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Processo n.º 3/2002 Recurso jurisdicional em matéria penal
Recorrente: A.
Recorrido: Ministério Público.
Assunto: Fundamentação da sentença penal. Enumeração dos factos provados e não provados. Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Objecto do processo. Absolvição do arguido. Reformatio in melius.
Data da sessão: 20 de Março de 2002.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Sam Hou Fai e Chu Kin.
Sumário:

I – Com a exigência feita no n.º 2, do art. 355.º do Código de Processo Penal, de que da sentença conste a enumeração dos factos provados e não provados, para além de se visar saber se o direito foi bem ou mal aplicado no caso concreto, pretende-se igualmente a certificação de que o tribunal investigou todos os factos alegados, constantes da acusação ou da pronúncia, da defesa e dos articulados da acção cível conexa.
II – Relativamente a factos não constantes da acusação ou da pronúncia, da defesa e dos articulados da acção cível conexa, com excepção dos casos previstos nos arts. 339.º e 340.º, não é concebível qualquer obrigação de os enumerar na sentença.
   III – Ocorre o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a matéria de facto provada se apresente insuficiente para a decisão de direito adequada, o que se verifica quando o tribunal não apurou matéria de facto necessária para uma boa decisão da causa, matéria essa que lhe cabia investigar, dentro do objecto do processo, tal como está circunscrito pela acusação e defesa, sem prejuízo do disposto nos arts. 339.º e 340.º do Código de Processo Penal.
   IV – A carência de factos provados necessários ao preenchimento dos elementos objectivos ou subjectivos do tipo, quando não existam vícios na decisão que conduzam ao reenvio do processo ou à nulidade da sentença, tem como consequência inelutável a absolvição do arguido, tanto no caso de os factos não constarem da acusação, como no de constarem desta peça, mas não terem ficado provados no julgamento, sem prejuízo da convolação, se for caso disso.
V – Se na motivação do recurso o recorrente pediu a anulação da sentença e o reenvio do processo para novo julgamento, mas o tribunal de recurso entender que a consequência que cabe à procedência das questões suscitadas pelo recorrente é a absolvição do arguido, não deixará de a decretar, por não vigorar nesta sede a proibição da reformatio in melius (alteração para melhor, em favor do arguido).


O Relator
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório

O Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base, por Acórdão de 7 de Junho de 2001, condenou o arguido A, em autoria material, na forma consumada:
a) Pela prática de um crime previsto e punível pelo art. 8.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 5/91/M, de 28.1, na pena de oito anos e três meses de prisão e nove mil patacas de multa com sessenta dias de prisão subsidiária;
b) Pela prática de um crime previsto e punível pelo art. 137.º, n.º 1, do Código Penal na pena de três meses de prisão;
Em cúmulo jurídico foi condenado numa pena única de oito anos, três meses e quinze dias de prisão e nove mil patacas de multa, com sessenta dias de prisão subsidiária.
O Tribunal de Segunda Instância, por Acórdão de 10 de Janeiro de 2002, rejeitou o recurso interposto pelo arguido.
