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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso civil
N.° 15 / 2004

Recorrente: A
Recorrida: B







1. Relatório
   O autor A, recorrente do presente recurso, instaurou uma acção declarativa de condenação com processo ordinário de n.° CAO-006-01-6 no Tribunal Judicial de Base contra a ré a B, ora recorrida, pedindo que esta seja condenada a restituir a ele as quantias em depósito no montante de HKD$22.750.000,00, acrescido de juros à taxa legal contabilizados na altura em importância não inferior a MOP$3.514.875,00, até efectivo pagamento, e indemnizá-lo por todas as despesas incorridas com a efectivação do seu crédito.
   Em contestação, a ré pede a improcedência da acção e chamar a intervir na acção o Sr.° C na qualidade de responsável pelo junket que angariava jogadores para a Sala(1), e ainda a condenação do autor por litigância de má-fé.
   O pedido de chamamento foi indeferido no despacho saneador.
   Após o julgamento, a acção foi julgada improcedente e a ré absolvida do pedido. Improcedente também o pedido da ré de condenar o autor como litigante de má-fé.
   Desta decisão recorreram para o Tribunal de Segunda Instância o autor e a ré, limitando esta o recurso na parte em que julgou improcedente o pedido de condenação por litigância de má-fé.
   Por seu acórdão de 15 de Janeiro de 2004, o Tribunal de Segunda Instância acordam em negar provimento aos recursos.
   Inconformado com o acórdão, vem agora o autor recorrer para este Tribunal de Última Instância, formulando as seguintes conclusões de alegações:
   “1. O presente recurso vem interposto do douto acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância que julgou “improcedente e não provada a presente acção e, em consequência” decidiu absolver a “ré do pedido”.
   2. À luz dos factos admitidos por acordo ou dados como provados nos autos, resulta que a actuação da recorrida ao recusar-se a proceder à restituição do que recebeu em depósito, as fichas ou o seu equivalente em numerário, foi infundada e ilegítima e que, por conseguinte, a mesma deveria ter sido considerada pelo Tribunal a quo responsável por aquela restituição e, em consequência, condenada ao pagamento da quantia peticionada acrescida dos respectivos juros vencidos desde a data em que o autor primeiramente o exigiu e juros vincendos.
   3. Para fundamentar a absolvição da ré, o aresto em causa aderiu à sentença recorrida, proferida em primeira instância, como solução concreta do recurso, argumentando que se “a tese preconizada pela parte recorrente nas suas alegações para sustentar a rogada procedência da sua pretensão já se encontra suficientemente rebatida e contrariada pelos precisos termos pelos quais foi redigida a parte da fundamentação da sentença recorrida, o tribunal ad quem pode aderir a esta fundamentação como solução concreta ao recurso” – cfr. sumário do acórdão proferido nos presentes autos; in www.court.gov.mo.
   4. Ao aderir à sentença proferida em primeira instância como solução concreta do recurso interposto pelo autor, adoptando nos seus precisos termos a fundamentação aduzida na mencionada decisão judicial, o acórdão recorrido adere também aos seus vícios e, em particular, às nulidades e aos erros de julgamento de que aquela enferma.
   5. Por outras palavras, ao partilhar a mesma fundamentação da sentença, o acórdão em questão comunga também dos mesmos defeitos e erros de julgamento daquele aresto, entre os quais avultam as nulidades que em seguida se irão arguir e que constituem fundamento do presente recurso nos termos e para os efeitos do art.º 639.º do Código de Processo Civil.
   6. O acórdão recorrido – e a sentença da qual se socorreu na íntegra – para além de fazer uma errada subsunção dos factos que resultaram provados às normas jurídicas aplicáveis, optar por uma incorrecta interpretação das regras de direito e enfermar do vício de erro na norma aplicável, está ferido de nulidade:
   (i) não só por os fundamentos que são dados como assentes estarem em total contradição com a decisão tomada – nulidade prevista na al. c) do n.º 1 do art.º 571.º do Código de Processo Civil, aqui aplicável por força do disposto no art.º 633.º do mesmo Código;
   (ii) mas também porque o mesmo se volta a basear em causas de pedir não alegadas e em factos não articulados, aos quais acaba por atribuir papel decisivo na absolvição da recorrida – nulidade prevista na al. d) do n.º 1 do art.º 571.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi o citado art.º 633.º.
   7. Ao ter enunciado a páginas 99, 100, 101 e 104 (as quais se dão aqui por reproduzidas para todos os efeitos legais) a realidade que aí se descreve, é óbvio que ao douto acórdão recorrido só restaria:
   (i) por um lado, ter concluído pela existência de uma subconcessão ilícita, uma vez que tais factos traduzem claramente que a B transferiu para outrem, sem autorização do Governo de Macau, a exploração da sala de jogo em questão;
   (ii) por outro lado, ter reconhecido ao autor a tutela da confiança, na medida em que os mesmos factos demonstram à saciedade que qualquer pessoa que se desloque às salas de jogo exploradas em regime de exclusividade pela B, seja um jogador experiente ou não, sabe que a ré é responsável por tudo o que lá ocorre e que nada pode escapar ao seu controlo!
   8. Mas não. O acórdão recorrido, tal qual a sentença aderida, serve-se daqueles mesmos factos para, sustentando que o autor os conhecia e para eles contribuiu (o que é desmentido por todos os factos que constam dos autos e não se encontra sequer alegado, não sendo neste contexto, sequer imaginável uma situação dessas), declarar improcedente a sua pretensão!
   9. Está-se perante uma nítida contradição lógica entre os fundamentos e a decisão, pois na fundamentação do acórdão foi seguida determinada linha de raciocínio que apontava para uma certa conclusão e, em vez de a tirar, decidiram os Julgadores noutro sentido, oposto ou divergente – Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, Coimbra Editora, página 670.
   10. É que, por um lado, os Venerandos Juizes a quo que votaram pela improcedência do recurso interposto pelo autor, ficcionam um conhecimento e uma contribuição para uma determinada realidade que traduz uma perfeita situação de subconcessão e atribuem a esse conhecimento e contribuição relevo decisivo para negar ao autor a tutela da aparência, quando reconhecendo-se ser este um caso de transferência de exploração por parte da ré, só ela poderia responder face ao recorrente em virtude da ilegalidade desse trespasse que a ele seria sempre inoponível.
   11. E, por outro lado, enunciam uma série de factos que demonstram que é a B que detém o controlo por tudo o que se passa nas suas salas de jogo, negando, ainda assim, a tutela da aparência ao autor.
   12. Tal oposição, de tão visível e clara, é causa de nulidade do acórdão, que, recorde-se, aderiu em bloco à sentença, conforme dispõe a al. c) do n.º 1 do art.º 571.º do Código de Processo Civil aplicável por força do art.º 633.º do mesmo diploma legal.
   13. Efectivamente nas páginas 100 e 101 do acórdão enumeram-se, em cinco alíneas paradigmáticas da contradição em que incorre esta decisão por estar em manifesta oposição com os seus fundamentos, traços característicos essenciais de uma situação de subconcessão que, em virtude da sua ilicitude pública e notória determinaria sempre, quaisquer que sejam as normas jurídicas a aplicar ao caso em apreço, que fosse sobre a B que recairia a obrigação de indemnizar o autor, o que não veio a suceder.
   14. E na página 103 do acórdão onde, por seu turno, o acórdão recorrido procede a uma enumeração de um conjunto de factos que, no seu entender, importam a conclusão de não ter existido na Sala VIP em questão qualquer transferência da respectiva exploração efectuada pela B para terceiro ao arrepio do previsto no contrato de exploração de jogos de fortuna e azar que celebrou como o Governo de Macau, e que importam também a necessidade de se isentar a ré de qualquer responsabilidade pelo que se passa nas salas de jogo dos casinos que explora em regime de exclusividade, negando-se ao autor a protecção que deriva da tutela da aparência e da boa fé.
   15. Está-se perante uma clara e inequívoca contradição e oposição entre os fundamentos e a decisão que constitui nulidade nos termos e para os efeitos do disposto nos art.ºs 571.º, n.º 1, al. c) e 633.º do Código de Processo Civil, que implica, nos termos do art.º 651.º do diploma legal em apreço, que este Venerando Tribunal supra o mencionado vício, declarando a modificação da decisão proferida no acórdão recorrido nos termos preconizados pelo recorrente.
   16. Por outro lado, o acórdão em questão recusa a pretensão do recorrente por entender que este está a actuar em venire contra factum proprium, uma vez que, alegadamente, teria conhecimento e contribuíra para os seguintes factos:
– “as salas VIP sistematicamente” fornecerem “serviços de depósito, e para reaver as quantias o depositante tem de contactar com os responsáveis da respectiva sala” (vide página 105 do acórdão recorrido e 73 da sentença);
– quem joga nas salas não ter uma relação comercial directa com a ré, entre outros, por estas salas terem fichas próprias, as quais apenas podem ser jogadas pelo seu titular nessas salas (vide páginas 98 e 99 do acórdão e 63 da sentença);
– as salas VIP terem responsáveis próprios, que assumem todas as “responsabilidades decorrentes da gerência” das mesmas (vide páginas 100, 101 e 104 do acórdão e 65, 66 e 71 da sentença).
17. No entanto, o alegado conhecimento e contribuição do recorrente para a realidade factual acima descrita, como matéria relevante para a decisão da causa (porque o é, uma vez que o acórdão recorrido acaba por considerar que o autor, por conhecer essa realidade e ter contribuído para ela, está a actuar de má fé ao demandar a recorrida e por isso não merece a protecção do direito absolvendo-se, em consequência, a ré), não resulta de qualquer admissão por acordo das partes, não está provada por documento, nem por confissão reduzida a escrito, nem tão pouco o Tribunal Colectivo a deu como provada, os únicos factos que, ao abrigo do disposto no n.º 3 do art.º 562.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi n.º 2 do art.º 631.º poderão ser tomados em consideração na fundamentação do acórdão.
   18. Os factos a que se vem fazendo alusão não são também factos notórios, pois nesta categoria, sob pena do reconhecimento de uma manifesta ilegalidade, traduzida na autorização de subconcessões ilícitas e ilegais, não cabem certamente o conhecimento de que as salas VIP dos casinos explorados em regime de exclusividade pela B representam realidades jurídicas distintas das outras salas de jogo, nas quais as relações que aí se desenvolvem não têm como contra parte a sua concessionária exclusiva que esta é totalmente alheia à respectiva exploração e gestão.
   19. Do supra exposto resulta que, o acórdão em análise – que, não alterou em nada a matéria de facto dada como assente – fez, à semelhança do sucedido com a sentença a que aderiu, um exame crítico das provas baseado em meras suposições que estão em contradição absoluta com os factos a que o mesmo se deve ater na respectiva fundamentação violando de forma evidente o disposto no art.º 562.º do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no já citado n.º 2 do art.º 631.º.
