Processo n.º 34/2004. Recurso jurisdicional em matéria penal.
Recorrente: B e Ministério Público.
Recorrido: Os mesmos.
Assunto: Crime de tráfico de droga. Não determinação das quantidades de estupefaciente destinadas a consumo e a cedência. Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Data do Acórdão: 22 de Setembro de 2004.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Sam Hou Fai e Chu Kin.
SUMÁRIO:
I - Se da acusação consta que o agente destinava determinada quantidade de estupefaciente para consumo próprio e para cedência a terceiro e se qualifica o crime de tráfico como o previsto e punível pelo art. 8.º do Decreto-Lei n.º 5/91/M, o tribunal de julgamento deve tentar apurar quais as quantidades de estupefaciente para cada um dos fins.
II – Caso o tribunal de julgamento não tente apurar quais as quantidades de estupefaciente para cada um dos fins mencionados na conclusão anterior, a sentença enferma, em princípio, do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
I – Relatório
O Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base, por Acórdão de 7 de Maio de 2004, decidiu o seguinte:
A) Absolveu as arguidas A e B de um crime previsto e punível pelo art. 12.º do Decreto-Lei n.º 5/91/M, de 28 de Janeiro e a arguida A de um crime previsto e punível pelo art. 9.º n.° 1 da Lei n.º 2/90/M, de 3 de Maio;
B) Condenou a arguida A pela prática, como autora material e na forma consumada, de um crime previsto e punível pelo art. 8.º n.° 1 e 18.º n.° 2 do Decreto-Lei n.º 5/91/M na pena de seis anos de prisão e seis mil patacas de multa, de um crime previsto e punível pelo art. 23.º al. a) do Decreto-Lei n.º 5/91/M na pena de mil e quinhentas patacas de multa e de um crime previsto e punível pelo art. 8.º n.° 1 da Lei n.º 2/90/M na pena de cinco meses de prisão;
C) Em cúmulo condenou-a na pena única de seis anos e dois meses de prisão e seis mil e quinhentas patacas de multa ou em alternativa de quarenta e cinco dias de prisão, caso não pague nem a mesma for substituída por trabalho;
D) Condenou a arguida B pela prática, como autora material e na forma consumada, de um crime previsto e punível pelo art. 8.º n.° 1 do Decreto-Lei n.º 5/91/M na pena de oito anos e três meses de prisão e oito mil patacas de multa e de um crime previsto e punível pelo art. 23.º al. a) do Decreto-Lei n.º 5/91/M na pena de mil e quinhentas patacas de multa;
E) Em cúmulo condenou-a na pena única de oito anos e três meses de prisão e oito mil e quinhentas patacas de multa ou em alternativa de cinquenta e cinco dias de prisão, caso não pague nem a mesma for substituída por trabalho.
Interposto recurso jurisdicional pela arguida B o Tribunal de Segunda Instância, por Acórdão de 20 de Maio de 2004, negou provimento ao recurso.
Não conformada, recorrem o Ministério Público (MP) e a mesma arguida B para este Tribunal de Última Instância.
