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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso civil
N.° 2 / 2002

Recorrentes: A
B
Recorridos: C
D






1. Relatório
   C e D intentaram a acção declarativa na forma de processo ordinário sob o n.° 470/93-2° contra A e B no então Tribunal de Competência Genérica de Macau com os seguintes pedidos:
   a) Ser declarada nula, para todos os legais efeitos, a compra e venda celebrada em 16 de Junho (leia-se Julho) de 1993 no Cartório do Notário Privado Alexandre Correia da Silva, pela qual A vendeu à B o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o número [XXXXX(1)] a folhas 71 do Livro B-41;
   b) sejam as rés condenadas a indemnizar os autores de todos os danos, patrimoniais e não patrimoniais resultantes da nulidade daquela venda, nomeadamente dos que vierem a resultar do incumprimento ou mora no cumprimento dos compromissos que os autores assumiram para com terceiros relativamente ao prédio em causa, prejuízos esses que melhor se apurarão em execução de sentença mas que desde já se computam em HK$5.000.000,00.
   Por sentença do Tribunal Judicial de Base, a acção foi julgada improcedente e as rés absolvidas do pedido.
   Da sentença recorreram os autores para o Tribunal de Segunda Instância. Este tribunal deu parcialmente provimento ao recurso e decidiu:
   a) Declarar-se nula a sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Base por omissão de pronúncia;
   b) Declarar-se nulo o contrato de compra e venda celebrado por escritura pública em 16 de Julho de 1993 no Cartório do Notário Privado Alexandre Correia da Silva, registada no Livro C-4 a fls. 114, depositado no Cartório Notarial das Ilhas em 17 de Julho de 1993, no Maço n.° 4/93, Doc. n.° 34;
   c) Condenar as rés na indemnização solidária a favor dos autores, a título dos danos patrimoniais, a liquidar em execução; e
   d) Condenar as rés na indemnização solidária a favor dos autores, a título dos danos não patrimoniais, a fixar em MOP$600.000,00.
   Inconformada com o acórdão, vem a ré A recorrer para este Tribunal formulando as seguintes conclusões:
   “a) A motivação do acórdão recorrido cita doutrina que admite, mas não considera obrigatória, a sanção de nulidade para o negócio celebrado com abuso do direito, reconhece que a nulidade no caso concreto dos autos não pode fazer renascer o contrato-promessa que existiu entre os autores e a 1.ª ré e alude a que a sanção do abuso do direito não deve ser sempre a mesma, dependendo das circunstâncias do caso;
   b) Apesar disso, decide-se, a final, pela nulidade da compra e venda que foi celebrada entre as rés, o que contradiz os fundamentos e constitui uma nulidade, de acordo com o disposto no art.º 571.º, n.º 1, al. c) do CPC, invocável perante o Tribunal de Última Instância, ao abrigo do mesmo art.º 571.º, n.º 3, segunda parte, que a supre declarando em que sentido a decisão deve considerar-se modificada, de acordo com o disposto no art.º 651.º, n.º 1;
   c) A simulação de negócio jurídico é uma nulidade cujo conhecimento oficioso pode ter lugar a qualquer tempo, mas, uma vez apreciada no processo por decisão que transite em julgado, não pode voltar a ser discutida;
   d) A simulação arguida pelos autores - absoluta e não apenas de preço, como erradamente se diz no acórdão recorrido - foi julgada não provada e improcedente pela sentença proferida na primeira instância, tendo-se os autores conformado com essa decisão, o que inibia o Tribunal a quo de voltar a abordar a matéria;
   e) Porque se pronunciou sobre a simulação, o acórdão recorrido contém um excesso de pronúncia que constitui nulidade, nos termos do art.º 571.º, n.º 1, al. d), segunda parte, do CPC, invocável perante o Tribunal de Última Instância, ao abrigo do mesmo art.º 571.º, n.º 3, segunda parte, que a supre declarando em que sentido a decisão deve considerar-se modificada, de acordo com a art.º 651.º, n.º 1;
   f) O acórdão proferido no processo n.º 309 do Tribunal Superior de Justiça, respeitante aos autos de acção ordinária n.º 239/93, do 1º Juízo do Tribunal de Competência Genérica, julgou não provada e improcedente a alegação de abuso do direito e violação de ordem pública e a alegação de nulidade, por essas razões, da compra e venda que as rés outorgaram entre si;
   g) A conduta descrita como alegadamente abusiva e violadora da ordem pública era a venda, pela 1ª ré, de um dos prédios que tinha prometido vender aos autores, depois de citada para a acção de execução específica do contrato-promessa que firmara com os autores, venda feita com intenção de frustrar a execução específica;
   h) Os factos materiais em que os autores agora vieram basear o abuso do direito e violação da ordem pública são os mesmos, acrescidos de mais alguns, concretamente, o conhecimento, pela 1ª ré de que os autores já tinham compromissos sobre os terrenos objecto da promessa de compra e venda, o conluio entre as rés, o intuito da 2ª ré de frustrar a execução específica e o engano e prejuízo provocados aos autores pelas rés;
   i) Os autores desinteressaram-se de fazer a discussão simultânea destes factos com os factos que alegaram na acção n.º 239/93, o que os impede de obter nova decisão judicial sobre a mesma questão com invocação de tais factos;
   j) Há identidade de sujeitos nas duas acções, apesar de a 2ª ré não ter sido parte na acção n.º 239/93, porque a sua qualidade jurídica é a mesma da que tem agora e tinha, na primeira acção, a 1ª ré face ao pedido de declaração de nulidade do negócio jurídico com fundamento em abuso do direito ou violação da ordem pública;
   k) Há identidade de pedidos porque em ambas as acções se pede a nulidade da compra e venda, e
   l) Há identidade de causas de pedir porque em ambas as acções se invoca o abuso do direito e a violação da ordem pública, valendo, quanto aos factos materiais que preenchem essas condutas, o que ficou acima dito em g), h) e i);
   m) Por conseguinte, a decisão tomada no acórdão n.º 309 tem efeito de caso julgado sobre a presente acção, o que constitui excepção dilatória que obsta ao conhecimento do mérito da causa, dá lugar à absolvição da instância e é de conhecimento oficioso, nos termos dos art.ºs 416.º, n.º 1, 413.º, al. j), 412.º, n.º 2, e 414.º do CPC;
   n) O acórdão proferido no processo n.º 595 do Tribunal Superior de Justiça, relativo à presente acção, declarou que o decidido na acção n.º 239/93 faz caso julgado contra a pretensão de condenar a 1ª ré ao pagamento de qualquer indemnização nos presentes autos, o que surte os mesmos efeitos referidos em m);
   o) Os termos em que o caso julgado já está reconhecido no acórdão n.º 595 não impedem o seu reconhecimento nos termos agora expostos porque a primeira declaração de caso julgado foi pontual e não excluiu a extensão do caso julgado a outras hipóteses, que o julgador não equacionou nem foi solicitado a equacionar;
   p) As rés tinham interesse económico óbvio na compra e venda que celebraram e não se provou que quisessem enganar ou prejudicar e, por maioria de razão, que só quisessem enganar e prejudicar os autores;
   q) Não é possível fazer o confronto entre os prejuízos sofridos pelos autores e os benefícios obtidos pelas rés e nem se sabe se os prejuízos sofridos pelos autores são ou não apreciáveis;
   r) Não há, pois, abuso do direito, e decidindo o contrário o acórdão recorrido fez, não só, incorrecta apreciação da prova, censurável pelo Tribunal de Última Instância, como também incorrecta interpretação e aplicação da norma do art.º 334.º do Código Civil de 1966, o que importa a revogação da decisão que declara a nulidade da compra e venda e das decisões que condenam as rés ao pagamento de indemnizações por danos patrimoniais e não patrimoniais;
   s) É inútil, de qualquer modo, a sanção de nulidade da venda e a sua imposição resulta, mais uma vez, de incorrecta interpretação e aplicação da norma do art.º 334.º do Código Civil de 1966;
   t) A quantificação dos danos morais é exorbitante, assente em factos insuficientes, falha de equidade, intoleravelmente arbitrária e violadora das normas contidas no art.º 496.º, n.ºs 1 e 3 do Código Civil de 1966, constituindo a fixação da justa indemnização matéria de direito, do conhecimento do Tribunal de Última Instância;
   u) Não pode relegar-se para execução de sentença a liquidação de danos cuja existência não ficou provada, pelo que a decisão, contida no acórdão recorrido, de condenar as rés genericamente no pagamento duma indemnização por danos patrimoniais a liquidar em execução de sentença é ilegal por ofensa ao princípio da igualdade das partes, ao princípio dispositivo e ao princípio do ónus da prova, vertidos, respectivamente, nos art.ºs 4.° e 5.° do CPC e 342.º do Código Civil de 1966 (art.º 335.º do Código Civil hoje em vigor).”
   E os seguintes pedidos:
   – Modificar-se o acórdão recorrido, de modo a que seja superada a contradição entre os seus fundamentos e a decisão, no tocante à declaração de nulidade da venda, e suprimido o excesso de pronúncia sobre a simulação, e
   – Julgar-se provada e procedente a excepção dilatória de caso julgado formado pelo acórdão n.º 309 do Tribunal Superior de Justiça, absolvendo-se as rés da instância no que concerne o conhecimento do abuso do direito e violação da ordem pública pela celebração da compra e venda entre as rés e o correlativo conhecimento da nulidade do negócio e danos causados pelo negócio abusivo ou violador da ordem pública, e
   – Confirmar-se a sentença do Tribunal Judicial de Base que julgou não provada a arguição de simulação e, com esse fundamento, julgou improcedentes todos os pedidos formulados pelos autores;
   Caso não proceda a excepção dilatória referida, deve:
   – Modificar-se o acórdão recorrido, de modo a que seja superada a contradição entre os seus fundamentos e a decisão, no tocante à declaração de nulidade da venda, e suprimido o excesso de pronúncia sobre a simulação, e
   – Julgar-se provada e procedente a excepção dilatória de caso julgado verificado e formado pelo acórdão n.º 595 do Tribunal Superior de Justiça, absolvendo-se a 1ª ré da instância relativamente à parte em que se conhece da sua responsabilidade no pagamento de indemnizações por quaisquer danos patrimoniais e não patrimoniais, e
   – Revogar-se o acórdão recorrido, por não haver abuso do direito, na parte que declara a nulidade da compra e venda e condena as rés no pagamento de indemnizações por danos patrimoniais e não patrimoniais ou, se assim não for entendido, revogar-se a declaração de nulidade da compra e venda, reduzir-se a indemnização por danos morais a não mais do que cinco mil patacas e revogar-se a decisão de condenação genérica das rés no pagamento duma indemnização por danos patrimoniais aos autores a liquidar em execução de sentença, e
   – Confirmar-se a sentença do Tribunal Judicial de Base que julgou não provada a arguição de simulação e, com esse fundamento, julgou improcedentes todos os pedidos formulados pelos autores.
   
