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Processo n.º 42/2004. Recurso jurisdicional em matéria cível.
Recorrente: A.
Recorridos: B, C, D e E.
Assunto: Contrato-promessa. Posse. Direito de retenção. Conceito de direito. Resposta não escrita.
Data da Sessão: 1 de Dezembro de 2004.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Sam Hou Fai e Chu Kin.
SUMÁRIO:
I - No direito de Macau, vigente após a Lei n.º 20/88/M, de 15 de Agosto, e até à entrada em vigor do Código Civil de 1999, o promitente-comprador, em caso de tradição da coisa, não tinha posse sobre a mesma, nem direito de retenção sobre ela, nem podia usar dos meios possessórios, a menos que provasse a situação excepcional de que exercia a posse em nome próprio, com a intenção de agir como seu proprietário.
II - “Posse” é um conceito jurídico, pelo que se deve considerar não escrita esta palavra na resposta do tribunal colectivo, nos termos do n.º 4 do art. 646,º do Código de Processo Civil de 1961, se uma das questões a decidir no processo é a de saber se uma das partes tinha posse sobre uma coisa.

O Relator
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

  ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
  
  I - Relatório
  A intentou acção de restituição de posse contra B, C, D e E, pedindo:
    - Se declare a autora legítima possuidora das fracções autónomas A20, B20 e C20, para escritório, do 20.º andar do prédio urbano sito em Macau, no [Endereço (1)], descrito na Conservatória do registo Predial de Macau sob o n.º XXXXX, a fls. 34 do Livro X-XXXX;
    - A condenação dos réus solidariamente a restituírem as referidas fracções à autora;
    - A condenação dos réus solidariamente a indemnizar a autora pelos prejuízos causados, computados em 30 de Junho de 1999 em, pelo menos, MOP$840 000,00, bem como nos rendimentos que as fracções produziram ou poderiam produzir desde 1 de Julho de 1999 até efectiva desocupação, em montante não inferior a MOP$8 000,00 por mês;
    - A condenação dos réus solidariamente a proceder à remoção dos dois portões de ferro colocados no 20.º andar daquele prédio urbano.
  Os réus contestaram, além do mais, excepcionando a caducidade da acção.
  Por sentença de 3 de Junho de 2003, o Juiz Presidente do Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base decidiu:
    - Julgar improcedente a excepção de caducidade da acção;
    - Ordenar a restituição das fracções autónomas A20, B20 e C20, para escritório, do 20.º andar do prédio urbano sito em Macau, no [Endereço (1)], descrito na Conservatória do registo Predial de Macau sob o n.º XXXXX, a fls. 34 do Livro X-XXXX à autora;
    - Condenar os réus a indemnizar1 a autora pelos prejuízos causados, computados em 30 de Junho de 1999 em, pelo menos, MOP$840 000,00, bem como nos rendimentos que as fracções produziram ou poderiam produzir desde 1 de Julho de 1999 até efectiva desocupação, em montante não inferior a MOP$8 000,00 por mês;
    - Condenar os réus a proceder à remoção dos dois portões de ferro colocados no 20.º andar daquele prédio urbano.
  Inconformados recorreram os réus, tendo o Tribunal de Segunda Instância, por Acórdão de 1 de Julho de 2004, concedido provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida, declarado “... a caducidade do direito à acção de restituição de posse por parte da Autora., ora recorrida, assim se extinguido a acção”.2
  