Inconformado, recorre o arguido, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões:
1. O Acórdão, especialmente em caso de condenação, deve ser exaustivo análise da matéria discutida durante a tramitação processual.
2. Assim não aconteceu no presente caso, visto que do referido Acórdão não constam factos (claramente descritos e debatidos ao longo do processo) que seriam importantes para a decisão de direito, e, pelo contrário, existem factos provados que, pela própria leitura do processo se verifica que não são verdadeiros
3. Faltando mencionar como (em que circunstâncias)? porque preço? a quem se destinava? onde haveria de ser vendido ou cedido? de que forma? a que indivíduos? quando? fora cedida ou vendida o produto estupefaciente.
4. Não basta a simples formalidade de dar como provado um determinado facto para que, a partir daí, se encontre a decisão fundamentada, bem pelo contrário, a decisão, especialmente em processo penal e em particular em sentença condenatória, deve ser fundamentada de modo a que não reste a mínima dúvida de que se está perante uma decisão ponderada, justa e onde todos os seus aspectos e vertentes.
5. A fundamentação é tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito que fundamentam a decisão. Nos casos em que tal justaposição não for suficiente, então outras considerações deverão ser desenvolvidas, para aproximar os factos do direito e vice versa.".
6. Assim não acontecendo no Acórdão do TJB e no Acórdão recorrido, visto que se limitaram a focar os aspectos formais da decisão, sem que fossem exaustiva e criticamente analisados e (ou) fundamentados.
7. A ideia clássica de sentença como a conclusão de silogismo judiciário, em que a lei é premissa maior e a situação de facto a julgar é a premissa menor, como se duas grandezas distintas e autónomas se tratasse, já caiu em desuso.
8. Embora esteja assente que o arguido detinha o estupefaciente para ceder ou vender, não existem quaisquer factos complementares que permitam enquadrar aquele e garantir com certeza, segurança e objectividade que assim seria.
9. Há, desse modo, insuficiência de matéria de facto que permita integrar os elementos objectivos e subjectivos do respectivo tipo em relação ao arguido.
10. Como tal a decisão do TJB, é, ao contrário do decidido pelo TSI, nula -cfr. os arts. 400.°, 355.° e 360.° do CPP - por falta dos requisitos estabelecida no art. 374.°, n.º 2 do CPP.
11. Foram juntos ao processo e fase de recurso documentos que demonstram que o arguido era toxicodependente, ao contrário do que afirma no Acórdão do TJB, o que não foi tido em conta pelo TSI.
12. Tais documentos são dados novos que deveriam, por respeito, entre outros, ao principio da verdade material, servir de base ao provimento do recurso (pelo menos na parte em que o recorrente a eles fez referência).
13. Por outro lado, tendo em conta que, ao contrário do mencionado no Douto Acórdão do TSI, se verifica pela análise dos próprios documentos que em vários deles se afirma claramente que o Recorrente era toxicodependente, há um erro na apreciação da prova por parte do TSI ou que torna nulo o Acórdão recorrido nos termos do art. 400.°, n.º 2, al. c) do Código de Processo Penal.
Conclui o arguido pedindo a anulação do acórdão recorrido, com o consequente reenvio do processo para novo julgamento.