O MP termina a sua motivação, com as seguintes conclusões:
1.ª - Este Tribunal confirmou o acórdão da 1.ª Instância, que condenou a arguida recorrente B, além do mais, pelo crime descrito no art.º 8.°, n.º 1, do Dec-Lei n.º 5/91/M, de 28-1;
2.ª - A condenação por esse crime ficou a dever-se ao facto de a mesma deter 2,396g líquidos de Ketamina e 0,802g líquidos de MDMA;
3.ª - Provou-se que tais estupefacientes se destinavam ao consumo pessoal e à venda a terceiros; mas,
4.ª - Não se apurou qual a quantidade que era para vender a terceiros; também,
5.ª - Não se mostra que tenha sido feita qualquer investigação com vista à determinação dessa quantidade; ora,
6.ª - Tal elemento é essencial para enquadrar a actuação da recorrente no citado art.º 8.°., n.º 1 ou no subsequente art.º 9.º., n.º 1; por isso,
7.ª - Está-se perante a hipótese prevista no art.º 400.°, n.º 2, al. a), do C.P. Penal; entretanto,
8.ª - Um outro vício se divisa no âmbito da matéria de facto; na realidade,
9.ª - Deu-se como provado que a arguida A contactou a recorrente B" e depois de combinação prévia, esta foi entregar os produtos à arguida A, no mesmo dia à noite, cerca das 20 horas, junto ao edifício onde a arguida A reside"; por seu turno,
10.ª - Não ficou provado que "todos os produtos que foram apreendidos à arguida A foram por ela adquiridos" à B; assim,
11.ª - Deve inferir-se que os produtos - a que se reporta aquele facto provado - são todos os produtos apreendidos à aludida arguida - a que se refere aquele facto não provado; nessa óptica,
12.ª - Está-se perante uma contradição insanável da fundamentação, prevista no mencionado art.º 400.º, n.º 2, al. b); de qualquer forma,
13.ª - A afastar-se essa contradição, antolha-se uma outra situação de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; efectivamente,
14.ª - Para efeitos da responsabilização da arguida recorrente e da própria qualificação da sua actuação, sempre haverá que averiguar quais os produtos e respectivas quantidades entregues, por ela, à outra arguida; pelo exposto,
l5.ª - Impõe-se decretar o reenvio do processo, ao abrigo do art.º 418.º do referido C. P. Penal., para esclarecimento e ampliação da matéria de facto, com vista a indagar se a arguida B vendeu/cedeu ou tinha por objectivo vender/ceder a terceiros uma quantidade de estupefaciente superior à que preenche o conceito de "quantidade diminuta", a que alude o art.º 9.º, n.º 3, do Dec-Lei n.° 5/91/M, de 28-1;
16.ª - Decidindo de forma contrária, o douto acórdão violou os dispositivos supracitados.
A arguida B termina a sua motivação, com as seguintes conclusões:
1.ª Entenderam os Ilustres julgadores que a factualidade apurada preenchia o tipo legal do art.º 8.°, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 5/91/M com fundamentos que, ressalvado o devido respeito, não se podem aceitar, na medida em que resultam de uma interpretação incorrecta dos tipos legais dos arts. 8.°, 9.° e 23.°, e por levarem a resultados incongruentes com princípios fundamentais do Direito penal.
3.ª Desde logo, a aplicabilidade do art.º 23.° não deve ser afastada nos casos em que não se prove que a droga não se destinava exclusivamente ao consumo do ora recorrente, pelo contrário, este tipo legal deverá aplicar-se a todas as situações em que se prove a existência de consumo de estupefacientes, isto é: nos casos em que se prove que a droga se destinava exclusivamente ao consumo próprio como nos casos, como o dos autos, em que se prove que a droga se destinava ao consumo próprio e à cedência a terceiros, doutra forma não se entendia a ressalva constante da parte final do n.º 1 do art.º 8.°;
4.ª Punindo a lei o tráfico e o consumo de estupefacientes, o destino da droga para consumo do próprio agente impõe que se faça um diagnóstico diferencial relativamente ao tipo legal de tráfico de estupefacientes do art.º 8.°, apenas e sempre que estejam em causa actividades típicas de aquisição ou detenção, pois apenas estas têm coincidência normativa nos preceitos do art.º 8.°, n.º 1 e do art.º 23.°;
5.ª É isso o que o art.º 8.°, n.º 1 impõe, como pressuposto da punição aí prevista, quando afirma que essas actividades se desenrolem《fora dos casos previstos no art.º 23.º》;
6.ª Tendo-se provado que a arguida destinava a droga também para o seu consumo, não é a circunstância de a detenção ilícita de estupefacientes constituir um crime de perigo abstracto que impede que se tenha que determinar qual a porção que a arguida destinava ao seu consumo;
7.ª Por outro lado, a punição pelo crime de consumo não exige que a quantidade da droga não seja superior à legalmente fixada para o consumo próprio durante 3 dias (cfr. art.º 9.°), é o que resulta do elementos sistemático e teleológico da interpretação, como de resto do elemento literal.
