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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso penal
N.° 16 / 2003

Recorrente: A






1. Relatório
O recorrente A e outros três arguidos foram julgados no âmbito do processo comum colectivo n.° PCC-071-01-4 do Tribunal Judicial de Base. Por acórdão deste tribunal de 28 de Janeiro de 2003, o recorrente foi condenado pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelos art.°s 8.°, n.° 1, 10.°, al. g) e 18.°, n.° 2 do Decreto-Lei n.° 5/91/M na pena de 6 anos e 6 meses de prisão e na multa de MOP$15.000,00, com 150 dias de prisão subsidiária.
   Não conformado com o acórdão de primeira instância, o arguido recorreu para o Tribunal de Segunda Instância. Pelos seus acórdãos de 15 de Maio de 2003 e de 12 de Junho seguinte proferidos no processo n.° 73/2003, foi indeferido o pedido de renovação de prova e julgado improcedente o recurso.
   Vem agora o arguido recorrer para o Tribunal de Última Instância, formulando as seguintes conclusões da motivação:
“1. São do conhecimento oficioso pelo Tribunal de Recurso os vícios enunciados no art.º 400.º, n.º 2 do Código de Processo Penal em vigor.
   2. O acórdão recorrido proferido pelo Tribunal de Segunda Instância que negou provimento ao recurso interposto do acórdão condenatório de 1ª instância encontra-se eivado dos vícios de violação de lei, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação e erro notório na apreciação da prova.
   3. Nos termos do acórdão recorrido que se impugna, o recorrente vê mantida a sua condenação pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, em co-autoria material e na forma consumada, agravado nos termos da al. g) do art.º 10.º do Decreto-Lei n.º 5/91/M, de 28 de Janeiro, com fundamento em concurso de duas ou mais pessoas.
   4. Da factualidade tida por provada pela decisão condenatória de primeira instância não emergem elementos probatórios bastantes que apontam o conluio, envolvimento, comparticipação ou concurso do co-arguido B, por forma a fundamentar a efectiva verificação da circunstância qualificativa consagrada na al. g) do citado art.º 10.º do Decreto-Lei n.º 5/91/M, ou seja, o concurso de duas ou mais pessoas no empreendimento criminoso.
   5. A intervenção do recorrente A no negócio e entrega pelo B dos 15 comprimidos a C é inóqua e totalmente insipiente.
   6. Assim é que pelas 02H00 da madrugada do dia 23 de Março de 2001 o co-arguido B chegou à entrada do edifício onde residia a arguida C, conduzindo o ciclomotor com a matrícula CM-XXXXX e foi detido pela Polícia Judiciária que na sua posse encontrou 15 comprimidos que segundo exame laboratorial efectuado foram identificados como contendo metanfetamina, substância proibida e abrangida pela Tabela II-B do Decreto-Lei n.º 5/91/M, de 28 de Janeiro.
   7. Afigura-se-nos apropriada a perspectiva de enquadramento do envolvimento na figura da cumplicidade no crime praticado pelo co-arguido B.
   8. Ora, não se procedendo dessa forma, o Tribunal de Segunda Instância em seu acórdão que negou provimento ao recurso interposto do acórdão condenatório, nesta parte, violou a lei, as normas contidas nos art.ºs 20.º, 25.º e 26.º do Código Penal em vigor em Macau.