  Recorre, agora, a autora para este Tribunal de Última Instância, terminando a sua alegação, com as seguintes conclusões:
  1) A acção de restituição da posse encontra-se regulada nos artºs. 1277º e segs. do CC (de 1966), (art°s. 1202º e segs. do CC de Macau).
  2) No presente caso, quer pelo pedido efectuado, quer pelos factos provados foi correcta a opção pela acção de restituição da posse, visto que ficou amplamente provado que o Autora. tinha a posse sobre as fracções "A20", "B20" e "C20", melhor identificadas nos autos quando foi esbulhado dessa posse pelos RR.
  3) De facto, quanto à posse por parte da Autora., está provado na acção que a Autora. prometeu comprar as referidas fracções, pagou integralmente o preço, entrou na posse das fracções com expresso aval da promitente vendedora.
  4) Tendo, desde então, actuado relativamente aos imóveis, possuía e dispunha dos mesmos a título pleno e exclusivo, de forma notória e pública, detendo, desde então as chaves das portas de entrada das fracções e utilizando-as sem qualquer dificuldade;
  5) È, aliás, salvo o devido respeito, este o sentido claro e inequívoco da jurisprudência desse Douto Tribunal de Segunda Instância, que em recente Acórdão (datado de 13/03/2003 no processo n° 247/2002) relacionado com a defesa da posse (Embargos de Terceiro) decidiu que estando provado que "...os recorridos celebraram contrato promessa de compra e venda, prometendo comprar a fracção arrestada, que pagaram a totalidade do preço acordado, que do promitente vendedor receberam as suas chaves, que tem pago, mensalmente, as despesas inerentes ao gozo da fracção (...)" "(:..) e que detém e fruem a mesma fracção, comportando-se como se a mesma lhes pertenceste, considerando a futura conclusão do contrato prometido como mera formalidade;" considera-se que nessa situação detém "(...) os embargantes no caso concreto a "boa posse" sobre a fracção arrestada (...)".
  6) Mas já anteriormente o então Tribunal Superior de Justiça de Macau assim já decidiu "Em contrato promessa de compra e venda de imóvel, a tradição da coisa para o promitente-comprador acompanhada de factos que traduzam o animus sibi habendi, transfere a respectiva posse para este, sem necessidade de registo, podendo defender a sua posse mediante embargos de terceiro em execução movida contra o promitente-vendedor, ainda que tenha havido penhora registada (...)" (vide Acórdão de 15/02/95, Processo nº 254 in "Jurisprudência –T1, página 102 e segs.").
  7) Por outro lado, quanto ao esbulho e estando provado que os RR. demoliram paredes divisórias e portas de entrada das fracções, construindo outras que impedem o aceso às fracções e, com isso, ocupando ilegitimamente as fracções "A20", "B20", e "C20", não pode deixar de entender-se ter havido esbulho.
  8) Desse modo e salvo o devido respeito, bem! procedeu o pedido da Autora. e declarou-se a Autora. legítima possuidora das fracções autónomas "A20", "B20", e "C20" (melhor identificadas nos autos);
  9) Por outro lado não pode deixar de concordar-se com o prescrito na Sentença do TJB quando aí afirma claramente que "(...) os Réus nunca tiveram a posse (em sentido técnico-jurídico da palavra) pois, no início, fizeram proposta de aquisição de tais fracções autónomas, depois utilizaram outros argumentos para obter a apreensão material das fracções, nomeadamente o pagamento tardio dos respectivos preços, depois pediram a assinatura por parte do Autora. no pedido de modificação de obras a introduzir nas fracções, o que é suficiente demonstrar que, desde o início os Réus nunca tiveram animus possidendi, sabiam e sabem perfeitamente que as fracções autónomas não lhes pertencia, nem tinham título válido para as ocuparem. Se o tivessem, teriam invocado muito claramente nesta acção !!!'.
  10) Daí resulta, ainda na esteira dessa Sentença do TJB, "(...) que os ocupantes não têm animus possidendi, que não têm nenhuma intenção de exercer sobre os imóveis como seu titular, o direito real correspondente ao domínio de facto que tem sobre ele (corpus) (...).
  11) É que, como nesse mesma Sentença se retrata a adopção da teoria subjectivista segundo a qual "(...) numa situação de posse se distinguem dois elementos: Um material (o corpus) que se identifica com actos materiais (tais como a detenção, fruição ou ambos conjuntamente), praticados sobre a coisa com o exercício de certos poderes sobre a coisa, o também chamado "domínio de facto sobre a coisa" e, outro, o "elemento psicológico" (animus) que se traduz na intenção de se comprovar como titular do direito real correspondente aos actos praticados" (vide Acórdão de 27/02/2003, processo n° 246/2002 desse Douto TSI- Já anteriormente citado -.
  12) Por seu lado, da "posse", distingue-se a "simples detenção". Nos termos do artº 1253º do CC, hoje 1177º do CCM:
  "São havidos como detentores:
  d) Os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito;
  e) Os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito; e,
  f) Os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem.".
  13) Ora, como se refere na Sentença do TJB, se ficou provado que "Em 08 de Novembro de 1996, F em representação da Sociedade(1), a solicitação de B (nota: Réu nos autos), apresentou um projecto de modificação subscrito pelo arquitecto G, para juntar as fracções "B", "C", "D", "E" e "F", do 20º andar, do Edº, implantado no lote 17 dos autos" pode concluir-se que os AA. não tinham animus possidendi.
  14) Porque, se o tivessem, não haveria necessidade de solicitar a terceiros que apresentassem projecto (neste caso junto da D.S.S.O.P.T.) sobre as fracções em causa nos autos. O que não aconteceu.
  15) Daí concordar-se com a sentença do TJB quando aí concluí que "(...) os factos de tolerância não poderão originar uma situação possessória, salvo se, entretanto, houver uma inversão do título de posse (art° 1265º do cc), momento em que começará a contar o prazo da posse de ano e dia. O que não se verificou, pelo que, é de julgar improcedente a excepção de caducidade da acção.".
  16) O Douto Acórdão recorrido também é liminar quanto a esta questão, tendo concluído que a Autora. "(...) foi investida na posse efectiva das três fracções autónomas, que pagou, delas recebendo as chaves e com ela procurando os RR. estabelecer, antes de passarem a ocupar as ditas fracções, contactos no sentido da transmissão da sua posição contratual tendo em vista o alargamento da referida instalação da sede social das RR.".
  17) Ainda concluindo que "Não está assim em causa um pressuposto essencial da acção de restituição da posse que se traduz na posse da Autora".
  18) Por outro lado, o facto de os RR. terem pedido à Autora. para apresentar o projecto junto da DSSOPT constitui um verdadeiro reconhecimento do direito da Autora. sobre as fracções em questão, o que impede a caducidade da acção.
  19) Sendo, também, esse o entendimento do Tribunal da Relação do Porto, datado de 19/10/98 e publicado na página da Internet www.dgsi.pt, com o seguinte teor "A caducidade da acção de restituição de posse é impedida, nos termos gerais pelo reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercida.".
  20) Por outro lado, ficou provado na Sentença e foi transcrito para o Acórdão recorrido que "A Autora reagiu, desde Fevereiro de 1997 - data em que foi notificado o 1º R. através da notificação judicial avulsa -, que a Autora. tem vindo a realizar actos conducentes à tentativa, para obter a restituição das fracções esbulhadas;
  - Primeiro com essa notificação judicial avulsa;
  - Segundo com a Acção de Restituição Provisória da posse que em 23/06/97 correu termos na 4ª Secção desse TCG sob o n° 727/97.
  - Terceiro com a Acção de Restituição da Posse interposta em 12 de Maio de 1998 e que correu termos no 3º juízo desse TCG sob o n° 133/98.".
  21) Ora, de acordo com o nº 1 do artº 331º do CC de 1966 a prática de um acto a que a lei atribua efeito impeditivo dessa caducidade, dentro do prazo legal, impede a caducidade.
  22) Não pode, por isso, concluir-se pela caducidade do direito à acção de restituição da posse.
  23) Os factos de tolerância não poderão originar uma situação possessória, salvo se, entretanto, houver uma inversão do título de posse (art° 1265º do cc), momento em que começará a contar o prazo da posse de ano e dia, o que não aconteceu no presente caso.
  24) Não resulta da matéria dada por provada quando é que o Autora., ora Recorrente, teve efectivo conhecimento da ocupação das fracções pelos RR.
  25) Sendo que o facto de estar provado que em princípios de Agosto os RR. ocuparam as fracções em questão, não significa que foi nessa data que o Autora. teve efectivo conhecimento dessa situação.
  26) Tanto assim é que, também se encontra provado que "Em 08 de Novembro de 1996, F em representação da Sociedade(1), a solicitação de B (nota: Réu nos autos), apresentou um projecto de modificação subscrito pelo arquitecto G, para juntar as fracções "B", "C", "D", "E" e "F", do 20º andar, do Edº, implantado no lote 17 dos autos".
  27) Ora "Em acção de restituição de Posse, não tendo os réus feito_prova de que a acção foi intentada para além do prazo consignado no artº 1282º do CC (de 1966) - ónus da prova que lhes competia - tem de entender-se que o direito de acção não caducou." (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14/05/1996, publicado na página da Internet www.dgsi.pt).
  28) Por outro lado, tratando-se de posse violenta, nos termos definidos no nº 2 do artº 1261º do CC de 1961, o prazo de um ano, relativo à caducidade da acção de restituição só pode contar-se a partir da cessação daquela posse violenta, pois a própria violência, enquanto existe, impede o exercício da própria acção, sendo, por isso, razoavél que o prazo de caducidade só comece a contar-se a partir do momento em que o esbulhado estiver em condições (normais) de poder e dever reagir, o que só sucede com a cessação da violência.
  29) No que diz respeito ao pedido de indemnização ficou provado que "Autora já tinha em carteira, em princípios de Agosto de 1996, diversas pessoas interessadas em arrendar as referidas fracções pelo valor de MOP $8.000,00 por cada fracção. "
  30) Ora, tendo a ilegal ocupação começado no início do mês de Agosto de 1996, verifica-se que desde essa data a Autora. se viu privada do uso das fracções, o que logicamente lhe acarretou e ainda acarreta prejuízos.
  31) Prejuízos que já à data de 30 de Junho de 1999 (data da interposição da presente acção) se contabilizavam em MOP$840.000,00.
  32) Para além dos rendimentos que as referidas fracções poderiam produzir desde 1 de Julho de 1999 até à efectiva desocupação e que se contabilizam até ao final do mês de Março do corrente ano no valor de MOP$1.056,000,00, cálculos efectuados com base no rendimento mensal de MOP$8.000,00 por cada fracção (conforme renda mensal apurada no quesito 21º) e pelo período de 44 meses (1 de Julho de 1999 a 31 de Março de 2003).
  33) Ora, nos termos do nº 1 do art° 1284° do CC (de 1961) (art° 1209° do CC de Macau), "O possuidor mantido ou restituído tem o direito de ser indemnizado do prejuízo que haja sofrido em consequência da turbação ou do esbulho.
  "I - A privação do uso de coisa imóvel é um dano real por violação do direito alheio, fazendo nascer uma obrigação de indemnização cujo cumprimento pode ser pedido em acção de Restituição da posse. ".
  "II - Em tal caso, o prejuízo sofrido pelo lesado detennina-se, normalmente, pelo valor dos rendimentos que a coisa produziu ou que poderia produzir. "(vide Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 12/01/93 e publicitado através da acima referida página da Internet - www.dgsi.bt).
  34) Desse modo e nos termos do artº 562° do CC. "Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação."
  35) Sendo certo que "O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão." (nº 1 do artº 564° do CC), Sendo certo que "O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão." (nº 1 do artº 564° do CC),
  36) Foram, por isso, condenados os RR. a indemnizar a Autora. pelos prejuízos causados em MOP$840.000,00 (oitocentas e quarenta mil patacas), bem como nos rendimentos que as referidas fracções produziram ou poderiam produzir, desde 01/07/1999 até à efectiva desocupação, em montante não inferior a MOP$8.000,00 (oito mil patacas) por mês.
  37) O Acórdão recorrido não se pronunciou sobre esta matéria, embora, salvo o devido respeito, o devesse fazer, mesmo que entendesse haver caducidade da acção, pois a caducidade não impede a existência de danos, aliás, provados e transcritos para o Acórdão recorrido.
  38) É jurisprudência assente que "Embora caduca a acção de restituição de posse, deve prosseguir a do pedido de indemnização fundado na mesma causa de pedir" (Acórdão do STJ de 06/12/74 in BMJ -242° - 225).
  39) Sem transigir e a entender-se a existência de caducidade da acção, não deveria a sentença do TJB ser revoga da na parte respeitante à indemnização fixada.
  40) Desse modo e salvo o devido respeito o Douto Acórdão recorrido, violou e aplicou de forma errada as normas substantivas acima citadas e que aqui se dão reproduzidas.
  