   Outra ré a B recorreu também para este Tribunal formulando as seguintes conclusões:
   “a) A motivação do acórdão recorrido cita doutrina que admite, mas não considera obrigatória, a sanção de nulidade para o negócio celebrado com abuso do direito, reconhece que a nulidade no caso concreto dos autos não pode fazer renascer o contrato-promessa que existiu entre os autores e a 1ª ré e alude a que a sanção do abuso do direito não deve ser sempre a mesma, dependendo das circunstâncias do caso;
   b) Apesar disso, decide-se, a final, pela nulidade da compra e venda que foi celebrada entre as rés, o que contradiz os fundamentos e constitui uma nulidade, de acordo com o disposto no art.º 571.º, n.º 1, al. c) do CPC, invocável perante o Tribunal de Última Instância, ao abrigo do mesmo art.º 571.º, n.º 3, segunda parte, que a supre declarando em que sentido a decisão deve considerar-se modificada, de acordo com o disposto no art.º 651.º, n.º 1;
   c) A simulação de negócio jurídico é uma nulidade cujo conhecimento oficioso pode ter lugar a qualquer tempo, mas, uma vez apreciada no processo por decisão que transite em julgado, não pode voltar a ser discutida;
   d) A simulação arguida pelos autores – absoluta e não apenas de preço, como erradamente se diz no acórdão recorrido – foi julgada não provada e improcedente pela sentença proferida na primeira instância, tendo-se os autores conformado com essa decisão, o que inibia o Tribunal a quo de voltar a abordar a matéria;
   e) Porque se pronunciou sobre a simulação, o acórdão recorrido contém um excesso de pronúncia que constitui nulidade, nos termos do art.º 571.º, n.º 1, al. d), segunda parte, do CPC, invocável perante o Tribunal de Última Instância, ao abrigo do mesmo art.º 571.º, n.º 3, segunda parte, que a supre declarando em que sentido a decisão deve considerar-se modificada, de acordo com o art.º 651.º, n.º 1;
   f) O acórdão proferido no processo n.º 309 do Tribunal Superior de Justiça, respeitante aos autos de acção ordinária n.º 239/93, do 1º Juízo do Tribunal de Competência Genérica, julgou não provada e improcedente a alegação de abuso do direito e violação de ordem pública e a alegação de nulidade, por essas razões, da compra e venda que as rés outorgaram entre si;
   g) A conduta descrita como alegadamente abusiva e violadora da ordem pública era a venda, pela 1ª ré, de um dos prédios que tinha prometido vender aos autores, depois de citada para a acção de execução específica do contrato-promessa que firmara com os autores, venda feita com intenção de frustrar a execução específica;
   h) Os factos materiais em que os autores agora vieram basear o abuso do direito e violação da ordem pública são os mesmos, acrescidos de mais alguns, concretamente, o conhecimento, pela 1ª ré de que os autores já tinham compromissos sobre os terrenos objecto da promessa de compra e venda, o conluio entre as rés, o intuito da 2ª ré de frustrar a execução específica e o engano e prejuízo provocados aos autores pelas rés;
   i) Os autores desinteressaram-se de fazer a discussão simultânea destes factos com os factos que alegaram na acção n.º 239/93, o que os impede de obter nova decisão judicial sobre a mesma questão com invocação de tais factos;
   j) Há identidade de sujeitos nas duas acções, apesar de a 2ª ré não ter sido parte na acção n.º 239/93, porque a sua qualidade jurídica é a mesma da que tem agora e tinha, na primeira acção, a 1ª ré face ao pedido de declaração de nulidade do negócio jurídico com fundamento em abuso do direito ou violação da ordem pública;
   k) Há identidade de pedidos porque em ambas as acções se pede a nulidade da compra e venda, e
   l) Há identidade de causas de pedir porque em ambas as acções se invoca o abuso do direito e a violação da ordem pública, valendo, quanto aos factos materiais que preenchem essas condutas, o que ficou acima dito em g), h) e i);
   m) Por conseguinte, a decisão tomada no acórdão n.º 309 tem efeito de caso julgado sobre a presente acção, o que constitui excepção dilatória que obsta ao conhecimento do mérito da causa, dá lugar à absolvição da instância e é de conhecimento oficiosa, nos termos dos art.ºs 416.º, n.º 1, 413.º, al. j), 412.º, n.º 2, e 414.º do CPC;
   n) As rés tinham interesse económico óbvio na compra e venda que celebraram e não se provou que quisessem enganar ou prejudicar e, por maioria de razão, que só quisessem enganar e prejudicar os autores;
   o) Não é possível fazer o confronto entre os prejuízos sofridos pelos autores e os benefícios obtidos pelas rés e nem se sabe se os prejuízos sofridos pelos autores são ou não apreciáveis;
   p) Não há, pois, abuso do direito, e decidindo o contrário o acórdão recorrido fez, não só, incorrecta apreciação da prova, censurável pelo Tribunal de Última Instância, como também incorrecta interpretação e aplicação da norma do art.º 334.º do Código Civil de 1966, o que importa a revogação da decisão que declara a nulidade da compra e venda e das decisões que condenam as rés ao pagamento de indemnizações por danos patrimoniais e não patrimoniais;
   q) É inútil, de qualquer modo, a sanção de nulidade da venda e a sua imposição resulta, mais uma vez, de incorrecta interpretação e aplicação da norma do art.º 334.º do Código Civil de 1966;
   r) A quantificação dos danos morais é exorbitante, assente em factos insuficientes, falha de equidade, intoleravelmente arbitrária e violadora das normas contidas no art.º 496.º, n.ºs 1 e 3 do Código Civil de 1966, constituindo a fixação da justa indemnização matéria de direito, do conhecimento do Tribunal de Última Instância;
   s) Não pode relegar-se para execução de sentença a liquidação de danos cuja existência não ficou provada, pelo que a decisão, contida no acórdão recorrido, de condenar as rés genericamente no pagamento duma indemnização por danos patrimoniais a liquidar em execução de sentença é ilegal por ofensa ao princípio da igualdade das partes, ao princípio dispositivo e ao princípio do ónus da prova, vertidos, respectivamente, nos art.ºs 4.º e 5.º do CPC e 342.º do Código Civil de 1966 (art.º 335.º do Código Civil hoje em vigor).”
   E os seguintes pedidos:
   – Modificar-se o acórdão recorrido, de modo a que seja superada a contradição entre os seus fundamentos e a decisão, no tocante à declaração de nulidade da venda, e suprimido o excesso de pronúncia sobre a simulação, e
   – Julgar-se provada e procedente a excepção dilatória de caso julgado formado pelo acórdão n.º 309 do Tribunal Superior de Justiça, absolvendo-se as rés da instância no que concerne o conhecimento do abuso do direito e violação da ordem pública pela celebração da compra e venda entre as rés e o correlativo conhecimento da nulidade do negócio e danos causados pelo negócio abusivo ou violador da ordem pública, e
   – Confirmar-se a sentença do Tribunal Judicial de Base que julgou não provada a arguição de simulação e, com esse fundamento, julgou improcedentes todos os pedidos formulados pelos autores;
   Caso não proceda a excepção dilatória referida, deve:
   – Modificar-se o acórdão recorrido, de modo a que seja superada a contradição entre os seus fundamentos e a decisão, no tocante à declaração de nulidade da venda, e suprimido o excesso de pronúncia sobre a simulação, e
   – Revogar-se o acórdão recorrido, por não haver abuso do direito, na parte que declara a nulidade da compra e venda e condena as rés no pagamento de indemnizações por danos patrimoniais e não patrimoniais ou, se assim não for entendido, revogar-se a declaração de nulidade da compra e venda, reduzir-se a indemnização por danos morais a não mais do que cinco mil patacas e revogar-se a decisão de condenação genérica das rés no pagamento duma indemnização por danos patrimoniais aos autores a liquidar em execução de sentença, e
   – Confirmar-se a sentença do Tribunal Judicial de Base que julgou não provada a arguição de simulação e, com esse fundamento, julgou improcedentes todos os pedidos formulados pelos autores.
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   1.1 Pelos Tribunal Judicial de Base e Tribunal de Segunda Instância foram dados como provados os seguintes factos:
   “No dia 04.11.1991, A, ora 1ª ré, e C e D, ora autores, celebraram um contrato-promessa pelo qual aquela prometeu vender e estes prometeram comprar os terrenos n.ºs [XXXXX(2)] e [XXXXX(1)], imóveis inscritos e descritos nos doc. 1 e 2, fls. 21 a 27 destes autos, que como os demais adiante referidos, aqui se dão como reproduzidos na íntegra para todos os efeitos legais. (al. A da Especificação)