   20. Os pseudo factos – factos que, repita-se, não foram alegados pelas partes em litígio, nem tão pouco sujeitos a qualquer actividade instrutória, estando, além do mais, em oposição completa com factos que, esses sim, foram alegados e sujeitos a prova e que estão expressos na resposta aos quesitos, não são factos notórios, antes pelo contrário – estão expressos nas páginas 100, 101 e 104 do acórdão e 65, 66 e 71 da sentença e servem de fundamentação às referidas decisões judiciais.
   21. Ora, ao ter fundamentado nesses termos a respectiva decisão, em consonância com o sucedido com a sentença proferida em primeira instância, o acórdão recorrido atentou também contra o disposto nos art.ºs 567.º e 5.º, n.º 2 do Código de Processo Civil (que impõem que o juiz só possa servir-se de factos articulados pelas partes).
   22. O “tribunal só é livre na qualificação jurídica dos factos desde que não altere a causa de pedir. Assim, o juiz, ao suprir as deficiências ou inexactidões das partes no tocante à qualificação jurídica dos factos ou à interpretação ou individuação das normas tem de manter-se dentro do limite fundamental que lhe marca a acção, não podendo alterar as afirmações que identificam a razão e justificam as conclusões” – Alberto dos Reis, CPC Anotado, 5.º, 93.
   23. Ora, como já se disse, aquilo que os Venerandos Juizes que votaram pela improcedência do recurso do autor fizeram foi, servindo-se de factos que não foram sequer alegados ou articulados pelas partes, lançar mão de uma excepção peremptória – a suposta má fé do autor –, que acaba por considerar decisiva para impedir ou extinguir o direito que este pretende fazer valer em juízo, quando era à recorrida, nos termos do n.º 2 do art.º 335.º do Código Civil, quem competia alegar e provar, nos termos considerados pelo acórdão, a sua total ausência de culpa e a má fé do recorrente!
   24. Não caberá nunca ao acórdão recorrido essa tarefa de alegar excepções peremptórias em nome da ré ou suprimir as deficiências da sua defesa. Tal actividade por parte dos Julgadores determina, pois, também a nulidade da sentença, prevista na segunda parte da al. d) do n.º 1 do art.º 571.º do Código de Processo Civil, e art.º 633.º e do art.º 563.º do mesmo Código, o que aqui expressamente se invoca para os devidos efeitos legais, determinando que, nos termos do art.º 651.º do diploma legal em apreço, este Venerando Tribunal supra a mencionada nulidade, declarando a modificação da decisão proferida no acórdão recorrido nos termos preconizados pelo recorrente.
   25. O contrato de concessão de jogo à recorrida deve ser qualificado como um contrato administrativo, pelo que neste ponto não merece reparos o acórdão recorrido.
   26. Apurando-se e qualificando-se as relações que se estabeleceram entre a entidade que, nas palavras da recorrida, dá pelo nome de “(1) Room ou (1)” (ou seja, o “junket”) e a B” poder-se-á determinar com rigor e certeza o sujeito passivo da obrigação de indemnizar o autor.
   27. Ora, de acordo com os factos que foram alegados pelas partes, aqueles que foram admitidos por acordo, os que foram provados por documentos e os que o Tribunal Colectivo deu como provados, e aplicando o direito aos mesmos, é somente possível atribuir às relações a que acima se fez alusão a natureza:
   – ou de uma subconcessão ilícita; ou
   – de um contrato de agência ou contrato inominado com esses traços; ou
   – de uma relação de: comitente / comissário principal / auxiliar.
   28. A conta em participação, hipótese aventada pela ré nas suas contra-alegações de 30/09/2003, traduz-se num acordo de natureza associativa pelo qual várias pessoas se propõem explorar determinada indústria, pessoas com a qualidade de comerciantes, em que os bens pertencem a um dos sócios.
   29. Ao afirmar a existência de tal acordo nos seus casinos, a ré está a confessar de forma expressa e clara que transferiu a exploração da Sala VIP a que se vem fazendo referência para um terceiro. Está então provada e demonstrada a subconcessão ilícita! É a ré que admite que comerciantes exploram nas suas salas VIP, e nesta em particular, a indústria do jogo, que as fichas de jogo pertencem a um desses associados e que o lucro e actividade se traduz na respectiva venda!
   30. O trabalho de qualificação jurídica das relações vigentes entre o “junket” e a recorrida foi omitido pelos Venerandos Juizes que votaram pela improcedência do recurso interposto pelo recorrente, os quais pura e simplesmente se abstiveram de aplicar quaisquer regras de direito aos factos em presença nos autos.
   31. Ao classificar a relação que se verificava entre o “junket” e a B como uma situação “sui generis” o acórdão recorrido violou o art.º 567.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi art.º 631.º, n.º 2, porque não indagou, nem tão pouco indicou, as normas jurídicas aplicáveis ao presente litígio e às diversas relações em que o mesmo se traduz. Consequentemente, e por maioria de razão, não chegou sequer a interpretar e a aplicar essas mesmas normas.
   32. À B foi dada garantia do exclusivo da exploração da actividade concedida atento o conjunto de apertados requisitos de segurança e garantias de confiança que esta sociedade assegurava. Daí o concedente não consentir a mais ninguém o exercício da actividade que foi objecto de concessão. E daí também à B estar vedada a possibilidade de trespassar a sua posição, salvo com autorização daquele, facto notório que a recorrida não refere por uma única vez em todas as peças que juntou aos autos.
   33. A cláusula 36.ª do “contrato de concessão de jogo” estipula que, a transferência de exploração, total ou parcial, temporária ou definitiva, e seja qual for a natureza ou forma que revista, carece de prévia autorização do Governo de Macau.
   34. O que importa deste modo apurar é se, perante a factualidade assente e dada como provada, à qual o acórdão recorrido atribui contornos nebulosos, mal clarificados e que classifica, nas suas próprias palavras, de “sui generis”, “uma sobrevivência, ainda sob sombra da concessão e criações da autonomia da gestão empresarial” poderá ou não atribuir-se a qualificação de subconcessão, o que sem dúvida sucede.
   35. Foi a própria recorrida que, nas suas peças processuais forneceu os elementos necessários para se concluir que se está perante uma situação de subconcessão. Vide as afirmações proferidas: nos art.ºs 49.º e seguintes, 54.º, 58.º, 59.º da Contestação, as quais se dão aqui por reproduzidas para todos os devidos efeitos legais; nas páginas 5, 14, 20, 34 das contra-alegações de 30/09/2003, as quais igualmente aqui se reproduzem para os mesmos efeitos.
   36. Por outro lado, resulta da matéria de facto assente que na Sala “VIP (1)” existia uma tesouraria onde era autorizado o depósito e o levantamento de fichas e um livro de lançamentos onde eram registadas essas operações.
   37. É ainda o próprio acórdão e sentença que consideram, respectivamente a páginas 98, 99, 100, 101 e 102 e 63, 66 e 67 (que também se dão por reproduzidos), existir nas Salas VIP um modo de funcionamento só compatível com a existência de subconcessão.
   38. Finalmente, foi uma das próprias testemunhas arroladas pela ré que disse claramente em Tribunal existir “um contrato” assinado entre essa mesma testemunha e a ré, o qual regulava a exploração daquela sala em regime de subconcessão.
   39. Ora, apesar de toda esta factualidade e do reconhecimento tácito e implícito da própria ré que, o acórdão recorrido, não sem alguma ligeireza, concluiu pela inexistência de subconcessão no caso em análise, configurando-o antes como uma expressão de “gestão empresarial” ou “situação sui generis”.
   40. Assim, o certo é que, dos factos atrás sumariamente enunciados é perfeitamente legítimo, mais, obrigatório concluir pela existência de uma subconcessão, expressa na circunstância de a B ter entregue a gerência e a exploração da sala VIP em questão, em regime de exclusividade, a um “grupo” que, no seu dizer tem os seus próprios funcionários, a sua própria contabilidade, a sua própria tesouraria e que compra à ré, com capitais próprios, fichas que mais tarde irá revender, condutas que o contrato de concessão celebrado com o Governo de Macau terminantemente proíbe.
   41. Subconcessão que, obviamente, é ilícita e ilegal, uma vez que, como é público e notório, o Governo de Macau não a autorizou.
   42. Traduzindo-se a situação em apreço como uma subconcessão, e estando assente a ilicitude da mesma nos termos que acima se expuseram, não pode a ré recorrida vir opor essa ilegalidade ao autor como forma de se descartar das suas responsabilidades pelos actos cometidos pelo subconcessionário, isto porque o trespasse que efectuou, não produz efeitos em relação a terceiros, designadamente o autor, por ser ilegal.
   43. A recorrida é, deste modo, a única responsável perante a pretensão do autor, até porque, como se exporá mais à frente, criou no recorrente a convicção de que assumia toda a responsabilidade por tudo o que se passa nas suas salas de jogo, e nesta em particular (como, aliás, é forçoso que seja).
   44. E não se diga que, pelo facto de a subconcessão ser ilegal, ela não existe! Mas o que se verifica de facto é que ela existe: há uma subconcessão de facto, cujo contexto é aquele que acima se descreveu.
   45. O que a B não pode fazer é opor a nulidade da subconcessão ao autor, que perante essa transferência é um terceiro – estranho à relação jurídica que se estabeleceu entre o “(1) Room ou (1)” e a ré – para se eximir às suas obrigações, sob pena de um verdadeiro venire contra factum proprium.
   46. É que o autor, como qualquer pessoa, seja ela um jogador experiente ou não, nunca poderia pensar ou imaginar que a B, concessionária exclusiva da exploração dos jogos de fortuna e azar em casino escolhida pelo Governo em função das elevadas garantias que tal concessão exige, poderia transferir a exploração da Sala VIP “(1)”, ou de qualquer outra sala, para outra entidade, que ainda por cima não tem existência jurídica, desresponsabilizando-se por tudo quanto aí aconteça!
   47. A circunstância de existir aquilo a que a recorrente atribui o pomposo nome de “grupos”, não poderá deixar de ser entendido por qualquer pessoa como um mera expressão da organização interna da B, e não, como é óbvio, como um transferência de responsabilidades desta para aqueles.
   48. E repare-se que, o entendimento que o recorrente preconiza nada tem de inovador. O antigo Tribunal Superior de Justiça de Macau, no Processo n.º 921, em que foi arguido C, a quem a ré atribui, nos presentes autos, a responsabilidade de ser o líder do “junket” da sala “(1)”, no seu acórdão de 25 de Novembro de 1998, ao analisar a situação ocorrida precisamente na Sala VIP “(1)” do Casino do Hotel, e perante os factos que o Digno Magistrado do Ministério Público, aí recorrente, considerou assentes, não hesitou e bem, em considerar que se estava perante uma situação de subconcessão ilícita!
   49. É, por conseguinte, perfeitamente legítima e plausível, aliás obrigatória, a conclusão de que se está perante uma subconcessão ilícita na Sala VIP “(1)” e que, como tal, pelos actos da subconcessionária responde, em primeiro lugar, a recorrida B, uma vez que o autor é totalmente alheio a essa relação jurídica e somente estabeleceu relações contratuais com a ré.