   9. Por outro lado, o ciclomotor CM-XXXXX utilizado pelo arguido B é da pertença da D, indivíduo esse que em momento processual anterior do inquérito foi detido, interrogado e preso preventivamente pelo período de alguns meses. Posteriormente, foi solto e não foi acusado. A inquirição desta testemunha sobre as circunstâncias do segundo telefonema, a entrega, a iniciativa do pedido de empréstimo do ciclomotor seria importante para o cabal esclarecimento dos factos. A sua não inquirição importa o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
   10. Na perspectiva do recorrente, no que crê é corroborado pela documentação da prova produzida em audiência de julgamento – nela se incluindo os interrogatórios aos arguidos – houve confissão integral e sem reservas da sua parte. O Tribunal Colectivo de primeira instância entende que houve apenas confissão parcial, o que não se aceita nem corresponde a verdade.
   11. Havendo nos autos elementos probatórios que assim o comprovam por si só e/ou conjugados com regras da experiência comum – as fitas magnéticas onde se acham registadas as provas produzidas em audiência fazem parte dos autos, nos termos do disposto no art.º 401.º, n.º 2, al. c) do CPPM, o acórdão condenatório, nesta parte, encontra-se eivado do vício de erro notório na apreciação da prova.
   12. O recorrente prestou auxílio concreto na recolha de provas decisivas para a identificação e captura do 2º arguido E, razão pela qual é merecedor da atenuação livre da pena.
   13. A atenuação assim consagrada pelo legislador consubstancia uma atenuação livre, aquém da isenção da pena, porém, bem mais generosa do que a atenuação especial em termos desenhados pelos art.ºs 66.º e 67.º do Código Penal em vigor.
   14. Atento a todo o quadro de circunstancialismo factício envolvente, a postura do ora recorrente no que tange à colaboração prestada à Polícia bem como a sua confissão integral, seria justo e adequado a sua condenação numa pena não superior a 5 anos de prisão.
   15. Nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 65.º do Código Penal, na sentença são expressamente referidos os fundamentos da determinação da pena.
   16. Ainda nos termos do citado art.º 65.º do Código Penal, na determinação concreta da pena, o Tribunal deve atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente, as condições pessoais do arguido.
   17. Ora uma das circunstâncias pessoais do recorrente que o acórdão não refere expressamente ter tido em consideração tem a ver com a sua tenra idade de 18 anos à data da prática dos factos que devia ter sido valorada e relevada para efeitos de atenuação livre da pena aplicada.
   18. Aplicando correctamente o quadro legal de circunstancialismo favorável, ao recorrente nunca poderia ser aplicada uma pena de prisão de 6 anos e 6 meses, antes uma pena mais leniente, não superior a 5 anos de prisão. Não o fazendo, o acórdão recorrido, nesta parte, ao manter a medida concreta da pena aplicada pelo Tribunal de primeira instância, violou o disposto no art.º 65.º do Código Penal em vigor e art.º 18.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 5/91/M, de 28 de Janeiro.
   19. Por fim, e pelo exposto na motivação, deve ser ordenada a renovação da prova nos termos do disposto no art.º 415.º do CPP.”
   Pedindo que seja julgado procedente o recurso e a final ser ordenada a anulação do julgamento bem como a sua repetição ou a alteração da medida concreta da pena aplicada ao recorrente.
   Por requerimento de 6 de Agosto de 2003 a fls. 1066, o recorrente veio informar que “a renovação da prova” não faz parte do pedido do presente recurso.
   