8.ª Pelo que se pode dizer com toda a segurança que, não fazendo, nem tendo querido fazer, a lei, qualquer referência à quantidade de estupefaciente na previsão da punição do consumo (art.º 23), à verificação do crime de consumo de estupefaciente é indiferente a quantidade da droga detida, tal como é indiferente, por exemplo, tratar-se de droga leve ou dura. ;
9.ª Em face de se ter apurado que não destinava a droga exclusivamente ao seu próprio consumo, é indiscutível que a recorrente praticou - em concurso real - dois crimes um de tráfico e um de consumo de estupefacientes, uma vez que estão em causa bens jurídicos diferentes;
10.ª E isto é assim porque o legislador de Macau, em vez de adoptar uma posição maximalista de punir do mesmo modo grandes e pequenos traficantes, optou por consagrar uma solução de gradação de responsabilidade, punindo de forma diferenciada o grande traficante, o pequeno traficante e o traficante-consumidor, sendo que, diferentemente do que acontece para os dois últimos casos, a pena para os grandes traficantes não pode deixar de ser a mais severa;
11.ª O tipo do art.º 8.°, por um lado, e os tipos dos art.os 9.° e 11.°, por outro, estão numa relação de alternatividade excludente, o que significa que apenas se pode aplicar, a uma dada realidade de tráfico, um deles: ou a hipótese do art.º 8.° ou, excludentemente, a hipótese do art.º 9.° ou a do art.º 11.°.
11.ª Era necessário que o tribunal tivesse provado qual a quantidade da droga destinada a ceder a terceiros, ou então, por exclusão de partes, qual a quantidade da droga destinada ao uso pessoal da recorrente, isto porque foi provado que a arguida não destinava a droga exclusivamente ao seu próprio consumo pessoal;
12.ª E a determinação dessa quantia constituía um prius lógico para a correcta aplicação do art.º 8.° ou do art.º 9.°, n.º 1;
13.ª É o que decorre, seja do princípio in dubio pro reo, seja do princípio da aplicação mais favorável da lei criminal;
14.ª Em virtude da falta de conhecimento daquele elemento fáctico, e, em consequência, não se conseguindo esclarecer se a factualidade apurada integra o crime de tráfico do art.º 8.° ou o crime de tráfico de quantidades diminutas do art.º 9.°, n.º 1, o princípio da aplicação mais favorável da lei penal, deveria levar a que o tribunal devesse considerar preenchido o preceito que estabelece a sanção concretamente menos grave e não, como fez, o preceito que estabelece a sanção mais severa;
15.ª O que significa que, nesse caso, o doutro tribunal deveria ter julgado a arguida de acordo com o princípio in dubio pro libertatem e não in dubio pro societatem;
16.ª Pelo que se tem de concluir que o douto colectivo fez uma interpretação das normas dos arts. 8.°, 9.° e 23.° não conforme ao princípio do in dubio pro reo ou ao princípio da aplicação mais favorável da lei penal (in dúbio pro libertatem).
17.ª A decisão recorrida violou as normas dos citados art.os 8.° (pela sua aplicação) e 9.° (pela sua não aplicação).
O Ex.mo Magistrado do Ministério Público emitiu parecer apoiando a tese defendida na motivação de recurso do Ministério Público.
II – Os factos
Os factos que as instâncias deram como provados e não provados são os seguintes:
No dia 8 de Setembro de 2003, cerca da 01H30 da madrugada, e após várias diligências de investigação, elementos da P.J., viram a arguida A, no jardim do edifício, para onde se tinha deslocado no seu ciclomotor (apreendido a fls. 13 e 15), colocar algo, ali numa arvore.
