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Processo n.º 29/2003. Recurso jurisdicional em matéria administrativa.
Recorrente: A.
Recorrido: Secretário para a Segurança.
Assunto: Desvio de poder. Ónus da prova. Questão nova. Contencioso de anulação. Contencioso de plena jurisdição. Princípio do aproveitamento dos actos administrativos. Acto vinculado. Discricionariedade.
Data da Sessão: 17 de Dezembro de 2003.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Sam Hou Fai e Chu Kin.
SUMÁRIO:
I – O ónus da prova dos factos que integram o vício de desvio de poder cabe ao que interpõe o recurso contencioso.
  II – Não pode conhecer-se no recurso jurisdicional de vício de acto administrativo não suscitado no recurso contencioso e que não é de conhecimento oficioso.
  III – O princípio do aproveitamento dos actos administrativos, não invalidando o acto, apesar do vício constatado, só vale no domínio dos actos vinculados, o que não se verifica no domínio da dosimetria das penas disciplinares, que comporta uma margem de discricionariedade.
O Relator
Viriato Manuel Pinheiro de Lim

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A, que foi guarda provisório da Polícia de Segurança Pública, interpôs recurso contencioso de anulação do despacho do Secretário para a Segurança, de 19 de Junho de 2001, que o puniu disciplinarmente com a pena de 6 dias de multa.
Por acórdão de 17 de Julho de 2003, do Tribunal de Segunda Instância, foi negado provimento ao recurso.
Inconformado interpõe o mesmo A o presente recurso jurisdicional, terminando a respectiva alegação com a formulação das seguintes conclusões:
1. A entidade recorrida, ao proferir o despacho impugnado, mas mantido pelo acórdão recorrido, porque eivado do vício de desvio de poder, fá-lo tornar-se anulável.
2. O acto administrativo recorrido, e mantido pelo acórdão recorrido, violou a norma contida no artigo 94.°, n.º 3, do EMFSM, aprovado pelo Decreto-Lei N.º 66/94/M, de 30 de Dezembro.
3. Os factos que estão na origem da punição disciplinar consubstanciada na decisão de que se recorreu são de contornos pouco precisos e objectivos, fazendo relevar o acto administrativo impugnado um pré-juízo de culpa e de desconfiança perante o seu subordinado, faltando a sua enunciação explícitas razões que levaram o seu autor a praticar esse acto ou a dotá-lo de certo conteúdo, razões pelas quais o acto recorrido e mantido judicialmente em primeiro grau de jurisdição está eivado dos vícios de erro nos pressupostos, e de violação de lei.
4. O órgão recorrido desrespeitou os princípios da imparcialidade, igualdade e da justiça que norteiam a conduta das entidades administrativas e legalmente consagrados nos artigos 5.° e 7.° do Código do Procedimento Administrativo em vigor, aprovado pelo Decreto-Lei N.º 57/99/M, de 11 de Outubro, que assim violou.
5. O conteúdo do despacho recorrido é de carácter geral e abstracto, acabando aquele por não definir em concreto a conduta que o recorrente consubstanciou para motivar a decisão, o que enferma o acto recorrido de insuficiência ou incongruência de fundamentação, o que equivale a ausência de qualquer fundamentação de facto ou de Direito tal como exige a lei que se esclareça cabalmente a motivação por detrás da razão de exoneração do recorrente da corporação policial, devendo a Administração fundamentar os seus actos, pautar a sua conduta de forma transparente, o que obriga a procurar o acerto na decisão por forma a facilitar o controlo da legalidade do acto por parte do seu destinatário, através do recurso contencioso.
6. A atribuição de classificação de serviço extraordinária de "Regular" ao recorrente foi feita por ponderação exclusiva de factos e factores ligados à punição disciplinar.
7. O acórdão recorrido que se impugna, ao manter na íntegra o acto recorrido, encontra-se, assim, eivado dos vícios acima identificados, pois, chamou a si a fundamentação do acto recorrido.

A entidade recorrida não apresentou alegação.

A Exm.ª Procuradora-Adjunta emitiu o seguinte parecer:
Nas suas alegações, o recorrente A suscita as mesmas questões que foram levantadas e discutidas no âmbito do recurso interposto para o Tribunal de Segunda Instância, assacando os vícios de:
i) desvio de poder;
ii) violação de lei por erro nos pressupostos e de princípios da imparcialidade, da igualdade e da justiça;
iii) ininteligibilidade do acto recorrido
Entendemos que não lhe assiste razão.
Antes de mais, é de salientar que o acto administrativo impugnado pelo recorrente é o despacho do Sr. Secretário para a Segurança proferido em 19 de Junho de 2001 que o puniu disciplinarmente com a pena de 6 dias de multa, e não o outro, proferido posteriormente em 22 de Junho de 2001 no âmbito do recurso hierárquico, em que o Sr. Secretário decidiu confirmar o despacho do Comandante do CPSP que homologa a classificação de serviço atribuída ao recorrente, com base na qual o recorrente foi expulso da corporação policial.
Mesmo admitindo eventualmente a hipótese de que a atribuição ao recorrente de classificação de serviço de "regular" tem na sua origem directa a aplicação da pena disciplinar, certo é que se tratam de questões distintas e os despachos que as decidem também são autónomos.
Assim sendo, na apreciação das questões suscitadas pelo recorrente há de ter sempre em presente o objecto do recurso e só deste se deve ocupar-se.