   
   A Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de Segunda Instância emitiu a resposta com as seguintes conclusões:
“1. Nos termos do art.º 415.º do CPPM, compete ao Tribunal Superior de Justiça (que deve ser interpretado como Tribunal de Segunda Instância conforme o disposto no n.º 3 do Anexo IV da Lei de Reunificação) admitir ou recusar a renovação da prova e “a decisão que admitir ou recusar a renovação da prova é definitiva” (n.º 2 do art.º 415.º).
   2. A decisão proferida pelo Tribunal de Segunda Instância sobre o pedido de renovação da prova é irrecorrível e, consequentemente, não se pode voltar a colocar a questão no âmbito do recurso interposto para o Tribunal de Última Instância e pretende que este Tribunal venha a conhecê-lo, pelo que deve ser indeferido, liminarmente, o pedido de renovação da prova formulado pelo recorrente.
   3. Com a invocação do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto, fundamentada na não inquirição como testemunha de D, proprietário do ciclomotor CM-XXXXX, notoriamente o recorrente está a confundir a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, um dos fundamentos de recurso, com a mera insuficiência da prova para a matéria de facto provada, que é objecto da livre apreciação do Tribunal e é insindicável.
   4. Face aos factos provados constantes do Acórdão recorrido, não restam dúvidas sobre a sua suficiência para condenar o ora recorrente pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelos art.ºs 8.º, n.º 1 e 10.º, al. g) do DL n.º 5/91/M, tendo em conta, por um lado, a quantidade do produto estupefaciente contida nos 82 comprimidos que a arguida C obteve junto do ora recorrente (67 comprimidos) e que o recorrente entregou ao arguido B para vender à arguida C (15 comprimidos) e por outro, a provada conjugação de esforços entre o ora recorrente e o arguido B na actividade do tráfico de estupefacientes, nomeadamente na venda de 15 comprimidos à arguida C.
   5. Não tem razão o recorrente ao recorrer à figura da cumplicidade no crime, uma vez que ficou provado que o recorrente teve participação directa na prática dos factos ilícitos, executando por si e conjuntamente com o outro arguido os factos que integram o crime pelo qual foi condenado, entregando os comprimidos ao arguido B que por sua vez se deslocou à residência da arguida C para transacção.
   6. Não se verifica também a contradição insanável da fundamentação invocado pelo recorrente, por não ter suporte nos factos provados, uma vez que fica provado que o recorrente deixou de estudar em Fukien, e não como foi referido pelo recorrente que apenas voltou um mês antes de sua detenção, o que não entra em contradição com o outro facto provado de que, pelo menos desde finais do ano 2000, o recorrente começou a dedicar-se ao tráfico de produtos estupefacientes em Macau.
   7. Com a invocação do vício do erro notório na apreciação da prova, o que o recorrente apresenta é apenas a sua versão sobre os factos que, no seu entendimento, o Tribunal devia dar como provados.
   8. Consta da acta de audiência de julgamento (fls. 570v dos autos) que, depois do interrogatório do recorrente, o Tribunal considerou haver discrepâncias entre as declarações prestadas nos autos e as oras prestadas, pelo que o recorrente “ao abrigo do art.º 338.º, n.º 1, al. b) do CPP, foi confrontado com as declarações prestadas no TIC fls. 111 a 113”.
   9. Tal ocorrência é, para nós, bastante para confirmar que a confissão do recorrente é apenas parcial, caso contrário, o Tribunal não teria de recorrer aos outros elementos constantes dos autos.
   10. A pena concreta aplicada ao recorrente foi encontrada porque o Tribunal decidiu usar da faculdade conferida por lei da atenuação especial da pena, face à colaboração relevante que o recorrente prestou aos agentes policiais para a descoberta das actividades criminosas praticadas pelo arguido E, cumprindo assim o disposto no art.º 18.º, n.º 2 do DL n.º 5/91/M.
   11. O facto de ter apenas 18 anos à data de prática dos factos nem sequer constitui qualquer das circunstâncias referidas no art.º 66.º do CPM para efeito de atenuação especial da pena.
   12. Por outro lado, não se pode, tão só com base nisto, pretender a aplicação de uma pena “mais leniente”, esquecendo completamente das outras circunstâncias que devem ser consideradas para efeito da determinação da pena.
   13. O Tribunal não ignorou os critérios referidos no art.º 65.º, ciente que deve atender a toas as circunstâncias verificadas nos autos, incluindo as condições pessoais do recorrente.
   14. Não se pode esquecer que são prementes as exigências de prevenção criminal, quer geral quer especial.
   15. Tudo ponderado, é de crer que o Tribunal recorrido aplicou correctamente a pena concreta e não se vê nenhuma censura a fazer.
   Termos em que se deve negar provimento ao recurso.”
   