Abordada ali a arguida A, constataram que na árvore se encontravam 3 sacos transparentes, um saco contendo 17 comprimidos, de forma redonda, de cor amarela e com os dizeres "2", dois contendo um pó branco e ainda uma embalagem de papel igualmente com um pó branco, e ainda, um telemóvel na sua posse (cfr. auto de apreensão de fls.9).
Os 17 comprimidos submetidos a exame laboratorial revelaram ter o peso líquido (g) de 5,462 e conter MDMA, este com o peso líquido (g) de 1,736 e o pó branco submetido a exame laboratorial revelou ter o peso líquido (g) de 4,234 e conter Ketamina, sendo o peso líquido (g) desta de 2,683.
Nas escadarias do [Endereço (1)], onde a arguida A reside foram encontrados 12 sacos transparentes, 8 deles com pó branco, um saco com 10 comprimidos, outro saco com 5 comprimidos e outro com 11 comprimidos, todos de forma redonda, de cor amarela e com os dizeres "2", e, ainda um saco com um papel que continha pó branco (cfr. auto de apreensão a fls. 10).
O pó branco submetido a exame laboratorial revelou ter o peso líquido (g) de 14,843 e conter Ketamina, sendo o peso líquido (g) desta de 9,940 e os 26 comprimidos submetidos a exame laboratorial revelaram ter o peso líquido (g) de 8,388 e conter MDMA, este com o peso líquido (g) de 2,393.
Na residência da arguida A e acima referida, num armário junto à entrada da sala foi encontrado 1 saco com várias saquetas, 1 fita-cola, 1 tesoura amarela e uma colher de plástico com vestígios de pó branco (cfr. auto de apreensão de fls. 11).
A colher de plástico submetida a exame laboratorial revelou conter vestígios de Ketamina.
Ainda na residência se encontrava a C, que ali exercia funções de empregada doméstica, que foi contratada por D para cuidar da filha de ambos e auferia mensalmente MOP1.800,00 e actualmente a quantia de MOP2.300,00.
A C era portadora de Salvo-Conduto, cujo prazo de permanência em Macau já tinha terminado em 25 de Março de 2002.
A arguida A alojou em sua residência a C até à data dos factos.
De seguida, cerca das 05H15, junto à entrada do Karaoke, a arguida B, depois de ali se deslocar no seu motociclo MB-XX-XX (apreendido a fls. 55), ,i foi revistada pela P.J. e foi-lhe encontrado na calcinha interior, um lenço de papel com 4 saquetas, 3 contendo um pó branco e uma contendo 8 comprimidos de forma redonda, de cor amarela e com os dizeres "2", e, ainda, um telemóvel, 2 agendas, um total de HKD500,00 e MOP 8.700,00 (cfr. auto de apreensão de fls. 43).
O pó branco submetido a exame laboratorial revelou ter o peso líquido (g) de 4,190 e conter Ketamina, sendo o peso líquido (g) desta de 1,931 e os 8 comprimidos submetidos a exame laboratorial revelaram ter o peso líquido (g) de 2,571 e conter MDMA, este com o peso líquido (g) de 0,802.
Numa das residências da arguida B, sita no [Endereço (2)], em Macau, foi encontrado num armário para guardar sapatos, 2 papeis com pó branco, uma caixa de papel com 45 comprimidos de forma redonda e de cor branca, 2 sacos com várias saquetas, um maço de papel de estanho, uma tesoura, 1 tigela plástica, 2 colheres de plástico, 1 cartão pré-pago de telemóvel, com vestígios de pó branco (cfr. auto apreensão de fls. 52).
