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Processo n.º 533/2014 Data do acórdão: 2014-10-10 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– cúmulo jurídico das penas
– conhecimento superveniente do concurso
– pressuposto temporal
– art.º 72.º, n.º 1, do Código Penal
– art.º 71.º, n.º 1, do Código Penal

S U M Á R I O

1. Segundo o art.º 72.º, n.º 1, Código Penal (CP), respeitante ao conhecimento superveniente do concurso: se, depois de uma condenação transitada em julgado, mas antes de a respectiva pena estar cumprida, prescrita ou extinta, se provar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do art.º 71.º do mesmo Código.
2. Para que o regime da pena do concurso seja ainda aplicável aos casos em que o concurso só venha a ser conhecido supervenientemente, é necessário, para já, a título de pressuposto temporal, que o crime de que haja só agora conhecimento tenha sido praticado antes da condenação anteriormente proferida, de tal forma que esta deveria tê-lo tomado em conta, para efeito da pena conjunta, se dele tivesse tido conhecimento.
3. Por isso, o momento temporal decisivo para a determinação superveniente da pena de concurso em sede do art.o 72.o, n.o 1, do CP é o da prática do crime novo antes da anterior condenação, e não antes do trânsito em julgado desta condenação.
4. Mesmo que não se verifiquem todos os pressupostos do conhecimento superveniente do concurso, pode ter lugar a feitura do cúmulo jurídico exclusivamente à luz do art.o 71.o do CP.
5. O momento decisivo para a aplicabilidade da figura do cúmulo jurídico em sede regulada no art.o 71.o do CP é o trânsito em julgado da decisão condenatória, com a consequência de que a prática de novos crimes, posteriormente ao trânsito de uma determinada condenação, dará origem à aplicação de penas autonomizadas.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 533/2014
(Autos de recurso penal)
Arguido recorrente: A






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por despacho judicial exarado em 9 de Julho de 2014 a fl. 150 dos autos de Processo Sumário n.º CR3-13-0154-PSM do 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB) (subjacentes à presente lide recursória), foi determinada, ao contrário do promovido pelo Ministério Público, a não feitura do cúmulo jurídico da pena de seis meses de prisão aí aplicada ao arguido A por um crime de condução em estado de embriaguez com a pena de cinco meses de prisão imposta ao mesmo arguido por um mesmo tipo legal de crime no Processo Sumário n.º CR4-13-0115-PSM do 4.º Juízo Criminal do TJB.
Inconformado, veio recorrer o arguido para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), imputando àquele despacho a incorrecta aplicação do regime contido nos art.os 72.º e 71.º do Código Penal (CP) (por entender que “o Tribunal, verificados que estejam os respectivos requisitos previstos no art. 72.º do Código Penal, está vinculado por força da lei a proceder à operação jurisdicional de cúmulo jurídico a fim de determinar uma pena única na sequência do conhecimento superveniente de um concurso de crimes”), para pedir a revogação dessa decisão e a feitura do cúmulo jurídico das suas penas directamente por este TSI (cfr., em detalhes, o original da motivação de recurso, constante de fls. 176 a 182 dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso respondeu a Digna Delegada do Procurador (a fls. 191 a 193v dos autos), no sentido de procedência do recurso, à luz do art.º 71.º, n.º 1, do CP.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 237 a 238v), pugnando pelo não provimento do recurso, por entender não satisfazer a situação concreta do arguido todos os pressupostos da aplicação do regime do conhecimento superveniente do concurso, para além de suscitar a questão de saber se as regras da punição do concurso seriam aplicáveis à pena de prisão imposta por causa da prática da contravenção.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, fluem os seguintes elementos processuais, pertinentes à decisão:
1. Por sentença de 27 de Junho de 2013 (transitada em julgado em 19 de Fevereiro de 2014) do Processo Sumário n.º CR4-13-0115-PSM do 4.º Juízo Criminal do TJB, foi imposta ao arguido (ora recorrente) a pena de cinco meses de prisão (com inibição de condução por dois anos), pela comprovada prática, por ele, em 27 de Junho de 2013, de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 90.º, n.º 1, da Lei do Trânsito Rodoviário (LTR) (cfr. a certidão dessa sentença, a fls. 127 a 140 do presente processado recursório).
2. Por sentença de 30 de Agosto de 2013 (transitada em julgado em 30 de Junho de 2014) do Processo Sumário n.º CR3-13-0154-PSM do 3.º Juízo Criminal do TJB (subjacente à presente lide recursória), foi imposta ao arguido a pena de seis meses de prisão efectiva (com inibição de condução por dois anos), pela comprovada prática, por ele, em 29 de Agosto de 2013, de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 90.º, n.º 1, da LTR (cfr. o teor de fls. 53 a 57, 113 a 116v e 141 dos presentes autos correspondentes).