   Por partilha efectuada no Proc. n.º 20/87 do 2º Juízo do TCGM (e transitada em julgado em 14.12.1992), A, ora 1ª ré, adquiriu, por sucessão hereditária, os referidos imóveis, aquisição essa registada na CRP em 22.03.1993. (al. B da Especificação)
   Por escritura lavrada a 16.07.1993 no Cartório do Notário Privado Alexandre Correia da Silva, Maria Angélica de Sales da Silva Gonçalves, na qualidade de procuradora de A, ora 1ª ré, declarou vender a E e F, estes na qualidade de representantes da B, que declararam comprar, pelo preço de MOP$8.000.000,00 (oito milhões), o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º [XXXXX(1)], a fls. 71 do Livro B-41, referido no Doc. n.º 2 a fls. 25 e ss. ora especificado na alínea A). (al. C da Especificação)
   Os autores intentaram acção judicial para execução específica do contrato especificado em A), a qual correu termos no 1º Juízo deste Tribunal de Competência Genérica de Macau sob o n.º 239/93. (al. D da Especificação)
   A 1ª ré, foi citada para contestar a acção n.º 239/93 em 17.06.1993. (al. E da Especificação)
   Esta acção n.º 239/93 foi apresentada a registo em 26.07.1993, constando do teor do registo essa mesma data. (al. F da Especificação)
   O douto Acórdão do S.T.J. junto a fls. 159 e ss. confirmou a sentença proferida nos autos n.º 239/93 que rejeitou o pedido de execução específica do contrato e condenou a ré (ora 1ª ré) a pagar aos autores o dobro do sinal entregue - HK$5.600.000,00 – por incumprimento do referido contrato-promessa. (al. G da Especificação)
   Os autores, desde meados de 1991, vinham negociando com A, ora 1ª ré, a compra e venda de dois terrenos (n.ºs [XXXXX(2)] e [XXXXX(1)]) pertencentes ao seu falecido marido, G, sitos na Ilha de Coloane, tendo aquele mostrado interesse em lhos vender, ajustando o respectivo preço e a forma do seu pagamento, a efectuar em diversas fases, até porque o processo de inventário vinha ainda correndo seus termos no Tribunal da Comarca de Macau. (resposta ao 1º quesito)
   Os autores foram adiantando algumas importâncias em dinheiro, a compensar no preço, do que aquela ia passando o respectivo recibo. (resposta ao 2º quesito)
   Provado apenas que em data não apurada, a 1ª ré recebeu a quantia de HKD$ 300.000,00 (trezentos mil dólares de Hong Kong). (resposta ao 3º quesito)
   Provado apenas que em data não apurada recebeu a quantia de HKD$2.000.000,00 (dois milhões de dólares de Hong Kong). (resposta ao 4º quesito)
   Provado apenas que em data não apurada recebeu mais HKD$500.000,00 (quinhentos mil dólares de Hong Kong). (resposta ao 5º quesito)
   Aproximando-se o termo do processo judicial de inventário, e depois de entendimentos com os demais herdeiros, acabaram por formalizar o contrato-promessa, celebrado em 4 de Novembro de 1991, ora especificado em A). (resposta ao 6º quesito)
   Conforme o referido contrato-promessa especificado em A) (celebrado em 04.11.1991) o preço da compra e venda era de HKD$4.000.000,00 (quatro milhões de dólares de Hong Kong), declarando-se apenas pago à data da celebração do referido contrato promessa, a título de sinal, a quantia de HKD$500.000,00 (quinhentos mil dólares de Hong Kong). (resposta ao 9º quesito)
   Embora a Sr.ª A já tivesse efectivamente recebido a quantia de HKD$2.800.000,00 (dois milhões e oitocentos mil dólares de Hong Kong). (resposta ao 10º quesito)
   Terminado o processo de inventário, começando os autores a solicitar à promitente vendedora, ora 1ª ré que deveriam ultimar a transacção, outorgando-se a necessária escritura de compra e venda, aquela começou a esquivar-se, invocando pretextos para justificar a demorar em cumprir o prometido. (resposta ao 14º quesito)
   A ora 1ª ré, começou a revelar aos autores a sua falta de vontade em cumprir a promessa, dando o dito por não dito, muito embora se locupletasse com a quantia os autores já lhe tinham adiantado. (resposta ao 15º quesito)
   Provado apenas que em especial, através de uma mandatária que entretanto constituiu, Maria Angélica de Sales da Silva Gonçalves, também conhecida por Dona Jeca, que, a determinada altura, e quando os autores insistiam pelo cumprimento, fez saber aos autores que era sua firme intenção não cumprir o prometido contrato. (resposta ao 16º quesito)
   Ao mesmo tempo que o pagamento do imposto sucessório, de que era devedora a promitente vendedora, ora 1ª ré, foi retardado, por forma a deixar impossibilidade o pagamento da sisa devida pelos autores. (resposta ao 18º quesito)
   Cujo impresso havia sido assinado simultaneamente com o contrato- -promessa acima referido. (resposta ao 19º quesito)
   Impedindo-os assim de marcar a competente escritura notarial de compra e venda, através da qual se comprovaria, formalmente, a vontade de não cumprir o contrato-promessa. (resposta ao 20º quesito)
   Só quando os autores se preparavam, para proceder à apresentação a registo da acção n.º 239/93 referida na alínea D) é que tomaram conhecimento de que a Sr.ª A, através da sua mandatária, Sr.ª Maria Angélica de Sales da Silva Gonçalves, Dona Jeca, havia alienado o terreno n.º [XXXXX(1)] à B, ora 2ª ré através da escritura especificada em C). (resposta ao 21º quesito)
   Com o intuito de se colocar numa situação de impossibilidade de cumprimento. (resposta ao 22º quesito)
   Sabendo inclusive que os autores, já tinham compromissos quanto a esses terrenos. (resposta ao 23º quesito)
   Actuando em conluio com a B, ora 2ª ré. (resposta ao 24º quesito)
   A vendedora, A, ora 1ª ré e a 2ª ré, B, no mesmo dia 16 de Julho de 1993, (dia da outorga da escritura referida na alínea C), pagaram o imposto sucessório devido pela transmissão a favor daquela vendedora e a sisa devida pela transmissão efectuada. (resposta ao 25º quesito)
   Logo no dia imediato ao da escritura referida na alínea D) (17 de Julho de 1993) se apressaram a proceder à apresentação a registo da compra e venda realizada. (resposta ao 26º quesito)
   A 2ª ré, B, tinha conhecimento de que à data em que foi celebrada a escritura de compra e venda estava já pendente a acção de execução específica (n.º 239/93) destinada a obter a salvaguarda do direito dos autores. (resposta ao 28º quesito)
   E em conluio com a A, celebraram a referida compra e venda. (resposta ao 29º quesito)
   Pretendendo frustrar a procedência da acção de execução específica (n.º 239/93). (resposta ao 30º quesito)
   Provado apenas enganando e prejudicando os autores, tirando daí proveito. (resposta ao 31º quesito)
   Houve pagamento de qualquer quantia a título de preço. (resposta ao 32º quesito)
   Com o seu comportamento as rés já provocaram, e arriscam-se a causar futuramente aos autores, danos patrimoniais e morais. (resposta ao 35º quesito)
   No custear e sustentar os diversos processos judiciais em que se viram forçosamente envolvidos. (resposta ao 36º quesito)
   No risco de se verem forçados a incumprir os compromissos que assumiram para com terceiros relativamente aos terrenos aqui em causa. (resposta ao 37º quesito)
   No risco de verem posto em causa o seu bom nome como comerciantes e homens de negócios em Macau. (resposta ao 38º quesito)
   Na dor e preocupação que todas estas situações lhes causa. (resposta ao 39º quesito)
   A 2ª ré não sabe se foi a 1ª ré quem pagou o imposto sucessório devido pela herança de seu falecido marido ou quando é que tal pagamento teve lugar nem alguma vez foi chamada a esse assunto. (resposta ao 42º quesito)
   Por outro lado, liquidou a sisa devida pela compra do prédio n.º [XXXXX(1)], por si, sem intervenção da 1ª ré, A, ou da procuradora desta, Maria Angélica. (resposta ao 43º quesito)
   O impresso respectivo foi isoladamente assinado por um dos seus representantes legais dias antes da escritura e deixado no escritório onde esta última seria outorgada, não mais voltando à mão do subscritor ou de qualquer outro funcionário da 2ª ré. (resposta ao 44º quesito)
   A única intervenção subsequente da 2ª ré no cumprimento da obrigação deste imposto foi a emissão de um cheque para pagamento da sisa, em valor que lhe foi comunicado do referido escritório, tendo o dito cheque ali sido entregue. (resposta ao 45º quesito)
   As rés queriam vender e comprar o prédio. (resposta ao 52º quesito)
   O pagamento do imposto sucessório foi um acto seu. (resposta ao 54º quesito)
   O Pagamento da sisa foi um acto da 2ª ré B. (resposta ao 55º quesito)
   Provado apenas que o próprio impresso da sisa foi assinado pela sua procuradora dias antes e pelos representantes da 2ª ré B. (resposta ao 57º quesito)
   A acção de execução específica fora proposta em 04.06.1993. (resposta ao 60º quesito)”
   