Respondeu o Ex.mo Procurador-Adjunto, defendendo que deve ser rejeitado o recurso.

Neste Tribunal, a Ex.ma Procuradora-Adjunta emitiu o seguinte parecer:
«Inconformando com o douto acórdão do Tribunal de Segunda Instância no sentido de rejeitar o recurso interposto, veio o arguido A interpor recurso para o Tribunal de Última Instância.
O recorrente imputou ao acórdão recorrido a falta de fundamentação do acórdão e os vícios da insuficiência da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova.
Acompanhamos e subscrevemos as considerações expendidas na resposta à motivação do recurso, apresentada pelo Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal de Segunda Instância.
No entendimento do recorrente, "o Acórdão do Tribunal Judicial de Base limitou-se a focar os aspectos formais da decisão, não assegurando, através de uma fundamentação exaustiva ou, pelo menos mais completa, todos os aspectos jurídicos e factuais que servem de base à sua decisão de condenação do recorrente".
Vamos ver o que é que exige a lei quando fala da fundamentação da decisão, nomeadamente na parte respeitante aos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão.
Efectivamente, os tribunais de Macau (quer antigo Tribunal Superior de Justiça, quer Tribunal de Segunda Instância quer ainda Tribunal de Última Instância) já se pronunciaram, por muitas vezes, sobre a questão, assumindo a posição de que, nesta matéria, há que afastar uma perspectiva maximalista - devendo ter-se em conta, sempre, os ingredientes trazidos pelo caso concreto.
Decidiu o Tribunal de Última Instância (em 16-3-2001 e no Proc. n.º 16/2000) que "os motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão são os factos e as razões de direito que constituem a base da decisão ou o seu fundamento que permitem aos sujeitos processuais e ao tribunal superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz".
E "a nulidade cominada pelo art. 360.º al. a) do CPP só se verifica quando os elementos constitutivos da fundamentação faltem de todo em todo e não quando constem apenas em termos insuficientes".
Recentemente o mesmo Tribunal decidiu que em princípio deve ser indicada na decisão a razão de ciência das declarações e dos depoimentos prestados e que determinaram a convicção do tribunal.
No entanto, "se, em determinado caso, for possível conhecer as razões essenciais da convicção a que chegou o tribunal, pela enumeração dos factos provados e não provados e pela indicação dos meios de prova utilizados, toma-se desnecessária a indicação de outros elementos, designadamente a razão de ciência".
E "não é exigível que o tribunal faça a apreciação crítica das provas"'. (Ac. proferido em 18-7-2001 no Proc. n.º 9/2001)
Como o próprio recorrente também citou, Dr. Manuel Leal-Henriques e Dr. Manuel Simas Santos escrevem que "na maioria dos casos a fundamentação basta-se com a indicação dos factos provados e não provados justapostos ao direito igualmente indicado ". (cfr. Código de Processo Penal de Macau, anotado, pág. 745),
No nosso caso concreto, o tribunal "a quo" expôs os factos provados e "nenhum facto ficou por provar".
Indicou ainda as provas que serviram para formar a sua convicção (fls.201v).
E expôs o enquadramento jurídico-penal dos factos, explicando as razões que justificaram a condenação do recorrente (fls. 202 e ss.).
Ora, face às provas indicadas, a apreensão de produtos estupefacientes (que foram confirmados pelo exame efectuado pelo Laboratório da PJ) na posse do recorrente bem como a quantidade de estupefacientes encontradas na sua posse, facilmente se pode tirar a conclusão que o tribunal "a quo" chegou, sobre os factos provados, sendo simples a razão de dar como provados aqueles factos, sem necessidade de fazer mais exercícios ou explicações.
Resumindo, entendemos que na forma como o tribunal "a quo" fundamentou a sua decisão, indicando os factos provados e não provados bem como as provas que serviram para formar a sua convicção; satisfez as exigência da lei na parte respeitante à fundamentação da sentença, pelo que não se verifica a violação do art. 355.º n.º 2 do CPPM.
O recorrente invocou ainda o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, entendendo que, uma vez dado como provado que ele detinha 'os produtos estupefacientes para vender ou ceder a terceiros, devia constar nos factos provados a forma da venda, a que indivíduos, por que preço, ou por que forma.
É de salientar que, partindo desta falta de menção dos pormenores, o recorrente ponta uma vez para a insuficiência da matéria de facto provada e outra vez para a insuficiência da prova (cfr. fls. 309), confundindo as duas coisas que são bem diferentes.
Ora, se é verdade que nenhum desses pormenores foram descritos, não é menos certo que, para condenar um indivíduo como traficante, basta provar que o mesmo indivíduo detém estupefacientes para serem vendidos ou cedidos para outrem, não sendo necessária a concretização de alguma venda. As circunstâncias tal como preço, forma, destinatário de estupefacientes são apenas elementos acidentais que às vezes só se sabe quando for concretizada a venda.
Face ao facto dado como provado de que "os produtos estupefacientes ...foram adquiridos pelo arguido ...para serem vendidos ou cedidos a terceiros" bem como os outros factos, é de crer que estão preenchidos os elementos constitutivos do crime de tráfico de estupefacientes.
Por fim, o recorrente entende que há um erro na apreciação da prova por parte do TSI já que se verifica que em vários documentos juntos aos autos se afirma que o recorrente é toxicodependente.
Ora, ao contrário à afirmação do recorrente, dos documentos juntos não se pode tirar a mesma conclusão.
Entre estes documentos verificamos que o médico da Psiquiatria não dispõe de informações clínicas suficientes para passar a certidão requerida pelo mandatário do recorrente (fls. 285 v) e não se pode apurar se, antes de ser detido, o recorrente ainda consome material activo de psiquiatria (fls. 254 v, com tradução de fls. 288).
Tomando em consideração estes documentos, o Tribunal de Segunda Instância concluíram que os mesmos "não provam, inversamente ao que alega o recorrente, que é toxicodependente" (fls. 320). Assim, os argumentos do recorrente improcedem».