O pó branco submetido a exame laboratoria1 revelou ter o peso líquido (g) de 0,898 e conter Ketamina, sendo o peso líquido (g) desta de 0,465, os 45 comprimidos submetidos a exame laboratorial revelaram ter o peso líquido (g) de 3,811 e conter Estazolam e todos os objectos acima referidos revelaram conter vestígios de Ketamina.
O MDMA está abrangido pela Tabela II-A, a Ketamina pela Tabela II-C e o Estazolam pela Tabela IV, anexas ao DL 5/91/M de 28/1 (com a alteração da Lei n.° 4/2001).
Parte dos produtos encontrados na posse da arguida A destinavam-se ao seu consumo próprio e outra parte, ou seja, MOP4.500,00 de MDMA (mais ou menos 40 comprimidos) e MOP3.500,00 de Ketamina destinavam-se a ser entregues à sua amiga "E", que lhe tinha solicitando ajuda na sua compra, no dia 6 de Setembro de 2003, cerca das 16H00.
A arguida A contactou a arguida B, e depois de combinação prévia, esta foi entregar os produtos à arguida A, no mesmo dia à noite, cerca das 20H00, junto ao edifício onde a arguida A reside.
A arguida A, na sua residência, procedeu ao empacotamento dos referidos comprimidos e da Ketamina em várias saquetas.
A arguida B adquiriu os produtos estupefacientes apreendidos a pessoa que não foi possível identificar, destinando-os à venda a terceiro e para seu próprio consumo.
Os utensílios foram apreendidos à arguida A e B, que os utilizavam para embalar estupefacientes.
As arguidas agiram livre, voluntária e conscientemente.
Bem sabendo as suas características e qualidades dos produtos estupefacientes.
As arguidas adquiriam, guardaram e transaccionaram os produtos estupefacientes com o fim de obter ou procurar obter compensação remuneratória e ainda para consumo pessoal.
A arguida A sabia que a C não era possuidora de documento exigido por Lei para permanecer em Macau, bem como não lhe podia, assim, acolhê-la e alimentá-la na sua residência.
As arguidas tinham perfeito conhecimento que as suas condutas não eram permitidas e punidas por Lei.
A 1.ª arguida 1 era desempregada, solteira e tem uma filha a seu cargo.
Confessou parcialmente os factos e é primária.
A 2.ª arguida 2 era desempregada, casada e tem três filhos a seu cargo.
Confessou parcialmente os factos e é primária.
Não ficaram provados os seguintes factos: os restantes factos da acusação e contestação, designadamente:
Todos os produtos que foram apreendidos à arguida A, foram por ela adquiridos à arguida B.
Em outras vezes, pelo menos duas, já a "E" tinha pedido à arguida A para lhe arranjar droga, e dessas vezes, sempre a arguida A telefonou à arguida B, e combinavam a transacção da droga no bar.
A arguida B consumia, diariamente, 1 comprimido de MDMA e dois pacotes de Ketamina.
As arguidas sabiam igualmente não poder deter os objectos acima referidos, como instrumento para o consumo de estupefacientes.
A arguida A constituiu relação de trabalho com pessoa que não era titular de documento exigido por Lei para trabalhar em Macau.
III - O Direito
1. As questões a resolver
Importa saber:
Recurso do MP:
- Se o processo deve ser reenviado para novo julgamento, em virtude o acórdão recorrido enfermar do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, por não ter apurado qual a quantidade de estupefaciente que a recorrente destinava a consumo pessoal e qual a quantidade que destinava a cedência a terceiros;
- Se o processo deve ser reenviado para novo julgamento, em virtude o acórdão recorrido enfermar do vício da contradição insanável da fundamentação, por ter dado como não provado que todos os produtos aprendidos à arguida A foram por ela adquiridos à B e ter dado como provado que a arguida B foi entregar os produtos à A, inferindo-se – segundo o MP - que os produtos a que se refere o facto provado são todos os produtos apreendidos à A;
- A não se verificar o anterior vício, se o processo deve ser reenviado para novo julgamento, em virtude o acórdão recorrido enfermar do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, por não ter apurado quais os produtos e as respectivas quantidade de estupefaciente entregues pela recorrente à outra arguida, para efeitos da responsabilização da recorrente e da qualificação da sua actuação;
Recurso da arguida B:
- Se os anteriores vícios não procederem, se a recorrente deve ser condenada pela prática de um crime previsto e punível pelo art. 9.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 5/91/M [em concurso com um crime previsto e punível pelo art. 23.º, alínea a) do mesmo diploma legal] e não pelo crime do art. 8.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 5/91/M.
2. Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
O MP considera que o acórdão recorrido enferma do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, por não ter apurado qual a quantidade de estupefaciente que a recorrente destinava a consumo pessoal e qual a quantidade que destinava a cedência a terceiros.
Na verdade, o tribunal colectivo de 1.ª instância deu como provado que a recorrente B destinava os produtos estupefacientes que lhe foram apreendidos “à venda a terceiro e para seu próprio consumo”.
Quer dizer, o tribunal não distinguiu a quantidade que a arguida destinava a consumo próprio e qual a quantidade que destinava a venda.
É indiscutível que o tribunal deve tentar fazer tal distinção uma vez que é importante saber a quantidade que se traficava ou pretendia traficar, já que há dois tipos criminais de tráfico de estupefacientes que só se distinguem pela quantidade de produto estupefaciente detido ou cedido, os dos arts. 8.º e 9.º do Decreto-Lei n.º 5/91/M.
Por outro lado, embora com menos importância, mas também com alguma relevância, importa saber qual a quantidade destinada a consumo e a tráfico, com vista à graduação das penas nas condenações, por um lado, pelo crime do art. 23.º, alínea a) do mesmo diploma legal e, por outro pelos crimes dos arts. 8.º ou 9.º do Decreto-Lei n.º 5/91/M.
Esta doutrina não é nova e já tinha sido adoptada no acórdão deste Tribunal, de 10 de Março de 2004, no Processo n.º 6/2004. Aí se disse:
“... é necessário apurar a quantidade, entre outras características, da droga para o fim de consumo pessoal e a para outros fins, não só para determinar o crime de tráfico de drogas efectivamente praticado pelo arguido, por estar consagrado o tipo privilegiado de tráfico de quantidades diminutas de drogas previsto no art.° 9.° do Decreto-Lei n.° 5/91/M, mas também para servir de circunstância a ser considerada na graduação da pena concreta.
O tribunal de julgamento deve esforçar-se neste sentido, utilizando os seus poderes de investigação, bem como as regras de experiência, para formar a sua convicção, de modo a procurar encontrar essas quantidades, ou pelo menos as quantidades relativamente determinadas”.
Pode, porém, acontecer que o tribunal não consiga fazer tal concretização. Só neste caso valem as consideração que este Tribunal fez no recente acórdão de 21 de Julho de 2004, no Processo n.º 24/2004:
“Quando se prova que o agente detém produto estupefaciente para consumir e para cedência a terceiros, mas não é possível apurar com rigor qual a quantidade que o agente destina a consumo próprio e qual a que destina a cedência a terceiros, com vista à integração do crime de tráfico nos tipos dos arts. 8.º, n.º 1 ou 9.º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei n.º 5/91/M, o tribunal de julgamento ou o de recurso devem ponderar, de acordo com os restantes factos provados – designadamente o total da quantidade detida - e as regras da experiência, se é seguro concluir que a quantidade destinada a cedência é diminuta ou não, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 9.º, n. os 1 e 3 do Decreto-Lei n.º 5/91/M. Se for possível chegar-se a uma conclusão, a conduta do agente será integrada nos tipos dos arts. 9.º ou 8.º deste diploma legal, consoante os casos. Se o Tribunal não conseguir chegar a uma conclusão segura, terá de condenar o agente pelo crime do art. 9.º do Decreto-Lei n.º 5/91/M, por via do princípio in dubio pro reo”.
