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   Acórdão do Tribunal de Última Instância
   da Região Administrativa Especial de Macau
   
   
   
Recurso jurisdicional relativo a uniformização de jurisprudência
N.N 17 / 2001

Recorrente: A (Chinês)
   
   
   
   
   
   1. Relatório
   O recorrente nos presentes autos, o arguido A, e a outra arguida B foram julgados no Tribunal Judicial de Base no âmbito do processo comum colectivo n.° PCC-088-00-4. Realizado o julgamento, o Tribunal Judicial de Base condenou o arguido A pela prática de um crime de exploração de prostituição previsto e punido pelo art.° 8.°, n.° 1 da Lei n.° 6/97/M de 30 de Julho na pena de um ano e quatro meses de prisão. Em cúmulo jurídico com a pena imposta noutro processo comum colectivo, foi condenado na pena única e global de dois anos e seis meses de prisão.
   O arguido A recorreu deste acórdão para o Tribunal de Segunda Instância. Após o julgamento, este tribunal acordou em negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.
   Vem agora o mesmo arguido interpor ao Tribunal de Última Instância o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, formulando as seguintes conclusões:
   “1. A interposição do presente recurso é tempestiva;
   2. O acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância em 19 de Julho de 2001, nos autos supra mencionados, e o acórdão do Tribunal de Segunda Instância, proferido em 13 de Julho de 2000, no processo n.º 89/2000, publicado em “Acórdãos do Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.”, Tomo II, pags. 175, decidiram em sentido contrário no que concerne à mesma questão de direito.
   3. O acórdão fundamento, decidiu que a lei da Criminalidade Organizada é uma lei especial e como tal só derroga a lei geral quando se encontrem presentes condições especiais que determinem a sua aplicação.
   4. E, na sequência desse entendimento defende que a norma prevista no art.º 37.º da mesma lei só deve ser aplicada quando entre ela e a lei da Criminalidade Organizada houver qualquer conexão.
   5. O acórdão conclui, também, através dos elementos da interpretação, que a lei 6/97 veio estabelecer um novo regime jurídico sobre a Associação Secreta/Criminosa e o art.º 37.º elenca precisamente os crimes correntes no período de transição e cujos autores são elementos das associações criminosas.
   6. O acórdão recorrido, decidiu que a Lei da Criminalidade Organizada não é considerada como uma lei especial no seu todo, e contempla portanto, quer normas especiais quer normas gerais.
   7. Na sequência deste entendimento, conclui, que a aplicação da norma prevista no art.º 8.º, da mesma lei, é uma norma geral e como tal, não pressupõe a existência de conexão entre ela e a associação criminosa.
   8. Conclui, também, que o combate à criminalidade organizada é o fim principal da Lei 6/97, mas não o seu fim exclusivo;
   9. As decisões dos acórdãos em confronto foram proferidos no domínio da mesma legislação Penal: a Lei 6/97/M, de 30 de Julho;
   10. O acórdão recorrido, conforme o disposto na alínea f) do n.º 1 do art.º 390.º do CPP, com as alterações introduzidas pelo art.º 73.º da Lei 9/99, não admite recurso ordinário e já transitou em julgado.
   11. O acórdão fundamento é anterior ao acórdão recorrido tendo também já transitado em julgado;
   12. Importa com o princípio da legalidade, nos seus diversos corolários, dar inteira certeza aos destinatários das normas, sobre o que é lícito e ilícito, e fazer com que a tarefa do julgador seja a de subsumir no tipo normativo a acção ou omissão em concreto objecto da acusação.
   13. É na unidade da ordem jurídica, fundamento do próprio sistema jurídico-penal, que o pensamento do problema tem que ser encontrado, coexistindo forçosamente com o pensamento do sistema, na garantia de ser encontrada a solução justa e adequada para o caso jurídico-penal.
   14. Sendo um conceito de relação, uma lei especial é considerada especial relativamente a uma lei geral. Ao prever e definir ex novo um crime ou definir uma disciplina nova, para determinados e certos crimes, não deixa, por isso, de manter a sua natureza de lei especial.