II – Os factos

Os factos que as instâncias deram como provados são os seguintes:
  “Em 19 de Novembro de 2000, pelas 00H58, a P.S.P. de Macau recebeu uma chamada telefónica, participando de que havia um indivíduo, de sexo feminino, conhecida por B que foi agredida no quarto n° 5082 de Hotel.
Depois de receber a referida comunicação, a Polícia mandou imediatamente agentes policiais ao mencionado local, a fim de proceder a investigações, tendo sido encontrado no referido quarto o arguido A e um indivíduo de sexo feminino que é a B.
O arguido A foi revistado imediatamente por agentes policiais, tendo sido encontrado na sua posse duas embalagens de plástico de cor vermelha suspeitas de conter estupefacientes.
Seguidamente, o arguido A foi levado para o Comissariado nº 1, onde agentes policiais encontraram se na sua posse mais uma embalagem de plástico de cor vermelha suspeita de conter estupefacientes.
Submetidos a exame laboratorial, as matérias contidas nas três embalagens de plástico foram identificadas como produto com componentes de Heroína, substância abrangida pela Tabela I-A da lista anexa ao D.L. nº 5/91/M, com peso líquido de 9,882 gramas.
Os produtos estupefacientes acima referidos foram adquiridos pelo arguido A a um indivíduo de identidade desconhecida, para serem vendidos ou cedidos a terceiros.
Em 18 de Novembro de 2000, cerca de 23h30, no interior do quarto nº 5082 do Hotel, o arguido A e B tiveram uma discussão e posteriormente o arguido A deu um pontapé na perna de B, o que resultou lesões, descritas no relatório médico- clínico junto a fls. 101 dos autos, no corpo de B.
   O arguido A agiu deliberada e livremente.
Bem sabendo das características e natureza dos referidos produtos estupefacientes.
Sabia perfeitamente que as referidas condutas eram proibidas e punidas por lei.
O arguido é comerciante na China.
Tem os pais, 2 irmãos e um filho de 16 anos a seu cargo.
Nada consta em seu desabono do seu CRC junto aos autos.
*
Nenhum facto ficou por provar.

III - O Direito

1. São três os fundamentos do presente recurso:
- Falta de fundamentação do acórdão condenatório em primeira instância;
- Insuficiência da matéria de facto provada;
- Erro na apreciação da prova.

Delimitação do objecto do recurso

Quanto à falta de fundamentação, o recorrente alega que do acórdão de primeira instância não constam factos que seriam importantes para a decisão de direito e, por outro lado, que se deram como provados factos que não são verdadeiros.
Relativamente a esta segunda parte, este Tribunal não conhecerá de tal matéria, dado que se trata de discussão de matéria de facto para a qual não tem poderes de cognição, poderes estes que estão, em geral, limitados à matéria de direito (n.º 2, do art. 47.º da Lei de Bases de Organização Judiciária, aprovada pela Lei n.º 9/1999).
No que respeita à alegada falta de fundamentação o recorrente limita-a à matéria de facto, esclarecendo que o «acórdão dá como provado que “os produtos estupefacientes acima referidos foram adquiridos pelo arguido A a um indivíduo de identidade desconhecida, para serem vendidos ou cedidos a terceiros”, faltando mencionar (até porque nada consta no processo, a este respeito) como (em que circunstâncias)? Porque preço? A quem se destinava? Onde haveria de ser vendido ou cedido? De que forma? A que indivíduos? Quando?».
Mas ao mesmo tempo, o recorrente considera que este alegado vício do acórdão do tribunal Colectivo também constitui insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, acrescentando que «o facto, pura e simples, de venda a terceiros, sem mais referências, encerra uma ideia geral, vaga e aberta, pouco consentânea com os princípios de certeza, objectividade e segurança, que devem nortear o direito em geral e o direito criminal em particular».
O recorrente suscita também o vício atinente ao erro na apreciação da prova que, alegadamente, o Tribunal de Segunda Instância teria cometido, ao não o considerar como toxicodependente.
São estas as questões a apreciar.

Falta de fundamentação (de facto) do acórdão condenatório em primeira instância

2. O Tribunal Colectivo deu como provado, além do mais, o seguinte:
“Os produtos estupefacientes acima referidos foram adquiridos pelo arguido A a um indivíduo de identidade desconhecida, para serem vendidos ou cedidos a terceiros.
   O arguido A agiu deliberada e livremente.
Bem sabendo das características e natureza dos referidos produtos estupefacientes.
Sabia perfeitamente que as referidas condutas eram proibidas e punidas por lei”.
Entende o recorrente - reportando-se à parte do Acórdão que deu como provado que os produtos que detinha se destinavam a serem vendidos ou cedidos a terceiros - que falta mencionar (até porque – diz- nada consta no processo, a este respeito) como (em que circunstâncias)? Porque preço? A quem se destinava? Onde haveria de ser vendido ou cedido? De que forma? A que indivíduos? Quando?
Diga-se, ainda, que o recorrente afirma no art. 14.º da sua motivação de recurso que os factos alegadamente em falta na decisão (a quem seria feita a venda do produto estupefaciente, por que preço, ou por que forma) também não estavam descritos na acusação.
Haverá falta de fundamentação de facto ou insuficiência da matéria de facto provada para a decisão?
O art. 355.º do Código de Processo Penal1 contém os requisitos da sentença penal em primeira instância. O n.º 1 é dedicado à forma do relatório. O n.º 2 à fundamentação. O n.º 3 à parte decisória ou do dispositivo.
Importa transcrever o n.º 2:

   «Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».
   
