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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Pedido de escusa
Processo n.° 5 / 2002

Requerente: A, juiz do Tribunal de Segunda Instância




   1. Relatório
   A, juiz do Tribunal de Segunda Instância, pediu escusa para o dispensar da intervenção, como 1° juiz-adjunto, nos autos de recurso penal n.° XXX/2001 do mesmo tribunal, por o mandatário do arguido recorrido desses autos, o advogado B, ser o seu irmão (cfr. fls. 65 dos autos) e tendo em consideração de que com o mesmo mantém, desde os tempos de infância, uma relação actuante (e, que crê, pública), de profunda intimidade e amizade, afigura-se-lhe constituir tal “relação” “motivo sério, grave e adequado” para os efeitos do art.° 32.°, n.°s 1 e 3 do Código de Processo Penal, e a necessidade de preservar a imagem de transparência dos Tribunais da RAEM.
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   2. Fundamentos
   1. Competência para conhecer do pedido de escusa do juiz do Tribunal de Segunda Instância
   Prescreve os n.Ps 1 e 2 do art.e 34.° do Código de Processo Penal (CPP):
   “1. A recusa deve ser requerida e a escusa deve ser pedida, a ela se juntando logo os elementos comprovativos, perante a secção competente do Tribunal Superior de Justiça.
   2. Tratando-se de juiz pertencente à secção competente do Tribunal Superior de Justiça, esta decide sem a participação do visado.”
   Por haver apenas duas instâncias nos tribunais de Macau ao aprovar e publicar o Código de Processo Penal em 1996, o pedido de escusa apresentado por juiz dos tribunais de primeira instância era apreciado pelo então Tribunal Superior de Justiça. Se tivesse sido o juiz deste último tribunal a formular o pedido, era apreciado pela secção a que pertencia.
   Foi instalado o Tribunal de Última Instância após a criação da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), passando o sistema dos tribunais a dotar de três instâncias. Assim, ao aplicar as disposições do art.o 34. , é necessário interpretar o seu sentido de acordo com a nova estrutura dos tribunais da RAEM.
   Resulta do disposto nos n.es 1 e 2 do art.s 34. de que o pedido de escusa deve ser apreciado pelo tribunal imediatamente superior ao a que o juiz interessado pertence. Só no caso de o juiz que apresenta o pedido ser do tribunal da hierarquia suprema o pedido é apreciado pelo mesmo tribunal. O pedido de escusa do juiz do Tribunal de Segunda Instância deve ser, por isso, apreciado pelo Tribunal de Última Instância.
   
   2. Análise dos fundamentos do pedido de escusa
   De acordo com as regras de distribuição dos processos e composição do colectivo incumbido de realizar julgamento, A, juiz do Tribunal de Segunda Instância que apresentou o pedido de escusa, é o 1, juiz-adjunto do recurso penal n. XXX/2001 do mesmo tribunal. Por ser o seu irmão, B, o defensor do recorrido (arguido nos autos) neste recurso penal, considera que a relação mantida desde a infância até agora de grande intimidade e amizade constitui o “motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz.”
   
   O juiz exerce as suas funções com independência, sem influência de qualquer pressão exterior, de modo a garantir as decisões justas e objectivas. A lei estabelece os mecanismos de impedimentos, escusas e recusas para os casos em que se verifica, entre o juiz e o processo concreto que cabe a este julgar, determinada relação especial passível de afectar o julgamento justo, a fim de afastar o juiz visado da intervenção do respectivo processo, garantindo, deste modo, que as decisões judiciais sejam livres da influência destas relações especiais e salvaguardando a confiança da comunidade depositada no julgamento independente dos órgãos judiciais.
   No que diz respeito à escusa, prescreve os n.N 1 e 3 do art. 32. do CPP:
   “1. A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
   2. ...
   3. O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições referidas no n.º 1.
   4. ...”
   Fora dos casos de impedimentos do juiz, este pode pedir ao tribunal competente conceder a escusa quando se verifica os motivos sérios e graves, adequados a suscitar a dúvida sobre a imparcialidade do juiz, susceptível de desconfiar a sua intervenção num determinado processo.
   