   50. O douto acórdão recorrido deveria, portanto, ter julgado procedente o recurso interposto pelo autor, julgando, em consequência, a acção procedente por provada. Ao não o fazer procedeu a uma errada interpretação dos factos dados como assentes, que sempre importará a sua revogação.
   51. Admitindo que entre as partes supra mencionadas não se verificava uma relação de subconcessão, então não há espaço para outras conclusões senão a de atribuir às relações entre a B e o “(1) Room ou (1)” a natureza de um contrato de agência, ainda que inominado ou de uma relação comitente / comissário e principal / auxiliar, pela qual ré igualmente deverá responder perante o autor.
   52. A agência é “o contrato pelo qual uma das partes se obriga a promover por conta da outra a celebração de contratos, de modo autónomo e estável e mediante retribuição, podendo ser-lhe atribuída certa zona ou determinado círculo de clientes” (segundo a definição fornecida pelo art.º 622.º do Código Comercial de Macau).
   53. Embora, ao recorrente não sobrem dúvidas quanto à existência de subconcessão, que como tal é ilícita e ilegal, a existência de um contrato de agência foi antecipada pela própria ré na sua contestação e na sua peça de 30/09/2003 – vide respectivamente art.ºs 50.º e 51.º, 53.º e 54.º e página 27.
   54. Resulta, portanto, do exposto que o acórdão recorrido tinha inteira liberdade para configurar a relação ora em apreço como um verdadeiro e próprio contrato de agência, situação não consagrada na lei de Macau à data da ocorrência dos factos, mas perfeitamente concebível, como aliás o demonstram os usos, ao abrigo do princípio da liberdade contratual como um contrato inominado.
   55. Na verdade atenta a factualidade acima enunciada, dúvidas não restam que, a actividade desenvolvida pelo “junket” ou “(1) Room ou (1)” preenche o elemento caracterizador por excelência do contrato de agência: a obrigação de o agente promover a celebração do contrato.
   56. Poder-se-á, pois, concluir com alguma segurança que, não existindo uma subconcessão (o que não se concede), é legítimo afirmar, pois a isso permitem os factos provados, estar-se aqui perante um contrato de agência em que o principal é a B e o agente é o “junket” ou “(1) Room ou (1)”.
   57. O recurso ao contrato de agência como elemento caracterizador das relações entre o “junket” e a B não é impedido pelo facto de o mesmo não ter à data dos factos consagração legal. Como a própria ré defende, vigoraria aqui o princípio da liberdade contratual, pelo que caberia ao julgador apreciar a situação no caso concreto escalpelizando todas as suas vicissitudes.
   58. E se porventura, o douto acórdão chegasse à conclusão que a situação dos autos configura um caso de lacuna de lei, então caber-lhe-ia efectuar a tarefa da sua integração respeitando os critérios fornecidos pelo art.º 9.º do Código Civil (art.º 10.º do diploma anteriormente em vigor), ou seja, recorrendo à analogia ou criando uma norma geral e abstracta de acordo com o espírito do sistema apta a regular o caso concreto (cfr. art.º 10.º, n.º 3 do Código Civil de 1966, equivalente ao n.º 3 do art.º 9.º do diploma actualmente em vigor).
   59. Quanto a este ponto diga-se porém que, sempre estaria vedado aos Julgadores o recurso à analogia com figuras como as do mandato comercial e da comissão mercantil uma vez que há diferenças essenciais entre elas e o caso dos autos, sendo que “há analogia sempre que a diferença entre o caso omisso e o caso previsto reside em pontos irrelevantes para a regulamentação jurídica.” – in Castro Mendes, Introdução 205.
   60. As diferenças em relação ao mandato comercial são por demais evidentes pelo que bastará assinalar-se-á que, o “junket”, como a recorrida afirma, não é seu representante, nem tem poderes representativos, ao contrário de um mandatário, actuando autonomamente na organização da sua actividade, o que não sucede com o mandatário. Por outro lado, na actuação do “junket” não se encontra o elemento essencial do mandato: “que o mandatário esteja obrigado, por força do contrato, à prática de um ou mais actos jurídicos” (M. J. Costa Gomes, “Contrato de Mandato”, in Direito das Obrigações, sob a coordenação de Menezes Cordeiro, Vol. 3.º, pág. 271).
   61. O mesmo se diga no que à comissão mercantil diz respeito. Aqui, é por demais evidente que os “responsáveis” da Sala VIP “(1)” não estão a executar um mandato mercantil sem menção ou alusão alguma ao mandante (que seria a B), “contratando por si e em seu nome, como principal e único contraente (art.º 266.º do Código Comercial anteriormente vigente). A alusão a esta figura por parte da ré, tendo em conta os factos relevantes para a decisão da causa, só se entende aliás, como uma tentativa de transmitir um tom de hilaridade aos autos.
   62. Também que não seria necessário criar qualquer norma para regular o caso concreto que se traduz no presente litígio, nem tão pouco o recorrente pretende socorrer-se das normas do Código Comercial que não estavam em vigor à data dos factos.
   63. O que restaria ao Tribunal, face aos factos em presença e à admissão da recorrida de que os “responsáveis” da Sala VIP “(1)” seria classificar o contrato vigente entre ambos como um contrato inominado.
   64. Chegando-se à conclusão que acima se mencionou, a solução que se imporia aos Meritíssimos Juizes, face aos factos dados como assentes, tutelar a pretensão do autor por força do disposto no art.º 800.º, n.º 1 do Código Civil e do princípio da protecção dos terceiros de boa fé, ou seja, o princípio geral da boa fé no que respeita à tutela da confiança.
   65. Na realidade, resulta de prova abundante carreada para os autos que o autor teve confiança, objectivamente fundada, como qualquer pessoa que em Macau aceda por qualquer modo aos casinos que a B explora em regime de exclusividade, que esta seria a primeira responsável por tudo o que neles se passa, nomeadamente pelo incumprimento contratual de um agente, que em seu nome celebrou um contrato de depósito (irregular) numa das salas de jogos de um dos casinos (Casino) de que é proprietário o principal (B).
   66. O principal, que é a B no caso em apreço, contribuiu para fundar essa confiança pelo simples facto de que é pública e notoriamente reconhecida como a única exploradora daqueles espaços, fundando-se aí uma convicção e segurança claras de que o principal é o garante de que dentro deles tudo se processará com toda a regularidade.
   67. Dúvidas não restam, pois, de que o “(1) Room ou (1)” agiu de modo a criar no autor a aparência de ser agente, colaborador ou auxiliar da B, (o recorrente tinha, aliás, uma convicção superior, a de que o responsável pelo “junket” em questão era funcionário da B, certeza fundada num documento emitido pela própria recorrida e assinado pelo seu administrador-delegado) gerando nele a confiança da real existência dos poderes arrogados.
   68. É neste quadro que se justifica a tutela da confiança do autor como terceiro perante o contrato de agência, mesmo em representação aparente, ou contrato inominado celebrado entre o “(1) Room ou (1)” e a B, com base nos princípios da aparência e da tutela da confiança.
   69. Veja-se a todos os títulos o Acórdão da Relação do Porto de 6 de Junho de 1992 que, além de ser exemplar na recusa da analogia entre a figura da agência quando confrontada com o mandato, a comissão e a mediação mercantis, considera que mesmo não sendo aplicável “o preceito do n.º 1 do art.º 23.º do Dec. n.º 178/86 [equivalente ao art.º 644.º do Código Comercial de Macau], a solução seria sempre a mesma através do recurso – que nos é permitido – ao princípio geral da boa fé, nomeadamente no que concerne à tutela da confiança e à protecção de terceiros.
   70. É que, de um modo geral, e pelo simples facto de utilizar um auxiliar, o devedor não deixa de estar obrigado a cumprir e o credor não abdica de contar com um cumprimento diligente. “Pois bem, se o devedor se serve de um terceiro não se vê porque razão o risco da culpa do intermediário deva recair sobre o terceiro, quando é certo que a utilização foi iniciada e existem em proveito do devedor; não é justo que o credor veja a sua situação desfavorecida por esse facto” ( ... )
   71. No caso sub judice, em face da relação representado / representante, comitente / comitido, principal / auxiliar, sempre estaríamos perante uma situação de responsabilidade da ré pelo dano da confiança, quer por aplicação do art.º 269.º do Cód. Civil, quer do art.º 500.º, n.º 2 do mesmo diploma, quer do art.º 800.º, n.º 1 do citado código.
   72. E que, no fundo, se traduz numa espécie de responsabilidade pelo risco inerente à colaboração do terceiro auxiliar (art.º 800.º, n.º 1 do Cód. Civil). Não se tornando, sequer, necessária, neste caso, uma relação de dependência ou subordinação entre o principal e o auxiliar, ao contrário do que sucede no art.º 500.º ( ... ) ”.
   73. A única conclusão legítima é que o autor se encontrava de boa fé, em face da sua convicção profunda de que todas as relações estabelecidas com aquele “junket” se processariam normalmente, sem problemas, pelo simples facto de a B lhe inspirar essa confiança, designadamente de que a quantia “depositada” estaria segura e ser-lhe-ia sempre restituída (à semelhança, aliás, do que sempre aconteceu).
   74. Consequentemente, o negócio seria sempre eficaz perante o principal (B), que é, como tal, responsável pelo pagamento do montante peticionado.
   75. É no princípio geral da boa fé, no que respeita à tutela da confiança e protecção de terceiros, que reside a obrigação da B em indemnizar o autor, nos termos do art.º 800.º, n.º 1 do Código Civil de 1966, equivalente ao art.º 789.º, n.º 1 do diploma actualmente vigente, uma vez que é sobre aquela e não sobre este que, obviamente, deve suportar a responsabilidade pelo risco inerente à colaboração do “junket”.
   76. A relação Comitente / Comissário Principal / Auxiliar como fonte de obrigação para a recorrida radica na existência entre a B e o “junket” da Sala VIP “(1)”, de uma relação de comissão prevista no art.º 500.º do Código Civil de 1966 ou pelo menos naquela que é prevista nos citados art.ºs 800.º e 789.º do mesmo Código. Assim, existiria uma relação de subordinação ou pelo menos de colaboração que não em termos de dependência entre a ré e o “junket”, a qual encontra suporte nos factos dados como assentes.
   77. Impõe-se, deste modo, a aplicação à presente situação do disposto no art.º 500.º do Código Civil de 1966 (art.º 483.º do actual Código Civil) ou para o caso de se entender estar-se perante um caso de responsabilidade contratual, o disposto no citado art.º 800.º do mesmo Código (art.º 789.º) os quais aqui expressamente se invocam para todos os devidos e legais efeitos.
   78. A comissão (limitar-se-á a exposição à comissão, pois os seus princípios são os que dominam o espírito da norma do citado art.º 800.º, embora aqui nem sequer se exija uma relação de dependência) consiste na realização de actos de carácter material ou jurídico, que se integram numa tarefa ou função confiada a pessoa diversa do interessado, ou seja “serviço ou actividade realizada por conta e sob a direcção de outrem, podendo essa actividade traduzir-se num acto isolado ou numa função duradoura”, sendo que a “comissão pressupõe uma relação de dependência entre o comitente e o comissário, que autorize aquele a dar ordens ou instruções a este” – Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 4ª Edição, Volume I, páginas 507 e 508.