Este Tribunal já teve oportunidade de se debruçar sobre este art. 355.º no Acórdão de 18 de Julho de 2001, no Processo n.º 9/2001. Aí se concluiu que «a enumeração dos factos provados e não provados, a indicação dos meios de prova utilizados e a exposição dos motivos de facto que fundamentam a decisão devem permitir conhecer as razões essenciais da convicção a que chegou o tribunal, no que se refere à decisão de facto».
O que estava em causa nesse Acórdão era apenas a parte do inciso do n.º 2, do art. 355.º, que se refere à exposição dos motivos de facto que fundamentam a decisão. Por isso se decidiu que «a exposição dos motivos de facto que fundamentam a decisão pode satisfazer-se com a revelação da razão de ciência das declarações e dos depoimentos prestados e que determinaram a convicção do tribunal», bem como que «se, em determinado caso, for possível conhecer as razões essenciais da convicção a que chegou o tribunal, pela enumeração dos factos provados e não provados e pela indicação dos meios de prova utilizados, torna-se desnecessária a indicação de outros elementos, designadamente a razão de ciência» e, por fim, que «não é exigível que o tribunal faça a apreciação crítica das provas».
Ora, o Acórdão do Tribunal Colectivo 2 descreveu em que elementos de prova se baseou a convicção do Tribunal, permitindo saber-se qual a razão de ciência das testemunhas e perito inquiridos, pelo que satisfaz o exigido pelo aresto atrás referido.

3. Mas no presente processo está, ainda e fundamentalmente, em discussão outra parte do mesmo n.º 2 do art. 355.º, especificamente a que impõe a «enumeração dos factos provados e não provados».
Explica GERMANO MARQUES DA SILVA3:
«No que se refere à indicação dos factos provados e não provados não se suscitam dificuldades: eles são todos os constantes da acusação e da contestação, quer sejam substanciais quer instrumentais ou acidentais, e ainda os não substanciais que resultarem da discussão da causa e que sejam relevantes para a decisão e também os substanciais que resultarem da discussão da causa, quando aceites nos termos do art. 359.º, n.º 2».
A exigência desta enumeração é evidente: só ela permite conhecer as razões de facto que suportam a decisão final e assim saber se o direito foi bem ou mal aplicado no caso concreto. Mas, a preocupação do legislador terá sido também a de certificação de que o tribunal atentou e investigou todos os factos alegados, constantes da acusação, da defesa e dos articulados da acção cível conexa. De que o tribunal não se esqueceu de averiguar qualquer facto.
Especificamente, no que concerne à razão da obrigatoriedade de transcrever os factos não provados, invoca-se em seu favor que «a questão que é objecto do processo é uma questão unitária, pelo que o sentido global do facto só pode ser apreciado tendo em conta todas as circunstâncias que o constituem».4
A falta da indicação dos factos provados e não provados é sancionada pelo art. 360.º, alínea a), com a nulidade da sentença.
Tem sido discutida a aplicação desta nulidade da sentença a casos de falta de enumeração de factos.
A omissão total de enumeração de factos provados e não provados integra, indiscutivelmente, a referida nulidade.
O Tribunal de Segunda Instância já decidiu que a falta total de enumeração de factos não provados constitui nulidade da sentença.5
Também não oferecerá quaisquer dúvidas que constitui nulidade a falta total de enumeração de factos provados, pelos motivos acima arrolados: impossibilita a aplicação do direito e não permite saber se o tribunal investigou os factos.
Já a falta de indicação concreta de um facto, não se sabendo se ficou provado ou não provado, pode levantar dúvidas. Mas tratando-se de facto essencial e não inócuo, se não integrar o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [art. 400.º, n.º 2, alínea a)] deverá constituir a nulidade da sentença, prevista no art. 360.º, alínea a).
Seja como for, a falta da enumeração de factos provados ou não provados só se refere aos factos constantes da acusação, da defesa ou da acção cível conexa com a acção penal, quando a haja. Relativamente a factos não constantes destas peças nunca pode pôr-se qualquer exigência de que os mesmos se considerem provados e, portanto, que se faça a sua enumeração como factos provados ou não provados. Deste modo, não pode haver nulidade da sentença, por pretensa omissão da enumeração de factos provados ou não provados, relativamente a factos que o tribunal não pode investigar, salva a excepção dos arts. 339.º e 340.º.
Na verdade, é um princípio fundamental do nosso sistema processual penal, o da estrutura acusatória do processo,6 sendo uma componente essencial desta a estatuição de que uma pessoa só pode ser sujeita a julgamento com base numa acusação e que é esta que define e fixa o objecto do processo, de tal sorte que o acusado só pode ser condenado por factos constantes da acusação.7
Como diz FIGUEIREDO DIAS8 «o objecto do processo é o objecto da acusação, sendo este que, por sua vez, delimita e fixa os poderes de cognição do Tribunal e a extensão do caso julgado».
É isto que resulta do disposto na alínea b), do art. 360.º, que fulmina com a nulidade a sentença «que condenar por factos não descritos na pronúncia ou, se a não tiver havido, na acusação, ou acusações, fora dos casos previstos nos artigos 339.º e 340.º».
Ora, só podendo o tribunal condenar com base em factos constantes da acusação ou da contestação – salvo possibilidade de considerar factos novos cujo conhecimento resultou na audiência e observado o contraditório (arts. 339.º e 340.º),
   e não constando daquelas peças os factos que o recorrente entende que deviam ter sido investigados pelo Tribunal,
   é evidente que este não os podia considerar provados ou não provados, até porque o recorrente afirma que sobre os mesmos nada constou do processo (art. 3.º da motivação de recurso), pelo que estaria fora de causa a utilização das faculdades previstas nos arts. 339.º e 340.º.
   Daí que nunca pudesse ter-se verificado a nulidade do art. 360.º, alínea a).
   
   Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
   
   4. Com base nos mesmos factos e argumentos (de que está assente que o arguido detinha os estupefacientes para vender ou ceder a terceiros, mas nada consta quanto à forma, a que indivíduos, por que preço ou por que forma o terá feito) veio o recorrente defender a existência do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [art. 400.º, n.º 2, alínea a)].
   O mencionado vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto no art. 400.º, n.º 2, alínea a) é um dos fundamentos de recurso para o Tribunal de Última instância.
   Este Tribunal já se debruçou sobre o vício em questão,9 tendo sublinhado que, para que o mesmo se verifique, é necessário que a matéria de facto provada se apresente insuficiente, incompleta para a decisão proferida, por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária a uma decisão de direito adequada, ou porque impede a decisão de direito ou porque sem ela não é possível chegar-se à conclusão de direito encontrada.
   Cabe, agora, fazer uma precisão relativamente às considerações expendidas nos arestos antecedentes. E é esta: tendo em consideração o atrás mencionado quanto à vinculação temática do tribunal de julgamento relativamente aos factos da acusação - ou da pronúncia, quando a haja - da contestação e da acção cível conexa, só poderá haver insuficiência da matéria de facto se a lacuna no apuramento dos factos se referir a um dos constantes das mencionadas peças processuais.10
   Deste modo, ocorre o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a matéria de facto provada se apresente insuficiente para a decisão de direito adequada, o que se verifica quando o tribunal não apurou matéria de facto necessária para uma boa decisão da causa, matéria essa que lhe cabia investigar, dentro do objecto do processo, tal como está circunscrito pela acusação e defesa, sem prejuízo do disposto nos arts. 339.º e 340.º do Código de Processo Penal.
   Ora, não constando os factos alegados pelo recorrente da acusação ou contestação e não podendo o tribunal alterar os factos, nos termos dos arts. 339.º e 340.º, visto que o recorrente afirma que sobre os mesmos nada constou do processo (art. 3.º da motivação de recurso), temos que nunca poderia estar em causa o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
   
   Consequência da falta de prova de factos que integram os elementos constitutivos da infracção quando não existam vícios na decisão que conduzam ao reenvio do processo ou à nulidade da sentença – absolvição do arguido
   
   5. Mas, então, suposta a necessidade dos factos referidos pelo recorrente, qual será a consequência de não terem sido dados como provados pelo tribunal do julgamento?
   Pois bem, a carência de factos provados necessários ao preenchimento dos elementos objectivos ou subjectivos do tipo, quando não existam vícios na decisão que conduzam ao reenvio do processo ou à nulidade da sentença, tem como consequência inelutável a absolvição do arguido, tanto no caso de os factos não constarem da acusação, como no de constarem desta peça, mas não terem ficado provados no julgamento, sem prejuízo da convolação se for caso disso.
   