3. Por despacho exarado em 9 de Julho de 2014 pela M.ma Juíza dos subjacentes autos n.º CR3-13-0154-PSM, foi determinada, ao contrário do promovido pelo Ministério Público, a não feitura do cúmulo jurídico das duas penas de prisão acima identificadas (cfr. o teor de fl. 150 dos presentes autos).
4. Em 25 de Julho de 2014, o arguido interpôs recurso desse despacho judicial (cfr. o teor de fls. 173 e seguintes dos presentes autos).
5. A partir de 4 de Agosto de 2014, o arguido passou a ser desligado daquele Processo n.º CR4-13-0115-PSM, para passar a cumprir a pena de prisão dos subjacentes autos n.º CR3-13-0154-PSM (cfr. o mandado de desligamento junto a fl. 190 dos presentes autos).
6. Por sentença de 21 de Maio de 2014 (transitada em julgado em 11 de Agosto de 2014) do Processo Contravencional n.º CR3-13-0920-PCT do 3.º Juízo Criminal do TJB, foi imposta ao arguido a pena de três meses de prisão, pela comprovada prática, por ele, em 24 de Novembro de 2013, de uma contravenção especial p. e p. pelo art.º 95.º, n.º 2, da LTR, consistente na reincidência da condução sem estar habilitado (cfr. a certidão dessa sentença junta a fls. 252 a 258 dos presentes autos).
7. Em 4 de Setembro de 2014, o arguido veio pedir a este TSI a feitura directa do cúmulo jurídico das três penas de prisão acima referidas (cfr. o teor de fls. 205 e seguintes dos presentes autos).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Do teor da motivação do recurso, vê-se que o arguido sindicou da legalidade do despacho judicial recorrido, alegadamente violador do disposto nos art.o 72 e 71.º do CP no respeitante ao regime de conhecimento superveniente do concurso. Defende ele que para a sua situação concreta, deve ser feito o cúmulo jurídico das penas à luz desse regime vertido sobretudo no n.º 1 do art.º 72.º do CP, segundo o qual “Se, depois de uma condenação transitada em julgado, mas antes de a respectiva pena estar cumprida, prescrita ou extinta, se provar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior”.
Realiza, porém, este Tribunal ad quem, aliás tal como observou a Digna Procuradora-Adjunta no seu parecer emitido, que no caso concreto do recorrente (veja-se os dados processuais já descritos na parte II do presente acórdão), não pode haver lugar à determinação da pena única com fundamento no conhecimento superveniente do concurso de crimes, por seguintes razões:
– como o crime praticado em 29 de Agosto de 2013 (e em causa no ora subjacente Processo Sumário n.o CR3-13-0154-PSM) ocorreu posteriormente à condenação (em primeira instância, em 27 de Junho de 2013) do crime praticado em 27 de Junho de 2013 (e em causa no Processo Sumário n.o CR4-13-0115-PSM), esta condenação (de Junho de 2013) nunca o poderia ter tido em conta, para efeito de determinação da pena conjunta, se dele tivesse conhecimento;
– isto precisamente porque o momento temporal decisivo para a determinação superveniente da pena de concurso em sede do art.o 72.o, n.o 1, do CP é o da prática do crime novo (o crime novo no caso é o de 29 de Agosto de 2013) antes da anterior condenação (a anterior condenação in casu é a de Junho de 2013), e não antes do trânsito em julgado desta condenação;
– neste sentido, e a título de referência académica, pode referir-se à doutrina jurídica veiculada (inclusivamente a propósito do preceito legal materialmente homólogo ao disposto no n.º 1 do art.º 72.º do CP vigente em Macau) nas páginas 293 a 294 do livro Direito Penal Português Parte Geral II As Consequências Jurídicas do Crime, de JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Aequitas e Editorial Notícias, 1993 (segundo a qual para que o regime da pena do concurso seja ainda aplicável aos casos em que o concurso só venha a ser conhecido supervenientemente, é necessário, para já, a título de pressuposto temporal, que “o crime de que haja só agora conhecimento tenha sido praticado antes da condenação anteriormente proferida, de tal forma que esta deveria tê-lo tomado em conta, para efeito da pena conjunta, se dele tivesse tido conhecimento. Momento temporal decisivo para a questão de saber se o crime agora conhecido foi ou não anterior à condenação é o momento em que esta foi proferida – e em que o tribunal teria ainda podido condenar numa pena conjunta –, não o do seu trânsito em julgado”), e também ao entendimento jurisdicional exposto no Acórdão de 17 de Janeiro de 2002 do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, com a respectiva fundamentação jurídica, na sua parte relevante (como por exemplo, no seu ponto “5.7.”), transcrita na fundamentação jurídica do Acórdão n.o 212/2002 de 22 de Maio de 2002 do Processo n.º 243/02 do Tribunal Constitucional de Portugal (disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20020212.html?impressao=1), referido no ponto 3 da página 286 do livro Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (2.a edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2010), de autoria de PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE.