  Os réus, recorridos, defendem a manutenção do julgado, concluindo da seguinte forma:
  I. A sociedade autora não praticou sobre as fracções actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade sobre as mesmas, mas meros actos facultativos ou de detenção, pois confessou, e tal resulta dos factos provados, que os eventuais actos de retenção e fruição material que exerceu sobre as fracções autónomas objecto do pedido de restituição de posse na presente acção, durante aproximadamente um mês, eram exercidos sem intenção de agir como proprietária das fracções, que exercia os poderes de facto sem intenção de agir como beneficiária do direito de propriedade sobre as mesmas, aguardando a celebração das escrituras de compra e venda para o fazer, esta é que seria para a sociedade Autora. a causa possessionis, a relação jurídica que faria nascer o seu animus possidendi- interpretação diversa faz indevida aplicação dos artigos 1251.º e 1253.º do Código Civil anterior.
  II. Aquele que não exerce posse no sentido jurídico sobre a coisa, não pode, senão excepcionalmente (como acontece nos casos do arrendatário, depositário, comodatário) recorrer a acção possessória de restituição de posse - interpretação diversa faz indevida aplicação dos artigos 1277.º e 1278.º do Código Civil anterior.
  III. Não resultando dos factos provados o animus com que os RR. exerceram os actos de retenção e fruição de Agosto de 1996 até à data da propositura da acção 02 de Julho de 1999, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, que deve pois ser mantido na sua posse, quando ela tenha duração superior a um ano e um dia, quando demandado para a restituir - interpretação diversa faz indevida aplicação do artigo 1252.º do Código Civil anterior.
  IV. A acção de restituição de posse caducou, necessariamente, em princípios de Agosto de 1997, i.e. decorrido um ano sobre a data do esbulho dos RR., que como alegado pela sociedade Autora. na petição inicial e posteriormente provado ocorreu em princípios de Agosto de 1996 - interpretação diversa faz indevida aplicação do artigo 1282.º do Código Civil anterior.
  V. Dada a caracterização dos actos de esbulho feita pela sociedade Autora. na petição inicial, factos que resultaram provados- "em princípios de Agosto os RR. demoliram as paredes divisórias das fracções, desde essa altura, contra a vontade expressa da A, procederam à demolição das portas de entrada daquelas fracções e no seu lugar construíram uma parede exterior de mármore ao longo das fracções B20, C20 e D20 que ficaram com uma única porta de entrada, e colocaram ainda dois portões de ferro no corredor do 20.º andar do Ed., um, junto aos elevadores do prédio e da fracção A20, outro, junto da fracção "F20"- os actos de retenção e fruição material das fracções pelos RR. não foram ocultos, e, de imediato, a sociedade Autora. deles teve conhecimento - interpretação diversa faz indevida aplicação do artigo 1282.º do Código Civil anterior.
  VI. Qualquer violência sobre as coisas esbulhadas - que se não aceita, dado o facto de a entrega das fracções ter sido feito pela proprietária registada das fracções e as referidas obras haverem sido autorizadas e sancionadas por acto seu - não impediu a Autora. de reagir desde pelo menos Fevereiro de 1997, o que implica que em Fevereiro de 1998 se encontrava decorrido o prazo de um ano para interpor acção de restituição de posse e que, consequentemente o direito de recorrer a tal acção estava caduco nessa data - interpretação diversa faz indevida aplicação do artigo 1282.º do Código Civil anterior.
  VII. Os RR. não estão constituídos na obrigação de indemnizar, pois é pressuposto - essencial do direito da Autora. a indemnização a condenação dos RR. a restituir a posse e tendo-se por verificada a excepção peremptória de caducidade do seu direito de recorrer a acção de restituição, tal importa a absolvição total do pedido de restituição de posse formulado pela Autora. - interpretação diversa faz indevida aplicação do artigo 1284.º do Código Civil anterior.
  VIII. Os RR. não estão constituídos em obrigação de indemnizar porque o alegado prejuízo ou dano por ela sofrido de não haver podido arrendar as fracções em Agosto de 1996 a pessoas, que nessa data, estavam interessadas em as arrendar pela renda mensal, relativa a cada uma delas de MOP$8,000.00 (oito mil patacas) não resultou de acto seu, pois o acto de ocupação das fracções pelos RR. foi autorizado pelo representante da sociedade proprietária registada das mesmas (desconhecendo os RR., aliás à data a existência da sociedade Autora.) - interpretação diversa faz indevida aplicação do artigo 483.º do C.C.
  