Como se sabe, "o desvio de poder é o vício que consiste no exercício de um poder discricionário por um motivo principalmente determinante que não condiga com o fim que a lei visou ao conferir aquele poder" e "pressupõe uma discrepância entre o fim legal e o fim real (ou fim efectivamente prosseguido pela Administração". (Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Volume II, 2002, pág. 394)
Conforme o mesmo autor, o desvio de poder comporta duas modalidades principais: uma, o desvio de poder por motivo de interesse público, quando a Administração visa alcançar um fim de interesse público, diverso daquele que a lei impõe; e a outra, desvio de poder por motivo de interesse privado, quando a Administração não prossegue um fim de interesse público, mas sim um fim de interesse privado.
No caso em apreciação, é evidente não estar em causa nenhum fim de interesse privado.
E não se vê que na prática do acto posto em crise a Administração prosseguiu algum fim diferente daquele que a lei visa alcançar.
Parece resultar das alegações do recorrente a ideia de que, no seu entendimento, enquanto praticou o acto punitivo, a Administração teria preparado para exonerar o recorrente da corporação policial. Ou seja, a decisão sobre a punição disciplinar só foi tomada com a finalidade de poder expulsá-lo da Polícia.
No entanto, após a leitura atenta do próprio acto punitivo, não se pode tirar outra conclusão a não ser a do Tribunal a quo: "não se deixa de vislumbrar que o poder discricionário atribuído foi concedido para reprimir e prevenir condutas violadoras dos deveres dos agentes militarizados e não se deixa de apurar que a motivação concreta foi a reprovação de uma dada conduta que se entendeu dever ser censurada, não se divisando qualquer outra motivação na sanção disciplinar concretamente aplicada. O fim real e o fim legal não deixam de ser coincidentes na conduta da Administração, pelo que, por essa razão não deixará o acto de se configurar como legal".
Parece-nos que, não obstante impugnar o despacho de punição disciplinar, o que o recorrente discorda é a classificação de serviço que lhe foi atribuída e que implica a sua exoneração. Ou seja, no seu entendimento, a aplicação de pena disciplinar de 6 dias de multa não pode levar à atribuição a si de classificação de "regular" e à consequente exoneração pela imposição da disposição legal. Porém, independentemente de ter razão ou não neste aspecto, o que o recorrente devia fazer é atacar directamente o despacho que confirmou o acto que lhe atribuiu a classificação de serviço.
Quanto ao erro nos pressupostos, o recorrente questiona o juízo formado na matéria de facto dada como provada, nomeadamente no que tange à questão de saber se o recorrente viu ou não a agressão que deu origem ao processo disciplinar, uma vez que divergem as declarações do recorrente e a convicção da Administração.
A questão prende-se com a valoração da prova produzida.
É verdade que, conforme salienta o Magistrado do MP no seu parecer dado no Tribunal de Segunda Instância, "em caso de recurso contencioso, o tribunal não está vinculado à apreciação que o órgão tenha feito da prova recolhida. O julgador fará o seu próprio juízo a propósito dos factos e elementos que o processo forneça, inculcado por uma certeza subjectiva e positiva convicção acerca da forma como os mesmos ocorreram".
Analisando os elementos constantes dos autos de processo disciplinar, parece-nos que, não obstante a negação do recorrente, tudo aponta para o sentido de que, nas circunstâncias descritas nos autos, o recorrente presenciou a agressão praticada por um amigo seu que na altura acompanhou, sem ter feito nada para a evitar.
Não se vê onde está o erro cometido por parte da Administração.
Ao alegar a violação dos princípios da imparcialidade, da igualdade e da justiça, o recorrente não chegou a indicar concretamente como e em que termos se verifica tal vício, limitando-se a dizer que existe uma discrepância entre o conteúdo do acto e as normas jurídicas que lhe são aplicáveis.
Tal entendimento do recorrente tem como o seu ponta de partida a ideia de que a Administração apreciar mal a prova produzida, sobretudo quando perante as declarações do próprio recorrente que disse não ter presenciado a agressão em causa.
E uma vez chagada à conclusão de que não se verifica o erro nos pressuposto de facto, improcedem também os argumentos do recorrente sobre a violação dos princípios.
A sanção de multa de 6 dias encontrada pela Administração também não merece censura.
Finalmente, o recorrente invoca a ininteligibilidade do acto recorrido, alegando que o conteúdo do despacho posto em causa é de carácter geral e abstracto, acabando por não definir em concreto a conduta que o recorrente praticou para motivar a decisão.
Trata-se duma questão de fundamentação.
Nos termos do art.º 114.º do CPA, a Administração deve fundamentar os seus actos administrativos e o art.º 115.º n.º 2 estabelece a equivalência entre a falta de fundamentação e "a adopção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do acto".
A lei exige que a fundamentação seja congruente, clara e suficiente.
E para haver falta de fundamentação, não basta qualquer obscuridade, contradição ou insuficiência dos fundamentos invocados, sendo necessário ainda que eles não possibilitem um "esclarecimento concreto" das razões que levaram a autoridade administrativa a praticar o acto. (cfr. Código do Procedimento Administrativo de Macau, anotado e comentado, Lino José Baptista Rodriques Ribeiro e José Cândido de Pinho, pág. 639 e 640)
Nota-se que resulta do despacho impugnado pelo recorrente que o Sr. Secretário par a Segurança deu por reproduzido o teor do despacho punitivo, que faz integrar na decisão (fls. 21 dos autos).
E consta desse despacho punitivo do Comandante do CPSP que o recorrente foi punido pelos seguintes factos: por um lado, sendo agente policial, não obstante ter assistido a uma agressão perpetrada por um amigo seu que o acompanhou na altura, não fez nada para o impedir; e por outro lado, acompanhou e tinha relações de amizade com indivíduo considerado como meliante.