   Reformatio in melius (alteração da decisão para melhor, em favor do arguido)
   
   6. Embora o recorrente, na motivação de recurso, não tenha pedido a absolvição, mas apenas a anulação do acórdão recorrido e o reenvio do processo para novo julgamento, se o Tribunal concluir que a consequência que cabe à procedência das questões suscitadas pelo recorrente é a absolvição, não deixará de a decretar.
   Por um lado, dado que, em processo penal, em matéria de recursos, não vigora em toda a extensão o princípio dispositivo, sendo, no entanto, certo que o recorrente suscitou a questão em apreço, mas com incorrecta qualificação jurídica quanto ao resultado.
   Ora, o tribunal é livre na indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 567.º do Código de Processo Civil, aplicável por força do art. 4.º do Código de Processo Penal).
   Em processo penal, é reconhecido aos tribunais superiores poderes de cognição em matéria de aplicação do direito, designadamente de qualificação jurídica, que se repercutem mesmo na área do pedido, podendo afirmar-se não vigorar aqui, ao contrário do processo civil,11 em toda a extensão, a proibição de reformatio in melius 12 (alteração da decisão para melhor, em favor do arguido).
   É o que se deduz, a contrario, do art. 399.º, referente à proibição de reformatio in pejus (alteração da decisão para pior, em desfavor do arguido): em recurso interposto da decisão final apenas pelo arguido ou pelo Ministério Público no exclusivo interesse do arguido, ou por ambos, o tribunal a que o recurso se dirige é livre na qualificação jurídica, só não podendo modificar as sanções da decisão recorrida em prejuízo dos arguidos, ainda que não recorrentes. Assim, por maioria de razão, pode o tribunal alterar a consequência jurídica cabida à decisão do recurso, desde que o recorrente tenha suscitado a questão em apreço.13
   
   7. Resta, portanto, saber se os factos provados permitem a condenação pelo crime previsto e punível pelo art. 8.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 5/91/M. É que, se assim não for, impor-se-á a absolvição do arguido.
   Provou-se:
   ...
O arguido A foi revistado imediatamente por agentes policiais, tendo sido encontrado na sua posse duas embalagens de plástico de cor vermelha suspeitas de conter estupefacientes.
Submetidos a exame laboratorial, as matérias contidas nas três embalagens de plástico foram identificadas como produto com componentes de Heroína, com peso líquido de 9,882 gramas.
   Os produtos estupefacientes acima referidos foram adquiridos pelo arguido A a um indivíduo de identidade desconhecida, para serem vendidos ou cedidos a terceiros.
   Os factos integram a prática do crime pelo qual o arguido foi condenado.
   Na verdade, é irrelevante, que não se tenha apurado no inquérito e no julgamento a quem iria o arguido vender o produto, quando, em que local, etc.
   Em primeiro lugar, até o arguido poderia não saber ainda o circunstancialismo concreto em que se processaria a(s) venda(s) pois, muitas vezes, isso depende de quem solicita o produto, o que o vendedor não sabe à partida.
   Em segundo lugar, tal circunstancialismo não integra os elementos objectivos do tipo criminal em questão, pelo que não releva o seu não apuramento.
   Em conclusão, tratando-se de factos sem interesse para a causa, é de manter a condenação do recorrente pelo crime pelo qual foi condenado.
   