  II – Os factos
  Os factos dados como provados nas instâncias são os seguintes:
  A Autora "A", é uma sociedade comercial por quotas de responsabilidade limitada, com sede em Macau no [Endereço (2)], que tem por objecto a actividade de fomento predial (Alínea A da Especificação).
  Em 7 de Junho de 1996, foram celebrados três contratos promessa de compra e venda, tendo a sociedade(2) prometeu vender as fracções autónomas designadas por "A20", "B20" e "C20", para escritório, do 20° andar do prédio urbano sito em Macau no [Endereço (1)], descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n° XXXXX, fls. 34 do Livro n° X-XXX (Alínea B da Especificação).
  Tendo a sociedade(2) sido representada naqueles contratos pela sua procuradora "SOCIEDADE(1)" com poderes para o efeito (Alínea C da Especificação).
  O referido prédio urbano, denominado "Edifício", foi construí do no «Lote 17» na Zona dos Novos Aterros do Porto Exterior (NAPE) (Alínea D da Especificação).
  Nos termos dos referidos contratos, o preço de cada fracção era de HK$1.790.620,00, respeitante às fracções "A20" e "B20", e de HKD$1,489,920.00, respeitante à fracção "C20" (Alínea E da Especificação).
  Os primeiros Réus B e C são comerciantes (Alínea F da Especificação).
  O Réu B é sócio e gerente-geral das Rés sociedades "D" e "E", enquanto a Ré C, mulher daquele, é social gerente desta última sociedade (Alínea G da Especificação).
  Muito embora a sede destas sociedades esteja registada na respectiva Conservatória no [Endereço (3)], o certo é que as mesmas exercem a sua actividade comercial no [Endereço (1)] (Alínea H da Especificação).
  Os Réus B e sua mulher C tomaram a decisão de deslocar as instalações das Rés sociedades para as fracções "E20" e "F20" do 20° andar do Edifício, localizado no [Endereço (1)], melhor identificado no supra alíneas B) e D) (Alínea I da Especificação).
  Para tanto, os Réus B e C celebraram, no dia 13 de Maio de 1996, um contrato-promessa com a "SOCIEDADE(1)", procuradora da legítima proprietária daquelas fracções, nos termos do qual prometeram comprar as fracções "E20" e "F20" daquele prédio urbano (Alínea J da Especificação).
  Posteriormente, os Réus B e C decidiram aumentar a área das instalações das Rés sociedades (Alínea K da Especificação).
  O objectivo dos Réus era unificar as fracções "B20", "D20" e "F20" do 20º andar daquele edifício, todas elas contiguas, demolindo para o efeito as paredes divisórias, com vista ao alargamento das instalações das Rés sociedades (Alínea L da Especificação).
  Os Réus entraram na posse da fracção "D20", em resultado dos contactos tidos com a "SOCIEDADE(1)" através do respectivo representante F (Alínea M da Especificação).
  Em princípio de Agosto de 1996, os Réus demoliram as paredes divisória das fracções "D20" e "C20", passando assim a ocupar as fracções "B20" e "C20" desde essa altura, contra a vontade expressa da Autora (Alínea N da Especificação).
  Tendo os Réus procedido ainda à demolição das portas de entrada daquelas fracções "B20" e "C20", com uma única porta de entrada (Alínea O da Especificação).
  Em seu lugar, os Réus constituíram uma parede (exterior) de mármore ao longo das fracções "B20", "C20" e "D20", com uma única porta de entrada (Alínea P da Especificação).
  Os Réus, mais uma vez, colocaram dois portões de ferro no corredor do 20º andar do edifício, que constitui parte comum do prédio, sendo que um dos portões encontra-se instalado junto dos elevadores do prédio e da fracção "A20" e o outro portão junto da fracção "F20" (Alínea Q da Especificação).
  Portões esses que impedem a passagem e circulação para as fracções "A20", "B20", "C20", "D20", "E20" e "F20" da que andar (Alínea R da Especificação).
  Pesem embora as numerosas insistências e avisos da Autora no sentido de os Réus devolverem as fracções "A20", "B20" e "C20", conforme se comprova 1ª Secção desse Tribunal sob o n° 7/97 (Alínea S da Especificação).
  Os Réus têm-se recusado obstinadamente a proceder à sua devolução, continuando a ocupá-las contra a vontade expressa da Autora (Alínea T da Especificação).
  Não dando qualquer hipótese de resolução extrajudicial do presente litígio (Alínea U da Especificação).
  Da Base Instrutória
  Ao abrigo de três contratos promessa de compra e venda celebrados em 7 de Junho de 1996, mencionados na supra alínea B), a Autora prometeu comprar à sociedade(2) as fracções autónomas designadas por "A20", "B20" e "C20" em causa (resposta ao quesito n° 1).
  Tendo a ora Autora liquidado integralmente o preço das referidas fracções, com se infere do disposto na cláusula 2ª dos referidos contratos (resposta ao quesito n° 2).
  Logo que o processo de registo da propriedade horizontal do referido edifício estivesse concluído, as escrituras públicas de compra e venda daquelas fracções seriam outorgadas no prazo de um mês após a recepção pela Autora da respectiva notificação emitida pela sociedade promitente vendedora (resposta ao quesito nº 3).
  As referidas escrituras pública de compra e venda outorgadas por facto de não ter esta sociedade ainda recebido da promitente vendedora qualquer notificação para aquele efeito (resposta ao quesito n° 4).
  Logo após a celebração dos referidos contratos promessa, a Autora na posse das referidas fracções, com o expresso aval da sociedade promitente vendedora (resposta ao quesito n° 5).
  A Autora, tendo, desde então, actuado relativamente aqueles imóveis, usufruia e disponha dos mesmos a título pleno e exclusivo, de forma notória e pública (resposta ao quesito nº 6).
  Desde então a Autora. detendo as chaves das portas de entrada daquelas fracções e utilizando as mesmas, sem qualquer dificuldade (resposta ao quesito n° 7).
  Tendo instalado nessas fracções, "E20" e "F20" a nova sede das Rés sociedades "D E E", muito embora não tenham procedido ao registo dessa alteração na competente conservatória dos Registos Comercial e Automóvel de Macau (resposta ao quesito nº 8).
  Com vista a dar cumprimento a este propósito de aumentar a área das instalações das Rés sociedades, mencionado na supra alínea K), os Réus B e C contactaram em Julho de 1996 os sócio-gerentes da Autora, propondo-lhes a aquisição das fracções "B20" e "C20" (resposta ao quesito nº 9).
  De igual modo, o Réu B contactou a "SOCIEDADE(1)" procuradora da legítima proprietária da fracção "D20" daquele edifício, na pessoa do seus sócio-gerente F, propondo de igual modo a aquisição desta fracção (resposta ao quesito n° 10).
  Efectivamente a Autora e os dois primeiros Réus iniciaram negociações com vista à cessão da posição contractual da Autora a favor destes no tocante ao contratos promessa de 7 de Junho de 1996 referentes às fracções "B20" e "C20" do edifício(resposta ao quesito nº 12).
  No entanto, essas negociações vieram-se a gorar, não tendo a Autora e os Réus celebrado qualquer contrato-promessa de compra e venda ou de cessão de posição contratual ou qualquer outro contrato referente às referidas fracções (resposta ao quesito n° 13).
  Não tendo a Autora recebido dos Réus qualquer importância, a que título fosse, relativamente às fracções acima identificadas (resposta ao quesito n° 14).
  Os Réus B, C, "D" e "E", ocuparam as fracções "B20", "C20" do 20º andar daquele prédio urbano, em princípio de Agosto de 1996 (resposta ao quesito n° 15).
  Os Réus ocuparam também a fracção "A20" do 20º andar do Edifício, em princípio de Agosto de 1996, fracção essa também pertencente à Autora, passando a utilizá-la como armazém e depósito de materiais diversos (respostas aos quesitos n° 17 e 18).
  A Autora já tinha em carteira, em princípios de Agosto de 1996, diversas pessoas interessadas em arrendar as referidas fracções pelo valor MOP$8.000,00 de cada fracção (resposta ao quesito nº 21).
  É a Autora que figura como parte nos contratos promessa de compra e venda referidos na Especificação E) (resposta ao quesito n° 22).
  Em data anterior a 7 de Junho de 1996, em 01 de Maio de 1996, o referido F, contratou com B, dono do estabelecimento denominado "Companhia", a empreitada da obra de revestimento da superfície exterior do edifício, o prédio de que fazem parte as fracções cuja restituição se pede, havendo-se obrigado o R. B a efectuar a obra e F a pagar o preço da empreitada, fixado no total em HKD$2.182.750,00 (dois milhões cento e oitenta e dois mil setecentos e cinquenta dólares de Hong Kong), da seguinte forma:
  Com a transmissão da fracção autónoma designada por "D", do 20º andar do Edifício, no Zape, Porto Exterior, para o referido B, cujo valor que as partes haviam fixado em HKD$2.000.000,00 (dois milhões de dólares de Hong Kong), seria para compensar parte do preço da empreitada, de igual valor.
  Que o remanescente preço da empreitada, no valor de HKD$182.750,00 (cento e oitenta e dois mil setecentos e cinquenta dólares de Hong Kong), seria pago em dinheiro, a B, dez dias após a execução da obra (resposta ao quesito n° 24).
  A entrega da fracção ao R. B foi feita logo após a execução da empreitada (resposta ao quesito n° 25).
  Devido a tal transmissão da fracção autónoma "D", do 20º andar, do Edif., os RR. B e sua mulher C, decidiram celebrar em 13 de Maio de 1996, com o referido F e H, representante da sociedade(1), esta por sua vez, procuradora da sociedade(2), novo contrato promessa de compra e venda das fracções autónomas designada por "E" e "F", do 20º andar, do mesmo prédio (resposta ao quesito n° 26).
  O preço fixado para a venda das fracções foi de HKD$4.000.000,00 (quatro milhões de dólares de Hong Kong), havendo sido declarado no contrato que os promitentes compradores haviam pago na data da celebração do contrato, a título de sinal e adiantamento do preço a quantia de HKD$2.000.000,00 (dois milhões de dólares de Hong Kong), quantia que, na realidade, à data, já havia sido paga (resposta ao quesito n° 27).
  Mas cujo pagamento foi feito em duas prestações: uma de HKD$100.000,00 (cento mil dólares de Hong Kong), em 30 de Abril de 1996, na data de celebração de um contrato promessa de compra e venda que as partes consideraram provisório, e outra de HKD$1.900.000,00 (uma milhão e novecentos mil dólares de Hong Kong), na data da celebração do contrato promessa de compra e venda no escritório de advogado, ou seja, em 13 de Maio de 1996 (resposta ao quesito n° 28).
  O remanescente do preço, no valor de HKD$2.000.000,00 (dois milhões de dólares de Hong Kong) que devia ser pago em 30 de Maio de 1996, nos termos do contrato, foi pago com recurso a um empréstimo concedido pelo "Banco" em 20 de Maio de 1996 (resposta ao quesito n° 29).
  A proprietária registada dos imóveis -"Sociedade(2)" - transmitiu anteriormente à data da outorga da procuração (junta com doc. n° 8 à p.i.), ou seja, em data anterior a 26 de Maio de 1992, à "Sociedade(1)", por contrato particular a sua posição contractual relativamente ao contrato de concessão por arrendamento com o Território de Macau, na parte relativo ao terreno onde foi implantado este edifício denominado "Edifício" (resposta ao quesito n. 30).
  Em 08 de Novembro de 1996, F em representação da "Sociedade(1)", a solicitação de B, apresentou, inclusive projecto de modificação subscrito pelo arquitecto G, para juntar as fracções "B" "C" "D" "E" e "F" do 20º andar, do Edif., implantado no Lote 17 do NAPE (resposta ao quesito n.34).
  Juntamente com o projecto de modificação, consistente também na junção de duas fracções, as fracções "N" e "O", do rés-do-chão, do mesmo edifício, cuja obra de decoração foi dada de empreitada, mais uma vez por F ao R. B (resposta ao quesito nº 35).
  O Réu B tem utilizado a fracção em causa para guardar os seus materiais (resposta ao quesito nº 39).
  A Autora. reagiu, desde Fevereiro de 1997 - data em que foi notificado o 1º R. através da notificação judicial avulsa -, que a Autora. tem vindo a realizar actos conduzentes à tentativa, para obter a restituição das fracções esbulhadas:
  Primeiro com essa notificação judicial avulsa;
  Segundo com a Acção de Restituição Provisória da posse que em 23/06/97 correu termos na 4ª Secção desse TCG sob o n° 727/97.
  Terceiro com a Acção de Restituição da Posse interposta em 12 de Maio de 1998 e que correu termos no 3º Juízo desse TCG sob o n° 133/98 (resposta ao quesito nº 40).
  
