Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau
Recurso penal
N.° 8 / 2005
Recorrente: A
1. Relatório
O arguido A foi julgado como um dos co-arguidos no Tribunal Judicial de Base no âmbito do processo comum colectivo n.° PCC-082-04-3 e condenado por acórdão de 3 de Dezembro de 2004 pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo art.° 8.°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 5/91/M na pena de 8 anos e 9 meses de prisão e multa de dez mil patacas convertível em 66 dias de prisão.
Inconformado com a decisão, o arguido recorreu para o Tribunal de Segunda Instância. Por seu acórdão de 27 de Janeiro de 2005 proferido no processo n.° 4/2005, foi o recurso rejeitado por manifesta improcedência.
Vem agora o arguido recorrer para este Tribunal de Última Instância, formulando as seguintes conclusões da motivação:
1. Por acórdão do Tribunal Colectivo a quo, o recorrente foi condenado na pena única de 8 anos e 9 meses de prisão pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes. O Colectivo do Tribunal de Segunda Instância rejeitou o recurso interposto pelo recorrente A do respectivo acórdão por considerar improcedentes os respectivos fundamentos.
2. O recorrente entende que o acto consagrado no art.º 338.º n.º 1 al. a) do Código de Processo Penal só pode ser praticado pelo arguido, mesmo no julgamento à revelia. Nos termos do art.º 52.º do Código de Processo Penal, não pode ser praticado pelo defensor, dado que se trata do acto que a lei exige à sua prática pelo próprio arguido, ou seja, acto individual (acto pessoal).
3. Se, na audiência de julgamento, o arguido se remeteu ao silêncio, não pode fazer leitura de quaisquer declarações prestadas pelo arguido, pelo que o tribunal não pode inquirir as respectivas testemunhas sobre a declaração prestada pelo 2º arguido na Directoria da Polícia Judiciária a requerimento do defensor do mesmo arguido.
4. A inquirição das respectivas testemunhas sobre as declarações do 2º arguido levava a que este confessasse a prática do crime, o recorrente entende que a confissão é absolutamente um direito do próprio arguido e não pode ser feita por seu defensor.
5. Apesar de não estar regulado expressamente no Código de Processo Penal que a confissão tem de ser feita pelo próprio arguido, a estipulação da confissão deve ser mais rigorosa em comparação com as relações jurídicas cíveis. De acordo com as normas de relações jurídicas cíveis, a confissão só pode ser praticada com poder de representação especial, para não falar das relações jurídicas penais.
6. Pelo exposto, o recorrente entende que, nos termos do art.º 106.º al. c) do Código de Processo Penal, quando o tribunal a quo autorizou a inquirição das respectivas testemunhas sobre as declarações prestadas pelo 2º arguido na Directoria da Polícia Judiciária a requerimento do seu defensor, verifica-se uma nulidade insanável, por violação do disposto nos art.ºs 52.º n.º 1, 106.º, al. c) e 338.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal.
7. Nos termos do art.º 106.º, esta nulidade deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do processo, independente de arguição, pelo que solicita aos MM. Juizes do Colectivo do Tribunal de Última Instância a declaração da nulidade do respectivo acto.
8. Se os MM. Juizes do Colectivo do Tribunal de Última Instância vierem declarar nulo o acto em causa, levará necessariamente à alteração dos factos provados e, em consequência, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, ou seja, violação do art.º 400.º, n.º 2, al. a) do Código de Processo Penal.
9. Nos termos do art.º 418.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, o processo deve ser reenviado para novo julgamento.
O Ministério Público concluiu, na sua resposta, de seguinte forma:
“1. Rigorosamente não está em causa a leitura das declarações anteriormente prestadas pelo 2º arguido.
2. O que acontece é que foi autorizada pelo Tribunal, a requerimento do defensor do 2º arguido, que as testemunhas depuseram sobre as informações recolhidas junto dele aquando da sua detenção, e não a inquirição como testemunha dos agentes policiais sobre o conteúdo das declarações por si recebidas cuja leitura não for permitida (art.º 337.º n.º 7 do CPPM).