   1.2 Foram levantadas, em termos idênticos, várias questões pelas recorrentes, a saber:
- Fundamentos em oposição com a decisão
- Excesso de pronúncia
- Violação do caso julgado formado pelo acórdão do recurso n.° 309
- Abuso do direito
- Sanção da nulidade da venda
- Quantificação dos danos morais
- Liquidação dos danos patrimoniais
   Além disso, a recorrente A suscitou ainda o problema de violação do caso julgado formado pelo acórdão do recurso n.° 595.
   
   Uma vez que não é objecto dos presentes recursos a parte do acórdão recorrido em que se declara nula a sentença do Tribunal Judicial de Base por omissão de pronúncia, essa parte transitou em julgado, tornando-se intocável.
   
   2.1 Fundamentos em oposição com a decisão
   Na parte relativa à declaração da nulidade do contrato de compra e venda em causa, as recorrentes alegaram que a motivação do acórdão recorrido está em contradição com o decidido, o que constitui nulidade prevista no art.° 571.°, n.° 1, al. c) do Código de Processo Civil de 1999 (CPC).
   Sustentando que a motivação do acórdão recorrido cita doutrina que admite, mas não considera obrigatória, a sanção de nulidade para o negócio celebrado com abuso do direito, reconhece que a nulidade no caso concreto dos autos não pode fazer renascer o contrato-promessa e alude a que a sanção do abuso do direito não deve ser sempre a mesma, dependendo das circunstâncias do caso, mas decide, a final, pela nulidade.
   
   A oposição entre os fundamentos e a decisão é uma das causas de nulidade da sentença prevista no art.° 668.°, n.° 1, al. c) do Código de Processo Civil de 1961 (CPC de 1961, aplicável aos presentes autos por força do art.° 2.°, n.° 2 do Decreto-Lei n.° 55/99/M), disposição correspondente ao art.° 571.°, n.° 1, al. c) do CPC.
   Esta causa de nulidade da sentença, como um vício real no raciocínio do autor da sentença, verifica-se quando os fundamentos invocados pelo tribunal conduzirem logicamente a uma conclusão oposta ou, pelo menos, diferente daquela que consta da decisão.1
   Conforme o acórdão do Tribunal de Segunda Instância, objecto do presente recurso, o tribunal recorrido procura saber, em primeiro lugar, se o contrato de compra e venda celebrado entre as rés é ou não um acto abusivo. Do factos provados o tribunal recorrido entende que resulta clara e manifestamente que as rés, no seu exercício do direito ou liberdade de contratar, excedem os limites impostos pela boa fé e conclui pela existência do abuso do direito cometido pelas rés.
   Em segundo lugar, foi apreciada a consequência do abuso do direito e considera que deve ser nulo o acto praticado, com a citação dos dois autores que opinam no sentido de que o abuso do direito pode dar lugar à nulidade. Seguidamente, entende que o autor do acto abusivo deve indemnizar os danos patrimoniais e não patrimoniais causados a terceiros.
   As recorrentes fundamentam a oposição na sua discordância sobre a decisão do tribunal recorrido, com uma suposição da correspondência entre a declaração da nulidade da compra e venda e a hipotética renovação do direito dos autores de obter a execução específica do contrato-promessa, fazendo a interpretação distorcida da exposição do acórdão ora em apreço ao afirmar que os fundamentos do acórdão consistem no “afastamento da nulidade como consequência do abuso do direito, por se revelar inútil, e busca de soluções de compensação para os autores adequadas ao caso concreto.” (alegações n.° 7)
   A consideração do tribunal recorrido constante da fundamentação está em perfeita sintonia com a decisão final, pois foi decretada a nulidade do contrato de compra e venda em causa e as rés condenadas a indemnizar os autores pelos danos patrimoniais e não patrimoniais. O maior âmbito da consequência do abuso do direito preconizado em abstracto pela doutrina referido no acórdão recorrido não justifica, no mínimo, a verificação da oposição invocada.
   Improcedem os recursos das recorrentes esse fundamento.
   
   2.2 Excesso de pronúncia da questão de simulação
   As recorrentes entendem que o tribunal recorrido está inibido de voltar a apreciar a questão de simulação arguida pelos autores, ora recorridos, uma vez que a simulação foi julgada improcedente na primeira instância e os autores conformaram com essa decisão. Por ter pronunciado sobre a questão da simulação, o acórdão recorrido contém um excesso de pronúncia que constitui nulidade prevista no art.° 571.° n.° 1, al. d) do CPC.
   