   15. E essa natureza de lei especial advem-lhe precisamente, porque, visa tutelar interesses que lhe são específicos ou porque visa regular particulares relações da vida ou ainda, porque se dirige a certas classes de pessoas ou coisas.
   16. É a própria natureza da lei especial que determina este entendimento e limites da sua aplicação. Ou seja, a lei especial não se aplica às relações jurídicas ou às pessoas, que não caibam dentro dos interesses que visa tutelar.
   17. A lei especial não revoga, mas só derroga a lei geral quando na situação concreta, estiverem presentes, as relações e os interesses que a lei especial visa regular e tutelar.
   18. Contrariando a natureza própria da lei especial, ao admitir-se que no seu seio existam normas gerais, isso seria atribuir ao juiz uma margem de apreciação que se suporia ultrapassada pelo princípio da legalidade, num Estado de Direito.
   19. E seria ao juiz que caberia em último caso, à revelia da garantia dos cidadãos face a saber de quais normas são destinatários, decidir in casu, se aquela norma, insíta numa lei especial, era uma norma especial ou uma norma geral.
   20. É um entendimento que de nenhuma forma podemos corroborar. Uma lei especial, com os seus interesses próprios, visando unicamente determinadas relações jurídicas, não pode prever e definir crimes, ou estabelecer uma disciplina nova, que se dirijam a todos os membros da comunidade jurídica independentemente dos interesses próprios que visa tutelar.
   21. Compreendendo que uma lei especial pode conter normas gerais, esse entendimento viola claramente o princípio da legalidade, pelo menos na sua vertente doutrinária que o brocardo nullum crimen, nulla poena sine lege certa, exprime.
   22. A Lei da Criminalidade Organizada é de facto uma lei especial, extravagante ou avulsa, quer pelos interesses específicos que visa tutelar, quer pelo particular grupo de relações da vida que visa regular, quer também pela especificidade das pessoas a que se destina.
   23. E é precisamente esta especialidade de relações jurídicas que visa regular, de novas condutas que criminaliza, os interesses e os bens jurídicos particulares, a ela imanentes, que visa tutelar, bem como a disciplina nova que introduz relativamente a certos institutos existentes na lei geral, que faz desta lei uma lei especial.
   24. Parecem não restar grandes dúvidas, após a interpretação jurídica, de qual o verdadeiro sentido e alcance desta Lei, qual seja, o de combater a criminalidade organizada, levada a cabo por associações criminosas.
   25. O Diploma deve ser analisado no seu conjunto e as suas disposições, em particular, interpretadas em consonância com o espírito ou unidade intrínseca do mesmo. Todas elas concorrem para o mesmo fim – o combate às Associações Criminosas.
   26. Somos de crer, sempre com pleno respeito por melhor opinião, que para fixação de jurisprudência devia o douto Tribunal decidir que:
   27. Quando um agente singular, não integrando qualquer associação criminosa, com a sua conduta, não ponha em perigo a paz pública e a segurança dos cidadãos, bem jurídico tutelado pela lei da Criminalidade Organizada, e portanto não seja necessário salvaguardá-los, a sua responsabilização criminal deverá ser feita à luz do Código Penal e não com base na lei 6/97.
   28. A lei especial da Criminalidade Organizada só deverá ser aplicada quando, na situação concreta, no caso sub-judice, estiverem presentes os interesses, as relações jurídicas, os bens jurídicos que a citada lei visa tutelar.
   29. Quando tal não acontecer, a lei especial não se aplica mas sim a lei geral – o Código Penal de Macau, nunca se perdendo de vista que é nesse diploma que se centra o que é constante de acordo com o princípio da intervenção mínima e sempre numa perspectiva garantística.
   30. Não podendo o juiz recorrer à aplicação da lei especial, por não estarem na situação, presentes os interesses que ela própria visa tutelar, deverá, o juiz aplicar a lei geral e, não estando aí previsto, o tipo de crime previsto na lei especial, deverá o Tribunal, absolver o agente.
   31. A lei geral não revoga mas só derroga a lei geral quando, na situação concreta, estiverem presentes os interesses e as condições que nortearam a sua elaboração.”
   Pedindo a procedência do recurso e fixar a jurisprudência de acordo com a solução apontada pelo recorrente.
   