   
   Nesta instância, o Ministério Público mantém-se a posição assumida na resposta à motivação.
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   Antes de mais, é de rectificar oficiosamente, nos termos do art.° 361.°, n.° 1, al. b) do Código de Processo Penal, o nome da 1ª arguida constante do acórdão da primeira instância proferido em 28 de Janeiro de 2003 a fls. 890 a 900, onde se lê “C1” deve ler-se “C”.
   
   1. O Tribunal Judicial de Base e o Tribunal de Segunda Instância consideram provados os seguintes factos (já com o nome da 1ª arguida rectificado):
“1. Desde data não apurada (pelo menos desde finais do ano 2000), que os arguidos C, E, A e B começaram a dedicar-se ao tráfico de produtos estupefacientes em Macau.
2. Os arguidos acima referidos traficavam principalmente substâncias conhecidas por “Comprimidos Ecstasy”.
   3. Durante as actividades de tráfico de produtos estupefacientes, chegou a ser usado o telemóvel n.º XXXXXXX.
   4. No dia 22 de Março de 2001, cerca das 21H30, agentes da Polícia Judiciária deslocaram-se à residência da arguida C, sita na [Endereço(1)], onde efectuaram uma busca, tendo a arguida C retirado, de iniciativa própria, debaixo de uma cama 67 comprimidos e entregue aos agentes da Polícia Judiciária.
   5. Após exame laboratorial, dos 67 comprimidos acima referidos 60 foram identificados como contendo metanfetamina, substância proibida abrangida pela Tabela II-B do Decreto-Lei n.º 5/91/M.
   6. A arguida C obteve os produtos estupefacientes acima referidos no dia 22 de Março, pouco depois das 9H00, no interior do Bar, sito no [Endereço(2)], junto do arguido A, para fornecer a terceiros.
   7. A arguida C, depois de ter sido detida, colaborou com a Polícia e de acordo com o programado por esta, a arguida telefonou para o arguido A, alegando necessitar de mais produtos estupefacientes. O arguido A respondeu dizendo que iria transaccionar com a mesma momentos depois.
   8. Pouco depois, a arguida voltou a ligar para o telemóvel do arguido A (n.º XXXXXXX), atendido no entanto pelo arguido B. Tendo o arguido B referido nessa altura ao telefone que se deslocaria momentos depois à residência da arguida C para efectuar a transacção.
   9. No dia 23 de Março de 2001, pouco depois de 2H00, o arguido B chegou à entrada do edifício onde residia a arguida C, conduzindo o ciclomotor com a matrícula CM-XXXXX, tendo sido detido por agentes da Polícia Judiciária.
   10. No local, os agentes da Polícia Judiciária encontraram na posse do arguido B 15 comprimidos.
   11. Após exame laboratorial, dos 15 comprimidos acima referidos foram identificados como contendo metanfetamina, substância proibida abrangida pela Tabela II-B do Decreto-Lei n.º 5/91/M.
   12. O produto estupefaciente acima referido foi entregue momentos antes pelo arguido A ao arguido B, para vender à arguida C. E por sua vez, o arguido A obteve o acima referido produto estupefaciente junto do arguido E.
   13. O arguido B depois de ter sido detido mostrou-se disposto a colaborar com a Polícia.
   14. No dia 23 de Março de 2001, cerca das 4H30, agentes da Polícia, segundo informações fornecidas pelo arguido B, detiveram o arguido A.
   15. O arguido A depois de ter sido detido mostrou-se disposto a colaborar com a Polícia, tendo revelado as actividades de tráfico de produtos estupefacientes praticado pelo arguido E.
   16. No dia 23 de Março de 2001, cerca das 18H30, agentes da Polícia Judiciária, segundo informações fornecidas pelo arguido A, detiveram o arguido E, à entrada do Restaurante da [Endereço(3)].
   17. No local, os agentes da Polícia Judiciária encontraram na posse do arguido E 70 comprimidos.
   18. Os agentes da Polícia Judiciária, depois de terem detido o arguido E, deslocaram-se de seguida à sua residência, sita na [Endereço(4)], onde efectuaram uma busca, tendo estes encontrado no seu interior 2 comprimidos.
   19. Após exame laboratorial, dos 72 comprimidos pelos acima referidos agentes da Polícia na posse do arguido E, 37 foram identificados como contendo metanfetamina, substância proibida abrangida pela Tabela II-B do Decreto-Lei n.º 5/91/M e 35 foram identificados como contendo MDMA, substância proibida abrangida pela Tabela II-A do mesmo Decreto-Lei.
   20. O arguido E obteve os produtos estupefacientes acima referidos junto de um indivíduo cuja identificação desconhece, para fornecer a terceiros.
   21. Os arguidos C, E, A e B tinham conhecimento das características e qualidade dos acima referidos produtos estupefacientes.
   22. Os arguidos agiram livre, voluntária e conscientemente.
   23. Os arguidos não tinham qualquer autorização legal para assim procederem.
   24. Bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por Lei.
   25. Quando a arguida C praticou os factos acima descritos era funcionária pública, guarda da PMF.
   
