Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau
Recurso de decisão jurisdicional em matéria administrativa
N.° 40 / 2004
Recorrente: A
Recorrido: Secretário para a Economia e Finanças
1. Relatório
A apresentou o recurso contencioso perante o Tribunal de Segunda Instância contra o despacho do Secretário para a Economia e Finanças de 23 de Outubro de 2003 que rejeitou o recurso hierárquico apresentado pela mesma.
O Tribunal de Segunda Instância, pelo acórdão de 10 de Junho de 2004 proferido no processo n.° 295/2003, negou provimento ao recurso contencioso.
Vem agora a recorrente interpor recurso jurisdicional para este Tribunal de Última Instância com a apresentação das seguintes conclusões de alegação:
“1. Imputa a recorrente ao douto acórdão recorrido errada aplicação da lei, nos termos do disposto no art.º 152.º do CPAC.
2. A questão central subjacente aos presentes autos é a de aferir da competência – ou eventual incompetência – do senhor Secretário para a Economia e Finanças para apreciar recursos hierárquicos referentes a aspectos do procedimento administrativo tendente a formar decisões relacionadas com a prática de infracções ao Regime Jurídico das Relações de Trabalho (RJRT), cuja competência para apreciação está, numa primeira fase, cometida à Direcção dos Serviços de Trabalho e Emprego (DSTE), nos termos do Decreto-Lei n.º 60/89/M, de 18 de Setembro (RIT).
3. Entre nós, temos como pacífico o entendimento de que a competência dos subalternos é separada e, por isso, dos actos por eles praticados caberá recurso hierárquico necessário, sempre que a lei não disponha, de forma expressa, em sentido contrário (art.º 153.º do Código do Procedimento Administrativo).
4. Estamos em crer que, à falta de disposição legal expressa no RIT ou noutro qualquer diploma legal, na esteira do Professor Rogério Soares, torna-se extremamente difícil sustentar a competência exclusiva da DSTE no âmbito do RIT.
5. Ao contrário da decisão recorrida, consideramos que o art.º 10.º do RIT nunca pode ser interpretado como previsão de um “recurso administrativo especial” e muito menos como norma de limitação ao regime geral de impugnação administrativa.
6. A não apreciação do recurso hierárquico apresentado pela ora recorrente ao senhor Secretário para a Economia e Finanças, no quadro das regras de repartição da competência administrativa na RAEM, consubstancia uma renúncia de competência, inadmissível nos termos do disposto no art.º 31.º do CPA, a que se junta a violação do princípio da decisão (art.º 11.º do CPA).
7. Por outro lado, estando a DSTE investida, por lei, de poderes de autoridade para efeitos de inspecção e apreciação da prática de infracções ao RJRT, a conclusão que se impõe é a de que o seu procedimento neste âmbito tem de ser qualificado como administrativo, entendendo-se este enquanto “a sucessão ordenada de actos e formalidades tendentes à formação e manifestação de vontade da Administração Pública, ou à sua execução” – cfr. n.º 1 do art.º 1.º do CPA;
8. A Administração tem competência própria para apreciação de infracções culposas às disposições do RJRT e essa competência não se confunde com a competência judicial de apreciação das mesmas, sendo que esta apenas se coloca quando esgotado o exercício da competência administrativa.
9. Para nós, o facto de se admitir que esteja vedada a sindicância administrativa da apreciação do mérito da decisão quanto à existência ou não de uma transgressão laboral, bem como o facto do acto de determinação de liquidação de multa não ser definitivo nem executório, não pode levar à conclusão de que a legalidade do procedimento administrativo também não possa ser aferida.
10. Pelo que, em nosso entender, a decisão recorrida acaba por sancionar a violação do princípio da legalidade (art.º 3.º do CPA) por parte da entidade recorrida, na medida em que o regime consagrado no RIT em nada afasta as normais vias de impugnação previstas no Código do Procedimento Administrativo.
11. Foi, desta feita, violado o princípio do duplo controle das decisões administrativas (art.º 145.º do CPA), bem como a regra constante do art.º 153.º do CPA, segundo a qual “podem ser objecto de recurso hierárquico todos os actos administrativos praticados por órgãos sujeitos a poderes hierárquicos, desde que a lei não exclua tal possibilidade”.
Pedindo a procedência do recurso e revogação do acórdão recorrido, dando-se provimento à admissibilidade do recurso hierárquico.
O recorrido, nas suas alegações, formulou as seguintes conclusões:
“1. A decisão de levantamento de auto de notícia sobre matéria laboral não é um acto administrativo para efeitos de impugnação graciosa, mas sim o acto inicial de um processo contravencional.
2. No âmbito de um processo contravencional, a decisão caberá exclusivamente ao poder judicial e não ao o executivo.
3. O Secretário para a Economia e Finanças não é órgão competente para se pronunciar sobre o acto de levantamento de auto de notícia da DSTE (actualmente DSAL) por se tratar de matéria de infracção contravencional, sob pena de usurpação de poder.”
Entendeu que deve ser negado provimento ao recurso.
A Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de Última Instância emitiu o seguinte parecer:
“O objecto do presente recurso prende-se essencialmente com a questão de saber se o Senhor Secretário para a Economia e Finanças tem ou não competência para apreciar o recurso hierárquico interposto do despacho de confirmação proferido pelo Senhor Director da (então) Direcção dos Serviços de Trabalho e Emprego (DSTE) do auto de notícia levantado pelo pessoal da inspecção, pela prática de infracções em matéria laboral, ou seja, se o referido despacho de confirmação está sujeito às normais vias de impugnação do acto administrativo, nomeadamente ao recurso hierárquico a interpor para o Senhor Secretário para a Economia e Finanças.
Consta dos autos que, por despacho do Senhor Secretário para a Economia e Finanças, proferido em 23-10-2003, foi rejeitado, com base na “falta de poderes” e nos termos do art.º 160.º do Código do Procedimento Administrativo, o recurso hierárquico apresentado pela A do acto do Director da DSTE que confirmou o auto de notícia levantado contra a A pela prática de várias contravenções laborais.
Invocando a disposição do art.º 153.º do CPA, entende a recorrente que a DSTE não tem competência exclusiva de apreciação das infracções laborais, cabendo ao Senhor Secretário para a Economia e Finanças pronunciar-se sobre o recurso hierárquico interposto, face à falta de disposição legal que exclua esta possibilidade.
Não podemos acompanhar este entendimento, já que nos parece claro resultar da própria lei (Regulamento da Inspecção do Trabalho, aprovado pelo DL n.º 60/89/M) que fica excluída a possibilidade de recurso hierárquico fora do âmbito da DSTE.