   Erro na apreciação da prova
   
   8. Finalmente, alega o recorrente ter havido erro na apreciação da prova ao não ter sido considerado toxicodependente, face a documentos juntos na fase de recurso da primeira para a segunda instância.
   Como já se disse este Tribunal só pode apreciar matéria de facto para conhecer dos vícios indicados nos n. os 2 e 3 do art. 400.º. Assim, o erro na apreciação da prova só pode ser apreciado no condicionalismo previsto na alínea c), do n.º 2, do mesmo art. 400.º: é necessário tratar-se de erro notório na apreciação da prova, desde que o vício resulte dos elementos constantes dos autos, por si só ou conjugados com as regras de experiência comum.
   O tribunal recorrido considerou que os elementos constantes dos autos não têm força probatória plena para permitir concluir que o tribunal recorrido incorreu no alegado vício, e que os documentos entretanto juntos pelo recorrente também não possuem tal virtualidade.
   Pensamos ser acertada a sua conclusão.
   Mesmo que não fosse, e ainda que se tivesse provado que o recorrente era toxicodependente, isso não invalidaria que detivesse para venda uma determinada quantidade de estupefaciente, como se provou, o que constitui o crime pelo qual foi condenado. Tratar-se-ia, pois, de facto inócuo, desprovido de consequências úteis.
   Sendo manifesta a improcedência do recurso, impõe-se a sua rejeição, em conferência [arts. 409.º, n.º 2, alínea a) e 410.º, n.º 1].
   
   IV - Decisão
   
   Face ao expendido, rejeitam o recurso.
   Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 6 UC, suportando, ainda, 5 UC pela rejeição.
   Macau, 20.3.2002
   Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai
                        Chu Kin
1 Como serão todos os artigos citados sem indicação da proveniência.
2 Que refere, a propósito:« 3. A convicção do Tribunal baseou-se na prova constante dos autos de fls. 67 a 74, CRC de fls. 163 e 164, na prova produzida em audiência, em particular, na apreciação global e crítica das declarações do arguido, nas declarações para memória futura e no depoimento das testemunhas da acusação, tendo os agentes da PSP referido as diligências a que procederam, nomeadamente a detenção, busca e revistas efectuadas, tendo relatado o que viram, as sua percepções, reacções do arguido e outros circunstantes, todos tendo deposto com isenção e imparcialidade.
O Tribunal atendeu ainda ao informado pelo EPC a fls. 186 e 187, mediante solicitação a que se procedeu já em sede de audiência e no depoimento do técnico Fernando Quaresma, chamado a depor também em sede de julgamento».

       3 GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, Editorial Verbo, 2000, III vol., 2.ª ed., p. 292.
4 A. ULISSES CORTÊS, A fundamentação das decisões no processo penal, em Direito e Justiça, vol. XI, 1997, tomo I, p. 310.
5 Acórdãos de 17 de Maio de 2001, Processo n.º 61/2001 e de 27 de Setembro de 2001, Processo n.º 147/2001.
6 É normalmente qualificado como princípio acusatório, ou princípio da vinculação temática, temperado com o princípio da investigação.
7 GERMANO MARQUES DA SILVA, obra citada, 3.ª ed., 1996, I vol., p. 57. Cfr., também, no mesmo sentido, TERESA BELEZA, Apontamentos de Direito Processual Penal, AAFDL, 1992, p. 78 e J. SOUTO DE MOURA, O objecto do processo, em Teresa Beleza, Apontamentos de Direito Processual Penal, AAFDL, II volume, 1993, p. 22 e segs..
       8 J. FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, 1988-1989, lições coligidas por Maria João Antunes.
9 Acórdãos de 22 de Novembro de 2000, Processo n.º 17/2000, em Acórdãos do Tribunal de Última Instância da R.A.E.M., 2000, p. 487, de 7 de Fevereiro de 2001, Processo n.º 14/2000, e de 16 de Março de 2001, Processo n.º 16/2000.
10 Salvo o disposto nos arts. 339.º e 340.º.
11 Sobre a extensão da proibição da reformatio in melius em processo civil, cfr. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o novo processo civil, Lex, Lisboa, 1997, p. 465 a 467.
12 Neste sentido, M. SIMAS SANTOS e M. LEAL-HENRIQUES, Recursos em processo penal, 4.ª ed., Editora Rei dos Livros, Lisboa, 2001, p. 87, onde se cita decisão judicial de 2000, em que se defende que o tribunal de recurso deve reexaminar a correcção das subsunções (incriminações), ainda que o recorrente não as ponha em causa e limite o objecto do recurso à medida da pena aplicada.
13 Sobre a aplicação da reformatio in melius a um caso mais discutível (absolvição de um crime quanto a arguido não recorrente e que, portanto, não suscitou de todo a questão apreciada), cfr. M. SIMAS SANTOS e M. LEAL-HENRIQUES, obra e local citados.
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