3. Nada impede que as testemunhas policiais que tiverem intervenção na investigação criminal sejam inquiridas como testemunha sobre os factos que tomem conhecimento directo, podendo eles depor sobre as informações obtidas nas diligências por si efectuadas.
4. E mesmo admitindo que está em causa a situação alegada pelo recorrente, certo é que não há obstáculo para que o defensor de um determinado arguido requeira, em representação do arguido, a leitura das declarações anteriormente prestadas por este, nomeadamente quando se está perante uma situação de revelia.
5. O defensor exerce, em princípio e como regra, todos os direitos atribuídos ao arguido, salvo os que se revestem da característica da personalidade (art.º 52.º n.º 1 do CPPM).
6. Não nos parece que o acto de solicitar a leitura das declarações está incluído naquelas excepções.
7. No julgamento à revelia, o arguido é representado, “para todos os efeitos possíveis”, pelo seu defensor.
8. Quando o arguido não estiver presente e não puder solicitar a leitura das suas declarações anteriores, não se deve negar a mesma faculdade ao seu defensor, que age em representação do arguido e em conformidade com os interesses deste.
9. Há necessidade de interpretar restritivamente a al. a) do n.º 1 do art.º 338.º do Código de Processo Penal aos casos em que o arguido está presente, permitindo que o defensor tome a atitude processual referida na norma, quando o arguido não esteja presente na audiência.
10. E como a invocação do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada tem como pressuposto a verificação da nulidade pela violação do disposto nos art.ºs 52.º n.º 1 e 338.º n.º 1, al. a) do CPPM, a improcedência desta questão implica evidentemente a sem razão do recorrente também na parte respeitante àquele vício.”
Entendendo que se deve rejeitar o presente recurso por ser manifestamente improcedente.
Nesta instância, o Ministério Público mantém a posição assumida na resposta.
Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
2. Fundamentos
2.1 Foram dados como provados pelo Tribunal Judicial de Base e Tribunal de Segunda Instância os seguintes factos:
“1. No dia 2 de Abril de 2004, por volta das 6H30 da tarde, no exterior do Templo, perto do mercado de S. Domingo, agentes de PJ verificaram que o arguido A entregou ao arguido B um embrulho de cor de rosa (saco para comida), e a seguir deixou o local, conduzindo o motociclo com o n° CM-XXXXX.
2. Pelo que, os agentes da PJ aproximaram-se para interceptar o arguido B.
3. O arguido B ao ver os agentes da PJ, deitou imediatamente no chão o referido saco para comida que o arguido A lhe tinha entregue.
4. Os agentes da PJ apanharam de imediato o referido saco para comida, e encontraram dentro dele 2 sacos de plástico transparentes, que continham respectivamente um embrulho de planta e 20 comprimidos de cor acastanhada.
5. Após exame laboratorial, confirmou-se que a referida planta continha substância de “Canabis”, abrangida pela tabela I-C anexa ao Decreto-Lei n° 5/91/M, com peso líquido de 19.052g; os referidos 20 comprimidos continham substância de “MDMA”, abrangida pela tabela II-A anexada ao mesmo Decreto-Lei, com peso líquido total de 7.286g (sendo peso de análise quantitativo de 2.555g).
6. Os referidos produtos estupefacientes foram adquiridos, há pouco, pelo arguido B junto do arguido A, e dos quais mais de metade não era para o consumo próprio, enquanto o resto era para efeitos de consumo próprio.
7. Depois de detido, o arguido B confessou a agentes da PJ que o arguido A lhe tinha fornecido os referidos produtos estupefacientes, e o mesmo iria voltar ao Templo perto do mercado de S. Domingo para cobrar a verba do tráfico de estupefacientes.
8. Por volta das 7H00 da noite do mesmo dia, o arguido A voltou a aparecer no referido local, conduzindo o motociclo de n.° CM-XXXXX, e logo a seguir agentes da PJ interceptaram-no.
9. Os arguidos A e B conheciam perfeitamente as qualidades e características dos aludidos estupefacientes.
10. Os arguidos, agindo livres, voluntários e conscientemente, praticaram com dolo as referidas condutas.
11. As suas referidas condutas não eram permitidas por nenhuma lei.
12. Os arguidos bem sabiam que as suas referidas condutas eram proibidas e punidas por lei.
O 1º arguido A optou pelo silêncio na audiência de julgamento.