   De facto, os autores alegaram na petição inicial da presente acção declarativa, nomeadamente nos artigos 41° a 47°, que o contrato de compra e venda celebrado em 16 de Julho de 1993 era nulo por simulação, entre outras causas, e pediram a declaração da nulidade desse contrato. A sentença de primeira instância decidiu que não havia simulação e, por consequente, o negócio era válido. Posteriormente, no recurso interposto para o Tribunal de Segunda Instância, os autores alegaram como fundamento a falta de apreciação, pelo tribunal de primeira instância, de outras causas conducentes à nulidade do contrato.
   O excesso de pronúncia suscitado pelas rés corresponde ao previsto no art.° 668.°, n.° 1, al. d) do CPC de 1961. Em princípio, a nulidade só pode ser invocada pelo interessado na observância da formalidade ou na repetição ou eliminação do acto (art.° 203.°, n.° 1 do CPC de 1961).
   Nos presentes autos, a simulação do contrato foi alegada pelos autores, ora recorridos e, quer no Tribunal Judicial de Base, quer no Tribunal de Segunda Instância, foi sempre decidido contra os autores. Isto é, a decisão do acórdão ora recorrido é favorável às recorrentes.
   Assim, o interesse das recorrentes é contrário à eliminação do acto questionado, ou seja, à nulidade do acórdão recorrido, pelo que as recorrentes não têm legitimidade para suscitar a nulidade da sentença por excesso de pronúncia da questão de simulação.
   Improcedem os recursos com base no excesso de pronúncia.
   
2.3 Violação do caso julgado formado pelo acórdão proferido no processo n.° 309 do então Tribunal Superior de Justiça
   Para os recorrentes, a decisão tomada no acórdão datado de 4 de Outubro de 1995 do processo n.° 309 do então Tribunal Superior de Justiça, respeitante ao processo de acção ordinária n.° 239/93-1° do antigo Tribunal de Competência Genérica, tem efeito de caso julgado sobre a presente acção por ter julgado não provada e improcedente a alegação de abuso do direito e violação de ordem pública e a alegação de nulidade, por essas razões, da compra e venda celebrada entre as rés e haver identidade de sujeitos, pedidos e causas de pedir nos dois processos.
   
   O caso julgado é um dos efeitos mais importantes da sentença. Adquirida a força do caso julgado, a sentença torna-se imodificável, salvo nos casos de recursos extraordinários. Por outro lado, o caso julgado constitui uma excepção, através da qual, se pretende evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (art.° 497.°, n.° 2 do CPC de 1961).
   O caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário (n.° 1 do referido artigo).
   Considera-se repetida uma causa quando se verifica, cumulativamente, a identidade relativa aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
   Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
   Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
   Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico (art.° 498.° do CPC de 1961).
   
   Na acção declarativa n.° 239/93-1°, origem do recurso n.° 309, os autores, mesmos dos presentes autos, pediram a execução específica do contrato-promessa contra a ré A, também ré nos presentes autos, e subsidiariamente a condenação da ré no pagamento do dobro do sinal aos autores, com fundamento no incumprimento do contrato-promessa por parte da ré celebrado em 4 de Novembro de 1991. O pedido principal foi julgado improcedente e o pedido subsidiário procedente. No recurso n.° 309, foi negado provimento aos recursos interpostos pelas ambas as partes e confirmada a sentença recorrida.
   Os presentes autos têm por origem a acção declarativa n.° 470/93-2° que os mesmos autores moveram contra a referida ré e mais a B, pedindo a declaração da nulidade da compra e venda celebrada em 16 de Julho de 1993 entre as rés e a condenação das mesmas em indemnizar os autores dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes dessa nulidade com fundamento na verificação de simulação, abuso do direito e ofensa à ordem pública e bons costumes naquela venda.
   
   Assim, em relação à recorrente A, há identidade física de sujeitos nestas duas acções, ao contrário do que se passa quanto à 2ª ré dos presentes autos, a B. É certo que, como afirmam as recorrentes, “a 2ª ré assume nesta acção a mesma qualidade jurídica que a 1ª ré, ... está agora perante a questão da nulidade do contrato como a 1ª ré se encontrou no processo n.° 309.”, mas esta consideração só vale, como dizem, para equiparar as posições processuais das rés no âmbito do presente processo, sem poder deduzir daí, de modo nenhum, a posição da 2ª ré no processo n.° 309. Neste os autores moveram apenas contra a ré A e, do ponto de vista das pretensões dos autores, a B só poderia assumir o papel de terceiro interessado. Por isso, não há identidade de sujeitos em relação a esta recorrente.
   
   Relativamente aos pedidos dos dois processos, já não se verifica a necessária identidade quanto a ambas as recorrentes. Na acção declarativa n.° 239/93-1° pede-se a execução específica do contrato-promessa e subsidiariamente a indemnização através da restituição do sinal em dobro, e nos presentes autos a declaração da nulidade da compra e venda e a consequente indemnização por essa nulidade.
   É evidente que as duas pretensões não correspondem aos mesmos efeitos jurídicos. Bem decidiu no acórdão proferido no recurso sob o n.° 595 dos presentes autos: a pretensão dos autores neste processo perderia a utilidade “se com ela se visasse obter apenas uma indemnização da ré A ou a declaração de nulidade do contrato de compra e venda para através dela se conseguir a renovação do pedido de execução específica do contrato-promessa, julgado improcedente na acção n.° 239/93.”
   Portanto, no presente processo, os autores pretendem não só a declaração da nulidade da compra e venda celebrada entre as rés, mas também a indemnização por causa desta nulidade, mais ainda agora contra as duas rés.
   Se sobre a restrita parte da declaração de nulidade da compra e venda em relação à ré A pode discutir se há alguma similitude com os efeitos da execução específica do contrato-promessa contra a mesma ré noutro processo, já são bem diferentes os pedidos nos dois processos na parte respeitante aos pedidos de indemnização por danos causados pela declaração da nulidade da compra e venda. Por isso, não há identidade de pedidos nos dois processos.
   
   Bem notaram as recorrentes ao afirmar que, no recurso n.° 309, o tribunal julgou não provada e improcedente a alegação de abuso do direito e violação de ordem pública e a alegação de nulidade da compra e venda.
   Estas alegações foram os fundamentos apresentados pelos autores para sustentar o seu recurso da sentença final de primeira instância proferida na acção declarativa n.° 239/93-1° com base nos quais o tribunal de recurso procedeu à sua apreciação e decidiu a procedibilidade do recurso.
   O exame das questões levantadas nas alegações pelo tribunal de recurso constitui apenas a fundamentação do acórdão. No entanto, a eficácia do caso julgado cobre apenas a própria decisão constante da parte final da sentença (art.°s 671.°, n.° 1; 96.°, n.° 2 e 659.°, n.° 2 do CPC de 1961). Isto é, a força do caso julgado não se estende aos fundamentos da sentença, que no corpo desta se situam entre o pedido e a decisão final (n.° 1 e 2 do referido art.° 659.°).2
   São improcedentes os recursos com fundamento na violação do caso julgado formado pelo acórdão do recurso n.° 309.
   
2.4 Violação do caso julgado formado pelo acórdão proferido no processo n.° 595 do então Tribunal Superior de Justiça
   A recorrente A suscitou ainda outra violação do caso julgado resultado do acórdão, proferido em 25 de Junho de 1997 no processo n.° 595, sobre o recurso do saneador-sentença proferido a fls. 191 a 192v dos presentes autos em que se julgou os autores parte ilegítima e absolveu as rés da instância.
   A recorrente fundamenta a questão sobretudo numa afirmação do referido acórdão em que declarou que o decidido na acção n.° 239/93 faz caso julgado contra a pretensão de condenar a mesma recorrente ao pagamento de qualquer indemnização no presente processo.
   
   Tal como acima foi referido, a excepção do caso julgado destina-se a evitar a discussão de uma nova questão idêntica. No acórdão proferido no recurso n.° 595 dos presentes autos, a questão apreciada pelo tribunal foi a legitimidade dos autores. Esta questão não foi mais levantada, e muito menos nos recursos de que resulta o presente acórdão recorrido.
   De facto, a força do caso julgado abrange apenas a própria decisão final da sentença, mas já não as considerações do tribunal que fundamentam a decisão. Embora no acórdão do recurso n.° 595 foi considerado o âmbito do pedido dos autores para verificar a legitimidade destes, o próprio tribunal não deixou de reconhecer que se tratava de questão de mérito. De qualquer modo, como aquele acórdão decidiu apenas a situação processual dos autores, as considerações sobre os aspectos de mérito das pretensões dos mesmos, que não é a decisão em si, não são dotadas da força do caso julgado capaz de limitar o poder decisório do tribunal agora recorrido.
   Improcede o recurso da recorrente A com fundamento na violação do caso julgado formado pelo acórdão do recurso n.° 595..
   