Como se sabe, no referido Regulamento da Inspecção do Trabalho foi estabelecido um regime próprio sobre o procedimento no que concerne ao levantamento dos autos de notícia em sede de matéria laboral e à sua tramitação, que se caracteriza pelo seguinte (art.ºs 7.º a 13.º e 25.º do Regulamento):
- O pessoal da inspecção deve levantar auto de notícia quando, no exercício das suas funções, verificar ou comprovar qualquer infracção a normas sobre matéria sujeita a sua fiscalização;
- Compete ao chefe do Departamento da Inspecção do Trabalho proceder à confirmação, não confirmação e desconfirmação dos autos de notícia;
- No caso de recurso, cabe ao Director da DSTE pronunciar-se sobre os despachos de confirmação, não confirmação e desconfirmação daquele chefe;
- A eficácia do auto de notícia depende da confirmação pelo chefe do DIT ou pelo Director da DSTE;
- Depois de confirmado, o auto de notícia não pode ser sustado, prosseguindo os seus trâmites até à remessa a juízo, se a esta houver lugar, e tem força do corpo delito e faz fé em juízo até prova em contrário;
- O infractor pode efectuar pagamento voluntário da multa e depósito de quantias, se for caso disso;
- Não havendo pagamento voluntário, deve o auto de notícia ser remetido a juízo no prazo de 10 dias.
Não obstante se tratar de um acto praticado pelo Director da DSTE, que é uma entidade administrativa, certo é que não resulta da lei que o despacho de confirmação de um auto de notícia, levantado no âmbito da inspecção do trabalho, está sujeito às mesmas vias de impugnação do acto administrativo, nomeadamente, ao recurso hierárquico a interpor para o Senhor Secretário para a Economia e Finanças; antes pelo contrário, após a confirmação do auto de notícia, a lei manda prosseguir os seus trâmites até a remessa ao tribunal, o que irá acontecer se não for efectuado o pagamento voluntário da multa e das quantias em dívida. Daí que fica excluída a hipótese de mais impugnação graciosa do despacho confirmativo proferido pelo Director da DSTE.
Mesmo admitindo a distinção que o legislador faz entre a fase administrativa do processo de transgressão laboral e a fase judicial, não há dúvidas que a intervenção da Administração no processo acaba com a confirmação pelo Director do auto de notícia, restando-lhe apenas remeter o auto ao tribunal no caso de o infractor não pagar voluntariamente a multa e as quantias em dívida.
Por outro lado, as infracções a normas sobre matéria das relações laborais são juridicamente qualificadas como contravenções (art.º 123.º do CPM), de natureza criminal e não administrativa, estando consequentemente sujeitas ao regime processual de processo contravencional estabelecido nos art.ºs 380.º e seguintes do CPPM, de acordo com o qual o auto de notícia é enviado ao Tribunal Judicial de Base quando não houver pagamento voluntário e equivale à acusação, cabendo ao tribunal proceder ao julgamento, o que significa que a remessa ao tribunal de auto de notícia não é para executar qualquer decisão nem cobrar coercivamente a multa graduada no auto, mas sim julgar em audiência as infracções em crise, conhecendo do mérito da causa e também todas as questões concernentes à infracção, incluindo a legalidade do procedimento administrativo.
Tratando-se da matéria integrada no direito penal, o tribunal tem competência exclusiva para julgar e decidir.
Se admitisse a apreciação pelo superior hierárquico sobre o conteúdo da contravenção e a legalidade do procedimento adoptado pelo inferior, ou mesmo apenas sobre esta legalidade, e ao mesmo tempo o auto de notícia é remetido ao tribunal, poderia criar-se uma situação de conflito entre a decisão do tribunal e a da autoridade administrativa superior, pois que o poder judicial não se limita tão só ao conhecimento do mérito mas também ao controle da legalidade de todo o procedimento, incluindo os vícios eventualmente verificados na fase administrativa.
Pelo exposto e na concordância com a posição assumida pela entidade recorrida bem como as judiciosas considerações explanadas nas suas alegações, entendemos que não merece reparo o despacho posto em crise pela recorrente que rejeitou o recurso hierárquico por si interposto.
Termos em que se deve julgar improcedente o presente recurso.”
Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
2. Fundamentos
2.1 No acórdão recorrido, parece que por manifesto lapso, os factos provados consignados no texto não respeitam aos presentes autos, mas sim de outro processo de teor em tudo semelhante. Por constarem já dos autos, nomeadamente do processo administrativo remetido pela entidade recorrida, todos elementos que servem para fixar a matéria de facto provada e não constituírem ponto de controvérsia do presente processo, passamos a considerar provados os seguintes factos, nos termos dos art.° 629.°, n.°s 1, al. a) e 2 do Código de Processo Civil, aplicável por força do art.° 149.°, n.° 1 do Código de Processo Administrativo Contencioso:
Na sequência do recurso hierárquico apresentado em 9/10/2003, de despacho do DSTE de 16 de Julho de 2003 que confirmou o auto de notícia n.º 117/2003, foi proferido pelo Senhor Secretário para a Economia e Finanças despacho de 23/10/2003, cujo teor foi o seguinte: “Concordo com o proposto.”
Os fundamentos do despacho referido, constantes da informação 56/GC-SEF/2003, de 17/10/2003, são os seguintes:
“I. Na sequência do despacho do senhor Secretário para a Economia e Finanças (SEF) de 17.09.2003, exarado na informação 47/GC-SEF/2003, de 02.09.2003, e notificado à A pelo ofício 1052/GSEF/2003, de 23.09.2003, apresentou esta sociedade novo recurso hierárquico em 09.10.2003 do auto de notícia da Direcção dos Serviços de Trabalho e Emprego n.º 117/2003 (Proc. 1476/2002).
II. Analisado o requerimento, verifica-se tratar-se de caso em tudo idêntico ao do recurso apresentado ao senhor SEF em 14.07.2003 do acto de confirmação do auto de notícia 95/2003 da DSTE, o qual deu lugar à informação 44/GC-SEF/2003, de 29.07.2003, e ao despacho de rejeição de 01.08.2003. Deste despacho recorreu a A para o senhor Chefe do Executivo em 03.09.2003, tendo então sido preparada a informação 48/GC-SEF/2003, onde a questão foi analisada em maior detalhe, e que conduziu ao despacho de concordância do senhor Chefe do Executivo de 03.10.2003.
III. Dada a identidade entre os dois casos não vemos razões para, na apreciação do presente recurso, nos afastarmos da posição já explanada na informação 48/GC-SEF/2003. Todavia parece-nos útil prestar, sucintamente, os seguintes esclarecimentos à recorrente, ainda que correndo o risco de repetirmos o que já consta da referida informação:
a) No sistema legal de Macau “infracção administrativa” e “contravenção” são conceitos distintos, pelo menos sob o ponto de vista formal e processual. Desde logo uma diferença fundamental salta à vista: nas “infracções administrativas” a sanção é aplicada pela Administração, nas “contravenções” é aplicada pelo tribunal. O Regime Geral das Infracções Administrativas (DL 52/99/M) só se aplica às primeiras, regendo-se as contravenções pelo Código de Processo Penal. Esclareça-se também, de passagem, que “tutela” e “hierarquia” são igualmente conceitos distintos em direito administrativo, não existindo entre o senhor SEF e a DSTE uma relação de tutela, como a recorrente pretende (por exemplo ao citar doutrina sobre a relação tutelar no art.º 10.º da petição, em contradição aliás com o art.º 9.º), embora esta questão não releve para a decisão do caso vertente.