   Dando-se por reproduzidos, para todos os efeitos legais, as respectivas conclusões que constam de fls. 817 e 823 dos exames laboratoriais de fls. 814/824.
   
   A 1ª arguida C confessou os factos e colaborou com as autoridades, contribuindo para a detenção de outros arguidos.
   Tinha a mãe a seu cargo.
   O 2º arguido E confessou parcialmente os factos.
   Estava desempregado.
   O 3º arguido A tinha deixado de estudar em Fukien.
   Confessou parcialmente os factos e colaborou com as autoridades na investigação, ajudando na detenção de outro arguido.
   O 4º arguido B trabalhava numa mercearia e tem um filho de 5 anos de idade.
   Confessou parcialmente os factos e colaborou com as autoridades na investigação, ajudando na detenção de outro arguido.
   Os arguidos mostram-se arrependidos.
   Nada consta em desabono dos seus CRCs junto aos autos.
   
   Não se provaram os restantes factos da douta acusação e que não estejam em conformidade com a factualidade acima assente.
   
   
   2. Questões a apreciar
   O recorrente imputa ao acórdão recorrido os vícios de erro sobre matéria de direito em relação à qualificação do crime e à medida concreta da pena; a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação e o erro notório na apreciação da prova.
   
   2.1 Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
   Tendo especialmente em conta os factos provados n.° 8 e 9, o recorrente entende que a inquirição da testemunha D, a quem pertence o ciclomotor de matrícula CM-XXXXX, sobre as circunstâncias do segundo telefonema, a entrega, a iniciativa do pedido de empréstimo do ciclomotor seria importante para o cabal esclarecimento dos factos e a sua não inquirição importa o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
   
   Tal como tem sido decidido nos acórdãos deste tribunal, nomeadamente os proferidos em 22 de Novembro de 2000 no processo n.° 17/2000 e em 20 de Março de 2002 no processo n.° 3/2002, o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada pressupõe já fixada a matéria provada e não provada e releva no momento da integração dos factos provados num determinado crime. O que está em causa é o próprio processo do enquadramento jurídico dos factos provados.
   O vício aparece com a falta de facto, dentro do objecto do processo, necessário para o preenchimento do tipo do crime, mas não com a falta de produção de uma determinada prova.
   A necessidade da produção de uma prova relaciona-se com a formação da convicção do tribunal, consubstanciando, antes, na questão da suficiência ou não da prova, insusceptível de integrar no âmbito do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
   A suficiência ou insuficiência da prova produzida está situada no âmbito da livre convicção do tribunal, insindicável pelo tribunal no recurso.
   Portanto, a falta da inquirição da testemunha D nunca conduz à verificação do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
   Improcede o recurso nessa parte.
   
   
   2.2 Erro notório na apreciação da prova
   O recorrente entende que no acórdão de primeira instância, ao dar como provado que o recorrente “confessou parcialmente os factos”, cometeu o erro notório na apreciação da prova. Para o recorrente, a sua confissão foi integral e sem reservas, e não parcial.
   
   Há erro notório na apreciação da prova quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável, ou viola as regras sobre o valor da prova vinculada, da experiência ou as legis artis. E tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.
   O recorrente sustenta a verificação do presente vício na afirmação de que, da prova produzida em audiência de julgamento, incluindo o interrogatório a ele próprio, resulta que a sua confissão foi integral e sem reserva. Todavia, o recorrente não apresentou em que termos o tribunal de primeira instância cometeu erro notório na apreciação da prova. Realmente, o recorrente apenas deu a sua versão sobre determinada realidade fáctica, o âmbito da confissão em concreto, diferente do que resulta da convicção do tribunal colectivo, insusceptível de ser questionada em via de recurso. Não se pode confundir a diferença entre a convicção do tribunal e do arguido e o erro na apreciação da prova.
   O recurso nessa parte tem de improceder.
   