   O Procurador-Adjunto do Ministério Público junto do Tribunal de Segunda Instância considera que são diferentes as questões de direitos nos dois acórdãos em causa e não existe qualquer oposição entre ambas. Tal oposição só existiria se os acórdãos em apreço tivessem atribuído sentidos diferentes à mesma disposição legal. O que o recorrente pretende é que se proceda à classificação de uma lei penal avulsa. Entende que o recurso deve ser rejeitado.
   
   A Procuradora-Adjunta do Ministério Público junto do Tribunal de Última Instância emitiu o parecer que essencialmente consiste em:
   Ao contrário do que sustenta pelo recorrente, entendemos que a condição de “existir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas” não pode ser considerada preenchida, pois entre os dois acórdãos não existe oposição nas resoluções da mesma questão de direito.
   Para resolver a questão de se existirem dois acórdãos em oposição, o fundamental é ter a concepção clara do sentido real da “mesma questão de direito”.
   Na doutrina, o Professor Alberto dos Reis entende que há oposição de acórdãos na resolução da mesma questão de direito quando em dois acórdãos foram dadas interpretações ou aplicações opostas à mesma disposição legal.
   Em Portugal, quer nos processos penais, quer nos processos cíveis, a jurisprudência entende sempre que só existe oposição de acórdãos perante decisões contraditórias sobre a mesma questão de direito, devendo verificar, para o efeito, a identidade da norma legal aplicada.
   Para além disso, é igualmente necessária a identidade da situação de facto sujeita ao julgamento.
   Por isso, chegamos à seguinte conclusão, isto é, quer na doutrina, quer na prática judicial, existe uma unânime interpretação do conceito da oposição de acórdãos relativamente à solução da mesma questão de direito: refere-se apenas aos acórdãos em oposição relativamente à mesma situação de facto e à aplicação da mesma norma legal, ou seja, perante entendimento jurídico e aplicação opostos da mesma norma legal.
   No presente recurso, comparando o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, são diferentes tanto as situações de facto como as normas legais aplicáveis.
   Simplesmente, o recurso para a uniformização de jurisprudência destina-se a uniformizar a interpretação sobre a mesma disposição legal.
   Se estivermos perante a realidade diferente e a interpretação e aplicação de normas legais diferentes, é impossível abordar o problema de uniformização de interpretações e posições.
   Por outro lado, devido à possibilidade de ser posta em causa a definitividade do acórdão transitado (dado que, nos termos do art.º 427.° do Código de Processo Penal, o acórdão que resolver o conflito tem eficácia no processo em que o recurso foi interposto), o recurso para a uniformização de jurisprudência constitui uma medida excepcional, pelo que não é conveniente, nem é possível usá-lo para resolver qualquer problema jurídico, sendo, por isso, compreensíveis as restrições rigorosas dos pressupostos deste tipo de recurso estabelecidas pelos legisladores e jurisprudência.
   Pelo exposto, consideramos que não existe a oposição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento na solução da mesma questão de direito. Inexistindo uma condição material importante estipulada pela lei para a interposição de recurso para a uniformização de jurisprudência, deve o tribunal rejeitar, nos termos do art.º 423.°, n.º 1 do Código de Processo Penal, alterado pela Lei n.º 9/99, o recurso para a uniformização de jurisprudência interposto pelo recorrente.
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   2. Fundamentos
   O arguido A interpôs tempestivamente o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, alegando que existe oposição nos dois acórdãos do Tribunal de Segunda Instância, um de 13 de Julho de 2000 do processo n.° 89/2000 e outro de 19 de Julho de 2001 do processo n.° 65/2001, por decidirem em sentido contrário sobre a mesma questão de direito.
   
   Dispõe o art.° 419.° do Código de Processo Penal (CPP), na redacção dada pelo art.° 73.° da Lei n.° 9/1999 com a rectificação publicada no Boletim Oficial da RAEM de 24 de Janeiro de 2000:
   “1. Quando, no domínio da mesma legislação, o Tribunal de Última Instância proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, o Ministério Público, o arguido, o assistente ou a parte civil podem recorrer, para uniformização de jurisprudência, do acórdão proferido em último lugar.
   2. É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando o Tribunal de Segunda Instância proferir acórdão que esteja em oposição com outro do mesmo tribunal ou do Tribunal de Última Instância, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Tribunal de Última Instância.
   3. Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.
   4. Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.”
   
   Para o caso de conflito de jurisprudência entre os acórdãos do mesmo Tribunal de Segunda Instância, é necessário verificar cumulativamente os seguintes requisitos específicos:
   1. Dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas (art.° 419.°, n.° 1 do CPP);
   2. No domínio da mesma legislação (art.° 419.°, n.°s 1 e 3 do CPP);
   3. O acórdão fundamento foi proferido antes do acórdão recorrido e transitou em julgado (art.° 419.°, n.°s 1 e 4 do CPP);
   4. Do acórdão recorrido não é admissível recurso ordinário (art.° 419.°, n.° 2 do CPP);
   5. A orientação perfilhada no acórdão recorrido não está de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Tribunal de Última Instância (art.° 419.°, n.° 2 do CPP).
   