   79. É totalmente inconcebível, de um ponto de vista jurídico-legal, admitir que entidades sem qualquer existência jurídica autónoma, como as salas VIP ou os referidos “grupos”, possam ter funcionários ou ter uma actividade autónoma daquela que é desenvolvida pela B. A não ser que se admita que essas salas funcionam num regime de subconcessão de facto. Não há outro entendimento possível!
   80. Como tal, todas as operações de depósito, lançamento e registos de movimentos contabilísticos que foram efectuados na Tesouraria da Sala “(1) Room ou (1)” têm de ser consideradas como tendo sido efectuadas, ainda que por intermédio de colaboradores ou auxiliares, sob a direcção da recorrida e com o seu consentimento. Ao aventar-se a hipótese contrária está-se, uma vez mais, a afirmar que a B abdicou ilicitamente de explorar aquela sala em benefício de outrem e, portanto, há que daí extrair as devidas consequências, que passam sempre e em todos os casos pela condenação da ré.
   81. Dos autos resultam ainda pelo menos outros elementos que permitem sustentar o entendimento de que entre a B e o “junket” existia uma relação daquelas a que se referem os art.º 500.º do Código Civil de 1966, art.º 493.º do actual Código Civil e os art.ºs 800.º e 789.º.
   82. Com efeito, os factos enunciados nos autos legitimam, sem esforço, a conclusão de que, os comissários ou colaboradores (funcionários da Sala “(1)” que são empregados da ré e mesmo o seu gerente, que foi por esta designado) foram nomeados e até escolhidos pelo comitente ou principal (B), com o qual se encontravam numa relação de subordinação ou dependência ou até nem tanto mas somente de colaboração ou auxílio – “direcção directa do controlo” nas palavras dos Meritíssimos Juizes a quo – de maneira que a ré possua o direito, não só de dar instruções sobre a finalidade ou os meios de execução da comissão e da colaboração (como convém e se impõe a uma concessionária exclusiva), mas também de fiscalizar directamente o seu desempenho (como sucede em relação às “fichas mortas”).
   83. O próprio acórdão recorrido, como a sentença aderida, afirma que não há dúvidas que a recorrida mantém um poder de direcção sobre tudo o que se passa nas salas VIP, expresso, por exemplo, no controlo das “fichas mortas” e na circunstância de os funcionários que aí prestam serviço serem seus empregados, sendo o seu modo de funcionamento apenas uma expressão da “autonomia de gestão”, que não põe em causa aquele poder.
   84. A concluir-se pela existência de uma relação de comissão ou de colaboração principal / auxiliar entre a B e o “junket”, também aqui será sempre a recorrida a primeira responsável pelo pagamento da indemnização que o autor peticiona.
   85. Verificou-se um facto voluntário, ilícito e ilegal, culposo, causador de danos, praticado no exercício de funções e um nexo de causalidade entre o referido facto – recusa de restituição das fichas – e o prejuízo sofrido pelo autor.
   86. Dúvidas não restam que os requisitos e os pressupostos previstos no art.º 500.º do Código Civil de 1966 (art.º 483.º do actual Código Civil) e no art.º 800.º do mesmo Código (art.º 489.º do Código Civil de Macau) se encontram preenchidos e que, como tal, também por esta via terá a B de ser condenada no pedido.
   87. “O devedor que se aproveita de auxiliares no cumprimento, fá-lo a seu risco e deve, portanto, responder pelos factos dos auxiliares, que são apenas um instrumento para o seu cumprimento” – Vaz Serra, Responsabilidade do devedor pelos factos dos auxiliares, dos representantes legais ou dos substitutos, n.º 2; Bol., n.º 72).
   88. É mais uma vez o princípio da boa fé no que respeita à tutela da confiança e à protecção de terceiros que impõem à ré a obrigação de indemnizar o autor.
   89. Sendo certo que, a responsabilidade do comitente ou do principal se mantém mesmo que o comissário ou o auxiliar tenha agido intencionalmente ou contra as instruções do comitente ou ainda que este tenha agido sem culpa. É que a posição do comitente / auxiliar, consagrada nas supras mencionadas disposições legais, acaba por ser uma posição de garante da indemnização perante o terceiro lesado, o autor.
   90. O depósito das fichas efectuado pelo autor consubstancia um contrato de depósito irregular (conforme art.º 1205.º do Código Civil de 1966, o qual corresponde ao art.º 1131.º do actual Código Civil), uma vez que o objecto do mesmo se caracteriza pela sua fungibilidade.
   91. Ora, em face do que atrás se deixou exposto quanto à natureza jurídica das relações que se estabeleceram entre a ré B e o “junket”, dúvidas não restam que os efeitos jurídicos do contrato de depósito irregular que teve como objecto as fichas de jogo propriedade do autor apenas se podem repercutir, no que ao recorrente diz respeito, na esfera jurídica da ré.
   92. Com efeito, nunca o autor poderia ter contratado com o referido “grupo” (o qual, insiste-se, é uma inexistência jurídica), uma vez que o mesmo actuava ou como um subconcessionário ilícito da recorrida, ou como seu agente, ao abrigo de um contrato inominado, ou como seu comissário ou auxiliar.
   93. Foi, então, à recorrida que o autor dirigiu a sua declaração de vontade, como o prova o facto de não saber que o acordo de entrega em dinheiro para se proceder a movimentos / levantamentos em dinheiro ou em fichas de jogo na sala “(1) Room” do Casino, havia sido celebrado com um grupo (mais conhecido por “junkets”) de angariadores de jogadores para a referida sala.
   94. Assim, os factos supra expostos conduzem a uma única conclusão possível: o autor celebrou o contrato de depósito em apreço com a ré B, pelo que é sobre esta, e mais ninguém, que impende o dever de pagar ao autor o montante de HK$22.750.000,00.
   95. No entender dos Venerandos Juizes a quo não existe aqui “aparência”, uma vez que todos os sujeitos dos factos conheciam perfeitamente a realidade existente.
   96. Viu-se todavia, que os factos em que o acórdão e a sentença recorridos fundamentam as respectivas decisões não resultam de qualquer admissão por acordo das partes, não estão provados por documento, nem por confissão reduzida a escrito, nem tão pouco o Tribunal Colectivo os deu como provados e que, ao fazerem apelo aos mesmos, os Meritíssimos Juizes a quo violaram, entre outros, os art.ºs 5.º n.º 2, 562.º e 571.º do Código de Processo Civil.
   97. Nunca é demais referir que, a B é a concessionária exclusiva, concessão atribuída pelo Governo, da exploração de jogos de fortuna ou azar em casino, à qual está vedada a possibilidade de transferir total ou parcialmente, temporária ou definitivamente, essa exploração para outra entidade, sem a prévia autorização do concedente.
   98. É totalmente descabida, e não encontra qualquer suporte factual nos autos, a afirmação de que o autor se encontra numa situação de venire contra factum proprium.
   99. Na verdade, mesmo que o autor conhecesse ou tivesse contribuído para aquilo que os Meritíssimos Juizes a quo diz que ele conhece e contribuiu (o que não sucedeu, conforme se comprova pela resposta ao quesito 9.º), isso em nada alteraria a conclusão óbvia de que a entidade responsável por esse modus operandi das salas VIP é a B e mais ninguém.
   100. Quem está aqui numa situação de venire contra factum proprium é, não o autor, mas sim a B, pois tudo aquilo que sucedeu na Sala “(1)” foi com o seu conhecimento, consentimento, autorização e sob as suas instruções e directrizes.
   101. É que, a B é a única responsável pela forma como gere o seu negócio, quer quando dessa gestão resultam lucros, quer quando decorrem prejuízos!
   102. A B, como concessionária exclusiva, tem de se considerar sujeito obrigatório das relações jurídicas ora em apreço (designadamente do contrato de jogo e do contrato de depósito das fichas).
   103. Quem está, portanto, numa situação de venire contra factum proprium é a recorrida que “criou, como fornecedora massificada e exclusiva da exploração dos jogos de fortuna e azar no Território de Macau, a convicção e a confiança que era ela e só ela quem detinha a responsabilidade por tudo o que se passasse no interior dos recintos dos casinos, não podendo, assim, imputar a outrem, sem existência jurídica, que se tenha instalado por qualquer forma, num dos casinos, a obrigação de restituir determinada quantia em dinheiro, que, confiadamente, tinha sido depositada num determinado casino de Macau para ser aplicada no jogo de fortuna e azar” – Acórdão de 23 de Junho de 1999 do Tribunal Superior de Justiça de Macau, Processo n.º 1047.
   104. O mesmo se passou com o autor que, procedeu ao depósito na Sala “(1)” de diversos montantes em fichas, efectuando diversos levantamentos, quando bem entendesse, até ao limite do saldo existente, operações que decorreram com normalidade durante quase dois anos (!), porque confiou que a B, como contraparte nesse contrato de depósito, asseguraria o seu cumprimento, nomeadamente o seu dever de restituição das fichas quando para tal fosse solicitada.
   105. A recusa da recorrida em restituir o objecto do depósito ou o seu equivalente em numerário (que resultou provado dos autos ser no valor de HK$22.750.000,00), traduz, como acima se deixou alegado, um verdadeiro venire contra factum proprium por parte da ré, que se consubstancia numa contradição directa entre a situação jurídica originada pelo factum proprium e o segundo comportamento da recorrida.
   106. É que, de facto, é indubitável que foi a recorrida a fundar no autor a justificada confiança, de que, como concessionária exclusiva do Casino do Hotel, onde se inclui a Sala “(1)”, seria sempre a primeira responsável por tudo o que aí se passa.
   107. Os factos que resultam dos autos constituem elementos objectivos que provocaram no autor uma fundada confiança, uma convicção de que a B era, e é, a única responsável por tudo o que se passa nos casinos que explora em regime de exclusividade.
   108. Sempre sem prescindir do supra alegado, e para a eventualidade de se considerar que o contrato de depósito não foi celebrado directamente entre a B e o autor, o que como se viu não faz qualquer sentido, sempre se dirá que a obrigação da recorrida em indemnizar o autor, por força da não restituição das fichas de jogo, decorre, em face do seu (da ré) venire contra factum proprium, das “relações contratuais de facto”.
   109. Estas relações justificam, assim, como bem referiu o douto Acórdão do Tribunal Superior de Justiça de 23 de Junho de 1999, a que acima se fez alusão, “uma situação de confiança, expressa na presença de elementos objectivos capazes de, em abstracto, provocarem uma crença plausível” no autor, pelo que dúvidas não restam que a sua pretensão deverá proceder, revogando-se o douto acórdão recorrido e substituindo-o por outro que julgue procedente as nulidades ora arguidas e a acção procedente por provada.”
   Pedindo que o acórdão recorrido seja revogado, substituído por outro que julgue procedente as nulidades arguidas, e que sejam conhecidos outros fundamentos do recurso e julgado totalmente procedente a acção.
   