O ilícito em causa no presente recurso tem natureza contravencional. Consequentemente será decido pelo tribunal judicial, o qual garantirá certamente à interessada o direito de defesa, incluindo a audiência que a mesma reclama. Não foi aplicada qualquer sanção pela Administração – nem o poderia ter sido, por falta de poderes para tanto.
Diferentemente, os ilícitos previstos no DL 16/96/M (referido como exemplo no art.º 42.º do recurso) têm natureza de infracção administrativa. Chegamos a tal conclusão por interpretação, por exemplo através de normas como a do art.º 96.º, n.º 2, e apesar dos dislates do respectivo legislador (por exemplo ao falar em “condenação”, no art.º 60.º, n.º 1, ou em “título executivo”, no art.º 62.º, n.º 2!).
b) É irrelevante para o caso vertente o despacho do senhor SEF de 29.08.2002 (exarado na informação 3514/DIT/2002, de 13.08.2002) que decidiu o recurso hierárquico apresentado em 31.07.2002 pela B, despacho esse que é referido a título de precedente no art.º 43.º da petição de recurso e no requerimento de certidão que foi entregue simultaneamente. Efectivamente esse recurso não tinha como objecto um auto de notícia por ilícito contravenciona1 (aliás nem se colocava a questão do ilícito), mas meramente uma guia de depósito: a n.º 147/02.
c) Além de não ter poderes para se pronunciar sobre ilícitos contravencionais, o senhor SEF também os não tem para se pronunciar sobre questões de direito civil e 1abora1 – e muito especialmente quando da resposta a essas questões depende exactamente a conclusão sobre se se verificou ou não o referido ilícito.
d) Finalmente, não logramos perceber qual o sentido de uma arguição de “litispendência” num recurso gracioso. Conforme a própria recorrente cita, no art.º 155.º da sua petição, a 1itispendência “acontece quando se instaura um processo, estando pendente, no mesmo ou em tribunal diferente outro processo entre os mesmos sujeitos, tendo o mesmo objecto, fundado na mesma causa de pedir” (sublinhado nosso). A leitura atenta desta definição de Antunes Varela dispensa, em nosso entender, outras explicações.
IV. Pelas razões acima apontadas e pelas constantes da informação 48/GC-SEF/2003, propomos que, nos termos do art.º 160.º do Código de Procedimento Administrativo, o senhor SEF rejeite, por falta de poderes, o recurso hierárquico interposto pela A em 09.10.2003.”
A informação n.° 48/GC-SEF/2003 tem o seguinte teor:
“A interpôs junto do senhor Chefe do Executivo (CE) em 03.09.2003 recurso hierárquico do despacho de 01.08.2003 do senhor Secretário para a Economia e Finanças (SEF) exarado na informação 44/GC-SEF/2003, de 29.07.2003.
O acto agora recorrido rejeitou o recurso hierárquico interposto pela A em 14.07.2003 do despacho do senhor director dos Serviços de Trabalho e Emprego (DSTE) de 11.06.2003 que confirmou o auto de notícia 95/2003. Cumpre-nos pronunciar-nos sobre o assunto:
1. Fundamentou-se a decisão do senhor SEF no entendimento de que, dada a natureza do auto de notícia e a sua conexão com o ilícito contravencional, não cabiam no caso as normais vias de impugnação graciosa, sob pena de o acto administrativo que decidisse o recurso estar ferido de nulidade por usurpação de poderes (art.º 122.º, n.º 2, al. a)), do Código de Procedimento Administrativo).
A recorrente pelo contrário, se bem a entendemos, defende que o acto do senhor DSTE está sujeito, com pequenas variações, à disciplina geral do acto administrativo e que, consequentemente, o senhor SEF deveria ter aceite o recurso interposto. Em nossa opinião não é assim: o acto de confirmação do auto de notícia está efectivamente sujeito a um regime diferente do regime geral do acto administrativo, sendo esta afirmação verdadeira quer em matéria de impugnação graciosa quer em matéria de impugnação contenciosa. Não se deve isto ao facto de se tratar de um acto confirmativo (como, erradamente, a recorrente parece ter entendido), mas sim por o auto de notícia ser o registo de factos que apontam para a prática de um ilícito cuja apreciação é competência exclusiva do Poder Judicial (e, dentro deste, dos tribunais comuns). Não estamos, com isto, a negar a separação entre ilícito criminal verdadeiro e próprio e ilícito criminal administrativo – estamos apenas a dizer que a apreciação deste último, quando revista a forma contravencional está entregue em exclusivo ao Poder Judicial.
Esta realidade – que se reflecte de alguma forma no art.º 11.º, n.º 3, do Regulamento da Inspecção do Trabalho (RIT), aprovado pelo DL 60/89/M, de 18 de Setembro, que estatui que “Depois de confirmado, o auto de notícia não pode ser sustado, prosseguindo os seus trâmites até à remessa a juízo, se a esta houver lugar” – é uma consequência natural da divisão de competências entre os poderes Executivo e Judicial e as consequências lógicas dessa divisão para a matéria que nos ocupa têm sido, naturalmente, extraídas pela jurisprudência.
Assim, no que toca à impugnação graciosa, o acórdão de 24.02.1950 do Supremo Tribunal Administrativo de Portugal (1ª secção, proc. 003338), cuja doutrina permanece actual, foi claríssimo: “As contravenções [ ... ] são julgadas nos tribunais comuns. As decisões proferidas em recurso hierárquico, interposto [ ... ] contra os autos de transgressão [ ... ] são contenciosamente anuláveis por vício de usurpação de poder”.
Mantendo esta jurisprudência – e estendendo a sua lógica ao recurso administrativo contencioso – o acórdão do mesmo tribunal de 10.05.95 (2ª secção, proc. 018619) concluiu que: “O acto de fixação de multa [ ... ] em processo de transgressão, é um acto que não é passível de reclamação graciosa, de recurso hierárquico ou de recurso contencioso, mas apenas atacável ou alterável na acusação [ ... ], na contestação ou na sentença de condenação. Assim, o recurso contencioso interposto de tal acto é de rejeitar por padecer de manifesta ilegalidade.” Refiram-se ainda, na mesma linha de pensamento, os acórdãos do STA de 17.01.91 (1ª subsecção CA, proc. 027501), que entendeu que “não é acto administrativo, para efeitos contenciosos, o que pune uma infracção que a lei qualifica de transgressão, praticado por entidade administrativa”, e de 02.12.93 (1ª subsecção CA, proc. 032421), segundo o qual: “I – Dispondo a lei que uma infracção é punida com multa e que se lhe aplica o Código de Processo Penal, trata-se de matéria contravencional ou de transgressão que, no nosso sistema, se enquadra no direito criminal. II – A matéria criminal está excluída do contencioso administrativo”.