  III – O Direito
  
  1. As questões a resolver
  As questões, eventualmente, a resolver são as seguintes:
  A) Se a autora tinha a posse sobre as fracções em causa ou se, não a tendo, podia usar quanto às mesmas das acções possessórias;
  B) Se ocorreu a caducidade do direito de acção de restituição de posse:
   i) Se a notificação judicial avulsa e o procedimento cautelar de restituição provisória da posse interromperam o prazo de caducidade;
   ii) Se quando o esbulhador não tem posse do imóvel, não começa a correr o prazo de caducidade;
    iii) Se os réus reconheceram o direito da autora (ao terem pedido à autora para apresentar projecto à DSSOPT), o que impediria a caducidade;
   iv) Se a posse foi violenta, pelo que o prazo de caducidade só começaria a correr a partir da cessação da violência;
  C) Se, mesmo que tivesse ocorrido a caducidade do direito de acção, haveria lugar a indemnização pela posse ilegal.
  
  2. A posse
  A situação jurídica dos autos remonta a 1996 (celebração do contrato-promessa, tradição das fracções para o promitente-comprador e esbulho das fracções por terceiro), pelo que a lei substantiva aplicável é o Código Civil de 1966, na redacção original, vigente em Macau.
  Os factos relevantes para a questão em apreço são os seguintes:
  A autora prometeu comprar três fracções de um prédio urbano em 7 de Junho de 1996, pagando a totalidade do preço das mesmas. Logo após a celebração destes acordos, a autora passou a deter as fracções, com o aval da promitente-vendedora.
  Em princípio de Agosto de 1996, terceiros ocuparam as fracções.
  As escrituras públicas de compra e venda ainda não foram celebradas.
  Trata-se de saber se a autora, promitente-compradora, tinha a posse das fracções.
  O art. 1251.º do Código Civil define a posse como “... o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”.
  Alguma doutrina tem criticado esta noção, mas há um consenso em que a posse se traduz num exercício de poderes sobre uma coisa, mediante um comportamento que corresponde ao exercício de faculdades inerentes ao direito de propriedade ou a outro direito real (normalmente de gozo, mas também nalguns de garantia, como o penhor e o direito de retenção).
  O possuidor pode ser, ou não, simultaneamente, o titular do direito real que ele aparente com a sua actuação. Quando o possuidor é, também, o titular do direito real, diz-se que a posse é causal. Quando não é titular do direito real a posse diz-se formal.
  Tradicionalmente, considera-se que a posse é constituída por dois elementos, um objectivo e um subjectivo.
  A actuação de facto correspondente ao exercício do direito, por parte do possuidor, constitui o corpus da posse.3
  O elemento objectivo é constituído pelo animus, a intenção de exercer o direito real em causa, elemento esse que se retira do art. 1253.º, alínea a), do Código Civil, pois não são havidos como possuidores, mas como meros detentores ou possuidores precários “os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito”, situação que também se verifica nas duas outras alíneas do mesmo artigo.4
  Uma das mais importantes manifestações da posse encontra-se na sua tutela judicial, constituída pelos embargos de terceiro, pelas acções possessórias e pelo procedimento cautelar da restituição provisória da posse.
  Mas o legislador concedeu, excepcionalmente, os meios de defesa possessória a situações em que, de acordo com a maioria dos autores, não há verdadeira posse, como no caso de certos direitos de crédito. Assim, o arrendatário, o parceiro pensador, o comodatário e o depositário, privados da detenção da coisa ou perturbados no exercícios dos seus direitos, podem usar dos meios possessórios, nos termos, respectivamente, dos arts. 1037.º, n.º 2, 1125.º, n.º 2, 1133.º, n.º 2 e 1188.º, n.º 2 do Código Civil, mesmo contra os titulares dos direitos reais.
  