   “Mas, de toda a maneira a possibilidade de estabelecer uma ligação entre o interesse pessoal do juiz e o processo, ou as pessoas que nele intervém é suficiente para suscitar o perigo duma relacionação da actividade judicial com o seu interesse pessoal que ofusque ou perturbe a sua imparcialidade.
   Não importa, aliás, que na realidade das coisas, o juiz permaneça imparcial; interessa, sobretudo, considerar se em relação com o processo poderá ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos de suspeição verificados. ... trata-se de admitir ou não admitir o risco do não reconhecimento público da sua imparcialidade pelos motivos que constituem fundamento de suspeição.”1
   “O fim do processo (de suspeição) consiste em determinar, não se o juiz se encontra realmente impedido de se comportar com imparcialidade, mas se existe perigo de a sua intervenção ser encarada com desconfiança e suspeita pela comunidade.”2
   
   É certo que o juiz, ao exercer as suas funções, deve decidir com justiça e objectividade. No entanto, é igualmente importante a confiança depositada pela comunidade. Não é apenas que o próprio juiz deve julgar com inteira imparcialidade, necessário ainda que se apresente como imparcial. Por isso, quando se verificar as situações concretas adequadas a suscitar a suspeita sobre a imparcialidade do juiz, este pode pedir escusa por sua iniciativa para que fique dispensado da intervenção no processo em que aparecem as situações de suspeita.
   Para considerar verificadas as situações de suspeita, é necessário existir os motivos sérios e graves, adequados a suscitar a desconfiança da imparcialidade do juiz. Estes motivos referem-se apenas a um determinado caso concreto, não sendo possível existir geral e abstractamente, mesmo que alguns factores neles contidos sejam de existência permanente e inalterável.
   O requerente alega que, no recurso penal em cujo julgamento intervém, o advogado, defensor do arguido, é o seu irmão. Uma relação de parentesco inata não leva necessariamente a duvidar a imparcialidade do juiz, para além de ambos deverem obedecer as regras deontológicas das respectivas profissões. O pedido de escusa depende do papel dos interessados assumido no processo concreto, dos actos processuais realizados, das possíveis intervenções processuais no futuro, das questões a resolver no processo e outras situações concretas relacionadas.
   
   O arguido é um dos sujeitos processuais mais importantes no processo penal. De acordo com o art.° 52.°, n.° 1 do CPP, o defensor do arguido exerce, em princípio, os direitos que a lei reconhece ao arguido.
   No processo penal agora em causa, foi deduzida acusação pelo Ministério Público contra o arguido. Contudo, o colectivo do Tribunal Judicial de Base decidiu remeter os autos para o Ministério Público por considerar as condutas do arguido não constituírem crime e, por isso, incompetente para julgar o caso. É o recurso do acórdão do colectivo do Tribunal Judicial de Base interposto pelo Ministério Público o processo em que o requerente intervém. Embora o arguido não apresente resposta no recurso interposto pelo Ministério Público, é evidentemente favorável ao arguido se for julgado improcedente o recurso do Ministério Público. Refere o requerente que detectou na vista do respectivo recurso penal que o advogado do arguido é o seu irmão mais velho.
   Por o requerente ser irmão do advogado do arguido no recurso, ambos manterem sempre a relação de amizade íntima, o requerente ser um dos juízes-adjuntos no julgamento do recurso em causa, e o resultado do recurso ter efeito directo sobre o arguido, entendemos que, se o requerente mantiver a sua intervenção no recurso, é muito provável que a sua imparcialidade seja posta em causa pelo público, prejudicando o grau da confiança depositada pelo público em relação à justiça da sua intervenção. Há, assim, necessidade de conceder a escusa, dispensando o requerente das funções de julgar no respectivo recurso para que sejam asseguradas pelo substituto do requerente a fim de evitar o aparecimento da suspeita.
   Na realidade, situação semelhante constitui, no processo civil, um dos motivos de impedimentos. Nos termos do art.° 311.°, n.° 1, al. d) do Código de Processo Civil, o juiz está impedido de exercer as suas funções quando tenha intervindo na causa como mandatário judicial o seu cônjuge ou unido de facto ou algum seu parente ou afim na linha recta ou no segundo grau da linha colateral.
   A intervenção num determinado processo pelo juiz substituto em lugar do juiz em que se verifica as situações de suspeita pode assegurar a confiança do público sobre a imparcialidade de julgar do juiz. Em relação ao funcionamento interno do tribunal, o volume de trabalho do juiz substituto pode ser contrabalançado através do meio de compensação de processos.


   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em conceder escusa ao juiz do Tribunal de Segunda Instância, A, dispensando-o da intervenção, na qualidade do 1° juiz-adjunto, no julgamento do processo n.° XXX/2001 daquele tribunal.
   Sem custas.
   
   
   
   Aos 24 de Abril de 2002.



           Juízes:Chu Kin (relator)
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

1 Cfr. Manuel Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, vol. I, Lisboa, 1955, p. 237.
2 Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. I, Coimbra Editora, 1974, p. 319.
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