Também o acórdão de 15.06.99 (proc. 1023) do antigo Tribunal Superior de Justiça de Macau, citado pela recorrente, vem afinal ao encontro da nossa tese, segundo a qual a apreciação do auto de notícia relativo a uma contravenção não constitui matéria administrativa, estando portanto subtraído às vias normais de impugnação do acto administrativo. De facto o referido aresto confirmou que a competência para a apreciação de uma contravenção pertence ao tribunal comum e não ao tribunal administrativo – logo, não é matéria administrativa.
Em suma, todos os acórdãos acima referidos apontam numa mesma direcção: não se trata de matéria administrativa e, consequentemente, não estão abertas as vias de impugnação do acto administrativo (quer as contenciosas quer as graciosas, como manda a coerência).
2. O entendimento contrário – isto é, que o acto de confirmação do auto de notícia está sujeito aos meios de impugnação típicos do acto administrativo – radica, salvo melhor opinião, num deficiente entendimento do processo contravencional. Reconhecemos que as características mistas deste último são susceptíveis de facilmente gerar a confusão. Além disso, frequentemente a linguagem utilizada – pela administração, pelos tribunais (vejam-se algumas das decisões supra) e pelo próprio legislador – é pouco rigorosa. Finalmente, as normas especiais constantes do RIT – diploma que está muito longe da perfeição técnica – vêm ainda introduzir elementos de complicação num modelo (o do processo contravencional, tal como desenhado no Código de Processo Penal) que já é, por si só, difícil de apreender.
3. Acontece no entanto que em processo contravencional a Administração não aplica sanções – diferentemente do que se passa no âmbito daquilo que em Macau se convencionou chamar infracções administrativas, cujo regime geral se encontra no DL 52/99/M, de 4 de Outubro. A provar o que dizemos está o facto de que, se o particular não pagar voluntariamente (vide infra), o processo segue para tribunal, mas não para efeitos de recurso ou de cobrança coerciva. O processo segue para tribunal, via Ministério Público, para que seja tomada a decisão da sancionar ou não sancionar, decisão que, até esse momento, não existe pura e simplesmente. E só se o tribunal aplicar a sanção é que nascerá para o particular uma obrigação de pagamento. Até esse momento não existe obrigação de pagar a multa, pela simples razão de que ainda não houve decisão sancionatória.
Recorde-se, a propósito, que no sistema jurídico de Portugal, durante o processo histórico que se convencionou chamar de purificação do direito criminal, seria criado em 1979 (pelo DL 231/79, de 24 de Julho) um regime geral daquilo a que se convencionou chamar ilícito de mera ordenação social, que (art.º 1.º, n.º 2) equiparava “às contra-ordenações as contravenções ou transgressões previstas pela lei vigente a que sejam aplicadas sanções pecuniárias”. Mas rapidamente o legislador, confrontado com as dificuldades levantadas pela norma, voltou atrás, revogando-a pelo DL 411-A/79, de 1 de Outubro, em cujo preâmbulo se reconheceu que “o ordenamento criado implicaria desde já alterações mais ou menos sensíveis na actividade e organização de vários serviços da Administração, que passariam eles próprios a aplicar as sanções previstas no diploma” (sublinhado nosso) – sanções essas que tinham sido concebidas para aplicação pelo tribunal.
4. Uma questão se coloca naturalmente neste momento: se não existe obrigação de pagar antes da condenação pelo tribunal, como classificar o pagamento voluntário de que o RIT (art.º 12.º, n.º 1) e o CPP (art.ºs 381.º, 382.º, n.º 3, 383.º, 384.º, n.º 1, e 385.º) falam sistematicamente? Não constitui esse pagamento o cumprimento de uma decisão sancionatória?
Na nossa opinião a resposta é negativa e a expressão “pagamento voluntário” é enganadora, tendo de ser entendida cum grano salis. “Pagamento voluntário”, no contexto do processo contravencional, não se contrapõe a “pagamento coercivo”. Significa, sim, a faculdade que a lei dá ao autuado de, se aceitar a responsabilidade contravencional indiciada pelo auto de notícia, pôr fim ao processo sem esperar pela decisão do mesmo e sem mais delongas ou encargos (Código de Processo Penal, art.ºs 381.º e seguintes). Contudo o particular que rejeita a responsabilidade que lhe é imputada pelo auto de notícia não deve usar essa faculdade – deve sim deixar o processo correr os seus trâmites normais (dos quais faz parte a audiência prévia à decisão, que é reclamada pela recorrente) e nele apresentar a sua defesa, em tribunal, no momento próprio. Caberá ao juiz, no final – se o processo chegar a essa fase – aplicar ou não a sanção. E se a Administração andou mal – nomeadamente não cumprindo todos os requisitos legais a que está sujeito o auto de notícia ou dando como verificados factos que não ocorreram – tanto melhor para a defesa do particular!
Como vemos, a fase judicial do processo contravencional não é portanto um recurso jurisdicional de um acto administrativo nem um mero processo de execução de uma sanção já aplicada pela Administração – mas sim o processo destinado a aplicar, ou não, a sanção correspondente ao facto ilícito. Aliás, se de mera cobrança se tratasse, o processo não seguiria para o tribunal judicial, mas para a repartição das execuções fiscais – tal como acontece com as multas efectivamente aplicadas pela Administração no âmbito das infracções administrativas (como sejam as previstas no art.º 6.º, n.º 8, do RIT e no DL 16/96/M, estas últimas referidas pela recorrente no ponto 50 do seu requerimento).