  3. Posse. Contrato-promessa de compra e venda de imóvel
  Na vigência da redacção original do Código Civil de 1966, abstraindo, por agora, das alterações introduzidas em Portugal nos arts. 442.º, n.º 3 e 755.º, n.º 1, alínea f), respectivamente, pelos Decretos-Lei n. os 236/80, de 18.7 e 379/86, de 11.11, discutiu-se se o promitente-comprador de imóvel, após a tradição deste, tem a respectiva posse.
  PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, com a colaboração de M. HENRIQUE MESQUITA, 5 pronunciaram-se negativamente, nos seguintes termos:
  “Não pode, porém, sustentar-se, com base nas disposições excepcionais referidas na parte final da nota anterior,6 que, entre nós, os direitos pessoais de gozo sejam, genericamente, susceptíveis de posse - e, consequentemente, de protecção possessória -, independentemente de saber qual o negócio que lhes deu origem (em sentido contrário, Vaz Serra, na Rev. de Leg. e de jur., anos 110.°, págs. 172-173; 112.º, págs.189-190, e 114.º, págs. 22 e segs.). E muito menos pode sustentar-se, como faz Menezes Cordeiro (cfr. Direitos reais, vol. I, págs. 551 e segs., e Da natureza jurídica do direito do arrendatário, na Rev. da Ord. dos Adv., ano 40.°, págs. 364 e segs.), que o Código Civil consagrou a concepção objectiva de posse. A interpretação conjugada dos artigos 1251.º e 1253.° não deixa, a tal respeito, quaisquer dúvidas.
  Sempre que, por conseguinte, a lei não estenda a protecção possessória a determinado direito pessoal de gozo, não poderá o respectivo titular, invocando apenas o exercício dos poderes correspondentes a esse direito, defender a sua posição jurídica pela via das acções possessórias ou dos embargos de terceiro. Tal será o caso, por exemplo, do mandatário com poderes de representação relativamente às coisas do mandante que detém em seu poder, ou, no comum das situações, o do promitente-comprador a quem foi antecipadamente entregue a coisa que constitui objecto do contrato prometido. Vide, neste sentido, os acórdãos do S. T. J., de 29 de Janeiro de 1980 (sobre acções possessórias), na Rev. de Leg. e de Jur., ano 114.°, págs. 17 e segs., com anotação discordante de Vaz Serra, e de 28 de Dezembro de 1975 (sobre embargos de terceiro), na mesma Revista, ano 109.°, págs. 344 e segs. O contrato-promessa, com efeito, não é susceptível de, só por si, transmitir a posse ao promitente-comprador. Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário (cfr. os acórdãos do S. T. J., de 29 de Março de 1968, de 15 de Janeiro de 1974 e de 29 de Janeiro de 1980, respectivamente no B. M. J., n.º 175, págs. 272 e segs., n.º 233, págs. 173 e segs., e n.º 293, págs. 341 e segs.)”.
  Um dos referidos autores, ANTUNES VARELA, voltou a defender a mesma ideia, com o rigor e a autoridade características, da seguinte forma: 7
  “A verdade, porém, é que a tradição da coisa, móvel ou imóvel, realizada a favor do promitente-comprador, no caso da promessa de compra e venda sinalizada, não investe o accipiens na qualidade de possuidor da coisa. E, se a entrega da coisa não confere a posse dela ao promitente-comprador, nenhum sentido fará crismar a situação com o nome de posse legítima, em oposição à chamada mera posse precária, de que fala o acórdão e a que se refere o artigo 1253.° do Código Civil.
  A posse é concebida, na acepção rigorosa da lei civil portuguesa (art. 1251.° do Cód. Civil), como o poder de facto que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.
  E os poderes que o promitente-comprador exerce de facto sobre a coisa, sabendo que ela ainda não foi comprada, não são os correspondentes ao direito do proprietário adquirente, mas os correspondentes ao direito de crédito do promitente-adquirente8 perante o promitente-alienante ou transmitente.
  Se este direito de crédito à venda da coisa, mesmo quando haja tradição dela, não goza sequer de eficácia real, senão nos termos excepcionais previstos e regulados no artigo 413.º do Código Civil, não se compreenderia que esse precário direito se convertesse num verdadeiro direito real como a posse pelo simples facto da entrega antecipada da coisa.
  O que a entrega (tradição) do móvel ou imóvel atribui ao promitente-comprador é um direito pessoal de gozo sobre a coisa, semelhante ao do locatário ou do comodatário, e mais forte, em certos aspectos, do que o direito conferido ao mandatário (em que o mandato envolva certo uso da coisa), ao credor pignoratício9, ao depositário ou ao empreiteiro cuja obra se refira à coisa entregue, e muito diferente do direito que compete ao mutuário.
  E em todos os casos em que a pessoa detém, usa, frui a coisa ou dispõe dela, sem a intenção de agir como beneficiária de um direito real, embora com intenção de exercer qualquer direito pessoal de gozo ou outro direito de conteúdo mais fraco, manda a lei que se fale em simples detenção ou posse precária (art. 1253.º do Cód. Civil), sem embargo de a algumas de tais situações aproveitar aquele instrumento fundamental de tutela da sujeição da coisa a certas necessidades da pessoa, que são as denominadas acções possessórias”10.
  E numa outra anotação a outro acórdão, o mesmo ANTUNES VARELA11 retoma as mesmas ideias:
  “Os poderes em que o promitente-comprador fica investido com a traditio da coisa objecto da promessa integram, sem sombra de dúvida, um verdadeiro direito de uso, e quando, como no caso presente acontece, os poderes atribuídos envolvem ainda a faculdade de ceder (onerosamente) a outrem o gozo da coisa, o promitente-comprador passa a deter mesmo um direito de uso e fruição, como o acórdão acertadamente lhe chama.
  Uso e fruição do imóvel que o não elevam, contudo, ao altar (jurídico) do possuidor da coisa.
  É verdade que o promitente-comprador, com a traditio da coisa, passa a aproveitar directamente as utilidades que o imóvel pode proporcionar ao homem, em termos que excedem, sob vários aspectos, os poderes próprios de um simples credor, ainda que a obrigação tenha por objecto a prestação de coisa.
  Mas menos verdade não é que a posse, tal como o Direito utilmente a concebe e a lei portuguesa a define, se não limita a esta materialidade em que o aproveitamento económico da coisa se traduz.
  A posse não se esgota no corpus da actuação de quem materialmente detém a coisa; compreende ainda, como logo transparece no texto legal introdutório do instituto (art. 1251.°), apesar, da secura sintética dos seus termos, o animus com que a exploração económica da coisa é exercida.
  E que esse animus pressupõe na posse a intenção de agir como titular da propriedade ou de outro direito real sobre a coisa resulta, não só da definição lapidar da posse contida no referido artigo 1251.º do Código Civil, mas principalmente do modo como o artigo 1253.° expurga o conceito legal (da posse) de todas as situações em que o detentor de facto da coisa procede sem intenção de agir como beneficiário do direito (direito de propriedade ou outro direito real sobre a coisa, como se depreende do texto do mencionado art. 1251.°).
  E o promitente-comprador, investido prematuramente no gozo da coisa, que lhe é concedido na pura expectativa da futura celebração do contrato prometido, não é possuidor dela12, precisamente porque, sabendo ele, como ninguém, que a coisa pertence ainda ao promitente-vendedor e só lhe pertencerá a ele depois de realizado o contrato translativo prometido, não pode agir seriamente com a intenção de um titular da propriedade ou de qualquer outro direito real sobre a coisa.
  Ele é apenas, como os autores de goma no colarinho se não cansam de repetir, o titular de um direito pessoal de gozo13, destinado a perdurar como tal, até à celebração do contrato definitivo ou a adjudicação compulsória da coisa (resultante da execução específica: art. 830.º do Cód. Civil) ou até à resolução ou anulação do contrato-promessa”.
  Já VAZ SERRA 14 sustentou o contrário:
  “Ora, o promitente-comprador, que toma conta do prédio e nele pratica actos correspondentes ao exercício do direito de propriedade, sem que o faça por mera tolerância do promitente-vendedor, não procede com a intenção de agir em nome do promitente-vendedor, mas com a de agir em seu próprio nome: não existe, entre ele e o promitente-vendedor, um negócio jurídico (título) que revele a sua qualidade de mero detentor ou possuidor em nome do promitente-vendedor, a ponto de os actos que pratique na coisa deverem ser havidos como praticados por um simples possuidor em nome de outrem. Tendo celebrado um contrato-promessa de compra e venda com o promitente-vendedor, e, nessa qualidade, e na previsão da futura outorga do contrato de compra e venda prometido, passando a conduzir-se como se a coisa fosse já sua, não pratica os actos possessórios com a intenção de agir em nome do promitente-vendedor, mas com a de os praticar em seu próprio nome: julga-se já proprietário da coisa, embora não a tenha ainda comprado, pois considera segura a futura conclusão do contrato de compra e venda prometido, donde resulta que, ao praticar na coisa actos possessórios, o faz com o animus de exercer em seu nome o direito de propriedade”.
  Também VAZ SERRA acrescentou o seguinte, em outra anotação:15
  “Efectivamente, a posse do direito do propriedade do prédio, que pertencia às promitentes-vendedoras, não foi adquirida pelos promitentes-compradores, dado não ter sido celebrado o prometido contrato de compra e venda; mas adquiriram os promitentes-compradores, por força do contrato de concessão do uso e fruição do prédio, a posse do direito correspondente. Esse contrato não foi um contrato de locação do prédio, mas, como se disse, um contrato inominado, e, tal como aquele (Cód. Civil, art. 1037.°, n.º 2), susceptível de protecção possessória: se, por ex., os promitentes-compradores fossem, enquanto subsistiu o contrato, turbados ou esbulhados da sua posse, poderiam usar, contra o turbador ou o esbulhador, os competentes meios possessórios.
  Apesar de o artigo 1251.º do Código Civil declarar que 《posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito da propriedade ou de outro direito real》, mostram outras disposições do mesmo Código, como, por ex., a do artigo 1037.°, n.º 2, que a posse é também admitida relativamente aos direitos pessoais ou obrigacionais relacionados com as coisas16.
  Assim, o direito de uso e fruição concedido pelas promitentes-vendedoras aos promitentes-compradores, por ser um direito relacionado com as coisas, atribuiu a estes posse desse direito e, por isso, a possibilidade de defesa possessória do mesmo”.
  