Daí que não se pode afirmar, como afirmou o recorrente, que o despacho recorrido não define em concreto a conduta pela qual o recorrente foi punido; antes pelo contrário, logo que atente ao conteúdo de tal despacho, percebe-se facilmente a motivação que levou a Administração a tomar a decisão de punição.
Para além da descrição desses factos, no despacho recorrido foram ainda enunciadas as razões de direito, com valoração das circunstâncias concretas do caso e da personalidade do recorrente, ponderação das consequências da sua conduta para a imagem da corporação policial e explicitação da subsunção da factualidade apurada nos autos às normas punitivas.
Perante uma fundamentação como esta, qualquer destinatário normal fica logo a perceber claramente as razões e motivação, de facto e de direito, que levaram a Administração a tomar aquela decisão.
Assim sendo, é de concluir pela bondade do acto impugnado.
Pelo exposto, deve negar-se provimento ao presente recurso.

II – Os factos
Os factos considerados provados no acórdão recorrido são os seguintes (com subordinação a alíneas da nossa autoria, para facilitar a remissão que houver que fazer):
A) Na sequência do processo disciplinar n.º 38/2001 do Corpo de Polícia de Segurança Pública veio a ser deduzida a seguinte acusação contra o arguido, ora Recorrente:
“Ao abrigo do n.º 2 do artigo 274.º do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 66/94/M, de 30 de Dezembro, realiza-se a seguinte acusação contra o guarda n.º XXXXXX, A, deste CPSP, concedendo-lhe um prazo de 10 dias para apresentar a defesa escrita, nos termos do n.º 1 do artigo 275.° do mesmo Estatuto.
Em 10 de Janeiro do corrente ano, pelas 04H50, o guarda n.º XXXXXX, A foi à boleia, com os seus amigos B e C pela viatura, MG-XX-XX, conduzida por outro amigo seu D. Quando este conduziu a viatura perto do cruzamento entre a Travessa de Barca e a Rua de Marques de Oliveira preparando virar à Rua de Marques de Oliveira, não conseguindo porque a faixa de rodagem é muito estreita. Assim, D virou e recuou o automóvel, contudo, alguém (cerca de 5-6 jovens) bateu, de súbito, à referida viatura e lhes injuriou com palavrões. Entretanto, o guarda n.º XXXXXX perguntou àquele grupo de jovens [E, F, G e H] o que aconteceu, porém, os mesmos começaram, sem dizer nada, a agredir o guarda n.º XXXXXX e os amigos dele. Na agressão, o guarda não se encontrou ferido, mas a viatura foi danificada por esse grupo de jovens. Naquele momento, o guarda declarou, sem exibindo o seu cartão de identificação, aos jovens a sua identidade de policia de segurança pública e queixando-se logo junto da Policia através do telefone. No momento em que o guarda estava a queixar-se, os jovens fugiram já do local. Depois de o Comissariado n.º 2 ter recebido a queixa, foram mandados os agentes em serviço M-XX (guarda n.º XXXXXX) e M-XXX (guarda n.º XXXXXX) para o local imediatamente. Contactando com o guarda n.º XXXXXX, A e amigos seus B, D e C, o guarda M-XX, acompanhado com o guarda n.º XXXXXX (A) e D e o guarda M-XXX, acompanhado com B e C para realizarem investigação no local e na zona adjacente. No momento em que os dois agentes em serviço estavam a proceder à investigação, encontraram-se, perto da pastelaria na Rua de Barca, os 4 jovens em causa (E, F, G e H). Entretanto, o agente M-XX pediu ao guarda n.º XXXXXX (A) e D permanecerem-se na viatura policial e efectuando por ele próprio uma inquirição aos 4 jovens buscados. Logo depois, o agente M-XXX, B e C chegaram também ao local. De repente, D e o guarda n.º XXXXXX saíram da viatura policial e D atacou, com um soco do seu punho direito, o pescoço do lado esquerdo do E. Assim, dois grupos de jovens começaram a brigar. Ao verem isto, os agentes M-XX e M-XXX separaram-nos imediatamente, detendo D e levando os restantes ao Comissariado n.º 2.
Conforme o Auto de Notícia n.º 19/2001/C2 do Comissariado n.º 2, o guarda n.º XXXXXX declarou que não tinha presenciado a agressão do seu amigo, D (o detido indicado no auto de notícia acima referido) ao vítima E, contudo, isto é irracional porque eles saíram da viatura policial em conjunto. Além disso, depois de o detido, D, ter atacado o vítima E, os interessados do referido auto entraram em discussão com grande confusão, pelo que, o guarda n.º XXXXXX devia presenciar a agressão em causa, outrossim, indicando o agente presente no local, M-XX (guarda n.º XXXXXX) que o arguido tinha presenciado tal agressão. Além disso, o arguido, na qualidade de um agente policial, não tentou impedir o pioramento do caso, o que violou já os deveres inerentes ao pessoal militarizado.
Posteriormente, segundo os dados de registo fornecidos pelo Departamento de Informação, verifica-se que D (o detido do Auto de Notícia acima referido), amigo do guarda n.º XXXXXX é um meliante.
Visto que o arguido A, guarda n.º XXXXXX, violou os deveres previstos no artigo 6.º n.º 2, alínea a), artigo 9.º, n.º 2, alínea d), artigo 12.º, n.º 2, alínea 1), todos do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau, a punição é correspondente à multa prevista no artigo 235.º do mesmo Estatuto.
O arguido A, guarda n.º XXXXXX, dispõe das circunstâncias atenuantes previstas no artigo 200.º, n.º 2, alíneas c) e i) do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau, além disso, dispondo também das circunstâncias agravantes previstas no artigo 201.º, n.º 2, alínea d) do mesmo Estatuto.