O facto de no processo contravencional geral o autuado ser autorizado pela lei a efectuar o pagamento voluntário sempre pelo montante mínimo da multa (CPP, art.ºs 381.º e 385.º), enquanto no processo contravencional laboral a Administração gradua previamente esse montante (RIT, art.º 8.º, n.º 3) não altera o que dissemos: em ambos os casos, não havendo pagamento voluntário, o processo segue para tribunal para decisão (e não para cobrança ou recurso), não havendo obrigação de pagar antes da condenação. Assim sendo, temos de concluir que a Administração, ao graduar a multa nos termos do art.º 8.º, n.º 3, do RIT, está unicamente a condicionar o referido pagamento voluntário, mas ainda não a aplicar a sanção. Tem interesse, a este respeito, o acórdão de 30 de Maio de 1990 do STA de Portugal (in Acórdãos Doutrinais do STA, Ano XXXI, n.º 367, pág. 887) que, a propósito da liberdade do tribunal no julgamento de uma contravenção de natureza fiscal, decidiu: “A fixação da multa [ ... ] que é efectuada ou pelo Chefe da Repartição de Finanças ou pelo superior hierárquico no caso daquele ser o autuante na sua veste de entidade administrativa tem como finalidade única possibilitar a extinção do procedimento judicial através do seu pagamento, não tendo manifestamente a virtualidade de balizar quanto à dosimetria da multa cominável o acto de aplicação de sanções contravencionais, que é função estritamente jurisdicional, sendo o Juiz inteiramente livre, na sua decisão ... ”. No mesmo sentido o acórdão do mesmo tribunal de 14 de Março de 1990 (idem, ano XXX, n.º 351): “I. Nas infracções fiscais, a fixação da multa efectuada pelos funcionários da Direcção Geral das Contribuições e Impostos [ ... ] tem por única finalidade o seu pagamento voluntário para efeitos de extinção do respectivo procedimento judicial. II. É ao julgador, na respectiva sentença condenatória e no caso de não pagamento voluntário da multa que lhe havia sido fixada, a quem compete fixar o quantitativo dessa multa a pagar obrigatoriamente pelo arguido” (sublinhado nosso).
5. No seu requerimento tenta no entanto a recorrente estabelecer uma fronteira entre aspectos procedimentais, que seriam passíveis de recurso hierárquico, e o “mérito da decisão”, que o não seria. A distinção ensaiada não é transparente, até porque não compreendemos qual a decisão a cujo mérito se refere a requerente.
É todavia claro que os fundamentos do recurso que foi rejeitado pelo senhor SEF podem dividir-se em dois grupos: uns são matéria cuja apreciação exige uma tomada de posição sobre a subsistência da responsabilidade contravencional, isto é, matéria exclusivamente judicial; outros não têm pura e simplesmente cabimento em procedimento administrativo. Vejamos:
a) Violação do dever de fundamentação: a fundamentação conexiona-se estreitamente com a prova da contravenção (como a requerente reconhece no art.º 19.º do seu requerimento) e com a idoneidade do auto de notícia para servir de acusação no processo jurisdicional, cabendo ao tribunal (e, antes dele, ao Ministério Público) proceder a essa avaliação;
b) Violação do direito de audiência prévia: em processo contravencional a audiência tem lugar perante o tribunal;
c) Litispendência: trata-se, por definição, de uma excepção dilatória do processo judicial (art.ºs 413.º, al. j), e 416.º a 418.º do Código de Processo Civil), a qual pressupõe a repetição de uma causa em tribunal. Consequentemente cabe ao tribunal apreciar a sua existência, não tendo sentido falar-se em litispendência em sede de procedimento administrativo;
d) Erro nos pressupostos de facto: avaliar os pressupostos de facto significa determinar se se verificaram ou não os factos ilícitos constantes do auto de notícia;
e) Prescrição das infracções: também aqui é necessário um juízo sobre a subsistência do ilícito contravencional.
Como se vê, o senhor SEF, em sede de recurso hierárquico, não poderia tomar posição sobre as questões acima listadas sem se arvorar em tribunal e invadir as competências do Poder Judicial.
6. Duas outras questões levantadas pela recorrente exigem uma explicação:
a) Em primeiro lugar, o facto de a rejeição do recurso hierárquico pelo senhor SEF contradizer a informação constante da notificação do auto de notícia enviado à recorrente pela DSTE, segundo a qual tal recurso seria admissível;
b) Em segundo lugar, o facto de o auto de notícia não ter sido confirmado pelo chefe do DIT, mas sim pelo DSTE, aparentemente privando assim a interessada do recurso previsto no art.º 10.º do RIT.
Quanto à primeira questão, tratou-se efectivamente de um lapso, e cremos já terem sido tomadas pela DSTE as medidas necessárias para evitar a sua repetição. Contudo, como facilmente se compreenderá, de tal erro de informação, embora lamentável, não resulta a criação de um tipo de recurso não existente no sistema legal.
A resposta à segunda questão é menos simples e põe de novo em evidência as debilidades do RIT e a inépcia do respectivo legislador, a exigir algum esforço do intérprete. De acordo com o seu art.º 10.º cabe ao DSTE pronunciar-se, em sede de recurso (sic), sobre os despachos de confirmação, não confirmação e desconfirmação proferidos pelo chefe do DIT. Também o art.º 4.º, al. e), da Lei Orgânica da DSTE (DL 52/98/M, de 9 de Novembro) confere ao director competência para “decidir, nos termos do Regulamento da Inspecção do Trabalho, sobre a confirmação dos autos de notícia”.
Uma primeira leitura destas normas pode inculcar a ideia de que a competência para os referidos despachos cabe exclusivamente ao chefe do DIT, cabendo ao DSTE funcionar como mera instância de recurso. Todavia uma leitura mais atenta do RIT conduz-nos à conclusão de quer o chefe do DIT quer o DSTE são competentes para proferir os referidos despachos, já que o art.º 11.º, n.º 2, fala, genericamente, em “entidade com competência para a confirmação”, e o n.º 1 diz que a eficácia do auto depende “da confirmação pelo chefe do DIT ou pelo director da DSTE”. A recorrente, aliás, parece aceitar também esta interpretação (art.ºs 44.º e 45.º do requerimento).
Consequentemente, o “recurso” referido no art.º 10.º apenas funcionará quando seja o chefe do DIT a exercer essa competência, permitindo ao dirigente máximo do serviço ter a última palavra – e julgamos ter sido apenas esta a intenção do legislador, não a de consagrar um verdadeiro recurso hierárquico. Trata-se de uma assimetria do diploma que só não nos choca grandemente porque sabemos que a defesa do particular em processo contravencional se faz em sede judicial. Em qualquer caso parece-nos indefensável a opinião da requerente, segundo a qual a competência do DSTE prevista no art.º 10.º se transferiria para o SEF quando fosse aquele, e não o chefe do DIT, a proferir despacho sobre o auto de notícia: a lei não opera tal transferência e os titulares dos órgãos também não o podem fazer (conforme o art.º 3.º,1°, n.º 1, do CPA).
7. Reconhecemos que algumas das opiniões acima expostas não são totalmente isentas de polémica, mas polémica é precisamente algo que tem acompanhado o ilícito contravencional desde há muito. As contravenções são, na verdade, uma forma jurídica heterodoxa que levanta dificuldades de vária ordem. Por opção político-legislativo o seu regime continuou a fazer parte do Código Penal de Macau, numa época em que em Portugal já se tinha avançado para uma delimitação mais rigorosa das fronteiras do direito criminal – através da criação do regime geral das contra-ordenações, em 1979, e da expurgação da matéria do Código Penal, em 1982 – ficando as contravenções limitadas a legislação avulsa residual.