No CRC do 1º arguido, consta em seu desabono o constante a fls. 321, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido.
E no CRC do 2º arguido, consta em seu desabono o constante a fls. 327 e 328, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido.”
Nenhum facto ficou por provar.
2.2 Nulidade insanável. Leitura das declarações de arguido
O recorrente invoca a nulidade prevista na al. c) do art.° 106.° do Código de Processo Penal (CPP) por o pedido feito pelo defensor do 2° arguido B de pedir esclarecimento às testemunhas sobre as declarações prestadas por este na Polícia Judiciária só poder ser apresentado pelo próprio arguido, sob pena de violação do disposto no art.° 338.°, n.° 1, al. a) do CPP.
Para o recorrente, o pedido de leitura de declarações anteriormente prestadas pelo arguido é um direito de carácter pessoal deste e só pode ser pedida por defensor com poder especial. Por outro lado, a ausência do arguido no julgamento equivale à sua opção de silêncio e a confissão só pode ser feita pelo próprio arguido.
A apontada nulidade não foi suscitada no seu anterior recurso para o Tribunal de Segunda Instância.
Por outro lado, estão em causa as declarações do 2° arguido do processo julgado na sua ausência, situação que não se enquadra na nulidade insanável prevista na al. c) do art.° 106.° do CPP, relacionada com a ausência do arguido nos casos em que a lei exige a respectiva comparência, nem noutras previstas no mesmo artigo.
A violação do disposto no art.° 338.°, n.° 1 do CPP não constitui matéria de conhecimento oficioso.
Assim, desde que o interessado não suscitou a nulidade no recurso para o Tribunal de Segunda Instância, precludiu o direito de a invocar agora, pelo que não se deve tomar conhecimento sobre a nulidade invocada.
Mesmo que assim se não entenda, o referido fundamento também não pode proceder por duas ordens de razões.
Em primeiro lugar, na audiência de julgamento não foi realizada qualquer leitura de declarações do 2° arguido, de acordo com a acta a fls. 359 a 361.
Por outro lado, as declarações dos arguidos não serviram para formar a convicção do tribunal. Tal como se alcança através do acórdão de primeira instância, a convicção do tribunal baseou-se na prova constante dos autos e no depoimento das testemunhas inquiridas.
Em segundo lugar, mesmo que pode ser considerado como leitura das declarações do arguido, é lícito ao seu defensor requerer a leitura em audiência no caso de o arguido estar ausente. Já foi tomada a mesma posição no acórdão do Tribunal de Última Instância de 29 de Setembro de 2000 proferido no processo n.° 13/2000 que deve ser mantida.
De facto, prescreve o n.° 1 do art.° 317.° do CPP:
“1. No julgamento à revelia o arguido é representado, para todos os efeitos possíveis, pelo defensor.”
Quando o arguido não estiver presente na audiência, cabe ao seu defensor avaliar os interesses processuais do arguido durante o julgamento.
Assim, o art.° 338.°, n.° 1, al. a) do CPP que regula a condição de proceder à leitura das declarações do arguido anteriormente prestadas deve ser interpretada restritivamente de modo a ajustar às situações em que o arguido não estiver presente na audiência. Ou seja, deve permitir, neste caso, a leitura a solicitação do respectivo defensor.
Não há violação desta norma e muito menos a nulidade arguida.
Torna-se, em consequência, improcedente o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada que o recorrente fundamenta unicamente na verificação da referida nulidade.
É de rejeitar o presente recurso por manifesta improcedência.
3. Decisão
Face ao exposto, acordam em rejeitar o recurso.
Nos termos do art.° 410.°, n.° 4 do Código de Processo Penal, condenam o recorrente a pagar 4 UC.
Custas pelo recorrente com a taxa de justiça fixada em 4UC e honorários do defensor nomeado em mil duzentas patacas.
Aos 11 de Maio de 2005.
Os juízes:Chu Kin (Relator)
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai
Processo n.° 8 / 2005 1