   Em resposta, a ré recorrida apresentou as seguintes conclusões:
   “1. O acórdão recorrido porque não se limitou, ao negar provimento ao recurso do recorrente, a remeter para os fundamentos invocados na decisão impugnada, isto é, não se limitou a dizer “julgamos improcedente o recurso nos termos e fundamentos constantes da decisão impugnada”, não violou o disposto no n.º 5 do art.º 631.º do CPC;
   2. Não existe qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão do Meritíssimo Juiz a quo, apenas uma divergência de interpretação quanto à materialidade fáctica;
   3. Tão pouco na não consideração da materialidade fáctica como enquadrando a aparência invocada pelo autor;
   4. A aparência invocada pelo autor não só não é suportada pelos factos, como é frontal e abertamente contraditada pelas cartas escritas pelo recorrente à recorrida junto aos autos a fls. 84, 87, 89, 91 e 92.
   5. Para lá das três hipóteses de qualificação apresentadas pelo recorrente, para configurar as relações da recorrida com os seus promotores, ditos responsáveis das Salas VIP, é ainda possível configurar as mesmas, como fez o Meritíssimo Juiz a quo, primeiro, e o acórdão recorrido, depois, como uma situação atípica;
   6. A recorrida utiliza terceiros, independentes jurídica e economicamente, relativamente a si, e dotados de absoluta autonomia, para angariar, captar clientes / jogadores para os seus casinos;
   7. Cuja área de actuação é variável geograficamente, sendo certo que em regime sempre de não exclusividade;
   8. O promotor capta, angaria os seus clientes através de um conjunto de serviços, que incluem transporte, alojamento, alimentação e tudo o demais destinado a assegurar a manutenção da preferência;
   9. Para assegurar um bom ambiente nos seus casinos e entre os seus vários promotores, bem como assegurar uma relação o mais transparente possível com os vários promotores;
   10. A recorrida assegura espaços exclusivos de jogo aos vários promotores, as Salas VIP;
   11. Nesses espaços, apenas jogadores angariados pelo promotor (seus associados e colaboradores) podem jogar;
   12. Tal permite, desde logo, saber a cada momento qual o valor das obrigações da recorrida para com o promotor;
   13. A contrapartida paga pela recorrida aos seus promotores consiste numa percentagem paga sobre o montante das fichas jogadas;
   14. Em ordem a motivar o promotor à captação do maior volume de negócio e, em forma secundária, assegurar um volume mínimo de negócio, a recorrida impõe ao promotor a obrigatoriedade de aquisição de montantes mínimos em fichas de jogo;
   15. Essas fichas são vendidas, ao mesmo preço, pelo promotor, por si, seus associados e colaboradores, aos clientes / jogadores que angariam;
   16. Os montantes mínimos de fichas que o promotor se obriga a adquirir periodicamente são muito elevados, pelo que este, em regra, financia-se junto de terceiros;
   17. Do ponto de vista da recorrida, tais acordos são res inter alios acta;
   18. A recorrida não cuida, nem tem de cuidar, de saber se o promotor desenvolve a sua actividade sozinho ou se se vale da colaboração de outras pessoas, se suporta exclusivamente o risco da sua actividade ou se o distribui com outros associados;
   19. O acordo de promoção de negócios é celebrado com um promotor e é esse que é o único interlocutor da recorrida;
   20. Por isso, todas as fichas jogadas nas Salas VIP são adquiridas através do promotor ou seus colaboradores;
   21. Se os meios de pagamento utilizados pelo promotor são seus ou de terceiros, ainda que directamente emitidos a favor da recorrida, é algo que lhe é indiferente;
   22. A venda pela recorrida das fichas jogáveis nas Salas VIP é sempre efectuada ao promotor respectivo, que, depois, por si, seus associados e demais colaboradores as vende aos potenciais jogadores;
   23. A recorrida paga ao promotor uma comissão pelo montante de fichas jogadas e, por vezes, uma percentagem das despesas suportadas por este com os clientes / jogadores que angaria;
   24. Se o promotor se apropria exclusivamente dessas quantias, ou antes as partilha com os seus associados e colaboradores é algo à recorrida não diz respeito;
   25. O facto de na Sala VIP respectiva apenas poderem jogar clientes / jogadores de um certo promotor (e seus associados), i.e. de a mesma estar exclusivamente reservada para clientes daquele leva a que na prática se designe tal como “exploração” da sala respectiva;
   26. Qualificação imprópria, porque o espaço onde se desenrola o jogo é da recorrida, quem faz as apostas, recolhe as fichas, paga as fichas, em suma quem opera o jogo é a recorrida, através dos seus funcionários;
   27. O promotor presta, contudo, mesmo dentro da Sala VIP aos clientes angariados por si, os serviços acordados (v.g. transporte, alojamento, alimentação, segurança, diversão), e que se destinam a tornar o mais agradável possível a sua estada;
   28. A recorrida presta o jogo, o promotor o bem estar dos clientes / jogadores;
   29. As prestações que incumbem quer ao promotor quer à recorrida, não são enquadráveis na figura da subconcessão, porquanto para tal seria necessário que, na relação contratual que entre a recorrida e o promotor se estabelece, se repetissem os elementos essenciais do contrato base ou principal: o contrato de concessão do exclusivo dos jogos de fortuna e azar;
   30. Ora, não só a operação de jogo é da exclusiva responsabilidade da recorrida, como o promotor não paga qualquer contrapartida à recorrida, bem pelo contrário, esta é que paga àquele uma comissão pelo volume de negócio granjeado;
   31. O que afasta a possibilidade de a referida relação contratual ser qualificada como uma subconcessão;
   32. Sendo certo que tal é corroborado pelos nóveis Lei n.º 16/2001 e Regulamento n.º 6/2002, que vieram justamente regular a actividade dos ditos responsáveis das Salas VIP, aí designados de promotores de jogo;
   33. Em lugar nenhum a lei subsume a situação à figura do subcontrato;
   34. Por outro lado, ao regular a situação ex novo, demonstra inequivocamente o legislador que a matéria das relações entre a recorrida e os seus promotores não estava disciplinada legalmente, e, logo, era atípica, tal como a qualificaram o Meritíssimo Juiz a quo, primeiro, e os Venerandos Juízes do tribunal a quo, depois;
   35. Não sendo de configurar como uma subconcessão, a relação contratual em análise pode e deve ser enquadrada no âmbito do das prestações inerentes ao contrato de agência, por força da actividade de angariação, captação de negócios, que o promotor se obriga a desenvolver, em regime de estabilidade e autonomia, mas não exclusivamente, pois que a sua obrigação de aquisição de montantes mínimos de fichas e a sua revenda, ao preço de aquisição, aos potenciais clientes / jogadores não se enquadra no âmbito do contrato de agência;
   36. Trata-se antes de prestação que se enquadra no contrato de comissão mercantil; venda em nome próprio, mas no interesse e por conta de outrem;
   37. Não se trata de venda em sentido próprio, porque dela nenhum benefício retira o promotor;
   38. A prévia aquisição das mercadorias é prática corrente no âmbito da comissão mercantil, motiva o comissário a uma actuação diligente e assegura ao comitente um volume mínimo de negócio;
   39. A prestação da recorrida é invariável: pagamento de uma comissão pelo volume de negócio contratado e comparticipação parcial nas despesas suportadas pelos promotores;
   40. O que tudo nos convoca para um contrato misto, com prestações do contrato de agência e do contrato de comissão comercial, sem qualquer subordinação de uma à outra, por parte do promotor e contraprestação única, consistente numa comissão, por parte da recorrida;
   41. O regime jurídico de tal arranjo contratual há-de resultar, no jogo da teoria da combinação, das normas sobre o contrato de comissão comercial, e do mandato comercial, tal qual constantes do Código Comercial de 1888, atento que à data dos factos, 1997, o Código Comercial de 1999, não se encontrava ainda em vigor;
   42. A recorrida não conferiu poderes ao promotor para aceitar em depósito fichas jogadas na Sala VIP respectiva, e não ratificou tais actos, por conseguinte, os mesmos não podem obrigar a recorrida, nos termos dos art.ºs 268.º, 269.º e 770.º do Código Civil de 1966;
   43. Se a recorrida fosse parte do putativo depósito, a entrega das fichas de jogo contra as cashiers orders não se entenderia;
   44. Seria suficiente abrir um crédito a favor de quem lhe entregou as cashiers orders e que este poderia levantar em fichas de jogo até ao limite previamente recebido;
   45. O recorrente conhecia, como é do conhecimento geral e decorre claramente das suas cartas à recorrida, juntas aos autos a fls., que as pessoas que guardavam as fichas na Sala VIP “(1) Room” não eram funcionárias da recorrida;
   46. Que tais pessoas eram colaboradores do promotor, que asseguravam ao próprio, seus associados, entre os quais o próprio recorrente, e respectivos clientes / jogadores, a guarda e controlo da utilização das fichas sua pertença;
   47. Que justamente porque essas pessoas não são funcionários da recorrida, é que esta, por intermédio de funcionários seus, fazia de quatro em quatro horas, o controlo do montante mínimo de fichas presente na sala;
   48. Controlo esse que, no caso de as pessoas encarregadas serem funcionárias da recorrida, não faria obviamente qualquer sentido;
   49. Não se verifica na situação sub judice a existência de um poder de direcção e fiscalização por parte da recorrida relativamente aos seus promotores, nem relação de subordinação e dependência por parte destes, os quais, não é demais dizê-lo, actuam com total autonomia, pressuposto da responsabilização do comitente (civil) pelos actos do seu comissário (civil), no âmbito da relação (civil) de comissão;
   50. A guarda das fichas não é poder que a recorrida tenha conferido ao promotor, pelo que a mesma não tendo sido pela recorrida ratificada é relativamente a ela ineficaz;
   51. Por outro lado, o recorrente conhecia em pormenor o funcionamento da Sala VIP “(1) Room”, e em que termos é a guarda das fichas se processava;
   52. Nomeadamente quem as guardava e, porque é que apenas com autorização do C1, podia movimentar as mesmas;
   53. O recorrente alegou que mantinha uma relação contratual com a recorrida, nos termos da qual contra a entrega de certa quantia em dinheiro, participava percentualmente nos lucros da sala VIP “(1) Room”;
   54. Não se fez prova da existência de tal acordo com a recorrida;
   55. Tal acordo existiu mas com o C (C1), conforme testemunho deste e declaração junta a fls. 170 e 171 dos autos;
   56. Tal acordo, configura ou uma conta em participação ou um subcontrato entre o recorrente e o promotor C;
   57. Se, contra a entrega da alegada quantia, o recorrente adquiriu apenas o direito a participar nos lucros da actividade de promoção do promotor C, que consistem nas comissões que a recorrida a este paga como contrapartida do negócio promovido, teremos uma conta em participação;
   58. Se as entregas do recorrente se destinaram a adquirir fichas (como parece ter sido o caso) que o mesmo se obrigou a revender aos jogadores por si angariados, no âmbito de uma obrigação assumida nesse sentido perante o promotor da Sala VIP “(1) Room”, recebendo como contrapartida, a parte das comissões proporcionais às fichas adquiridas e por si vendidas, estamos perante um subcontrato;
   59. Assim se explicando, de outro modo economicamente irracional e, como tal, incompreensível, a paralisação de tão grandes quantias em fichas de jogo durante largos períodos de tempo, em vez da sua rentabilização por outros meios, v.g. depósito bancário;
   60. Compreende-se assim que as fichas estivessem sobre o controlo do C1 e que o recorrente quando as quisesse utilizar tivesse que o fazer através daquele, e que houvesse uma contabilidade própria;
   61. Ambas as hipóteses explicativas são susceptíveis de, em tese geral, explicarem o tal “investimento” de que fala o recorrente, embora pareça mais plausível a hipótese do subcontrato, pois caso se tratasse de conta em participação não se compreenderia bem a que título é que o recorrente poderia levantar as fichas (quantias), i.e. o investimento efectuado e a existência dos registos contabilísticos desses mesmos levantamentos;
   62. Em todo o caso, tais relações contratuais entre o recorrente e o promotor são completamente alheias à recorrida, e muito mais os litígios daí decorrentes;
   63. Mas clarificam a quem e a que título as quantias, que o recorrente invoca nos presentes autos, foram entregues;
   64. Evidenciando que não o foram à recorrida, mas sim ao promotor;
   65. A recorrida recebeu-as do promotor como pagamento da aquisição de fichas de jogo, que entregou a este;
   66. O acordo interno entre o promotor e o recorrente é estranho à recorrida.
   67. Ao invocar a sua não responsabilização pelo suposto depósito e destino do suposto depositado, a recorrida não actua em venire contra factum proprium, pois que se trata de serviço que esta não providencia e que o recorrente conhece bem;
   68. Na situação não há qualquer aparência de que as pessoas que se encarregam da guarda das fichas do promotor, seus associados, e jogadores sejam funcionárias da recorrida, porque o recorrente é um dos associados do promotor e conhecia melhor do que ninguém os termos em que funcionava tal acordo;
   69. Por conseguinte, a recorrida não é responsável pelo que sucedeu às fichas de jogo em causa, não as guardou nem autorizou ninguém a fazê-lo;
   70. Tão-pouco criou relativamente ao recorrente qualquer aparência de que as guardava;
   71. Se as mesmas desapareceram ou não, é algo que à recorrida não diz respeito e sobre o que não lhe podem exigir quaisquer responsabilidades.”
   Pedindo a confirmação do acórdão recorrido.
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 Pelos Tribunal Judicial de Base e Tribunal de Segunda Instância foram dados como provados os seguintes factos:
   “A ré é a concessionária da exploração da jogos de fortuna e azar no Território de Macau, em exclusivo desde 1962 até a presente data e um dos Casinos que explora se denomina Casino (sito nas instalações do Hotel).
   A 23 de Abril de 1999, teve o autor a notícia que a sala VIP do Casino do Hotel (sala “(1) Room”) encerraria temporariamente para efeitos de aí se proceder a trabalhos de redecoração e remodelação interior.
   E, assim, a referida sala reabriu em Julho de 1999, apresentando renovada decoração interior.
   Entre Outubro de 1997 e Abril de 1999, o autor entregou à ré, mediante a intervenção dos empregados de Tesouraria da Sala VIP “(1)”, diversas importâncias e em ocasiões diferentes, através de Ordens de Caixa sacadas pelo autor sobre o Banco e emitidas a favor da ré, num total de HKD$46.500.000,00 (quarenta e seis milhões e quinhentos mil dólares de Hong Kong).
   O autor podia levantar fichas na tesouraria da Sala VIP “(1)” até ao limite do saldo existente.
   Existia na tesouraria da mencionada sala um livro de lançamentos onde eram registadas todas as operações.
   Durante o período acima referido, as operações decorreram com normalidade, de acordo com o procedimento descrito, tendo o autor procedido a numerosos levantamentos de fichas na tesouraria da respectiva sala, e entregas de diversos montantes para aquisição das fichas.
   Após a remodelação da sala e reabertura em Julho de 1999, o autor tentou exigir à ré o pagamento do montante no valor de HK$22.750.000,00.
   As tentativas referidas no quesito anterior foram feitas em várias datas, nomeadamente nas seguintes: Julho de 1999 – e, posteriormente, por cartas registadas datadas de 03/02/2000, 23/05/2000, 05/09/2000, 27/10/2000, 27/10/2000 e 03/11/2000.
   A ré não pagou qualquer quantia ao autor.
   A ré recebeu os títulos de pagamentos através de Ordens de Caixa sacados pelo autor sobre o Banco, num total de HKD$46.500.000,00 (em diferentes ocasiões), entregues com a intervenção dos empregados da tesouraria da Sala “(1) Room”, tendo a ré entregue, em contrapartida, o mesmo valor em fichas.
   Organicamente a sala “(1) Room” fazia parta da estrutura da ré e ao nível de funcionamento, goza de alguma autonomia.”
   