8. Sumário:
a) A A recorreu para o senhor Chefe do Executivo do despacho do senhor Secretário para a Economia e Finanças que rejeitou o recurso hierárquico que a referida sociedade havia interposto do despacho do senhor Director dos Serviços de Trabalho e Emprego que confirmou o auto de notícia 95/2003 (relativo ao não cumprimento de certas obrigações de carácter laboral que recaem sobre o empregador);
b) A decisão do senhor SEF, que consideramos correcta, baseou-se no facto de caber exclusivamente ao Poder Judicial apreciar a verificação de ilícitos contravencionais;
c) A Administração não aplica sanções de natureza contravencional,
d) e o levantamento e confirmação, pela Administração, de auto de notícia pela prática de contravenção não são actos impugnáveis pelos meios de impugnação típicos do acto administrativo;
e) O pagamento espontâneo, com o qual o particular pode pôr fim ao processo contravencional antes da decisão do tribunal, é meramente uma faculdade concedida por lei e não o cumprimento de uma medida sancionatória já tomada;
f) O particular é, no entanto, livre de deixar o processo seguir o seu curso até ao julgamento, devendo então a sua defesa ser apresentada perante o tribunal;
g) A apreciação dos pedidos constantes do recurso hierárquico interposto para o senhor SEF implicaria necessariamente a apreciação do ilícito contravencional – isto é, o exercício de competências que cabem exclusivamente aos tribunais judiciais.
h) Em consequência o senhor SEF decidiu correctamente ao rejeitar o recurso apresentado pela A.”
É do seguinte teor o auto de notícia elaborado pelo Departamento da Inspecção do Trabalho, de que se extracta o seguinte:
“Auto de Notícia de disputa laboral n.° 117/2003
No dia 16 de Julho de 2003, Técnicos-Superiores de 2ª classe do Departamento de Inspecção do Trabalho da Direcção dos Serviços de Trabalho e Emprego da Região Administrativa Especial de Macau apresentam esta acusação contra A sita no [Endereço(1)], com base nos seguintes factos:
1) Trabalhador C (portador do BIRM n.° X/XXXXXX/X, residente na [Endereço(2)], tel: XXXXXX), contratado pela companhia acima referida como empregado de croupier (蓆面) desde 1 de Fevereiro de 1981 com o último salário diário de 15 dólares de Hong Kong. Da investigação verifica-se que, a partir de ser admitido para a companhia até 30 de Agosto de 2002, esta nunca concedeu ao referido trabalhador o descanso semanal e anual, bem como os feriados obrigatórios, nem lhe pagou a respectiva compensação. Assim, a referida companhia está obrigada a pagar-lhe as compensações por descanso semanal no valor de MOP$10.069,2375, por descanso anual no valor de MOP$2.870,295, por feriados obrigatórios no valor de MOP$2.056,085, que totalizam no valor de MOP$14.995,62.
2) Trabalhador D ...
...
65) Trabalhador E ...
66) Trabalhador F (portador do BIRM n.° X/XXXXXX/X, residente na [Endereço(3)], tel: XXXXXX), contratado pela companhia acima referida como empregado de croupier (莊荷) desde 21 de Janeiro de 1993 com o último salário diário de 15 dólares de Hong Kong. Da investigação verifica-se que, a partir de ser admitido para a companhia até 30 de Junho de 2002, esta nunca concedeu ao referido trabalhador o descanso semanal e anual, bem como os feriados obrigatórios, nem lhe pagou a respectiva compensação. Assim, a referida companhia está obrigada a pagar-lhe as compensações por descanso semanal no valor de MOP$7.003,885, por descanso anual no valor de MOP$2.150,6775, por feriados obrigatórios no valor de MOP$1.578,195, que totalizam no valor de MOP$10.732,76.
Segundo o mapa de conta anexado, o infractor está obrigado a pagar a compensação aos trabalhadores acima referidos no valor total de MOP$884.665,97.
Nestes termos, ao abrigo do n.º 2 do art.º 50.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M de 3 de Abril, este Departamento exigiu o infractor para reparar a respectiva infracção. Mas o infractor respondeu expressamente no dia 27 de Junho do ano corrente que não irá proceder à reparação das respectivas infracções porque aqueles trabalhadores já tinham interposto acção no tribunal.
Em relação à falta daquela companhia de pagamento das compensações devidas por licença de parto das 19 trabalhadoras, uma vez que até agora, as datas de parto das 18 trabalhadoras já foram mais de dois anos, e a acção criminal já foi extinta por prescrição segundo o art.° 110.°, n.° 1, al. e) do Código Penal, não se pode aplicar multa para as referidas infracções. Quanto às restantes infracções acima referidas, estão previstas no regime jurídico das relações laborais actualmente em vigor nesta Região a que correspondem as seguintes penas:
1) O infractor violou o disposto no art.° 17 do Decreto-Lei n.° 24/89/M de 3 de Abril que constitui 66 infracções. De acordo com o art.° 50.°, n.° 1, al. c) do mesmo diploma, o infractor é punível com a multa de MOP$66.000,00 a MOP$330.000,00 (MOP$1.000,00 a MOP$5.000,00, por cada trabalhador em relação ao qual se verificar a infracção);
2) O infractor violou o disposto nos art.°s 19.° e 20.° do Decreto-Lei n.° 24/89/M de 3 de Abril que constitui 66 infracções. De acordo com o art.° 50.°, n.° 1, al. c) do mesmo diploma, o infractor é punível com a multa de MOP$66.000,00 a MOP$330.000,00 (MOP$1.000,00 a MOP$5.000,00, por cada trabalhador em relação ao qual se verificar a infracção);
3) O infractor violou o disposto nos art.°s 21.° e 24.° do Decreto-Lei n.° 24/89/M de 3 de Abril que constitui 66 infracções. De acordo com o art.° 50.°, n.° 1, al. c) do mesmo diploma, o infractor é punível com a multa de MOP$66.000,00 a MOP$330.000,00 (MOP$1.000,00 a MOP$5.000,00, por cada trabalhador em relação ao qual se verificar a infracção);
4) O infractor violou o disposto no art.° 37.° do Decreto-Lei n.° 24/89/M de 3 de Abril que constitui uma infracção. De acordo com o art.° 50.°, n.° 1, al. b) do mesmo diploma, o infractor é punível com a multa de MOP$2.500,00 a MOP$12.500,00 (MOP$2.500,00 a MOP$12.500,00, por cada trabalhador em relação ao qual se verificar a infracção).
Para efeitos de exercer o poder conferido pelo n.º 3 do art.º 8.º do Regulamento da Inspecção do Trabalho aprovado pelo Decreto-Lei n.º 60/89/M de 18 de Setembro, fixamos o montante mínimo da pena de multa no valor de MOP$200.500,00.