   Em relação aos terceiro a quinto requisitos, é evidente a sua verificação.
   Na realidade, o acórdão recorrido foi proferido em 19 de Julho de 2001, ao passo que o acórdão fundamento foi proferido em 13 de Julho de 2000 e transitou em julgado no dia 24 seguinte.
   Por outro lado, o ora recorrente foi condenado no Tribunal Judicial de Base pela prática de um crime de exploração de prostituição previsto no art.° 8.°, n.° 1 da Lei n.° 6/97/M e punível com a pena de prisão de um a três anos. Assim, de acordo com o art.° 390.°, n.° 1, al. f) do CPP na redacção dada pelo art.° 73.° da Lei n.° 9/1999, não é permitido mais recurso ordinário em relação ao acórdão do Tribunal de Segunda Instância ora recorrido.
   E não existe jurisprudência fixada pelo Tribunal de Última Instância sobre as questões jurídicas cujas soluções estão alegadamente em oposição.
   
   Voltamos agora aos primeiro e segundo requisitos.
   O recorrente sustenta a alegada oposição de decisões sobre a mesma questão de direito de seguinte forma:
   No acórdão fundamento foi decidido que a Lei da Criminalidade Organizada (Lei n.° 6/97/M) é uma lei especial e como tal só derroga a lei geral quando se encontrem presentes condições especiais que determinem a sua aplicação. E na sequência desse entendimento defende que a norma prevista no art.° 37.° da mesma lei só deve ser aplicada quando entre ela e aquela lei houver qualquer conexão.
   O acórdão recorrido decidiu que a Lei da Criminalidade Organizada não é considerada como uma lei especial no seu todo e contempla quer normas especiais quer normas gerais. Na sequência desse entendimento, conclui que a aplicação da norma prevista no art.° 8.° da mesma lei, uma norma geral e como tal, não pressupõe a existência de conexão entre ela e a associação criminosa.
   
   O acórdão fundamento, proferido pelo Tribunal de Segunda Instância em 13 de Julho de 2000 no processo 89/2000, tem por origem uma sentença do Tribunal Judicial de Base em que o arguido foi condenado pela prática de um crime do furto previsto e punido pelo art.° 197.° do Código Penal (CP) por ter subtraído um ciclomotor e outros objectos nele guardados alheios.
   Inconformados com a sentença, o Ministério Público recorreu pedindo a alteração da pena de multa para prisão, ainda que suspensa, e o arguido recorreu também, alegando o erro de interpretação do art.° 37.° da Lei da Criminalidade Organizada, pois que no caso devia ser aplicado o art.° 197.°, n.° 3 do CP e dar relevância à desistência da queixa já apresentada.
   Está em causa, no acórdão fundamento, o alcance do art.° 37.° da Lei da Criminalidade Organizada, inserido no seu capítulo de disposições finais e transitórias:
   “Artigo 37.°
   (Crimes públicos)
   Não depende de queixa o procedimento criminal pelos crimes de:
   a) furto e dano de veículos motorizados;
   ...”
   Neste acórdão, o Tribunal de Segunda Instância decidiu assim:
   “O art.° 37.° da Lei da Criminalidade Organizada veio, no seu capítulo das disposições transitórias, estabelecer um regime especial em relação ao regime geral do Código Penal de Macau, com a correspondência das disposições do art.° 1.° da mesma lei, de modo que dispensa a queixa como um dos requisitos de procedibilidade pelos crimes semi-públicos elencados no art.° 37.°.”
   “Sendo embora lei especial, não pretende o legislador, com o art.° 37.° da referida lei, revogar a aplicação, como norma geral, dos ..., n.° 3 do art.° 197.°, ... do Código Penal de Macau.”
   “E como sendo lei especial, a sua aplicação deve justificar-se pela sua especialidade das condições. A aplicação do art.° 37.°, que faz parte da Lei da Criminalidade Organizada, deve encontrar mínima conexão entre si. Enquanto não conseguir encontrar qualquer conexão, não derroga a lei geral, o Código Penal de Macau, na sua aplicação.
   Pelo que considera o Tribunal ad quem que o crime em causa nos presentes autos, não deixou de ter natureza particular (lato sensu), nos termos do art.° 197.°, n.° 3 do CP.”
   Com base neste entendimento, o Tribunal de Segunda Instância considerou relevante a desistência da queixa, dando provimento ao recurso interposto pelo arguido e, em consequência, anulou o julgamento realizado no Tribunal Judicial de Base e a sentença recorrida.
   Assim, no acórdão fundamento, a questão fundamental é se, no caso dos autos, o disposto no art.° 37.°, al. a) da Lei da Criminalidade Organizada, que altera a natureza do crime de furto e dano de veículos motorizados para pública, afasta a aplicação do art.° 197.°, n.° 3 do CP, que determina a dependência de queixa do procedimento penal do crime de furto.
   O Tribunal de Segunda Instância, neste acórdão fundamento, decidiu no sentido de que o crime de furto de veículos motorizados referido no art.° 37.° da Lei da Criminalidade Organizada só terá natureza pública quando houver conexão com os crimes previstos nessa mesma lei.
   