   2.5 Abuso do direito
   As recorrentes sustentam a inexistência do abuso do direito, alegando que tinham interesse económico óbvio na compra e venda e não se provou que quisessem enganar ou prejudicar os autores, e não era possível fazer o confronto entre os prejuízos sofridos pelos autores e os benefícios obtidos pelas rés.
   
   Nos presentes autos, os autores, ora recorridos, pedem que seja declarado nulo o contrato de compra e venda celebrado entre as rés, ora recorrentes, em 16 de Julho de 1993 por ser simulado, corresponder ao exercício abusivo do direito de contratar e contrariar a ordem pública e os bons costumes, e que sejam indemnizados dos danos causados pelo comportamento ilícito das rés.
   O Tribunal de Segunda Instância considera, no seu acórdão proferido no recurso da sentença final de primeira instância, que as rés excedem os limites impostos pela boa fé ao exercer o direito de contratar, concluindo pela existência do abuso do direito cometido pelas mesmas. Com base nisso, foi decretada a nulidade do referido contrato de compra e venda e condenadas as rés a indemnizar os autores dos danos que foram resultado directo e necessário dos actos abusivos de ambas as rés.
   
   2.5.1 Quanto à recorrente A
   Na presente acção, está em causa o contrato de compra e venda celebrado pelas rés que tem por objecto um dos imóveis que constituíam, por seu lado, objecto do contrato-promessa concluído antes entre os autores e a 1ª ré. Assim, são diferentes as posições jurídicas das rés face aos autores.
   A recorrente A, 1ª ré na presente acção, é uma das partes do contrato-promessa. Devido ao seu acto de venda de um dos imóveis objecto deste contrato-promessa à 2ª ré, para além de ter manifestado a sua firme intenção de não cumprir a promessa, torna-se definitivamente incumprido o contrato. Perante esta situação, são aplicáveis, para as partes, os regimes relacionados com o sinal e a execução específica previstos nos art.°s 442.° e 830.° do Código Civil de 1966 (CC de 1966, aplicável aos presentes autos segundo o art.° 6.°, n.° 2 do Decreto-Lei n.° 39/99/M) e 3.° do Decreto-Lei n.° 20/88/M.
   Deste modo, a fim de ver o contrato-promessa integralmente cumprido, adquirindo os respectivos imóveis, os autores pediram a execução específica na acção n.° 239/93-1° e subsidiariamente a restituição do sinal em dobro. Só que, não foi estipulado o efeito real ao contrato-promessa e o registo da acção foi posterior ao da compra e venda. A final, foi julgado improcedente o pedido principal mas procedente o pedido subsidiário de indemnização ao abrigo do art.° 442.°, n.° 2 do CC de 1966.
   
   Dispõem os n.°s 2 e 3 do art.° 442.°:
   “2. Se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente o direito de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele o direito de exigir o dobro do que houver prestado.
   3. Salvo estipulação em contrário, a existência de sinal impede os contraentes de exigirem qualquer outra indemnização pelo não cumprimento, além da fixada no número anterior.”
   Das referidas normas resultam que, por causa do incumprimento do contrato-promessa, a única indemnização que o promitente-comprador pode ter direito é a restituição do sinal em dobro, pois o n.° 3 do art.° 442.° exclui a outra indemnização por aquela razão.
   “Desta norma resulta que o sinal funciona como fixação antecipada da indemnização devida, em caso de não cumprimento, pelo que a parte não poderá reclamar outras indemnizações, para além das previstas nesta disposição. Admite-se, porém, estipulação em contrário. Neste caso, a convenção de sinal funcionará como um limite mínimo da indemnização, que não impedirá a parte lesada de reclamar uma quantia superior se demonstrar que sofreu danos mais elevados.”3
   A perda do sinal ou a sua restituição em dobro constituem imperativamente os efeitos do não cumprimento de contrato-promessa, como fixação da indemnização pelos danos. “Isto não quer dizer, evidentemente, que não possam existir outras indemnizações que se não fundem no não-cumprimento. Se o promitente comprador, por exemplo, entrar na posse da coisa e fizer nela benfeitorias, pode ter direito a ser indemnizado delas, nos termos gerais.”4
   Portanto, não há, para o promitente vendedor que não cumpre o contrato-promessa, outra consequência do incumprimento, seja a título de indemnização, seja a título de sanção por hipotético abuso do direito. Isso corresponde ao exemplo dado por Antunes Varela ao explicitar o carácter relativo das obrigações: “se D tiver prometido vender certa coisa a C, não gozando a promessa de eficácia real, e mais tarde vender a coisa a E, C não poderá reagir contra esta alienação, tendo de contentar-se com o direito (pessoal) de indemnização contra o promitente faltoso.”5
   
   No presente processo, os autores pedem a indemnização pelos danos patrimoniais e morais já provocados e os que se arriscam a causar a eles pelo comportamento ilícito das rés, nomeadamente:
   - no custear e sustentar os diversos processos judiciais em que se viram forçadamente envolvidos;
   - no risco de se verem forçados a incumprir os compromissos que assumiram para com terceiros relativamente aos terrenos aqui em causa;
   - no risco de verem posto em causa o seu bom nome como comerciantes e homens de negócios em Macau;
   - na dor e preocupação que todas estas situações lhe causam.
   Com base nestes prejuízos, a indemnização pelos danos que os autores pedem na presente acção mais não é uma indemnização pelo incumprimento do contrato-promessa, embora encapotada na veste de abuso do direito pela venda do imóvel a terceiro.
   Uma vez obtida a condenação da 1ª ré, promitente vendedor, a entregar o dobro do sinal, por causa do incumprimento do contrato-promessa, não se pode atribuir mais indemnização aos autores, promitentes compradores, agora a título do abuso do direito pela venda do imóvel a terceiro, já que foi esta que consubstanciou o não cumprimento do contrato-promessa, sob pena de dupla valorização por uma mesma conduta ilícita (bis in idem).
   Em consequência, deve considerar procedente o recurso da recorrente A e ficam prejudicadas as restantes questões não apreciadas.
   
   2.5.2 Quanto à recorrente B
   Na relação jurídica entre os autores e a 1ª ré resultada do contrato-promessa, a 2ª ré, a B aparece como um terceiro que contribuiu também para o incumprimento da 1ª ré por ser comprador do imóvel objecto do contrato-promessa.
   Torna-se necessário apurar se o terceiro que contribuiu para frustrar a satisfação do direito do credor, neste caso, o promitente comprador, deve ser responsabilizado civilmente pelo incumprimento do promitente vendedor, a título de cumplicidade com este. Tem sido discutido o problema da responsabilidade do terceiro na doutrina e há fundamentalmente duas correntes.
   Tradicionalmente, entende-se que não admite, em princípio, o efeito externo das obrigações. No caso de incumprimento das obrigações, mesmo com a concorrência de culpa por parte do terceiro, só o devedor incorre em responsabilidade para com o credor. Mas se a conduta do terceiro se mostra particularmente chocante e censurável, este pode responder perante o credor por ter agido com abuso do direito. Portanto, a responsabilidade do terceiro só pode ser constituída com base no abuso do direito, quando se verificarem os respectivos pressupostos.6
   Diversamente, há autores que defendem a doutrina do efeito externo dos direitos de crédito, considerando que estes também produzem efeitos erga omnes em determinada medida e o regime do desrespeito do direito de crédito por terceiros reconduz-se ao art.° 483.° do CC de 1966 que dispõe sobre a responsabilidade extracontratual. Entende-se que esta norma deve ser aplicável a todos os direitos subjectivos, como o são os direitos de crédito.7
   No presente processo, a causa de pedir não é a violação do direito emergente do contrato-promessa dos promitentes compradores por parte do terceiro, pelo que não cabe apreciar aqui se o terceiro, a 2ª ré a B, incorreu em responsabilidade civil prevista no art.° 483.° do CC de 1966, a título de cumplicidade na violação do contrato-promessa pela 1ª ré.
   Ao invés, a causa de pedir da presente acção consiste no abuso do direito na venda posterior de um dos dois imóveis que integravam o contrato-promessa. Resta apurar se se verificam os pressupostos do abuso do direito previstos no art.° 334.° do CC de 1966.
   
