Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau
Recurso civil
N.° 43 / 2004
Reclamantes: A aliás A1
B aliás B1
Reclamada: C
1. Relatório
A aliás A1 e B aliás B1 apresentaram a reclamação para a conferência do despacho do relator lançado nos presentes autos de 17 de Dezembro de 2004 a fls. 371 e 372 que não admitiu o seu recurso para o Tribunal de Última Instância.
Os reclamantes são réus na presente acção de despejo que a reclamada intentou no Tribunal Judicial de Base sob o n.° CPE-046-01-2. A acção foi julgada parcialmente procedente com a absolvição da ré da instância por ilegitimidade e o réu condenado a despejar imediatamente das fracções arrendadas e pagar rendas mensais convencionais à autora por período fixado na sentença.
Inconformados com a sentença, vieram a autora e o réu recorrer para o Tribunal de Segunda Instância. Por seu acórdão de 13 de Maio de 2004 proferido no processo n.° 78/2004, foram julgados procedente o recurso da autora e improcedente o recurso do réu e, em consequência, considerou a ré legítima e condenou os réus a despejar imediatamente das fracções arrendadas e pagar à autora a indemnização mensal de HK$101,200.00 por todo o tempo que decorre a partir de 15 de Setembro de 2001 até efectiva entrega dos locados à autora.
Deste acórdão os réus recorreram para o Tribunal de Última Instância, nos termos do art.° 583.°, n.° 2, al. e) do Código de Processo Civil (CPC), por alegada contradição do acórdão com o decidido no recurso n.° 949 de 25 de Julho de 2002 pelo Tribunal de Segunda Instância.
Inadmitido o recurso pelo referido despacho do relator, vêm os réus apresentar a presente reclamação para conferência.
Os reclamantes pedem a admissão do recurso, sustentando que:
- a redacção do n.° 2 do art.° 583.° do CPC é diferente da do n.° 4 do art.° 678.° do CPC de Portugal por naquele haver mais a expressão “independentemente do valor”, por isso, o recurso é sempre admissível;
- no caso de dúvida sobre a admissibilidade do recurso em relação ao valor da causa suscitada pela redacção da al. e) do n.° 2 do art.° 583.° do CPC deve decidir pela sua admissão.
A reclamada respondeu com a concordância da interpretação da norma em causa feita no despacho ora reclamado. Acrescentou ainda que o recurso não deve ser admitido também por disposto no art.° 638.°, n.° 2 do CPC.
Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
2. Fundamentos
Eis de seguinte teor o despacho reclamado:
“Por requerimento de 31 de Maio de 2004 a fls. 306, os recorrentes interpuseram recurso do acórdão do Tribunal de Segunda Instância com fundamento na contradição daquele acórdão com o outro do mesmo tribunal proferido em 25 de Julho de 2002 no processo n.° 949.
O recurso foi admitido por despacho de 2 de Junho de 2004 a fls. 307, decisão essa foi mantida por outro despacho de 18 de Junho de 2004 a fls. 319 com referência ao art.° 583.°, n.° 1, ex vi art.° 638.°, n.° 1 do CPC, tendo em conta o valor da causa e da sucumbência, ou seja, o valor condenado e a alteração da decisão recorrida no sentido de condenar a ré que tinha sido absolvida, independentemente da alegação da contradição dos acórdãos.
A recorrida, na sua contra-alegação, entende que o recurso não deve ser admitido por aplicação do art.° 638.°, n.° 2 do CPC.
Notificados os recorrentes para pronunciar sobre a não admissibilidade do presente recurso, entenderam que estão reunidas as condições legais para ser apreciado o recurso por Tribunal de Última Instância.
Ora, sobre a admissibilidade do recurso, aquelas decisões não vinculam o Tribunal de Última Instância (art.° 594.°, n.° 4 do CPC).
Para apreciar a admissibilidade do presente recurso, o valor da causa é o elemento fundamental.
No termos do art.° 249.°, n.° 2 do CPC, o valor da causa na acção de despejo, como a presente, é igual ao da renda anual, acrescido das rendas em dívida e da indemnização requerida.
Segundo a autora, a renda mensal é de HKD$50.600,00 e a acção foi interposta logo depois do alegado termo do contrato do arrendamento, por isso, o valor de MOP$625.416,00 indicado pela autora está conforme com a referida norma, sendo certo que o valor não foi impugnado pelos réus ao abrigo do art.° 256.°, n.° 1 do CPC.
Esse valor da causa está dentro da alçada do Tribunal de Segunda Instância, que é um milhão de patacas (art.°, 18.°, n.° 1 da Lei n.° 9/1999).
Pelo que em princípio, o recurso não é admissível por causa do valor (art.° 583.°, n.° 1 do CPC).
Mas é na al. e) do n.° 2 deste art.° 583.° que os recorrentes fundamentam o seu recurso.
Prescreve assim a norma:
“2. O recurso é sempre admissível, independentemente do valor:
...
e) Se se tratar de acórdão do Tribunal de Segunda Instância que não admitindo recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, esteja em contradição com outro por ele proferido no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se aquele acórdão for conforme com jurisprudência obrigatória.”
De acordo com o disposto desta disposição, só é admissível recurso do acórdão do Tribunal de Segunda Instância nos termos desta alínea quando, entre outras condições, ele não é admitido recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal.
Dito por outra palavra, se o acórdão do Tribunal de Segunda Instância não é admitido recurso ordinário por causa da alçada, então, não há também recurso ao abrigo da mencionada al. e) do n.° 2 do art. 583.° do CPC.
De facto, ao acórdão do Tribunal de Segunda Instância não é admissível recurso ordinário precisamente por motivo relacionado com a alçada do tribunal.
Então, independentemente da existência da contradição alegada, o recurso não é admitido por não estar dentro da previsão da norma em apreço.