   
   2.3 Contradição insanável da fundamentação
   O recorrente alega que o facto provado “Desde data não apurada (pelo menos desde finais do ano 2000), que os arguidos C, E, A e B começaram a dedicar-se ao tráfico de produtos estupefacientes em Macau.” entra em contradição com um outro facto não afastado e constante dos autos, de que o próprio recorrente estaria anteriormente a estudar na Província de Fukien no interior da China e que apenas voltou para Macau pouco mais de um mês antes da data da sua captura ocorrida em 23 de Março de 2001.
   
   Sobre esta problemática temporal constam da matéria provada apenas o facto acima referido relativamente ao início das actividades ilícitas dos arguidos e que o ora recorrente tinha deixado de estudar em Fukien. É manifesto que não há qualquer contradição entre estes dois factos provados.
   A contradição insanável da fundamentação está relacionada com a matéria de facto fixada, provada e não provada. O facto que o recorrente menciona nas alegações do recurso de que apenas voltou para Macau pouco mais de um mês antes da sua captura não consta da matéria apurada, pelo que é insustentável invocar, nos termos em que se propôs, a contradição da fundamentação.
   Essa parte do recurso também não pode proceder.
   
   
   2.4 Qualificação jurídica do crime
   Relativamente à integração dos factos provados no crime agravado de tráfico de drogas, o recorrente insurge contra a verificação da circunstância qualificativa prevista no art.° 10.°, al. g) do Decreto-Lei n.° 5/91/M, ou seja, o concurso de duas ou mais pessoas na realização do tráfico de drogas. O recorrente salienta que a sua intervenção na entrega dos 15 comprimidos pelo arguido B à arguida C consubstancia apenas a cumplicidade no crime cometido por aquele arguido.
   
   Antes de mais, é de recordar especialmente os seguintes factos provados:
   “7. A arguida C, depois de ter sido detida, colaborou com a Polícia e de acordo com o programado por esta, a arguida telefonou para o arguido A, alegando necessitar de mais produtos estupefacientes. O arguido A respondeu dizendo que iria transaccionar com a mesma momentos depois.
   8. Pouco depois, a arguida voltou a ligar para o telemóvel do arguido A (n.º XXXXXXX), atendido no entanto pelo arguido B. Tendo o arguido B referido nessa altura ao telefone que se deslocaria momentos depois à residência da arguida C para efectuar a transacção.
   9. No dia 23 de Março de 2001, pouco depois de 2H00, o arguido B chegou à entrada do edifício onde residia a arguida C, conduzindo o ciclomotor com a matrícula CM-XXXXX, tendo sido detido por agentes da Polícia Judiciária.
   10. No local, os agentes da Polícia Judiciária encontraram na posse do arguido B 15 comprimidos.
   11. Após exame laboratorial, dos 15 comprimidos acima referidos foram identificados como contendo metanfetamina, substância proibida abrangida pela Tabela II-B do Decreto-Lei n.º 5/91/M.
   12. O produto estupefaciente acima referido foi entregue momentos antes pelo arguido A ao arguido B, para vender à arguida C. E por sua vez, o arguido A obteve o acima referido produto estupefaciente junto do arguido E.”
   
   A questão relaciona sobretudo com a intervenção do recorrente na entrega dos 15 comprimidos de metanfetamina pelo arguido B à arguida C. O ora recorrente alega que disse apenas que ia transaccionar com a arguida mais tarde mas não foi concretizado. O seu envolvimento na entrega é subordinado, acessório e não indispensável à actuação criminosa do arguido B.
   Só que, ao sustentar a sua posição, o recorrente esquiva-se de uma circunstância importante e constante da matéria de facto provada: tais 15 comprimidos de metanfetamina foram entregues momentos antes pelo próprio recorrente ao arguido B para vender à arguida C.
   