Como a respectiva infracção ainda não tem sido reparada até à presente data, para cumprir os deveres estipulados pela lei, elaboramos o presente auto de notícia e, declaramos sob compromisso que o teor deste auto de notícia corresponde à verdade, assinando-o para efeitos de prova.
Anexo : a) Mapa de conta das quantias devidas aos trabalhadores;
b) Cópias dos documentos e declarações juntas ao presente processo.
Autuantes: (assinaturas).”
Na sequência daquele auto foi a ora recorrente notificada nos seguintes termos:
“Notificação
(pagamento das multas aplicadas e
das quantias em dívida aos trabalhadores)
Nos termos dos art.ºs 12.º a 16.º do Regulamento da Inspecção do Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 60/89/M, de 18 de Setembro, fica notificado à A para, no prazo de trinta dias (até ao dia 19/08/2003) entregar na Recebedoria da Repartição de Finanças de Macau da Direcção dos Serviços de Finanças a quantia de MOP$200,500.00 referente à multa que lhe foi aplicada no Auto de Notícia n.º 117/2003 por ter infringido o disposto no art.º 50.º, n.º 1 al.s b) e c) do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 03 de Abril, e para, no mesmo prazo, depositar no Banco, à ordem da Direcção dos Serviços de Trabalho e Emprego (conta n.º XXX-XXXXXX-XXX-X) a quantia de MOP$884,665.97 relativa as dívidas apuradas a favor dos 66 trabalhadores (a lista se anexa).
Mais fica notificado que, nos dez dias subsequentes ao termo do prazo referido (até ao dia 29/08/2003) deverá entregar nestes Serviços, as guias comprovativas de pagamentos, sob pena de o auto ser remetido ao Juízo.
Informa-se ainda à V. Exa. que nos termos das al.s a) e b) do n.º 2 do art.º 145.º, art.ºs 149.º e 155.º do Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo n.º 57/99/M, de 11 de Outubro, o presente acto administrativo pode ser impugnado:
a) Mediante reclamação para o autor do acto (Director da DSTE), no prazo de 15 dias, a contar do dia seguinte ao da presente notificação; ou,
b) Mediante recurso para o superior hierárquico do autor (Secretário para a Economia e Finanças), no prazo de 30 dias, a contar do dia seguinte ao da presente notificação.”
2.2 Questões levantadas
No presente recurso jurisdicional, a recorrente e o recorrido são os mesmos que figuram no processo de recurso jurisdicional n.° 38/2004 deste Tribunal e as questões debatidas nos dois processos são igualmente as mesmas.
Nos presentes autos, a recorrente começou por interpor recurso contencioso contra o acto do Secretário para a Economia e Finanças que rejeitou o seu recurso hierárquico relativo ao acto do Director dos Serviços para os Assuntos Laborais de confirmar o auto de notícia. Depois de o recurso contencioso ter sido julgado improcedente pelo Tribunal de Segunda Instância, a recorrente veio apresentar o presente recurso cujas alegações e as respectivas conclusões são idênticas das do outro processo acima referido.
Aqui a recorrente também suscitou duas questões:
A primeira relaciona-se com as regras de competência administrativa em que considera que a Direcção dos Serviços de Trabalho e Emprego (DSTE)1 não tem a competência exclusiva para apreciar as infracções culposas das disposições do Regime Jurídico das Relações de Trabalho e, sendo o acto de confirmação de auto de notícia da DSTE impugnável graciosamente, o Secretário para a Economia e Finanças pode apreciar tal acto de confirmação em sede de recurso hierárquico. A não apreciação do recurso hierárquico apresentado pela recorrente consubstancia na renúncia de competência, em violação do art.° 31.° e do princípio de decisão previsto no art.° 11.°, ambos do Código do Procedimento Administrativo.
A segunda liga-se com a violação do princípio da legalidade pelo tribunal recorrido com o fundamento de que a apreciação administrativa de infracções contravencionais assume a natureza de procedimento administrativo e a Administração tem competência própria para apreciar infracções laborais que não se confunde com a judicial.
Por ser mesmos o quadro das circunstâncias e as questões suscitadas, entendemos que deve ser mantido o nosso entendimento formado no processo n.° 38/2004. Então, passamos a transcrever a parte de fundamentação deste, começando também pela segunda questão por ser logicamente precedente.
“2.3 A natureza do processo relativo a transgressão de normas laborais
Está em causa o acto do Secretário para a Economia e Finanças que rejeitou o recurso hierárquico apresentado pela ora recorrente contra o acto do Director dos Serviços para os Assuntos Laborais que, por sua vez, confirmou o auto de notícia n.° 95/2003 levantado por pessoal de inspecção em que a ora recorrente foi acusada da violação de várias disposições constantes do Decreto-Lei n.° 24/89/M.
O Decreto-Lei n.° 24/89/M de 3 de Abril regula as relações de trabalho e para a sua violação são cominadas com multas e pode constituir obrigação de pagar indemnização.
De acordo com o seu art.° 54.°, n.° 1:
“1. Quando não seja dado cumprimento voluntário às multas impostas pelo Gabinete para os Assuntos de Trabalho2 ou quando não haja intervenção deste serviços, compete aos tribunais judiciais, nos termos da legislação em vigor no Território, conhecer e julgar as transgressões do disposto no presente diploma.”
Resulta desta norma que cabe aos tribunais comuns o julgamento das transgressões laborais que violam o disposto naquele Decreto-Lei n.° 24/89/M.
Vejamos como se processam os trâmites do processo relativo a transgressões laborais, nos aspectos que nos interessam agora.
Nos termos do art.° 53.° do Decreto-Lei n.° 24/89/M, compete à Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais (DSAL) a fiscalização do cumprimento do disposto neste diploma que regula as relações laborais.
No exercício destas funções, é de observar o Regulamento da Inspecção do Trabalho (RIT) aprovado pelo Decreto-Lei n.° 60/89/M de 18 de Setembro.
O processo relativo a transgressões laborais inicia com o levantamento de auto de notícia pelo pessoal da inspecção da DSAL quando, no exercício das suas funções, verificar ou comprovar, pessoal e directamente, ainda que por forma não imediata, qualquer infracção a normas sobre matéria sujeita a fiscalização do Departamento de Inspecção do Trabalho (DIT) (art.° 7.° do RIT).
Passamos a transcrever dois artigos importantes do RIT sobre o auto de notícia:
“Artigo 10.°
(Confirmação dos autos de notícia)
Compete ao director da DSTE pronunciar-se, em termos de recurso, sobre os despachos de confirmação, não confirmação e desconfirmação dos autos de notícia proferidos pelo chefe do DIT.”
“Artigo 11.°
(Tramitação do auto de notícia)
1. O auto de notícia deve conter os elementos mencionados no artigo 166.º do Código de Processe Penal, com dispensa da indicação das testemunhas e da assinatura do infractor, e a sua eficácia depende da confirmação pelo chefe do DIT ou pelo director da DSTE.