Apesar de dever improceder assim a tese, preconizada pelo recorrente, de conhecimento superveniente do concurso, já deverá ser feito o cúmulo jurídico, concreta e exclusivamente à luz do art.o 71.o do CP, da pena de prisão aplicada ao crime ocorrido em Agosto de 2013 no subjacente Processo n.o CR3-13-0154-PSM com a pena de prisão então imposta ao crime ocorrido em Junho de 2013 no Processo n.o CR4-13-0115-PSM (e sem prejuízo do âmbito e eficácia da norma do n.º 4 do mesmo artigo para as penas acessórias de inibição de condução automóvel inicialmente aplicadas nesses dois processos), porquanto aquele crime novo foi cometido antes do trânsito em julgado (em 19 de Fevereiro de 2014) da decisão condenatória (tomada em 27 de Junho de 2013) pelo primeiro crime (ocorrido em 27 de Junho de 2013).
É que o momento decisivo para a aplicabilidade da figura do cúmulo jurídico em sede regulada no art.o 71.o do CP é o trânsito em julgado da decisão condenatória, com a consequência de que a prática de novos crimes, posteriormente ao trânsito de uma determinada condenação, dará origem à aplicação de penas autonomizadas – neste sentido, na esteira nomeadamente da tese jurídica (aqui referenciada como doutrina jurídica) confirmada no aludido Acórdão do Tribunal Constitucional de Portugal, a respeito do preceito materialmente homólogo ao art.o 71.o, n.o 1, do CP vigente em Macau, norma jurídica do CP essa que dispõe que “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa única pena, sendo na determinação da pena considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.
Quanto ao pedido de 4 de Setembro de 2014 de feitura do cúmulo jurídico das suas três penas de prisão, já opina este Tribunal ad quem, mas apenas em tese jurídica falando (é que o objecto do presente recurso é apenas o despacho judicial recorrido), que:
– pela identidade de razões supra expostas, não poderia ter lugar a feitura desse pretendido cúmulo jurídico sob o instituto de conhecimento superveniente do concurso regulado no art.o 72.o, n.o 1, do CP, porque a contravenção especial praticada em Novembro de 2013 (em causa no Processo n.o CR3-13-0920-PCT) ocorreu não só depois da condenação (em primeira instância, em 30 de Agosto de 2013) do crime praticado em 29 de Agosto de 2013 (e em causa no ora subjacente Processo n.o CR3-13-0154-PSM), como também depois da condenação (em primeira instância, em 27 de Junho de 2013) do crime praticado em 27 de Junho de 2013 (então em causa no Processo n.o CR4-13-0115-PSM);
– mas já seria possível proceder ao cúmulo jurídico das três penas de prisão em questão nos termos propriamente dos n.os 1 e 2 do art.o 71.o do CP, ex vi também do art.o 124.o, n.o 1, do mesmo Código (e sem prejuízo da aplicabilidade do n.o 4 desse art.o 71.o às penas acessórias de inibição de condução automóvel então aplicadas nos dois anteriores processos penais), em virtude de que a contravenção especial foi perpetrada antes do trânsito em julgado da decisão condenatória por qualquer dos dois crimes.
Entretanto, cumpre frisar que o cúmulo jurídico das penas não pode ser feito directamente pelo presente Tribunal ad quem, sob pena da cassação, no caso concreto dos autos em desfavor do ora recorrente, de um grau de jurisdição relativamente à questão da justeza da pena única a sair da aplicação do art.o 71.o do CP (cfr. o art.o 390.o, n.o 1, alínea f), do Código de Processo Penal).
Em síntese, é de revogar somente o despacho judicial recorrido, ainda que com fundamentos diversos dos alegados pelo recorrente, devendo o Tribunal a quo tomar providência adequada com vista finalmente à feitura do cúmulo jurídico – em sede processual própria – das penas do arguido nos termos do art.o 71.o do Código Penal.
IV – DECISÃO
Face ao expendido, e em provimento parcial da pretensão formulada pelo arguido na motivação do recurso, acordam em revogar o despacho judicial recorrido, ainda que com fundamentação diversa da sustentada pelo arguido, devendo o Tribunal a quo adoptar providência adequada com vista finalmente à feitura do cúmulo jurídico, em sede processual própria, das penas do arguido nos termos do art.º 71.º do Código Penal.
Pagará o arguido a metade das custas do recurso e cinco UC de taxa de justiça.
Comunique ao Tribunal a quo, ao processo de execução da pena do arguido e ao Processo Contravencional n.º CR3-13-0920-PCT do Tribunal Judicial de Base.
Macau, 10 de Outubro de 2014.
_________________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
_________________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
_________________________
Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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