   
   2.2 A oposição e contradição entre os fundamentos e a decisão
   O recorrente sustenta a verificação deste vício de sentença por o tribunal recorrido não ter concluído a existência de uma subconcessão ilícita por parte da ré e reconhecida ao recorrente a tutela da confiança que este depositou na ré como responsável por tudo o que ocorre na sala VIP do casino, em consideração das seguintes situações referidas na fundamentação do acórdão recorrido: os jogadores que jogam nas salas VIP não têm uma relação comercial directa com a ré; é possível depositar fichas nas salas VIP; existe um responsável pela sala VIP (1) que assumiu todas as responsabilidades decorrentes da gerência da mesma; as salas VIP funcionam sob direcção directa do controlo da ré e que todas as suas acções têm de ser conformes às determinações da ré, os empregados que trabalham nas salas VIP eram funcionários da ré, todas as instalações são da ré, todas as fichas mortas são de propriedade da ré e os funcionários da ré controlam as fichas mortas das salas VIP.
   Entende que existe ainda a oposição quando o tribunal recorrido negar a protecção dos interesses do recorrente ao dar por não provado que “o autor sabia que o acordo de entrega em dinheiro para se proceder a movimentos / levantamentos em dinheiro ou em fichas de jogo na sala ‘(1) Room’ do Casino, foi celebrado com um grupo (mais conhecido por junkets) de angariadores de jogadores para a referida sala” e provado que “a mencionada sala faz parte da estrutura da ré e que os funcionários que aí prestam serviço são empregados desta”.
   