   Quanto ao acórdão recorrido, este tem igualmente por origem um outro processo comum colectivo (peanl). O arguido A, ora recorrente, vinha acusado de um crime de lenocínio previsto e punido pelo art.° 163.° do CP mas afinal foi condenado pelo acórdão do Tribunal Judicial de Base pela prática de um crime de exploração de prostituição previsto e punido pelo art.° 8.°, n.° 1 da Lei da Criminalidade Organizada, por ter aliciado uma rapariga para vir a Macau a prostituir-se, decisão essa que foi mantida pelo Tribunal de Segunda Instância.
   De facto, dispõe assim o referido art.° 8.°, n.° 1:
   “Artigo 8.°
   (Exploração de prostituição)
   1. Quem aliciar, atrair ou desviar outra pessoa, mesmo com o acordo desta, com vista à prostituição, ou que explore a prostituição de outrem, mesmo com o seu consentimento, é punido com pena de prisão de um a três anos.
   2. ...
   3. ...”
   No recurso do acórdão condenatório do Tribunal Judicial de Base, o arguido entende que nele houve interpretação extensiva ou aplicação analógica do art.° 8.° da Lei da Criminalidade Organizada a situação que não tinha qualquer conexão com as associações criminosas e sem ser abrangida pelas condições e interesses particulares que estiveram na base da criação desta lei especial e pede a sua absolvição.
   No acórdão recorrido, o Tribunal de Segunda Instância entende que, entre outras questões, a conduta do arguido integra efectivamente o crime de exploração de prostituição previsto no art.° 8.° da Lei da Criminalidade Organizada. A ligação à seita ou forma organizativa da prática de crimes não são elementos constitutivos dos crimes tipificados nessa lei nem devem acompanhar necessariamente a acusação e a consequente condenação pela prática do crime de associação criminosa ou sociedade secreta. O que a lei pretende é, por este meio de incriminação de tais condutas, atingir especialmente a finalidade de combate à criminalidade organizada.
   
   Para admitir o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, é necessário apurar se as decisões opostas se relacionam com a mesma questão de direito. A função deste tipo de recurso não é uniformizar qualquer entendimento jurídico dos tribunais superiores sem limite, mas sim, evitar as decisões de fundo contraditórias destes em relação a mesma questão de direito, permitindo assim uma certa estabilidade da jurisprudência a fim de assegurar melhor a igualdade dos cidadãos perante a lei, tendo sempre em conta o carácter extraordinário do presente recurso.
   Daí que a lei exige, entre outros requisitos específicos, a identidade da questão jurídica nos dois acórdãos contraditórios e não apenas a sua similitude ou analogia. É natural estatuir esta condição, uma vez que só perante uma mesma e única questão de direito em que há dois entendimentos opostos se mostra logicamente possível estabelecer uma jurisprudência uniformizada sobre o mesmo tema jurídico.
   
