打印全文
Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso penal
N.° 25 / 2004

Recorrentes: A
B
Recorrido: C







1. Relatório
No processo comum singular n.° PCS-088-02-5 do Tribunal Judicial de Base, o arguido B foi acusado da prática de um crime de homicídio por negligência previsto e punido pelos art.°s 134.°, n .° 1 do Código de Processo Penal e 66.°, n.° 1 do Código da Estrada e uma contravenção prevista e punida pelos art.°s 22.°, n.° 1, 70.°, n.° 3 e 71.° do Código da Estrada.
O representante dos sucessores da vítima no processo C apresentou um pedido de indemnização civil enxertado contra A, D e o arguido.
Após a audiência, o Tribunal Judicial de Base, por seu acórdão de 2 de Março de 2004, absolveu o arguido do crime e da contravenção acusados e julgou simultaneamente improcedente o pedido de indemnização civil enxertado, absolvendo os demandados do pedido.
Em seguida, o lesado interpôs recurso ao Tribunal de Segunda Instância, com fundamento na verificação no acórdão do Tribunal Judicial de Base da contradição insanável da fundamentação, no erro notório na apreciação da prova e no erro na aplicação das normas de responsabilidade de indemnização civil, pedindo a declaração de nulidade do acórdão recorrido e o reenvio do processo para novo julgamento, e subsidiariamente a condenação dos demandados por responsabilidade pelo risco.
Na resposta da referida motivação, a demandada A impugna não apenas os fundamentos invocados pelo recorrente, mas pede ainda a condenação do mesmo como litigante de má fé e na multa e indemnização. O recorrente respondeu a este pedido e pediu também a condenação da demandada por litigância de má fé e na multa.
O Tribunal de Segunda Instância proferiu acórdão em 27 de Maio de 2004 no processo n.° 107/2004 com as seguintes decisões:
– Julgar como definitivamente legítima a parte autora do pedido de indemnização civil para recorrer do acórdão de primeira instância inclusivamente na sua parte penal e contravencional;
– Julgar procedente o recurso da mesma parte do pedido de indemnização civil, revogando a decisão ínsita no acórdão recorrido de indeferimento do pedido de apoio judiciário e reenviando, devido à verificação da contradição insanável da fundamentação no acórdão recorrido, todo o objecto do processo, incluindo a matéria constante da acusação e da petição civil, para novo julgamento por novos juízes no Tribunal Judicial de Base;
– Julgar improcedentes os pedidos do demandante civil e da demandada A nas condenações respectivas na litigância de má fé.
Deste acórdão do Tribunal de Segunda Instância recorreram a demandada A e o arguido para o Tribunal de Última Instância.
A apresentou as seguintes conclusões da motivação:
   “1. Por força do disposto no art.º 391.º, n.º 1, do CPPM, os demandantes civis, não constituídos como assistentes, carecem de legitimidade para recorrer da decisão no âmbito da matéria penal (e contravencional), não lhes sendo permitido, in casu, atacar a decisão da 1ª instância quanto à motivação pela prática do crime de homicídio por negligência e bem assim da contravenção de excesso de velocidade de que o arguido vinha acusado.
   2. Em conclusão, aqueles demandantes civis não têm, pois, legitimidade para recorrer da decisão penal (e contravencional) que, por arrastamento, trouxe a improcedência do pedido civil, violando, assim, a decisão recorrida o art.º 391.º, n.º 1 do CPPM (vide ainda, art.º 390.º, n.º 2 do mesmo Código).
   3. A posição perfilhada pelo TSI de conferir legitimidade aos demandantes civis, não constituídos assistentes, para recorrer do acórdão final da 1ª instância na parte penal (e contravencional), ofende ainda o princípio da autonomia entre a matéria penal e o pedido de indemnização civil enxertado no respectivo processo penal, princípio retratado, entre outros, nos art.ºs 121.º do CPM (e art.º 477.º do CCM); art.ºs 358.º, n.º 1, e 393.º, n.º 2, al. a) do CPPM; e, sobretudo, no art.º 85.º, n.º 3, do CE, que estipula que o pedido de indemnização enxertado no processo penal rege-se pelos termos do processo civil sumário.
   4. A posição adoptada pelo TSI nesta parte viola ainda o princípio da autonomia dos sujeitos processuais quanto à matéria penal e a matéria civil, sendo que, nos termos do art.º 63.º, n.º 1 do CPPM, a intervenção do lesado circunscreve-se apenas ao pedido civil, competindo-lhe nesse campo o que na área criminal compete aos assistentes. A quem, como é sabido, é permitido deduzir acusação e requerer a abertura da instrução (cfr. art.ºs 266.º, 267.º, 269.º e 270.º do mesmo Código).
   5. O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito; mas só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo do disposto no art.º 5.º” (art.º 567.º do CPCM).
   6. Há, pois, que fazer uma restrição à aplicação ilimitada da regra de que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito: O tribunal só é livre na qualificação jurídica dos factos desde que não altere a causa de pedir.
   7. Os demandantes civis que interpuseram recurso do acórdão da 1ª instância não suscitaram nem tão pouco impugnaram a decisão penal que absolveu o arguido.
   8. Assim sendo, não podia o TSI ter dela conhecido, a ponto de ter ordenado o reenvio para novo julgamento de todo o objecto do processo constituído não só da petição cível e da contestação do arguido e da A, ora recorrente, mas pela “própria matéria constante da acusação pública em tudo que for desfavorável para o arguido”.
   9. Enferma assim a decisão ora recorrida de um notório erro processual, violando, de forma patente, o disposto no art.º 567.º do CPCM.