  4. Posição adoptada
  Afigura-se-nos mais rigorosa e de acordo com a lei vigente, ao tempo, a posição de PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA no Código anotado e deste último nas anotações a decisões judiciais.
   A tese de VAZ SERRA não convence porque, para justificar a sua posição, chama à colação disposições manifestamente excepcionais, em que a lei concede a tutela possessória aos direitos pessoais ou obrigacionais, como sucede nos casos dos arts. 1037.º, n.º 2, 1125.º, n.º 2, 1133.º, n.º 2 e 1188.º, n.º 2 do Código Civil. Ora, as disposições excepcionais não podem ser aplicadas analogicamente, como recorda ANTUNES VARELA.
  Não obstante, admite-se que, em certas circunstâncias, o promitente-comprador de imóvel possa agir já como titular do direito de propriedade. É o que explicam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, com a colaboração de M. HENRIQUE MESQUITA:17
  “São concebíveis, todavia, situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche excepcionalmente todos os requisitos de uma verdadeira posse. Suponha-se, por exemplo, que havendo sido paga já a totalidade do preço ou que, não tendo as partes o propósito de realizar o contrato definitivo (a fim de, v. g., evitar o pagamento da sisa ou precludir o exercício de um direito de preferência), a coisa é entregue ao promitente-comprador como se sua fosse já e que, neste estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade. Tais actos não são realizados em nome do promitente-vendedor, mas sim em nome próprio, com a intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real. O promitente-comprador actua, aqui, uti dominus, não havendo, por conseguinte, qualquer razão para lhe negar o acesso aos meios de tutela da posse”.
  
  5. O direito de retenção concedido ao promitente-comprador, em Portugal, pelos Decretos-Lei n. os 236/80 e 379/86.
  Em Portugal, entretanto, a posição do promitente-comprador veio a ser alterada por força dos Decretos-Lei n. os 236/80 e 379/86, que alteraram o Código Civil de 1966 e que nunca vigoraram em Macau, mas que importa conhecer para melhor interpretar o direito de Macau.
  O art. 442.º, n.º 3 do Código Civil , na redacção do Decreto-Lei n.º 236/80, passou a dispor:
  “No caso de ter havido tradição da coisa objecto do contrato-promessa, o promitente-comprador goza, nos termos gerais, do direito de retenção sobre ela, pelo crédito resultante do incumprimento pelo promitente-vendedor”.
  O Decreto-Lei n.º 379/86 deu uma nova redacção a esta norma, relegando-a sistematicamente para o art. 755.º, n.º 1, cuja alínea f) passou a dizer:
  “1 – Gozam ainda do direito de retenção:
  ...
  f) O beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito de real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442.º”.
  Ora, como é sabido, nos termos do n.º 3 do art. 759.º do Código Civil, são aplicáveis, quanto aos direitos e obrigações do titular da retenção, as regras do penhor. E o credor pignoratício, mediante o penhor adquire o direito de usar, em relação à coisa empenhada, das acções destinadas à defesa da posse (art. 670.º, alínea a) do Código Civil).
  Em suma, face ao actual direito português, embora, segundo a melhor doutrina, o promitente-comprador não tenha posse verdadeira e própria sobre a coisa objecto do contrato-promessa, por via do direito de retenção pode usar, quanto a ela, dos meios possessórios.
  
  6. O Direito de Macau
  A evolução do direito de Macau respeitante ao contrato-promessa foi diversa do direito português.
  Os referidos Decretos-Lei n. os 236/80 e 379/86 nunca entraram em vigor em Macau. A matéria do contrato-promessa foi objecto da Lei n.º 20/88/M, de 15 de Agosto.
  Na parte que agora nos interessa releva apenas o art. 2.º da mencionada Lei, que dispõe:
“Artigo 2.º
(Direitos especiais do promitente-comprador)
  Havendo tradição da coisa prometida vender, o crédito do promitente-comprador é pago pelo valor dessa mesma coisa, com preferência sobre os outros credores comuns”.
  
  Como se diz no Acórdão do TRIBUNAL SUPERIOR DE JUSTIÇA, de 15 de Fevereiro de 1995, Processo n.º 254,18 o crédito do promitente-comprador, de que fala a norma, é o resultante do não cumprimento imputável à outra parte.
  Concorda-se com a doutrina deste Acórdão quando opina que, em Macau, o art. 2.º da Lei n.º 20/88/M não criou um direito de retenção a favor do promitente-comprador.
  Na verdade, a lei limita-se a criar a favor do promitente-comprador, havendo tradição da coisa, um privilégio creditório,19 conferindo-lhe preferência, em caso de venda, sobre os outros credores comuns.
  A intenção do legislador de Macau, que conhecia a lei portuguesa, foi, manifestamente, a de não seguir os trilhos desta, não conferindo ao promitente-comprador um direito de retenção e, por via indirecta (de remissão para a norma aplicável ao penhor), não lhe concedendo o uso dos meios possessórios.20
  Em conclusão, no direito de Macau, vigente após a Lei n.º 20/88/M e até à entrada em vigor do Código Civil de 1999, o promitente-comprador, em caso de tradição da coisa, não tinha posse sobre a mesma, nem direito de retenção sobre ela, nem podia usar dos meios possessórios, a menos que provasse a situação excepcional atrás mencionada, de que exercia a posse em nome próprio, com a intenção de agir como seu proprietário.
  
  7. O caso dos autos
  No caso dos autos provou-se que o promitente-comprador pagou a totalidade do preço, mas nada mais de relevante quanto à intenção de o promitente-comprador agir como proprietário. O período de tempo em que deteve as fracções foi muito breve, menos de dois meses. Não provou qualquer intenção de não realizar a escritura definitiva, antes se provou que aguarda ser notificado pelo promitente-vendedor para a sua celebração (resposta ao quesito 4.º). Também não provou o promitente-comprador que agia como proprietário das fracções.
  Como ensina M. HENRIQUE MESQUITA 21 ”... não basta fazer a prova do corpus para beneficiar do regime possessório. É necessário, além disso, comprovar a existência do animus”.
  Por outro lado, quanto à tradição das fracções, o condicionalismo em que esta ocorreu não é claro. A autora nunca alegou ter havido um acordo entre as partes do contrato-promessa, muito menos um acordo escrito.22 Limitou-se a articular, algo ambiguamente, que “Logo após a celebração dos referidos contratos promessa, a Autora entrou na posse das referidas fracções, com o expresso aval da sociedade promitente vendedora” (art. 9.º da petição inicial) e foi esse o facto que foi considerado provado, com a supressão da palavra “entrou”, certamente por mero lapso de escrita (resposta ao quesito n° 5).
  Ora “posse” é um conceito de direito, pelo que se deve considerar não escrita a palavra (n.º 4 do art. 646.º do Código de Processo Civil de 1961, aplicável ao processo nos termos do n.º 2 do art. 2.º do Decreto-Lei n.º 55/99/M, de 8.10, por a acção ter sido instaurada em 2.7.99), podendo aceitar-se que se pretendeu dizer que a autora passou a ter a utilização exclusiva das fracções, que as passou a ter em seu poder.
  Na verdade, embora a palavra “posse” também tenha um significado corrente, utilizado pela generalidade das pessoas, não podia, no caso, constar do questionário ou da base instrutória, nem das respostas do tribunal colectivo, porque estava em causa precisamente a resolução da questão jurídica, que era a de saber se a autora tinha a posse das fracções.23
  Quer isto dizer que, não tendo ficado provada a situação excepcional atrás mencionada, de que o promitente-comprador exercia a posse das fracções em nome próprio, com a intenção de agir como seu proprietário, há que concluir que a autora não tinha a posse das mesmas, nem podia usar da defesa possessória.
  Está prejudicado o exame das restantes questões, visto que, não tendo a autora a posse das fracções, nem podendo usar da acção possessória, não tem direito a indemnização pelo pretenso esbulho, que não ocorreu.
  