   Segundo o art.° 571.°, n.° 1, al. c) do Código de Processo Civil (CPC), é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
   A oposição entre os fundamentos e a decisão deve ser aferida em termos de examinar a correspondência entre o raciocínio da fundamentação e a conclusão.
   É uma contradição real em que “a construção da sentença é viciada, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto.”1
   “...quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se.”
   “Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade.”2
   
   O que o recorrente pretende demonstrar com a invocação da oposição entre os fundamentos e a decisão é a solução jurídica que ele próprio preconiza, diferente da chegada no acórdão recorrido.
   Com evidência, o que foi invocado pelo recorrente relaciona-se com o erro de julgamento, e não a nulidade de sentença resultada da oposição entre os fundamentos e a decisão.
   De qualquer modo, não existe contradição entre a fundamentação do acórdão recorrido e a sua decisão. Na realidade, o acórdão recorrido começa por apreciar a natureza jurídica da concessão de exploração de jogos de fortuna e azar para a ré e a autonomia da ré concessionária no quadro de direitos e deveres do concedente e concessionário, passando para exposição de inexistência de subconcessões em relação às salas VIP que funcionam nas instalações da ré, a relação de depósito entre o recorrente e a sala VIP (1) que não é imputável à ré e finalmente a negação ao recorrente de protecção de confiança em consequência inclusive da sua situação de venire contra factum proprium. Com esta fundamentação, logicamente é de concluir pela improcedência da acção e do recurso do autor, tal como vem decidido nas duas instâncias.
   Improcede o recurso nesta parte.
   