Macau, aos 9 de Fevereiro de 2000.”
B) Na sequência do mesmo processo disciplinar veio a ser elaborado o seguinte Relatório:
“Conforme o Auto de Notícia n.º 19/2001/C2 do Comissariado n.º 2. (constantes a fls. 2 a 4 deste processo) e o despacho do segundo Comandante da PSP, foi instaurado o Processo de Averiguações n.º 38/2001, realizando uma instrução do processo de averiguações contra o guarda n.º XXXXXX, A por atitudes inconvenientes.
Em 10 de Janeiro do corrente ano, pelas 04H50, o guarda n.º XXXXXX, A foi à boleia, com os seus amigos B e C pela viatura, MG-XX-XX, conduzida por outro amigo seu D. Quando este conduziu a viatura perto do cruzamento entre a Travessa de Barca e a Rua de Marques de Oliveira preparando virar à Rua de Marques de Oliveira, não conseguindo porque a faixa de rodagem é muito estreita. Assim, D virou e recuou o automóvel, contudo, alguém (cerca de 5-6 jovens) bateu, de súbito, à referida viatura e lhes injuriou com palavrões. Entretanto, o guarda n.º XXXXXX perguntou àquele grupo de jovens [E, F, G e H] o que aconteceu, porem, os mesmos começaram, sem dizer nada, a agredir o guarda n.º XXXXXX e os amigos dele. Na agressão, o guarda não se encontrou ferido, mas a viatura foi danificada por esse grupo de jovens. Naquele momento, o guarda declarou, sem exibindo o seu cartão de identificação, aos jovens a sua identidade de policia de segurança pública e queixando-se logo junto da Policia através do telefone. No momento em que o guarda estava a queixar-se, os jovens fugiram já do local. Depois de o Comissariado n.º 2 ter recebido a queixa, foram mandados os agentes em serviço M-XX (guarda n.º XXXXXX) e M-XXX (guarda n.º XXXXXX) para o local imediatamente. Contactando com o guarda n.º XXXXXX, A e amigos seus B, D e C, o guarda M-XX, acompanhado com o guarda n.º XXXXXX (A) e D e o guarda M-XXX, acompanhado com B e C para realizarem investigação no local e na zona adjacente. No momento em que os dois agentes em serviço estavam a proceder à investigação, encontraram-se, perto da pastelaria na Rua de Barca, os 4 jovens em causa (E, F, G e H). Entretanto, o agente M-XX pediu ao guarda n.º XXXXXX (A) e D permanecerem-se na viatura policial e efectuando por ele próprio uma inquirição aos 4 jovens buscados. Logo depois, o agente M-XXX, B e C chegaram também ao local. De repente, D e o guarda n.º XXXXXX saíram da viatura policial e D atacou, com um soco do seu punho direito, o pescoço do lado esquerdo do E. Assim, dois grupos de jovens começaram a brigar. Ao verem isto, os agentes M-XX e M-XXX separaram-nos imediatamente, detendo D e levando os restantes ao Comissariado n.º 2.
Conforme o Auto de Notícia n.º 19/2001/C2 do Comissariado n.º 2, o guarda n.º XXXXXX declarou que não tinha presenciado a agressão do seu amigo, D (o detido indicado no auto de notícia acima referido) ao vítima E, contudo, isto é irracional porque eles saíram da viatura policial em conjunto. Além disso, depois de o detido, D, ter atacado o vítima E, os interessados do referido auto entraram em discussão com grande confusão, pelo que, o guarda n.º XXXXXX devia presenciar a agressão em causa, outrossim, indicando o agente presente no local, M-XX (guarda n.º XXXXXX) que o arguido tinha presenciado tal agressão. Além disso, o arguido, na qualidade de um agente policial, não tentou impedir o pioramento do caso, o que violou já os deveres inerentes ao pessoal militarizado.
Posteriormente, segundo os dados de registo fornecidos pelo Departamento de Informação, verifica-se que D (o detido do Auto de Notícia acima referido), amigo do guarda n.º XXXXXX é um meliante.
Ouvidos os agentes M-XX (guarda n.º XXXXXX) e M-XXX (guarda n.º XXXXXX), o guarda n.º XXXXXX (A), E e C, verificou-se que o guarda n.º XXXXXX (A) não participou na rixa nem teve qualquer ferimento no caso.
Mostra-se, por fortes indícios, que o guarda n.º XXXXXX, A, prestou declarações falsas e conviveu, acompanhou ou travou relações de familiaridade ou amizade com indivíduos que, pelo registo policial no CPSP, estejam sujeitos a vigilância policial.
Nos termos do despacho do Chefe do Departamento Policial de Macau do dia 9 do corrente (anexado a fls. 33), o processo de averiguações foi transitado em processo disciplinar.
Em matéria da acusação levantada contra o arguido, o guarda n.º XXXXXX, A, a quem foi entregue um documento comprovativo da acusação e foi informado ainda que, dentro dos 10 dias conferidos, poderia apresentar todas as testemunhas, provas materiais, provas documentais ou demais formas de prova que entenda de utilidade para a sua defesa. Tendo o arguido apresentado a defesa escrita antes do seu vencimento (anexada a fls. 40), deu o seu esclarecimento sobre o teor da acusação, declarando afirmativamente que não tinha presenciado a agressão do seu amigo, D (o detido indicado no auto de notícia acima referido) ao vítima E, nem ter sabido a qualidade de meliante do seu amigo D.
