. X, n.° 1 de 2001, http://www.nidd.ac.cn/zazhi/2001-1/zhjw.htm.
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Processo n.° 23 / 2002 22