   Dá-se a oposição sobre o mesmo ponto de direito quando a mesma questão de direito foi resolvida em sentidos diferentes, isto é, quando à mesma disposição legal foram dadas interpretações ou aplicações opostas.1
   Considera-se como verificado o requisito da mesma questão fundamental de direito “quando o núcleo da situação de facto, à luz da norma aplicável, seja idêntico. Com o esclarecimento de que os elementos de facto relevantes para a ratio da regra jurídica devem ser coincidentes num e noutro caso, pouco importando que sejam diferentes os elementos acessórios da relação.”2
   Portanto, é necessário verificar a identidade da situação de facto a que foram aplicadas as mesmas normas jurídicas em sentidos opostos.
   Como ficou explicitado, no acórdão fundamento, a questão essencial consiste em determinar o alcance da alteração da natureza do crime de furto e dano de veículos motorizados para pública introduzida pelo art.° 37.°, al. a) da Lei da Criminalidade Organizada e a incidência desta alteração relativamente à vigência do art.° 197.°, n.° 3 do CP que consagra a natureza semi-pública do crime de furto simples.
   Por seu lado, no acórdão recorrido, a questão que envolve a alegada oposição de decisões é saber se deve considerar a ligação à associação criminosa ou a forma organizativa da prática do crime como elementos constitutivos do crime de exploração de prostituição previsto no art.° 8.° da mesma lei.
   
   É evidente que se não tratam da mesma questão de direito.
   No primeiro caso estamos perante o furto de um motociclo e noutro o aliciamento de uma rapariga para vir a Macau a prostituir-se. Naquele discute-se a natureza do crime de furto e neste os elementos constitutivos do crime de exploração de prostituição. No primeiro interpreta-se o art.° 37.°, al. a) da Lei da Criminalidade Organizada e o art.° 197.°, n.° 3 do CP e no segundo o art.° 8.°, n.° 1 daquela lei.
   
   A situação de ambos os preceitos em causa terem origem no mesmo diploma legal e a qualificação doutrinária aparentemente diferente deste não permite concluir que estamos perante a mesma questão de direito para efeito de interpor o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência.
   É de voltar a realçar o carácter extraordinário do recurso de fixação de jurisprudência e o sentido uniformizado deve ser suficientemente individualizado e não apenas o reflexo das resoluções das questões jurídicas em causa.
   Nas questões suscitadas nos dois acórdãos em causa, não é a natureza da Lei da Criminalidade Organizada, fonte das duas normas aplicadas, factor determinante da sua resolução, mas antes o sentido das próprias normas aplicadas.
   No acórdão fundamento, discute-se a incidência do art.° 37.°, al. a) da Lei da Criminalidade Organizada sobre o art.° 197.°, n.° 3 do CP e no acórdão recorrido os elementos típicos do crime previsto no art.° 8.°, n.° 1 daquela lei. Embora estão inseridas na mesma lei, os art.°s 37.° e 8.° têm natureza diferente, aquele define a procedibilidade penal e este como norma tipificador do crime. Face à natureza diferente das duas normas e considerando ainda a sua inserção sistemática na mesma Lei da Criminalidade Organizada, é evidente que não é possível qualificá-las de acordo com uma pretensa natureza uniforme de toda a Lei da Criminalidade Organizada.
   Portanto, o único ponto comum, ou seja, o entendimento teórico sobre a natureza do diploma legal donde constam as duas disposições em causa não permite satisfazer o requisito do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência. Na realidade, o fundamental nos dois acórdãos em consideração é o sentido das referidas duas normas e não a natureza do seu diploma legal. O recorrente sustenta que houve entendimento diferente nos dois acórdãos sobre a natureza do diploma. No entanto, a qualificação teórica daquela lei no seu todo não foi determinante na resolução das questões suscitadas naqueles dois acórdãos nem em abstracto condiciona necessariamente a sua resolução.
   Assim, é manifesto que não está verificado o primeiro requisito: mesma questão de direito.
   Perante o exposto, também é de concluir a falta do segundo requisito, no domínio da mesma legislação, por diversidade das normas aplicadas mesmo com a inserção no único diploma legal.
   Por razões acima referidas, o recurso deve ser rejeitado pela não oposição de julgados (art.° 423.°, n.° 1 do CPP).
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em rejeitar o recurso.
   Custas pelo recorrente com 4 UC de taxa de justiça e honorários e compensação por despesas atribuídos à defensora nomeada em mil quinhentas patacas.
   
   
   
   Aos 6 de Fevereiro de 2002.
   
   
    Juízes : Chu Kin (relator)
    Viriato Manuel Pinheiro de Lima
    Sam Hou Fai
   
   
   
1 Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. VI, Coimbra Editora, 1985, p. 246.
2 Cfr. Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 2ª ed., Almedina, 2001, p.252.
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Recurso n.° 17 / 2001 19