Pois bem, no caso dos autos não se sabe se o tribunal não concretizou as quantidades de estupefaciente destinadas a consumo e a venda porque não conseguiu ou se, simplesmente, não atentou na relevância da questão. Na verdade, nesta parte da matéria de facto provada, os factos são exactamente aqueles que constavam da acusação, pelo que pode ter acontecido que o tribunal, embora tendo apurado os factos, não os fez constar do texto do acórdão por razões de inércia. Ou então nem tentou apurá-los. Em suma, o tribunal não apurou os factos a que nos vimos referindo.
3. Há agora que enfrentar uma questão relacionada com o que ficou dito, que é o facto de o MP, na acusação, embora tenha acusado a arguida da prática de um crime previsto e punível pelo art. 8.º do Decreto-Lei n.º 5/91/M (em concurso com um crime previsto e punível pelo art. 23.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 5/91/M) também não distinguiu as quantidades destinadas a consumo e à venda. E não se sabe se o MP não investigou a questão no inquérito ou se, indevidamente, por erro, não a considerou relevante.
Então, a questão que se coloca é a de saber se este Tribunal pode reenviar o processo para ampliar a matéria de facto, concretizando considerações constantes da acusação.
Nos acórdãos de 20 de Março de 2002, no Processo n.º 3/2002 e de 9 de Outubro de 2002, no Processo n.º 10/2002, este Tribunal entendeu que “Ocorre o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a matéria de facto provada se apresente insuficiente para a decisão de direito adequada, o que se verifica quando o tribunal não apurou matéria de facto necessária para uma boa decisão da causa, matéria essa que lhe cabia investigar, dentro do objecto do processo, tal como está circunscrito pela acusação e defesa, sem prejuízo do disposto nos arts. 339.º e 340.º do Código de Processo Penal.” E que, portanto “não se verifica o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada relativamente a factos não constantes da acusação ou da pronúncia, nem suscitados pela defesa, e de que não resultou fundada suspeita da sua verificação do decurso da audiência, nos termos do disposto nos arts. 339.º e 340.º do Código de Processo Penal”.
Contudo, no caso dos autos não se pode, em rigor, dizer que os factos não constavam da acusação e que, portanto, se o tribunal concretizasse as quantidades de estupefaciente destinadas a consumo e a venda estaria já fora do objecto do processo.
Efectivamente na acusação constava que “A arguida B adquiriu os produtos estupefacientes apreendidos a pessoa que não foi possível identificar, destinando-os à venda a terceiro e para seu próprio consumo”.
Logo, estava dentro do objecto do processo a concretização das quantidades de produto que a arguida destinava a cada um dos fins.
Entende-se, assim, que o tribunal podia e devia ter concretizado as quantidades destinadas a consumo e a venda, já que a acusação incriminou a arguida pelo crime mais grave, do art. 8.º do Decreto-Lei n.º 5/91/M, não tendo, sequer, que dar cumprimento ao disposto no art. 339.º do Código de Processo Penal (e muito menos ao art. 340.º do mesmo diploma legal), já que nem havia alteração dos factos descritos na acusação.
É que estão em causa quantidades relativamente pequenas de estupefaciente, pelo que se pode pôr em dúvida se a parte destinada ao tráfico é ou não superior ao consumo individual durante três dias, a que se referem os n. os 1 e 3 do art. 9.º do Decreto-Lei n.º 5/91/M. Quer dizer, se a quantidade apreendida fosse de tal dimensão que as regras de experiência rejeitassem a possibilidade de o agente destinar a consumo uma quantidade muito significativa de estupefaciente, poderia não ser essencial a determinação das quantidades destinadas a cada um dos fins. Mas não é esse o caso dos autos.