   Prescreve a norma: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
   
   Para Ferrer Correia, sem excluir a relevância de eficácia externa dos direitos de crédito, admite-se o abuso do direito sempre que o terceiro tivesse conhecimento da existência da obrigação.8
   Não reconhecendo efeito externo da obrigação, Antunes Varela entende que só através doutros institutos, como o abuso do direito, será possível reagir contra a conduta reprovável do terceiro. Então, para que haja abuso do direito por parte do terceiro que viola o direito do credor, “não basta que ele tenha conhecimento desse direito, é preciso que, ao exercer a sua liberdade de contratar, ele exceda manifestamente, por força do disposto no art.° 334.°, os limites impostos pela boa fé.”9
   Mais razoável será a posição ecléctica sustentada por Vaz Serra. Segundo este autor, para responsabilizar o terceiro por abuso do direito, não basta a cooperação consciente na violação do contrato. Até pode não haver abuso se o terceiro, movido com interesse próprio, tenha apenas a consciência da existência da obrigação e de causar prejuízo a outra parte. “É perfeitamente admissível que esse terceiro tenha um interesse legítimo em comprar, talvez mais legítimo até que o do promitente-comprador.”10
   Considera que, para haver abuso do direito, não se afigura bastar, porém, que o terceiro conheça, ao contratar, a existência do direito do credor, sendo preciso que tenha agido manifestamente contra a boa fé ou os bons costumes, isto é, que o seu procedimento seja acompanhado de circunstâncias especiais que manifestamente ofendam a consciência social, que denunciem a sua particular censurabilidade, como se o terceiro compra só para prejudicar o credor, e não porque a coisa lhe convém, ou quando o terceiro sabe que o outro contraente não indemnizará o credor lesado com o contrato.11
   Com esta posição, por um lado, atende-se aos fins visados pelo instituto, de ultrapassagem dos tradicionais quadros e molduras formalistas do conceitualismo, impregnando a Ordem Jurídica dos valores jurídicos de carácter social. Mas por outro, reconhece-se que a abertura demasiada do instituto, tal como o reconhecimento ilimitado da eficácia externa das obrigações, é susceptível de entravar significativamente o tráfico e a segurança jurídicos.
   
   Voltando ao caso da recorrente B. Para apreciar a intenção desta, torna-se necessário analisar a matéria de facto provada, especialmente os seguintes:
   “A 2ª ré, B, tinha conhecimento de que à data em que foi celebrada a escritura de compra e venda estava já pendente a acção de execução específica (n.º 239/93) destinada a obter a salvaguarda do direito dos autores. (resposta ao 28º quesito)
   E em conluio com a A, celebraram a referida compra e venda. (resposta ao 29º quesito)
   Pretendendo frustrar a procedência da acção de execução específica (n.º 239/93). (resposta ao 30º quesito)
   Provado apenas enganando e prejudicando os autores, tirando daí proveito. (resposta ao 31º quesito)
   Com o seu comportamento as rés já provocaram, e arriscam-se a causar futuramente aos autores, danos patrimoniais e morais. (resposta ao 35º quesito)
   No custear e sustentar os diversos processos judiciais em que se viram forçosamente envolvidos. (resposta ao 36º quesito)
   No risco de se verem forçados a incumprir os compromissos que assumiram para com terceiros relativamente aos terrenos aqui em causa. (resposta ao 37º quesito)
   No risco de verem posto em causa o seu bom nome como comerciantes e homens de negócios em Macau. (resposta ao 38º quesito)
   Na dor e preocupação que todas estas situações lhes causa. (resposta ao 39º quesito)
   As rés queriam vender e comprar o prédio. (resposta ao 52º quesito)”
   
   De acordo com esta matéria fáctica apurada, a 2ª ré sabia que, à data em que foi celebrada a compra e venda do imóvel, objecto do contrato-promessa, estava já pendente a acção de execução específica destinada a satisfazer os direitos dos promitentes compradores. Mesmo assim, actuou em conluio com a 1ª ré, comprando o imóvel, a fim de frustrar a procedência da acção de execução específica, enganando e prejudicando os autores, tirando daí proveito.
   É certo que a 1ª ré actuou com a intenção de se colocar na situação de impossibilidade de cumprimento e sabe que os autores já tinham compromissos quanto aos imóveis. Mas da parte da 2ª ré não ficaram provados esses elementos subjectivos nem se aponta que ela tinha conhecimento destes. Mesmo ficou provado que parte dos danos reside no risco de os autores se verem forçados a incumprir os compromissos que assumiram para com terceiros sobre os imóveis, isso não significa que os autores tenham de suportar necessariamente qualquer indemnização por quebra de tais compromissos nem temos outros factos que apontam para este sentido.
   Daí não resulta da matéria provada que a 2ª ré tinha a intenção, seja principal, seja até única, de prejudicar os promitentes compradores, ao contrário do que se conclui no acórdão recorrido. Na realidade, fica assente que a 2ª ré tinha conhecimento da existência do contrato-promessa e da pendência da respectiva acção de execução específica e estava consciente de que os promitentes compradores seriam prejudicados com a venda do imóvel. Mas o que é muito diferente de a 2ª ré ter actuado com a intenção de os prejudicar.
   Ao Tribunal de Segunda Instância é lícito, depois de fixada a matéria de facto provada, fazer a sua interpretação e esclarecimento, bem como extrair as ilações ou conclusões que operem o desenvolvimento dos factos, desde que não os altere. Se estas conclusões não correspondem ao desenvolvimento lógico dos factos provados, o presente Tribunal pode censurar a decisão do Tribunal de Segunda Instância na parte que infrinja o apontado limite.12
   
   Para apreciar se a actuação da 2ª ré consiste abuso do direito, é de atender ainda os requisitos previstos no art.° 334.° do CC de 1966: excesso manifesto dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. No entanto, a aplicabilidade dos requisitos do abuso do direito ao presente caso deve ser equacionado com base na especificidade deste.
   Em primeiro lugar, cabe apreciar se a conduta da 2ª ré excede manifestamente os limites impostos pela boa fé. Como se sabe, o conceito da boa fé tem um conteúdo bastante rico e deve-se procurar o seu sentido de acordo com as normas legais em causa. No referido preceito, a boa fé tem o sentido objectivo que “remete para princípios, regras, ditames ou limites por ela comunicados, concretizando-se em regras de actuação.”13
   Como regras de actuação, a boa fé pressupõe, em princípio, a existência da relação obrigacional. É bem evidente esta característica nos institutos civis que se relacionam com a boa fé objectiva, para além do abuso do direito: a culpa na formação dos contratos (art.° 227.°, n.° 1), a integração dos negócios (art.° 239.°), a modificação dos contratos por alteração das circunstâncias (art.° 437.°, n.° 1) e a complexidade das obrigações (art.° 762.°, n.° 2, todos do CC de 1966).14
   A boa fé deve ser aplicada no âmbito limitado a situações de relacionamento específico entre os sujeitos. “É esse relacionamento específico que determina os deveres de lealdade e de informação a terceiro ou de terceiro, quando devam ocorrer.” “Para as pessoas não relacionadas, ou estranhas ao relacionar entre outros, está disponível a cláusula dos bons costumes.”15
   Para os sujeitos que não estão ligados por qualquer relação, não têm, em princípio, um dever de boa fé. Esta é diferente do dever de respeitar o direito alheio não fundado numa relação obrigacional. Não se pode exigir condutas positivas segundo os ditames da boa fé a um terceiro para com as pessoas com quem não mantém qualquer relação.
   No caso dos presentes autos, a 2ª ré aparece como o terceiro na relação constituída pelo contrato-promessa celebrado entre os autores e a 1ª ré. Ela só está com a 1ª ré na relação jurídica emergente da compra e venda realizada entre ambas. Por isso, não pode a 2ª ré ter violado qualquer dever de boa fé para com os autores.
   