   
   2.3 Pronúncia indevida: consideração de factos não alegados
   O recorrente considera que o tribunal recorrido, ao negar lhe a tutela de aparência, fundamenta nas seguintes matérias de facto não alegadas pelas partes, nem de factos notórios, o que consubstancia na nulidade prevista na segunda parte da al. d) do n.° 1 do art.° 571.° do CPC por violação do disposto nos art.°s 562.°, n.° 3, 567.°, e 5.°, n.° 2 do mesmo Código:
   “As salas VIP sistematicamente fornecerem serviços de depósito e para reaver as quantias o depositante tem de contactar com os responsáveis da respectiva sala.” (p. 105 do acórdão recorrido).
   “Quem joga nas salas VIP não tem uma relação comercial directa com a ré, entre outros, por estas salas têm fichas próprias, as quais apenas podem ser jogadas pelo seu titular nessas salas.” (p. 98 e 99 do acórdão recorrido)
   “As salas VIP têm responsáveis próprios que assumem todas as responsabilidades decorrentes da gerência das mesmas.” (p. 100, 101 e 104 do acórdão recorrido)
   
   Na realidade, no acórdão recorrido, bem com na sentença de primeira instância que foi incorporada naquele, foi considerada, na parte de fundamentação, uma série de factos não constantes da matéria de facto provada nem alegados pelas partes, sendo certo que também não são factos notórios:
   a) Para fundamentar a inexistência de subconcessão relativamente às salas VIP dos casinos da ré, tomou em consideração o seguinte (p. 96 e 103, as páginas aqui e adiante referidas são do acórdão recorrido):
   As salas VIP funcionam sob direcção directa da ré;
   Apenas existe uma conta bancária, aberta em nome da ré, as salas VIP não podem ter conta bancária própria;
   Os empregados que trabalham nas salas de casino, incluindo os das salas VIP, são empregados da ré, não permitindo autonomia pessoal às salas VIP, sem prejuízo de ter colaboradores próprios;
   As instalações são as da ré;
   As fichas mortas (o objecto material) são da propriedade da ré;
   De quatro em quatro horas a ré procede ao controlo das fichas mortas das salas VIP, quando estas sejam inferiores a determinado número, os responsáveis são obrigados a adquiri-las junto da Tesouraria Geral.
   
   b) Ao fundamentar as partes da relação de depósito como o autor, ora recorrente, e a sala VIP (1), teve em conta o seguinte:
   “O autor celebrou o tal contrato na medida e por motivo da relação existente com o C1, pois, todas as vezes, quando o autor pretendesse jogar, havia de contactar com o C1 ou pessoa por este indicada para ter as fichas que ele depositava na Sala (1).” (p. 98)
   “O autor sabia e sabe perfeitamente que, em Macau, para jogar nos casinos, há duas maneiras à sua disposição:
   Ou directamente trocar fichas vivas na Tesouraria Geral da ré, então, neste caso, quem tem posse dessas fichas, tem direito a trocar essas fichas por dinheiro pelo mesmo valor, não pode a ré, de modo algum, negar ou não reconhecer esse direito ao respectivo titular.
   Outra via, não quer directamente ter relação comercial com a ré, desejando ter serviços com melhor qualidade, e certas facilidades, pode ir jogar em determinada sala VIP.” (p. 98-99)
   (Este segundo caminho) Significa que o titular das fichas só pode jogar na respectiva sala VIP a que essas fichas pertencem, não podendo jogar noutra sala VIP. (p. 99)
   “Pois o autor dirigiu-se a respectiva sala VIP manifestando a sua vontade contratual: receber as fichas mortas, então o responsável desta última é que proceda em conformidade com o acordado.” (p. 100)
   
   c) Na parte em que entendeu que os actos praticados pela sala VIP não eram imputados à ré, considerou o seguinte:
   O autor sabia perfeitamente que a partir do momento em que o seu cash foi trocado para as fichas mortas, a ré reconhece só estas fichas e não o seu titular;
   A partir deste momento, à ré resta apenas o dever de trocar as fichas pelo cash;
   É o responsável pela sala VIP é que actua, com quem o autor contratou para obter os serviços de depósito;
   O autor não é só cliente da sala VIP, mas mais do que isso, ele é cliente do responsável da Sala VIP;
   O autor sabia igualmente que, todas as vezes, quando pretendesse ter as fichas guardadas na sala VIP, tinha que contactar com o responsável da sala ou pessoa por este indicado, pois, só este tinha informação sobre o saldo da “conta” do respectivo cliente. (p. 100-101)
   
   d) Finalmente, ao imputar a situação de venire contra factum proprium ao autor, considerou que o autor sabia quais são as condições de utilização inerentes às fichas mortas e onde podem ser utilizadas. (p. 104).
   
   Segundo o art.° 567.° do mesmo Código, o juiz “só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo do disposto no artigo 5.°”.
   Por outro lado, prescreve o art.° 562.°, n.° 3 do CPC:
   “3. Na fundamentação da sentença, o juiz toma em consideração os factos admitidos por acordo ou não impugnados, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito e os que o tribunal deu como provados, fazendo o exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer.”
   Assim, no acórdão recorrido, ao considerar os factos não alegados pelas partes nem provados, que não são factos notórios, verifica-se a nulidade prevista na segunda parte da al. d) do n.° 1 do CPC.
   
   
   2.4 Suprimento da nulidade
   Para este caso, está prescrito no art.° 651.°, n.° 1 do CPC o poder de cognição do Tribunal de Última Instância:
   “1. Quando julgar procedente alguma das nulidades previstas nas alíneas c) e e) e na segunda parte da alínea d) do artigo 571.º ou quando o acórdão tiver sido lavrado contra o vencido, o Tribunal de Última Instância supre a nulidade, declara em que sentido a decisão deve considerar-se modificada e conhece dos outros fundamentos do recurso.”
   Segundo esta norma, a nulidade verificada deve ser suprida em sede do presente recurso, conhecendo a questão de fundo sem considerar os referidos factos que as duas instâncias tiveram em conta que na realidade não podiam.
   
   No presente recurso, o recorrente pretende demonstrar que na sala (1) existe uma situação de subconcessão de exploração de jogos de fortuna e azar da parte da ré B a um indivíduo de nome C e que o contrato de depósito foi celebrado entre o autor e a ré.
   Mas não é essa a tese da causa de pedir da acção, sendo certo que o autor também não procedeu validamente a qualquer alteração da causa de pedir nos termos previstos nos art.°s 216.° e 217.°, n.° 1 do CPC. Por isso, não pode o autor vir agora pedir a procedência da acção invocando nas alegações do recurso nova causa de pedir.
   Assim, temos de basear nos articulados das partes da acção e os factos provados para examinar o mérito da causa.
   
   O autor fundamenta os seus pedidos na entrega à ré da importância no valor total de HKD$46.500.000,00 para ser aplicada na Sala VIP (1) do Casino do Hotel, onde renderiam, proporcionalmente ao capital investido, lucros variáveis segundo os lucros gerias da mesma sala, conforme os artigos 2° e 3° da petição.
   Só que, não ficou provado esse objectivo da entrega de dinheiro pelo autor, conforme a resposta negativa dada ao n.° 2 da base instrutória.
   Do mesmo modo, também não se provou que as operações de levantamento das fichas conforme o saldo existente e o livro de registo de lançamentos tinham alguma ligação com o acordo referido no artigo 3° da petição ou no n.° 2 da base instrutória.
   Deste modo, os pedidos do autor já perderam a base da subsistência.
   Ficou provado que o autor tinha procedido a numerosos levantamentos de fichas na tesouraria da sala e entregas de diversos montantes para aquisição de fichas. Mas não se sabe se estas operações, nomeadamente o levantamento de fichas, tenham alguma ligação com a entrega da referida quantia pelo autor à ré, nem se sabe os respectivos valores.
   Embora se tenha provado que o autor entregou tal quantia à ré para levantar fichas de jogo na sala (1), o certo é que nem se provou que o autor tenha algum saldo a seu favor. Na resposta ao n.° 6 da base instrutória, não se provou que existe um saldo de HKD$22.750.000,00 a favor do autor, antes ficou provado apenas que o autor tentou exigir o pagamento desta quantia à ré. Isto é, não se provou que a ré lhe deve alguma quantia, muito menos a título de lucros de capital investido.
   Foi provada, ao invés, a tese da ré de que, apesar de esta ter recebido do autor o valor de HKD$46.500.000,00, ela já entregou, em contrapartida, o mesmo valor em fichas, conforme a resposta dada ao n.° 10 da base instrutória e alegado no artigo 18.° da contestação, facto provado esse que o recorrente nunca referiu nas suas alegações do recurso.
   Perante uma petição que fornece apenas material tão escasso que não explica suficientemente a relação de depósito, como não ficou provada a tese da petição, ou seja, o acordo subjacente à entrega de dinheiro, nem a existência do saldo positivo, mas provado até que a contra-parte já entregou fichas no mesmo valor, a acção terá necessariamente de improceder.
   
   Para além de não constituir a causa de pedir da presente acção, não vale a pena invocar as teses de outros acórdãos em que se reconhece a situação de subconcessão pela B, pois o que releva é o que se provou no próprio processo.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em conceder parcialmente provimento ao recurso, declarando nulo o acórdão recorrido na parte em que conheceu o recurso do autor, e em suprimento desta nulidade, julgar improcedente a acção, absolvendo a ré do pedido.
   Custas pelos recorrente e recorrida na proporção de 3/4 e 1/4.
   


   Ao 11 de Maio de 2005.


Os juízes:Chu Kin (Relator)
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

1 Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. V, Coimbra Editora, 1984, p. 141.
2 José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil anotado, vol. 2, Coimbra Editora, 2001, p. 670 e A Acção Declarativa Comum à Luz do Código Revisto, Coimbra Editora, 2000, p. 298. No mesmo sentido, Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2004, p. 49 e 50.
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Processo n.° 15 / 2004 1