Conclusões
Factos assentes:
Para efeitos legais, não se repetem os 2.º a 4.º parágrafos da acusação referida (anexada a fls. 37)
Infracção efectuada e punição aplicada:
Devido aos actos acima mencionados, o arguido, A, guarda n.º XXXXXX, violou os deveres referidos no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), artigo 9.º, n.º 2, alínea d), artigo 12.º, n.º 2, alínea 1), todos do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau, foi punido na pena de multa prevista no artigo 235.º do mesmo Estatuto.
As circunstâncias atenuantes e agravantes
O arguido A, guarda n.º XXXXXX, dispõe das circunstâncias atenuantes constantes do artigo 200.º, n.º 2, alíneas c) e i) do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau, além disso, dispondo também das circunstâncias agravantes constantes do artigo 201.º, n.º 2, alínea d) do mesmo Estatuto.
Sugestões
Nestes termos, proponho a V. Exa. que seja punido o arguido na pena de multa prevista no n.º 235.º do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau.”
C) O arguido veio a ser sancionado pelo Senhor Chefe do Departamento Policial de Macau, em 21 de Maio de 2001 nos seguintes termos:
“Departamento Policial de Macau
Processo de Averiguações/disciplinar n.º 38/2001
Arguido: guarda n.º XXXXXX, A
Infracção disciplinar: por atitudes inconvenientes
Instrutor: Subcomissário n.º XXXXXX, I
No presente processo fez-se prova do seguinte:
1. O presente processo teve origem no auto de Notícia dum crime de ofensa simples à integridade física elaborado pelo Comissariado n.º 2.
2. No dia 10 de Janeiro de 2001, o arguido, guarda n.º XXXXXX teve uma boleia na viatura ligeira dum seu amigo que estava a conduzi-la na Rua de Marques de Oliveira. Devido a um acidente de viação, foram atacados por um grupo constituído por 4 indivíduos, pelo que o arguido se queixou junto da Polícia de imediato. Entretanto, os 4 indivíduos fugiram do local. Posteriormente, acompanhado os outros agentes numa viatura policial, o arguido e o seu amigo ajudaram a procurar os fugidos e conseguiram interceptar os 4 indivíduos na Rua da Barca junto da pastelaria. No entanto, quando os outros agentes estavam a efectuar inquirição, o arguido e o seu amigo saíram da viatura policial rapidamente e avançaram sobre os 4 indivíduos, tendo o seu amigo até aplicado um soco do seu punho direito a um dos indivíduos. Finalmente, com base no flagrante delito, o seu amigo foi detido por agentes de serviço.
3. Analisado o caso, mesmo que não tivesse participado na rixa, o arguido, na qualidade de um agente policial, devia fazer todo o possível para prevenir a actuação do seu amigo. Além disso, não se justifica a sua afirmação de não ter presenciado a agressão do seu amigo ao indivíduo, dado que saíram da viatura policial conjuntamente e arremeteram aos 4 indivíduos. Por outro lado, os dados fornecidos pelo Departamento de Informações indicaram que o seu amigo é um meliante. Conforme o estipulado no Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau (EMFSM), os agentes do Corpo de Polícia de Segurança Pública de Macau (CPSP) não devem acompanhar ou travar relações de amizade com indivíduos com antecedentes policiais ou criminais.
4. No decorrer do presente processo, o arguido apresentou a sua defesa escrita.
Pelo que, o guarda n.º XXXXXX violou os deveres previstos na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º na alínea d) do n.º 2 do artigo 9.º e na alínea 1) do n.º 2 do artigo 12.º do EMFSM, as quais correspondem à pena de MULTA nos termos do artigo 235.º do mesmo estatuto.
PRO 38/2001
Nestes termos, e ao abrigo da competência que me é conferida pelo n.º 2 do artigo 211.º do EMFSM.
O Guarda n.º XXXXXX, A, foi punido com a pena de 6 (seis) dias de multa.
Na aplicação da pena, foram ponderadas as circunstâncias atenuantes e agravantes previstas na lei.
Macau, 21 de Maio de 2001.
O Chefe do Departamento Policial de Macau”
D) Tendo recorrido hierarquicamente dessa pena disciplinar, tal recurso veio a merecer o seguinte despacho de 19 de Junho de 2001, lavrado pelo Excelentíssimo Senhor Secretário para a Segurança:
“O Secretário para a Segurança, usando da competência executiva que lhe confere a Ordem Executiva n.º 13/2000 outorgada no âmbito da sua área de governação nos termos em que a mesma é definida no artigo 4.º do Regulamento Administrativo n.º 6/1999, com referência ao Anexo IV do respectivo n.º 2 chama a si a decisão sobre o presente recurso hierárquico, o que faz, usando da prerrogativa do n.º 7 do artigo 207.º do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau, aprovado pelo Dec-Lei n.º 66/94/M, de 30 de Dezembro, que estatui: “A competência disciplinar dos superiores hierárquicos abrange sempre a dos seus subordinados, no quadro da cadeia hierárquica que culmina no Chefe do Executivo”.
Ao chamar a si a decisão do presente recurso hierárquico, o Secretário para a Segurança previne, em benefício do recorrente, a necessidade de, para obter uma decisão verticalmente definitiva, vir a usar outros meios processuais de carácter gracioso, designadamente, em face da irregularidade que se faz notar da notificação de fls. 48, através da qual foi o arguido notificado da decisão punitiva de 21/05/2001 proferida pelo Comandante do Departamento Policial de Macau, quando o devia ter sido do despacho do Comandante do Corpo de Policia de Segurança Pública de Macau, que por despacho concordante de 22/05/2001, homologou e confirmou a sanção. Seria desta última, e não de outra, que o arguido deveria ter sido notificado, cabendo então recurso para o Secretário para a Segurança, o que, por falta que não lhe pode ser imputada mas sim ao Corpo de Policia de Segurança Pública que não identificou correctamente o seu próprio acto administrativo, não aconteceu, tendo sido interposto recurso para o Comandante da corporação, de cuja decisão, aliás, caberia, ainda, mais um recurso hierárquico.