2. A entidade com competência para a confirmação poderá decidir-se por alterar a graduação da multa feita pelo autuante nos termos do artigo 8.º, n.º 3, desde que a sua decisão seja devidamente fundamentada.
3. Depois de confirmado, o auto de notícia não pode ser sustado, prosseguindo os seus trâmites até à remessa a juízo, se a esta houver lugar.
4. O auto de notícia, depois de confirmado, tem força de corpo de delito e faz fé em juízo até prova em contrário, relativamente aos factos presenciados pelo autuante no exercício das suas funções.”
Elaborado o auto de notícia, este deve ser submetido à apreciação do chefe do DIT ou Director da DSAL para efeitos de confirmação ou não confirmação (art.° 11.°, n.° 1 do RIT).
No caso de esta decisão ser tomada pelo chefe do DIT, o Director da DSAL tem competência para pronunciar, em termos de recurso, sobre aquela, ou seja, os despachos de confirmação, não confirmação e desconfirmação dos autos de notícia proferidos pelo chefe do DIT (art.° 10.° do RIT).
O auto de notícia ganha a eficácia depois de ser confirmado e constitui corpo de delito no âmbito do antigo Código de Processo Penal (CPP) de 1929 ou faz fé em juízo e equivale à acusação nos termos do art.° 383.°, n.° 2 do CPP de 1996 actualmente em vigor. Por outro lado, o auto de notícia confirmado não pode ser sustado, prosseguindo os trâmites até à remessa a juízo se a multa e a quantia em dívida a trabalhadores não for paga e depositada voluntariamente (n.°s 1, 3 e 4 do art.° 11.° e n.° 7 do art.° 13.° do RIT).
Todos estes aspectos constituem a fase inicial do processo contravencional regulado no actual Código de Processo Penal como parte integrante deste tipo de processo para-criminal.
De facto, nos termos do art.° 380.° do CPP, ao processo contravencional aplicam-se as disposições especiais para este tipo de processo constantes deste Código e subsidiariamente as relativas ao processo por crime. No presente caso, são de atender, ainda em primeiro lugar, as disposições especiais constantes do RIT
Do levantamento do auto de notícia pela DSAL até a sentença final proferida por tribunal comum, todos os trâmites estão integrados no único processo contravencional, incompatível com os meios de impugnação graciosa ou contenciosa administrativos.
Mesmo no novo Código de Processo de Trabalho aprovado pela Lei n.° 9/2003, a acção contravencional prevista nos seus art.°s 89.° e seguintes, a que são aplicáveis supletivamente as disposições do processo contravencional comum e do processo criminal, também é um processo único em que engloba o levantamento do auto sobre as infracções, a remessa do auto a tribunal e o julgamento.
Também não existe no processo contravencional por violação das disposições do Decreto-Lei n.° 24/89/M a separação entre uma primeira fase administrativa e uma segunda fase judicial, tal como acontece em relação às infracções administrativas.
No Regime Geral das Infracções Administrativas e Respectivo Procedimento definido pelo Decreto-Lei n.° 52/99/M de 4 de Outubro, existe a fase administrativa destinada a tomar decisão sancionatória pela Administração e a fase jurisdicional em que o interessado pode interpor recurso contencioso para o Tribunal Administrativo contra aquela decisão sancionatória.
Nota-se ainda que, relativamente a infracções administrativas, a decisão sancionatória proferida pela Administração constitui uma decisão final, sujeita a recurso contencioso, de que o infractor violou respectiva norma. Mas no processo contravencional laboral, o auto de notícia confirmado serve apenas como acusação a ser submetida a julgamento, não há ainda juízo de certeza da prática de contravenções.
2.4 Recorribilidade do acto de confirmação do Director da DSAL
Determinada a natureza do processo contravencional, é natural concluir que em relação ao acto de confirmação do Director da DSAL não pode usar os meios de impugnação graciosa ou contenciosa administrativos.
Temos de ficar claro de que a fase da instrução de auto de notícia não é um procedimento administrativo, mas sim parte integrante do processo contravencional, sujeita ao regime deste, diferente do previsto no Código do Procedimento Administrativo.
Não vale aqui a tese de divisão de competências entre os órgãos superiores e subalternos para fundamentar a possibilidade de recurso hierárquico, precisamente por não estarmos em procedimento administrativo.
O recurso para o Director da DSAL dos despachos de confirmação, não confirmação ou desconfirmação de autos de notícia proferidos pelo chefe do DIT previsto no art.° 10.° do RIT constitui um meio de controlo efectuado pela hierarquia superior da entidade autuante para assegurar a legalidade material e formal de auto de notícia e permite a este ganhar a eficácia e a força de fazer fé em juízo. A sua existência não altera a natureza do processo contravencional para administrativa.
A confirmação de auto de notícia permite apenas a remessa do auto a tribunal para ser ali julgado, não havendo ainda decisão definitiva de que o arguido praticou as infracções imputadas. Na realidade, o auto de notícia equivale a acusação que consubstancia num juízo indiciário de prática de contravenções laborais por parte de arguido, não sendo ainda o juízo de certeza que só pode ser tomado por tribunal competente para o seu julgamento.
Para defender, o arguido pode, no processo contravencional, apresentar prova e defesa na audiência nos termos dos art.°s 386.°, n.°2, 387.°, n.°s 2 e 3 do CPP, como se passa, grosso modo, em processo criminal, incluíndo arguir nulidades ou irregularidades dos actos processuais nos termos previstos neste Código. A admitir a impugnação graciosa e posteriormente a contenciosa seria a duplicação de meios de defesa não consentida por lei.
É de acrescentar ainda que, ao abrigo do n.° 3 do art.° 11.° do RIT, o auto de notícia confirmado não pode ser sustado, prosseguindo os seus trâmites até à remessa a tribunal, se a esta houver lugar. Por isso, a impugnação administrativa do acto de confirmação de auto de notícia é inconciliável com a remessa imediata a tribunal.
Uma vez que do acto de confirmação do Director da DSAL de auto de notícia não cabe recursos administrativos, naturalmente o Secretário para a Economia e Finanças também não tem competência para apreciar o auto de notícia em vias de impugnação administrativa, nem directamente por não ser órgão competente para intervir neste processo judicial.”
3. Decisão
Face ao exposto, acordam em julgar improcedente o recurso.
Custas pela recorrente com a taxa de justiça fixada em 4UC.
Ao 20 de Abril de 2005.
Juízes:Chu Kin (Relator)
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai
Magistrada do Ministério Público
presente na conferência: Song Man Lei
1 Com a entrada em vigor do Regulamento Administrativo n.° 24/2004, passa a ser designada como Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais.
2 Considera-se referir à actual Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais.
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Processo n.° 40 / 2004 35