Vigora o regime semelhante em Portugal segundo o art.° 678.°, n.° 4 do CPC português, correspondente ao seu art.° 764.° entretanto revogado.
“Tendo em conta que o preceito que analisamos apenas permite recurso para o STJ das decisões de que não se possa para ele recorrer por motivos estranhos à alçada da Relação, é o referido preceito inaplicável em todas as situações em que o recurso jamais pudesse ser aceite por razão de alçada, mesmo que cumulativamente um outro motivo o impedisse.
Com efeito, a unidade do sistema jurídico determina que, nos casos de relevância da alçada como factor de inadmissibilidade do recurso, este em nenhuma circunstância deve ser admitido.
Assim, das decisões de que só caiba recurso até à Relação, não haverá recurso para o STJ, de harmonia com o disposto no n.º 4 do art.º 678.º, desde que , ex vi do n.º 1 do mesmo artigo, delas não coubesse recurso ordinário por proferidas em causas de valor não superior à alçada da Relação. Terá consequentemente de se aguardar que surja uma causa de valor superior a essa alçada para então se interpor recurso para o STJ.” (Cfr. Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 5ª ed., Almedina, 2004, p. 107 e 108)
Por causa das limitações da al. e) do n.° 2 do art.° 583.° do CPC, mesmo que haja oposição entre acórdãos do Tribunal de Segunda Instância, não é possível recorrer do acórdão deste tribunal quando não é admitido recurso ordinário por motivo da alçada.
Face ao exposto e ao abrigo dos art.°s 652.°, 619.°, n.° 1, al. e) e 621.°, n.° 1 do CPC, não admito o presente recurso.
Custas pelos recorrentes.
Notifique.”
Para analisar a questão, é de transcrever todo o n.° 2 do art.° 583.° do CPC:
“2. O recurso é sempre admissível, independentemente do valor:
a) Se tiver por fundamento a violação das regras de competência, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 34.º, ou a ofensa de caso julgado;
b) Se a decisão respeitar ao valor da causa, de incidente ou de procedimento cautelar, com o fundamento de que o seu valor excede a alçada do tribunal de que se recorre;
c) Se a decisão tiver sido proferida contra jurisprudência obrigatória.
d) Se se tratar de acórdão do Tribunal de Última Instância que esteja em contradição com outro proferido por este tribunal no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se aquele acórdão for conforme com jurisprudência obrigatória;
e) Se se tratar de acórdão do Tribunal de Segunda Instância que, não admitindo recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, esteja em contradição com outro por ele proferido no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se aquele acórdão for conforme com jurisprudência obrigatória.”
O corpo do n.° 2 e as alíneas a) a c) correspondem à sua redacção original e as últimas duas alíneas foram acrescentada posteriormente pelo art.° 80.° da Lei n.° 9/1999.
É certo que a redacção da al. e) deste n.° 2 é diferente da do n.° 4 do art.° 678.° do CPC de Portugal precisamente porque deste não consta a expressão “independentemente do valor”.
No entanto, essa diferença é somente aparente, pois resulta pura e simplesmente de arranjo e inserção sistemática diferentes das disposições nos dois Códigos.
De facto, tal expressão justifica-se plenamente na redacção inicial do n.° 2 do art.° 583.° do CPC, ou seja, em relação às suas primeiras três alíneas. São casos de violação das regras de competência ou ofensa de caso julgado, sobre valor de causa e inobservância de jurisprudência obrigatória, em que a alçada não limita a possibilidade de recurso.
Quanto às duas alíneas acrescentadas posteriormente, sobretudo à al. e), poderá causar ambiguidade na interpretação ao conjugar a própria alínea com o corpo do n.° 2, concretamente por causa de tal expressão “independentemente do valor”, constante do corpo do número.
Vista bem a intenção do legislador, a dúvida na interpretação é facilmente ultrapassada.
Essas alíneas d) e e) do n.° 2 são para prevenir os casos de contradição de acórdãos proferidos pelos tribunais superiores.
Para a situação prevista na al. d), tal expressão é desnecessária por o Tribunal de Última Instância situar no topo da hierarquia dos tribunais e não haver necessidade de fixar alçada.
Já em relação à al. e), o legislador prevê expressamente uma condição negativa, isto é, a não admissão de recurso ordinário por motivo da alçada do tribunal. Ao abrigo das regras de interpretação previstas no art.° 8.° do Código Civil, deve considerar ser intenção clara do legislador de introduzir a limitação da recorribilidade do acórdão do Tribunal de Segunda Instância por motivo de alçada, sendo irrelevante a expressão “independentemente do valor” constante do corpo do respectivo n.° 2, sob pena de ficar desprovido de sentido a tal limitação, ora expressamente estabelecida, nesta nova via de recurso.
Por outro lado, basta comparar as redacções das duas novas alíneas para chegar à conclusão de que o recurso por contradição dos acórdãos do Tribunal de Segunda Instância não são admissível em qualquer caso, mas sim limitado àqueles casos em que valor da causa seja mais elevado.
Uma vez que o valor da presente acção está dentro da alçada do Tribunal de Segunda Instância, ao acórdão deste não é admissível recurso ordinário por causa de valor. Não estando preenchidos os requisitos para pode recorrer para o Tribunal de Última Instância nos termos da al. e) do n.° 2 do art.° 583.° do CPC, o recurso não deve ser admitido.
Assim, é de manter o despacho do relator ora reclamado.
3. Decisão
Face ao exposto, acordam em julgar improcedente a reclamação, mantendo o despacho do relator reclamado.
Custas pelos reclamantes.
Ao 23 de Fevereiro de 2005.
Juízes:Chu Kin (Relator)
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai
Processo n.° 43 / 2004 1