Porém, porque o conteúdo material da sanção em nada é afectado e ainda porque, pese embora a sua intervenção posterior nos autos, o arguido nada invocou acerca da mesma, dou por sanada a irregularidade, o que, aliás, faço em seu próprio benefício atenta a simplificação processual decorrente.
Quanto à matéria impugnada, cumpre então, decidir:
Nos autos vem provado de forma bastante que a conduta do arguido não acompanha o perfil que é exigido a um profissional de polícia, o qual deve pautar todos os seus comportamentos e relações sociais por um especial cuidado e critério para não deixar dúvidas quanto à isenção do exercício funcional. Jamais pode esquecer o militarizado, especialmente aquele que acaba de ingressar numa corporação policial que se deve abster de hábitos, de frequências, de lugares e de comportamentos, à volta dos quais seja razoável associarem-se incidentes susceptíveis de expor um agente policial à dúvida sobre a confiança que nele tem de ter a hierarquia da corporação.
O agente policial, mormente aquele que se encontra uma fase probatória da sua vida profissional e que, por consequência, ainda não teve tempo para criar nos seus superiores a certeza de ser detentor de uma personalidade firme e segura quanto à identificação com os valores que devem caracterizar o Corpo de Polícia de Segurança Pública, tem que, no seu dia à dia, mesmo na sua vida privada, dar constantes motivos para que se firmem os níveis de confiança dos seus superiores e dos seus colegas. Só deste modo, com agentes possuidores deste perfil a população pode acreditar na corporação, como garante da sua segurança e tranquilidade.
Ora o comportamento, sobejamente comprovado, imputado ao arguido não acautelou estes valores e, assim, entendo que a pena de multa aplicada corresponde à necessidade de prevenção especial que o mesmo indicia e pune com justiça a respectiva gravidade.
Nestes termos, dando por reproduzido o teor do despacho punitivo, que obteve a concordância do Comandante do CPSP, que faço integrar nesta decisão, nego Provimento ao presente recurso, mantendo a punição aplicada ao arguido (6 dias de multa), decisão que tomo ao abrigo das disposições do artigo 274.º, n.º 3 do referido EMFSM, com referência ao também já citado artigo 4.° do Regulamento Administrativo n.º 6/1999 e n.º 1 da Ordem Executiva n.º 13/2000.
Notifique o recorrente do teor presente despacho e ainda de que, do mesmo, cabe recurso contencioso, a interpor no prazo de 30 dias, para o Tribunal de Segunda Instância.”
E) Em 22 de Junho de 2001, na sequência do recurso hierárquico do despacho que lhe homologou a classificação de serviço de “sofrível” (平) - fls. 74 dos autos -, veio a ser proferido o seguinte despacho por parte do Excelentíssimo senhor Secretário para a Segurança:
“Assunto: Recurso hierárquico
Recorrente: Gd.ª n.ª XXXXXX, A
Acto Recorrido: Despacho do Comandante do CPSP que homologa classificação de serviço.
A classificação de serviço de serviço cabe na discricionaridade técnica do comandante da corporação a que o classificado, ora recorrente, pertence, competência própria que lhe advém do disposto no artigo 186.º do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau, aprovado pelo DL. n.º 66/94/M de 30 de Dezembro. Na verdade, só o Comandante da corporação e aquelas que se encontram n eixo da estrutura hierárquica, de entre os quais são nomeados os notadores, têm o domínio das “qualidades físicas, morais e sociais, intelectuais e profissionais do militarizado” com base “nos conhecimentos e qualidades de que fez prova no exercício das suas funções” - Vd. Artigo 176.º, al. a) do citado Estatuto dos Militarizados.
De qualquer modo, e não obstante o que vem de dizer-se, o Secretário para a Segurança, e com vista a detectar eventual ilegalidade do acto ou respectiva manifesta inconveniência, ao percorrer o boletim de informação individual e bem assim os actos administrativos que, sucessivamente, foram consolidando a classificação de serviço ora objecto de impugnação, não constata a existência de qualquer vício que inquine a sua validade. Designadamente, se verifica que não é de algum modo violado o “princípio de presunção da inocência” porquanto apenas é tida em conta a existência de indícios fortes da prática de infracções disciplinares, que terão sustentado a formulação de uma acusação, e jamais a sua prática efectiva. Porém, é legítimo que os superiores hierárquicos estabeleçam a diferença entre aqueles que têm uma conduta disciplinar isenta de qualquer suspeita e os que, pese embora a sua curta carreira e o acrescido dever e interesse em mostrarem as suas qualidades morais e profissionais, outrossim, dão à hierarquia preocupantes sinais de indisciplina e conduta cívica, no mínimo, desadequada ao perfil que a comunidade pretende ver reflectido nas suas forças de segurança.
Nestes termos, chamando aqui, ainda, os fundamentos úteis que se retiram da informação do Comandante do CPSP, formulada nos termos do artigo n.º 159.º do CPA, Nego provimento ao recurso, confirmado o acto recorrido, o que faço, nos termos da competência que me advém da conjugação das normas dos artigos 187.º, n.º 1 do EMFSM, alínea 3) do Anexo IV ao n.º 2 do artigo 4.º do Regulamento Administrativo n.º 6/1999 e n.º 1 da Ordem Executiva n.º 13/2000.