   A pena do crime de tráfico de droga previsto no art.° 8.° do Decreto-Lei n.° 5/91/M pode ser agravada quando tiver havido concurso de duas ou mais pessoas nos termos do art.° 10.°, al. g) do mesmo diploma.
   Segundo os factos provados, nomeadamente os acima transcritos, foi o recorrente que respondeu ao pedido de transacção de produtos estupefacientes feito pela arguida C e entregou os comprimidos de metanfetamina ao arguido B para este vender à arguida. Este arguido, na posse de tais comprimidos, deslocou-se à residência daquela arguida para efectuar a transacção e foi detido por agentes da Polícia Judiciária à entrada do edifício da residência da arguida.
   Dúvidas não existem de que o ora recorrente e o arguido B actuaram em conjunto para realizar a venda dos comprimidos de metanfetamina à arguida C, desde aceder ao pedido de transacção da arguida até à entrega dos comprimidos. É irrelevante a ausência do recorrente no segundo telefonema referido no facto provado n.° 8, pois este aspecto não tem virtualidade para infirmar a actuação conjunta do recorrente e do arguido B, antes constitui apenas um passo no desenrolar de todas as actividades conducentes à transacção de drogas com a arguida.
   
   Por outro lado, também não é justificável que a conduta do recorrente integra apenas a figura de cúmplice no crime praticado pelo arguido B. Os actos praticados pelo recorrente não são mero auxílio material ou moral ao cometimento do crime de tráfico de drogas pelo arguido B. Antes pelo contrário, ambos os arguidos colaboraram mutuamente no recebimento do pedido de transacção de produtos estupefacientes, na combinação do tempo e local para a entrega dos comprimidos e na preparação destes.
   Está correctamente qualificada a conduta do recorrente no crime de tráfico de drogas previsto e punido pelo art.° 8.°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 5/91/M e agravado pelo art.° 10.°, al. g) do mesmo diploma.
   Assim, não há erro sobre matéria de direito na parte respeitante à qualificação dos factos provados no crime agravado de tráfico de drogas.
   
   
   2.5 Medida concreta da pena
   O recorrente alega que nunca poderia ser condenado na pena que lhe foi aplicada por ter prestado auxílio concreto na recolha de provas decisivas na captura do arguido E e ter 18 anos de idade na prática dos factos, foram assim violados os dispostos nos art.°s 65.° do Código Penal e 18.°, n.° 2 do Decreto-Lei n.° 5/91/M.
   
   Dispõe assim o n.° 2 do art.° 18.° do Decreto-Lei n.° 5/91/M:
   “2. No caso de prática dos crimes previstos nos artigos 8.º, 9.º e 15.º, se o agente abandonar voluntariamente a sua actividade, afastar ou fizer diminuir consideravelmente o perigo por ela causado, auxiliar concretamente na recolha de provas decisivas para a identificação ou captura dos outros responsáveis, especialmente no caso de grupos, organizações ou associações, poderá a pena ser-lhe livremente atenuada ou decretar-se mesmo a isenção.”
   O recorrente entende que o auxílio prestado à polícia para capturar o arguido E merece a atenuação da pena prevista na norma acima citada.
   No entanto, dúvidas aqui suscitam-se.
   
   O que está em causa é saber se a conduta do recorrente cabe na previsão de “auxiliar concretamente na recolha de provas decisivas para a identificação ou captura dos outros responsáveis, especialmente no caso de grupos, organizações ou associações”, só com a satisfação desta condição poderá beneficiar da atenuação livre da pena e até da isenção da mesma.
   Sobre a questão pronunciou este Tribunal de Última Instância nos dois recentes acórdãos dos processos n.°s 21/2003 e 22/2003, ambos proferidos em 8 de Outubro de 2003:
   “O benefício ... (previsto no n.° 2 do art.° 18.° do Decreto-Lei n.° 5/91/M) aplica-se sobretudo àquele que delata às autoridades, auxiliando na recolha de provas decisivas para a identificação ou captura dos outros responsáveis, especialmente no caso de grupos, organizações ou associações que se dediquem ao tráfico de estupefacientes.
   A atenuação especial ou isenção da pena a que se refere o n.º 2 do art.° 18.º do Decreto-Lei n.º 5/91/M pode aplicar-se àquele que permita a identificação ou captura de simples indivíduos (um ou mais) que, pela sua particular danosidade social – designadamente, por aliciarem menores, pela dimensão do tráfico, pela duração da actividade criminosa, pelos meios utilizados, pela sua sofisticação - justifique a concessão do benefício ao delator.”
   Como bem frisou naqueles acórdãos, “o mecanismo de atenuação e isenção da pena prevista no art.° 18.°, n.° 2 do Decreto-Lei n.º 5/91/M deve, em princípio, ser de utilização excepcional, não é qualquer delação pode merecer a concessão do benefício. Não faz sentido favorecer o delator que entrega um traficante da sua dimensão, sobretudo quando esta não é considerável.”
   