   Quanto a bons costumes, entende-se por “um conjunto de regras de convivência que, num dado ambiente e em certo momento, as pessoas honestas e correctas aceitam comummente. Logo, o exercício de um direito apresenta-se contrário aos bons costumes quando tiver conotações de imoralidade ou de violação das normas elementares impostas pelo decoro social.”
   “Esse crivo de selecção (indicar, de entre os usos, quais os bons usos) terá de ser o dos valores preponderantes na colectividade, considerando-se, ainda, as concepções do círculo em que actua o agente (por ex., profissional), desde que não incompatíveis com a referida consciência social dominante. É para atenuar as situações de dúvida que a lei exige, insiste-se, uma violação ostensiva, que o exercício do direito exceda manifestamente tais limites.”16
   No caso em apreço, a 2ª ré comprou o imóvel ao promitente vendedor, estava consciente de que, com este acto, os promitentes compradores não iriam conseguir recuperar o imóvel com a acção de execução específica já pendente. Só com esta conduta e na ausência da intenção de prejudicar os promitentes compradores, mesmo com a consciência dos danos causados a estes, não se pode concluir com a necessária segurança que a 2ª ré violou manifestamente os ditames dos bons costumes.
   Na realidade, não é qualquer cumplicidade do terceiro no incumprimento da obrigação, conduzindo à ruptura da promessa do promitente vendedor, pode constituir a violação manifesta dos bons costumes. Até quem deve cumprir integralmente a obrigação é o próprio devedor. No caso da venda do imóvel objecto do contrato-promessa para o terceiro, é necessária a conjugação de vontades do promitente vendedor e o terceiro comprador. Este aparece apenas como um estranho na relação de promessa, sem domínio absoluto na ruptura da promessa, razão pela qual se imputa como mero cúmplice no incumprimento.
   Nos negócios jurídicos-civis, reina o princípio de autonomia privada. Dentro dos limites fixados por lei, as pessoas podem gerir livremente o seu próprio interesse. O contrato deve ser pontualmente cumprido. A falta culposa ao cumprimento faz incorrer o devedor na responsabilidade dos danos causados ao credor (art.° 798.° do CC de 1966). A lei estabelece diversos mecanismos para que as obrigações sejam cumpridas e os faltosos responsabilizados.
   Está em causa, no presente caso, um contrato-promessa. Para a sua consistência, a lei dá a possibilidade de atribuir eficácia real (art.° 413.° do CC de 1966), de execução específica (art.°s 830.° do CC de 1966 e 3.° da Lei n.° 20/88/M) e o registo da respectiva acção, para além do regime do sinal (art.° 442.° do CC de 1966). Infelizmente, os promitentes-compradores, autores dos presentes autos, deixaram ao lado meios importantes para a sua defesa: não atribuíram eficácia real ao contrato-promessa, registaram tardiamente a acção de execução específica, quase dois meses após a propositura da acção (já depois do registo da compra e venda celebrada entre as rés).
   Não parece razoável alargar demasiado o âmbito da protecção do credor em comparação com os meios legais que já se encontram ao seu dispor, sob pena de desviar do pensamento legislativo. Portanto, não é qualquer incumprimento da obrigação, mesma na forma de cumplicidade, que pode consubstanciar em violação manifesta dos bons costumes. Por outro lado, não há factos provados que apontam para a existência da intenção de prejudicar os promitentes compradores por parte da 2ª ré, mas antes, ficou provado que as rés queriam mesmo concluir este negócio, actuando para os seus interesses, embora egoístas. Portanto, não se mostra que a actuação da 2ª ré sejam manifestamente contrário à consciência social dominante.
   
   Por último, também não parece que a conduta da 2ª ré excede manifestamente os limites impostos pelo fim social ou económico do direito exercido.
   O acto praticado pela 2ª ré e que se imputa abusivo resulta da liberdade de contratar, e não propriamente um direito subjectivo. “Cabe entender a palavra ‘direito’ utilizada pelo art.° 334.° num sentido amplo, abrangendo, não apenas os verdadeiros e próprios direitos subjectivos, mas ainda outras situações ou figuras que não recebam essa qualificação técnica, como sejam os meros poderes, liberdades ou faculdades directamente resultantes da capacidade jurídica (ex.: a faculdade de contratar).”17
   Se não considerar que a 2ª ré tinha um direito de contratar, mas antes só uma liberdade de contratar, entende-se que, mesmo assim, cabe no conceito do “direito” em sentido lato previsto na referida norma.
   Sendo a situação da 2ª ré abrangida pelo instituto de abuso do direito, está em condição indagar se houve excesso manifesto dos limites informados pelo fim social ou económico do direito exercido.
   “Cada direito possui uma função instrumental própria, que justifica a sua atribuição ao titular e define o seu exercício.” “O titular de um direito deve exercê-lo nos limites do seu fim social e económico.”18
   No fundo, a 2ª ré celebrou o contrato de compra e venda com a 1ª ré, visando os interesses económicos daí decorrentes. Não se conhece nenhum desvio da funcionalidade da compra e venda do imóvel realizada, pois até as rés queriam mesmo celebrar o negócio. Mesmo que o negócio tem como consequência necessária a frustração dos direitos à promessa dos autores, não deixa, por isso, de valer como um negócio imobiliário.
   É certo que, para outras ordens de valores, nomeadamente a do moral, é questionável a idoneidade da actuação da 2ª ré, mas segundo o quadro legal acima analisado, não se conclui que esta possa ser responsabilizada no âmbito do abuso do direito.
   Fica, assim, procedente o recurso interposto pela 2ª recorrente nessa parte, o que se torna prejudicado o conhecimento das restantes questões não apreciadas.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em conceder provimento aos recursos, revogar o acórdão do Tribunal de Segunda Instância com excepção da parte que declara nula a sentença do Tribunal Judicial de Base, julgar improcedentes os pedidos da acção dos autores e absolver as rés do pedido.
   Custas neste Tribunal de Última Instância pelos recorridos e, no Tribunal de Segunda Instância, na proporção de 3/4 para os ali recorrentes e 1/4 para as ali recorridas.



           Juízes:Chu Kin (relator)
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

   Aos 19 de Julho de 2002.
   
1 Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra Editora, 1984, p. 141; Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, p. 689 e 690; Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., LEX, Lisboa, 1997, p. 224.
2 Cfr. Antunes Varela e outros, ob. cit., p. 714; Castro Mendes, Direito Processual Civil, vol. II, AAFDL, 1987, p. 776.
3 Cfr. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2002, p. 229.
4 Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora, 1987, p.418.
5 V. Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. I, 8ª ed., Almedina, Coimbra, 1994, p. 173.
6 Vários autores pronunciam neste sentido, como Vaz Serra, Responsabilidade de terceiros no não-cumprimento de obrigações, in BMJ, n.° 85, p. 345 a 360; Antunes Varela, ob. Cit., p. 181 a 188; Ferrer Correia, Estudos Jurídicos – II, Direito Civil e Comercial, Direito Criminal, Atlântida Editora, Coimbra, 1969, p. P. 33 a 51; Jorge Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, vol. I, Almedina, Coimbra, 1990, p. 41 a 47; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 8ª ed., Almedina, Coimbra, 2000, p. 79 a 83.
7 V. António Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, vol. I, AAFDL, 1980, p. 251 a 283; Rita Amaral Cabral, A tutela delitual do direito de crédito, em Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Manuel Gomes da Silva, Edição da FDUL, Coimbra Editora, 2001, p. 1042.
8 V. Ferrer Correia, ob. cit., p. 45 a 51.
9 V. Antunes Varela, ob. cit., p. 183 a 185.
10 Cfr. Vaz Serra, Abuso do direito (em matéria de responsabilidade civil), in BMJ, n.° 85, p. 316; Pereira Coelho, Obrigações, compilado por Abílio Neto e Miguel Pupo Correia, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 1964, p. 79.
11 Cfr. Vaz Serra, Abuso do direito ..., p. 315 a 317 e anotações a jurisprudência in RLJ, ano 98, n.° 3287, p. 30 e ano 103, n.° 3434, p. 463.
12 No acórdão do TUI de 31/10/2001, do processo n.° 13/2001, pronunciou-se no mesmo sentido.
13 Cfr. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, vol. I, tomo I, Almedina, Coimbra, 1999, p. 180 a 184.
14 Cfr. Menezes Cordeiro, ob. cit., p. 182.
15 Cfr. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Almedina, Coimbra, 1997, p. 647 e 648.
16 Cfr. Almeida Costa, ob. cit., p. 76 e 77.
17 Cfr. Almeida Costa, ob. cit., p. 75. No mesmo sentido, Vaz Serra, anotações a jurisprudência in RLJ, ano 103, n.° 3434, p. 462, nota 3.
18 Cfr. Almeida Costa, ob. cit., p. 77.
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Processo n.° 2 / 2002 43