Notifique o recorrente nos termos legais.
Gabinete do Secretário para a Segurança da Região Administrativa Especial de Macau, aos 22 de Junho de 2001.”
O acto recorrido é o constante da alínea D).

III – O Direito

1. Questões a apreciar.
São três as questões a apreciar:
1.ª Se o acto enferma do vício de desvio de poder, por ter como verdadeiro objectivo afastar o recorrente da Corporação policial, o que se veio a consubstanciar num outro acto, que se fundamentou na punição dos autos;
2.ª Se o acto está viciado de erro nos pressupostos de facto e se violou os princípios da imparcialidade, da igualdade e da justiça, por ter considerado provado que o recorrente prestou declarações falsas em inquérito, ao ter testemunhado que não viu a agressão de um seu acompanhante a outra pessoa;
3.ª Se o acto recorrido enferma de falta de fundamentação, por ininteligibilidade, por ser de carácter geral e abstracto, não definindo em concreto a conduta que o recorrente praticou.

2. Poder de cognição do Tribunal de Última Instância.
Antes de mais, convém recordar que este Tribunal de Última Instância, em recurso jurisdicional de decisões do Tribunal de Segunda Instância, não conhece de matéria de facto, tendo de aceitar os factos que este Tribunal considere provados (art. 152.º do Código de Processo Administrativo Contencioso).

3. Desvio de poder
O recorrente entende que o acto recorrido enferma do vício de desvio de poder, por ter como verdadeiro objectivo afastar o recorrente da Corporação policial, o que se veio a consubstanciar num outro acto, que se fundamentou na punição dos autos. A entidade recorrida teria preparado, através da aplicação da multa ao recorrente, a sua exoneração da PSP, que seria o verdadeiro fim pretendido por aquela.
Conserva, ainda, actualidade a definição de MAECELLO CAETANO 1 acerca do desvio de poder, como “o vício que afecta o acto administrativo praticado no exercício de poderes discricionários quando estes hajam sido usados pelo órgão competente com fim diverso daquele para que a lei os conferiu ou por motivos determinantes que não condigam com o fim visado pela lei que conferiu tais poderes”.
Assim, os factos alegados pelo recorrente teriam, efectivamente, potencialidade para integrar o conceito de desvio de poder.
Como escreveu AFONSO QUEIRÓ, 2 a prova do desvio de poder pode fazer-se com os termos da própria decisão impugnada.
Mas, como refere o acórdão recorrido, o fim pretensamente querido pelo autor do acto – na tese do recorrente - não resulta dos próprios termos do acto punitivo.
Subscrevendo anotação favorável a uma decisão judicial, ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA 3 expendeu que, para a prova dos motivos determinantes do acto, o tribunal pode atender ao exame do contexto do acto, aos seus fundamentos, aos elementos do processo que antecederam ou seguiram o acto, às instruções dadas aos subalternos, à resposta ao recurso e às circunstâncias de facto reveladas pelo conjunto do processo.
E hoje é possível – o que não acontecia no momento em que foi escrita a anotação acabada de referir – produzir todos os meios de prova tendentes a demonstrar os factos alegados, no recurso contencioso [arts. 42.º, n. 1, alínea g) e 64 .º a 67.º do Código de Processo Administrativo Contencioso].
Simplesmente, o acórdão recorrido sopesando alguns daqueles elementos acima referidos, concluiu não ter ficado provado que, com o acto administrativo punitivo, a entidade recorrida tivesse por verdadeiro fim, exonerar o agente, sendo tal acto um mero expediente preparatório.
Ora, como se disse atrás, este Tribunal de Última Instância não pode sindicar a decisão de facto do Tribunal de Segunda Instância, tendo de aceitar, nesta matéria, as conclusões a que chegou.
Assim sendo, o recorrente não fez prova dos factos que integravam o vício de desvio de poder.
É seguro que o ónus da prova dos factos cabe ao recorrente que alega o desvio de poder, por estar em causa a verificação de factos impeditivos, modificativos ou extintivos da pretensão administrativa consubstanciada no acto administrativo, como ensina MÁRIO AROSO DE ALMEIDA. 4
Improcede, assim, a arguição de desvio de poder.

4. Prova de factos.
Vejamos, agora, se o acto está viciado de erro nos pressupostos de facto e se violou os princípios da imparcialidade, da igualdade e da justiça, por ter considerado provado que o recorrente prestou declarações falsas em inquérito, ao ter testemunhado que não viu a agressão de um seu acompanhante a outra pessoa.
Nesta arguição, o recorrente incorre nos mesmos vícios da anterior, pretendendo que este Tribunal sindique questões de facto. Na verdade, o acórdão recorrido concluiu que “...tudo aponta para que o recorrente a tenha presenciado, 5 nada tendo feito para a prevenir ou evitar...”.
O Tribunal de Última Instância, no contencioso administrativo, e não só, não conhece de matéria de facto, mas apenas de direito.
Improcedem, por conseguinte, os vícios apontados.

5. Falta de fundamentação. Questão nova.
O recorrente considera que o acto recorrido enferma de falta de fundamentação, por ininteligibilidade, por ser de carácter geral e abstracto, não definindo em concreto a conduta que o recorrente praticou.
Para tal, o recorrente cita passagens do acto recorrido que produz algumas considerações de carácter genérico.
Mas, como bem se sublinha no acórdão recorrido, o acto administrativo deu por reproduzido o teor do despacho punitivo do Comandante do Departamento Policial de Macau, pelo que os factos constantes deste foram integrados no acto administrativo recorrido.