  IV – Decisão
  Face ao expendido, negam provimento ao recurso, mantendo o Acórdão recorrido, com a absolvição das rés dos pedidos deduzidos na acção.
  Custas pela autora.
  
  Macau, 1 de Dezembro de 2004
  
  Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin
1 A decisão foi a de “... indemnizar a autora pelos prejuízos causados ...”, mas está implícito de que o que se trata é de condenar os réus a indemnizarem a autora, aliás o que foi pedido pela autora.
2 Estando implícito, embora não se tenha dito expressamente, que absolveu os réus dos pedidos deduzidos pela autora na petição inicial da acção.
3 PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Coimbra Editora, Volume III, 1987, 2.ª ed., com a colaboração de M. HENRIQUE MESQUITA, p. 5.
4 Não têm intenção de agir como titulares do direito real os que se aproveitam da tolerância do titular do direito e os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem.
5 PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, obra e volume citados, p. 6 e 7.
6 Referem-se os autores às situações atrás referidas, previstas nos arts. 1037.º, n.º 2, 1125.º, n.º 2, 1133.º, n.º 2 e 1188.º, n.º 2 do Código Civil, em que os titulares de direitos de crédito podem usar das acções possessórias.
7 ANTUNES VARELA, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 124.º, p. 347 e 348.
8 Que uma pessoa pode gozar directamente de poderes imediatos (de detenção, de uso ou de fruição) sobre uma coisa, independentemente da titularidade de um direito real, no exercício de um simples direito pessoal de gozo, foi tema largamente analisado e desenvolvido na literatura jurídica italiana por GIORGIANNI (cfr., por último, Diritto reali, no Novissimo Digesto Italiano, n. 4), tendo especialmente em vista a locação, o comodato e a anticrese. E que a mesma situação pode ocorrer no caso da promessa de compra e venda, com tradição da coisa, também HENRIQUE MESQUITA (Obrigações reais e ónus reais, Coimbra, 1990, pág. 49, nota 17) o reconhece, quando afirma, na sua preciosa monografia, que《de modo idêntico (tomando como ponto de referência a situação do comodatário) se passam as coisas nas demais relações jurídicas que já se referiram e também, por exemplo, no direito que assiste ao promissário de uma promessa de alienação, sobre o objecto do contrato prometido, quando lhe tenha sido entregue antes da celebração deste contrato》. Cfr. ainda., do mesmo autor, Direitos reais, Lições ao curso de 1966-67, Coimbra, 1967, págs. 66 e segs.
9 Quanto ao credor pignoratício, bastará recordar que, fiel à função essencialmente garantística do penhor, a lei lhe não faculta, em princípio, o uso da coisa empenhada (cfr. o art. 671.°, al. b), do Cód. Civil).
10 Vide, quanto ao direito do locatário, o disposto no artigo 1037.°, n.º 2, do Código Civil; quanto ao parceiro pensador, o artigo 1125.°, n.º 2; quanto ao comodatário, o preceituado no n.º 2 do mesmo Código; quanto ao próprio depositário, o disposto no n.º 2 do artigo 1188.°
11 ANTUNES VARELA, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 128.º, p. 145 e 146.
12 Essa é a doutrina expressamente sustentada no Código Civil anotado (Vol. III, com a colaboração de Henrique Mesquita, pág. 6), por PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, na nota n.º 6 do comentário feito ao artigo 1251.°
13 Todos sabem, no entanto, como, fugindo deliberadamente aos efeitos perversos dum conceitualismo estreito, a lei portuguesa não hesitou em estender declaradamente os instrumentos de tutela da posse (as chamadas acções possessórias) a múltiplas situações de pura detenção da coisa, inclusivamente contra o possuidor dela (em nome próprio), como sucede nos artigos 1037.°, n.º 2; 1125,°, n.º 2; 1133.°, n.º 2, e 1188.°, n.º 2.
Simplesmente, no mesmo comentário ao artigo 1251.° do Código Civil anotado (loc. cit., nota 7) se considera que, não constando dessa lista de casos excepcionais a situação do promitente-comprador a quem foi concedido, como inúmeras vezes sucede, o direito pessoal de gozo sobre a coisa, e não sendo as normas (excepcionais) que os cobrem susceptíveis de aplicação analógica, o promitente-comprador com direito pessoal de gozo sobre a coisa não goza de semelhante protecção, a não ser que o animus com que ele passe a exercer os seus poderes sobre o imóvel (tendo nomeadamente pago já todo o preço convencionado) o convertam fundadamente num autêntico possuidor (em nome próprio).
Acrescente-se, entretanto, para completa análise da situação, que não é a simples circunstância de o promitente-comprador beneficiário da tradição do imóvel não gozar da protecção real (erga omnes) própria da tutela possessória e de ser o promitente-vendedor quem, pelo contrário, continua a ser o verdadeiro possuidor da coisa que impede o promitente-comprador de defender-se, eficazmente, seja contra a reivindicação do imóvel instaurada por aquele, seja contra qualquer violação ou perturbação de facto por ele causada.
14 VAZ SERRA, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 109.º, p. 347 e 348. Cfr. também neste sentido MENEZES CORDEIRO, O novo regime do contrato-promessa, Boletim do Ministério da Justiça n.º 306, p. 45 e 46 e A Posse: Perspectivas Dogmáticas Actuais, 3.ª ed., Almedina, 2004, p. 75 e segs.
15 VAZ SERRA, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 114.º, p. 22 e 23.
16 Assim o observámos já nesta Revista.
O Cód. civ. reconhece expressamente a defesa possessória ao locatário (art. 1037.º, n.º 2), ao parceiro pensador (art. 1125.º, n.º 2), ao comodatário (art. 1133.º, n.º 2), ao depositário (art. 1183.º, n.º 2).
A tese de que a posse abrange os direitos pessoais relacionados com as coisas era já defendida, no direito anterior, por MANUEL RODRIGUES, n.º 33.
17 PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, obra e volume citados, p. 6 e 7.
18 Jurisprudência, 1995, I Tomo, p. 102.
19 O art. 733.º do Código Civil define o privilégio creditório como “... a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros”.
20 A talhe de foice, importa dizer que o Código Civil vigente desde 1 de Outubro de 1999 alterou a situação, já que no seu art. 745.º, n.º 1, alínea f), concede o direito de retenção ao beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito de real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, em termos semelhantes aos previstos na actual alínea f) do n.º 1 do art. 755.º do Código Civil português.
21 M. HENRIQUE MESQUITA, Direitos Reais, Coimbra, 1967, lições policopiadas, p. 72.
22 A. LUÍS GONÇALVES, O direito de retenção e a sua aplicação aos contratos de promessa, Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXX (1988), p. 280, defende que, para o promitente-comprador poder beneficiar do direito de retenção conferido pelo art. 755.º, , n.º 1, alínea f) do Código Civil, na redacção vigente em Portugal, a tradição da coisa deve ser objecto de documento assinado pela parte que se vincula, nos casos em que a lei exija para a sua alienação documento autêntico ou particular, nos termos do art. 410.º, n.º 2 do Código Civil.
   23 Cfr. A. ABRANTES GERALDES, Temas da Reforma do Processo Civil, Coimbra, Almedina, II vol., 1997, p. 138.
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2
Processo n.º 42/2004

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Processo n.º 42/2004