Não tendo o tribunal concretizado as quantidades de estupefaciente destinadas a consumo e a venda, enferma o acórdão do tribunal colectivo de 1.ª instância do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
4. Contradição insanável da fundamentação. Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
Trata-se, agora de saber se o acórdão recorrido enferma, também, do vício da contradição insanável da fundamentação, por ter dado como não provado que todos os produtos aprendidos à arguida A foram por ela adquiridos à B e ter dado como provado que a arguida B foi entregar os produtos à A, inferindo-se – segundo o MP - que os produtos a que se refere o facto provado são todos os produtos apreendidos à A.
A sentença deu como provado que a arguida A detinha determinadas quantidades de produtos estupefacientes (MDMA e Ketamina), parte que trazia consigo quando foi detida num jardim da cidade de Macau, outra parte nas escadarias do edifício onde reside e alguns vestígios de Ketamina na sua residência.
Mas enquanto que na acusação se dizia que todos os produtos que foram apreendidos à arguida A foram por ela adquiridos à arguida B, este facto foi considerado não provado pela sentença.
Simplesmente, em determinado passo dos factos considerados provados na sentença diz-se que “A arguida A contactou a arguida B, e depois de combinação prévia, esta foi entregar os produtos à arguida A, no mesmo dia à noite, cerca das 20H00, junto ao edifício onde a arguida A reside”.
Pois bem, quando a sentença refere “os produtos” pressupõe que se está a referir a algo que já mencionara anteriormente. Se assim não fosse deveria ter-se referido simplesmente a “produtos estupefacientes” ou mais correctamente a “produtos estupefacientes cuja quantidade não possível apurar” ou ainda mais correctamente identificar a qualidade dos produtos em causa (MDMA, Ketamina?) e a sua quantidade, se possível fosse.
Deste modo, a referência a “os produtos”, sem mais, pressupõe que se trata dos produtos que já mencionara e que são todos os apreendidos à A. Mas, a ser assim, como tem de se entender que é, há contradição entre este facto provado3 e aqueloutro não provado: que todos os produtos apreendidos à arguida A foram por ela adquiridos à arguida B.
Verifica-se, pois, o vício da contradição insanável da fundamentação.
De resto, como bem assinala o recorrente, se a sentença pretendeu considerar provado – embora não expresso no texto - que só parte dos estupefacientes apreendidos à arguida A foram por ela adquiridos à arguida B - teria obrigatoriamente, pelo menos, de ter identificado o tipo de estupefaciente (já que os apreendidos à arguida A foram de duas qualidades diferentes) e a sua quantidade, já que isso seria importante para qualificar o crime de tráfico de estupefaciente (art. 8.º ou 9.º do Decreto-Lei n.º 5/91/M) a imputar à arguida B. A verificar-se esta última hipótese, estaríamos perante o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Face aos vícios verificados, que implicam o reenvio do processo para novo julgamento, fica prejudicado o exame do recurso da recorrente B, que se fundamentava em questões de mérito.
Afigurando-se não ser possível que o Tribunal de Segunda Instância supra os vícios – dada a sua natureza – o processo será remetido directamente ao tribunal de primeira instância.
IV – Decisão
Face ao expendido:
A) Concedem provimento ao recurso do Ministério Público e reenviam o processo para novo julgamento na parte relativa à arguida B, no que concerne à condenação pelo crime previsto e punível pelo art. 8.º do Decreto-Lei n.º 5/91/M, quanto aos dois pontos mencionados;
B) Não conhecem do recurso interposto pela arguida B por ter ficado prejudicado com a decisão anterior.
Sem custas.
Macau, 22 de Setembro de 2004
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin
1 A 1.ª arguida vem identificada na sentença de 1.ª instância como a arguida A.
2 A 2.ª arguida vem identificada na sentença de 1.ª instância como a arguida B.
3 E sublinhado atrás.
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Processo n.º 34/2004
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Processo n.º 34/2004