E tais factos são sobretudo dois:
i) Ter prestado falsas declarações acerca de agressão de uma pessoa que o acompanhava a terceiro e não ter feito nada para evitar a agressão;
ii) Por acompanhar ou travar relações de amizade com indivíduos com antecedentes policiais ou criminais.
Pois bem, no recurso contencioso, o recorrente apenas substanciou o vício em questão com os factos da alínea i).
Já no presente recurso jurisdicional, o recorrente pretendeu fundamentar o vício, chamando, também, à colação a matéria da alínea ii).
Ou seja, o recorrente, em pleno recurso jurisdicional, pretendeu mudar a agulha, porventura alertado por um passo do acórdão recorrido, que refere que o recorrente não aflora tal matéria no recurso contencioso e que “... aí sim, sempre importaria aquilatar se o circunstancialismo fáctico concretamente apurado e descrito seria susceptível de permitir as conclusões quanto à existência de um relacionamento consciente e assumido com pessoas menos aconselháveis em termos de adequado perfil moral e cívico, susceptível de comprometer o exercício funcional de um agente das FSM”.
Mas é tarde. Como se tem repetidamente dito, os recursos jurisdicionais não visam criar matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida, salvo matérias de conhecimento oficioso, o que não é o caso dos autos.6
Não tendo o recorrente suscitado a questão no recurso contencioso, não se pode, agora, conhecer da mesma.
Conhecer-se-á, portanto, apenas, da matéria relacionada com a alínea i).
Ora, tais factos são perfeitamente claros e o recorrente percebeu claramente o que se lhe imputou: prestação de falsas declarações e não ter feito nada para evitar a agressão.
O acto recorrido é, portanto, inteligível e está devidamente fundamentado, pelo que improcede a arguição do recorrente.

6. Contencioso de anulação/Contencioso de plena jurisdição. Princípio do aproveitamento dos actos administrativos.
Por último, importa fazer uma breve referência a uma incorrecção do acórdão recorrido, que, embora excrescente no respectivo contexto e, portanto, sem relevância para o presente recurso, há que rectificar pela importância dogmática de que se reveste a questão no âmbito do contencioso administrativo.
Diz-se no acórdão recorrido que o recorrente não impugnou a parte do despacho punitivo na parte em que se refere a ele, recorrente, acompanhar ou travar relações de amizade com indivíduos com antecedentes policiais ou criminais e a que nos referimos atrás na alínea ii). O que é exacto. Mas acrescenta-se que a outra vertente do despacho – a mencionada atrás na alínea i) - “não merece censura, sendo suficiente por si só para justificar a sanção que lhe foi aplicada”.
Ora, aqui é que reside o equívoco. Em contencioso de anulação de acto punitivo, se o tribunal considerar que um dos dois factos em que assentou a sanção não existe, tem de anular o acto, não lhe competindo opinar que o outro facto provado justificaria a mesma sanção. É à Administração que compete fazer tal avaliação, em sede de execução da sentença anulatória, tanto podendo, em abstracto, manter a sanção, como atenuá-la, como, até, não aplicar sanção alguma. 7 Não cabe é ao tribunal invadir a área reservada à Administração, pois nem estamos no domínio do contencioso de plena jurisdição, nem se trata de área vinculada, mas antes numa zona em que à Administração é reconhecida uma margem de livre decisão, pelo que nunca estaria em causa o princípio do aproveitamento dos actos administrativos. 8 9
Fechado o parêntesis, importa concluir que improcedem todos os fundamentos do recurso.

IV - Decisão
Face ao expendido, nega-se provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UC.
Macau, 17 de Dezembro de 2003

Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin
Fui presente:
Song Man Lei
1 MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, Almedina, Coimbra, Vol. I, 10.ª ed., p. 506.
2 AFONSO QUEIRÓ, na Revista de Legislação e jurisprudência, ano 94.º, p. 261.
3 ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA, em O Direito, ano 105.º, p. 320.
4 MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Sobre as regras de distribuição do ónus material da prova no recurso contencioso de anulação de actos administrativos, em Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 20, p. 45 e segs, particularmente na p. 50.
5 Refere-se à agressão mencionada atrás, da autoria de um acompanhante do recorrente, a um terceiro.
6 Acórdão deste Tribunal, de 16 de Fevereiro de 2000, Processo n.º 5/2000, em Acórdãos do Tribunal de Última Instância da R.A.E.M, ano 2000, p. 283, citando-se ARMINDO RIBEIRO MENDES, Recursos em Processo Civil, 2ª ed., 1994, p. 175 e 176. No mesmo sentido, os Acórdãos de 27 de Novembro de 2002, Processo n.º 12/2002 e de 6 de Dezembro de 2002, Processo n.º 17/2002, citando-se neste último J. C. VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa (Lições), Almedina, Coimbra, 2.ª ed., 1999, p. 197, J. CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, Vol. III, Recursos e Acção Executiva, AAFDL, Lisboa, p. 21 e segs. e M. TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, 2.ª ed., p. 373 a 375 e 395 a 397.
7 Só não podendo, em princípio, agravar a sanção.
8 Como é sabido, o princípio do aproveitamento dos actos administrativos, não invalidando o acto, apesar do vício constatado, só vale no domínio dos actos vinculados, o que não se verifica no domínio da dosimetria das penas disciplinares, que comporta uma margem de discricionariedade.
9 Fornecendo ampla informação jurisprudencial e esgotando o tema, cfr. o Boletim do Ministério da Justiça n.º 490, p. 102 e 103.
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1
Processo n.º 29/2003

33
Processo n.º 29/2003