   É de notar que os crimes previstos nos art.°s 8.º, 9.º e 15.º do Decreto-Lei n.° 5/91/M que estão abrangidos pelo regime de atenuação e isenção da pena, são de gravidade notória, pois se tratam dos crimes de tráfico de drogas e de associação criminosa com o mesmo fim e a lei comina com penas pesadas.
   Não é o auxílio às autoridades na identificação ou captura de um qualquer traficante de drogas que pode justificar a redução ou isenção da pena, sem prejuízo de considerar a colaboração com as autoridades como uma circunstância atenuante simples na graduação da pena.
   De facto, nos termos do n.° 2 do art.° 18.° do mesmo diploma que consagra o benefício na aplicação da pena concreta, exige-se que o objecto do auxílio constitua provas decisivas para a identificação ou captura dos outros responsáveis do tráfico de drogas, especialmente de estrutura organizativa.
   Assim, à concessão da atenuação da pena, e particularmente a sua isenção, tem de corresponder contributo significativo na repressão do tráfico de drogas, nomeadamente na descoberta e no desmantelamento de organizações ou redes que têm por fim traficar drogas.
   Isto é, tal contributo do agente de crimes de tráfico de drogas deve ser tão grande que, de alguma maneira, repara largamente o mal causado pelas próprias actividades criminosas, pois só assim se pode justificar a atenuação e até isenção de penas muitas vezes pesadas, por exemplo, de oito a doze anos de prisão para o crime de tráfico de drogas previsto no art.° 8.°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 5/91/M. Certamente não é o caso quando o agente indica às autoridades o seu fornecedor sem qualquer relevo estrutural.
   
   Segundo os factos provados, o contributo do recorrente consiste em fornecer informações à polícia para capturar o traficante de produtos estupefacientes E e foram encontrados na sua posse e em casa deste no total 72 comprimidos contendo metanfetamina e MDMA respectivamente.
   Ora, a dimensão apurada da actividade do tráfico de droga do condenado E é reduzida, longe de ser comparável com um responsável de grupos ou organizações de tráfico de drogas.
   Portanto, o recorrente não devia, pois não podia, beneficiar do regime de atenuação ou isenção de pena previstas no art.° 18.°, n.° 2 do Decreto-Lei n.° 5/91/M. Contudo, por impeditivo de proibição de reformatio in pejus previsto no art.° 399.°, n.° 1 do Código de Processo Penal, a atenuação da pena entretanto operada pelo tribunal de primeira instância não será retirada.
   
   Por outro lado, o recorrente alega ainda que no acórdão do tribunal colectivo não se referiu a sua idade de 18 anos no momento da prática do crime para ser considerada na atenuação livre da pena aplicada.
   É evidente a falta da razão deste argumento do recorrente.
   Em primeiro lugar, a idade não é requisito da concessão da atenuação ou isenção de pena acima referida. Em segundo, só a idade menos de 18 anos ao tempo da prática do facto é susceptível de constituir uma circunstância de atenuação especial da pena prevista no art.° 66.° do Código Penal, ainda não necessariamente. Por último, refere-se expressamente no acórdão de primeira instância que são atendidas as condições pessoais dos arguidos, nelas inclui certamente a idade dos mesmos.
   Pois não há fundamentos legais para reduzir ainda mais a pena imposta ao recorrente.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em:
- Rectificar o nome da 1ª arguida constante do acórdão da primeira instância proferido em 28 de Janeiro de 2003 a fls. 890 a 900, onde se lê “C1” deve ler-se “C”.
- Julgar improcedente o recurso.
   Custas pelo recorrente com a taxa de justiça fixada em 8 UC (quatro mil patacas).
   
   
   Aos 15 de Outubro de 2003.



           Juízes:Chu Kin (Relator)
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

Processo n.° 16 / 2003 24