   10. A decisão de reenviar o processo para novo julgamento, nos termos acima aludidos, submetendo o arguido a novo julgamento, quando na realidade a respectiva decisão absolutória já transitou em julgado, viola ainda o princípio, nuclear no direito vigente em Macau, do caso julgado (cfr. art.º 401.º, n.º 1 do CPPM e art.ºs 416.º, 417.º, 574.º, n.º 1, 576.º, n.º 1 e 582.º do CPCM).
   11. Dispõe o art.º 22.º, n.º 1 do CE que: “O condutor não deve circular com velocidade excessiva, devendo regular a velocidade de modo que, atendendo às características e estado da via e do veiculo, à carga transportada, às condições atmosféricas à intensidade do tráfego e a quaisquer outras circunstâncias especiais, possa fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente e evitar qualquer obstáculo que lhe surja em condições normalmente previsíveis”.
   12. A velocidade não é assim um conceito absoluto, que tenha a ver apenas com a moderação da marcha, se bem que, no caso presente, ficou plenamente provado que a velocidade em que seguia o veículo conduzido pelo arguido (pouco superior a 30km/hora) era perfeitamente moderada e adequada em face das condições da via, com relevo para o tráfego, o estado do piso, a sinalização, tudo aliado à situação atmosférica e às condições da viatura.
   13. Resulta claro que, atendendo à matéria de facto dada como assente aliada à configuração da própria avenida em causa composta por três semi-faixas de rodagem, o aparecimento da vítima na faixa de rodagem do arguido nas referidas circunstâncias – de forma inopinada, súbita e inesperada, fora da passadeira, saindo da frente de uma viatura de transporte de carga que a tinha encoberta e para cujo local o arguido não tinha acesso visual – não era nem minimamente previsível, nem humanamente previsível nem, muito menos, normalmente previsível.
   14. A vítima não surgiu assim em “condições normalmente previsíveis”, como estabelece o art.º 22.º, n.º 1 do CE, sendo patente que, ao contrário do decidido pelo TSI, o acórdão da 1ª instância não enferma do vício de contradição insanável da fundamentação constante do art.º 400.º, n.º 2, al. b) do CPPM.
   15. Sendo que provado ficou que o arguido tudo tentou, em função dos seus reflexos que se aferem como os de um homo medius, para deter o seu veículo e evitar o acidente, não sendo o mesmo obrigado a prever ou contar com a falta de prudência da vítima, antes devendo razoavelmente partir do princípio de que todos os utentes da via – veículos, peões ou transeuntes – cumprem os preceitos regulamentares de trânsito e observam os deveres de cuidado que lhes subjazem.
   16. Não existe assim qualquer incompatibilidade ou contradição entre os factos dados como provados (bem como entre os factos dados como provados e os não provados, como entre os factos provados e não provados e a fundamentação probatória da matéria de facto), sendo que todos esses factos não são minimamente opostos ou contraditórios, não impedindo o Tribunal Judicial de Base de qualificar juridicamente os mesmos e de tomar, como tomou, uma decisão de direito em conformidade com a lei.
   17. Não é pelo facto de o Tribunal Judicial de Base não ter dado como provado que “os herdeiros sofreram dores psíquicas pela perda da vítima” que estamos perante o vício de erro notório na apreciação da prova, a que se reporta o art.º 400.º, n.º 2, al. c) do CPPM, ao contrário do decidido pelo TSI.
   18. É que não foi feita qualquer prova em sede de julgamento no que concerne a essa matéria, pelo que a posição do douto Tribunal Judicial de Base não poderia ser outra que não a de considerar a mesma como não assente, não ofendendo a decisão nessa parte qualquer das regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis ou sequer ainda as regras da experiência da vida humana.
   19. Em processo civil, incumbe às partes provar em sede de julgamento os factos que alegam nos seus articulados, in casu, a matéria fáctica plasmada no pedido de indemnização, com vista a formar a convicção do juiz sobre a verdade das afirmações articuladas pelas partes.
   20. O Tribunal tem assim o dever de tomar em consideração todas as provas realizadas no processo, conforme impõe o art.º 436.º do CPCM, valorando as mesmas como corolário lógico do princípio da livre convicção do juiz.
   21. Ora, se não foi feita prova alguma em sede de julgamento sobre a matéria em causa, o Tribunal Judicial de Base nunca poderia convencer-se da veracidade daquele facto que sustentava a pretensão dos autores, sabendo-se que o mesmo não é um facto notório a que o art.º 434.º, n.º 4 do mesmo Código faz referência, não lhe restando outra solução que não considerar o mesmo como não assente.
   22. Mostrando-se evidente que a vítima teve a culpa exclusiva pela produção do acidente, sendo a culpa um juízo do julgador retirado dos próprios factos e da sua qualificação jurídica, não era legalmente permitido a aplicação da presunção legal fixada no art.º 496.º, n.º 3, 1ª parte do CCM, tal como decidiu, e bem, o Tribunal Judicial de Base, já que a presunção de culpa, preconizada nessa disposição legal, cede perante a culpa inferida dos factos concretos do acidente, como seja a prática de contravenção causal por parte da própria vítima.
   23. A presunção legal fixada no art.º 496.º, n.º 3, 1ª parte do CCM, só funciona se não existirem elementos para se concluir da culpa do acidente uma vez que o recurso à responsabilidade pelo risco e seu regime só pode funcionar quando sossobrou o apuramento do culpado.
24. Havendo culpa da vítima na produção do acidente em análise, a responsabilidade pelo risco não funciona mercê do preceituado no art.º 498.º, n.º 1 do CCM, não havendo assim obrigação de indemnizar por parte da recorrente A.”
Pedindo que seja julgado procedente o recurso, revogada a decisão recorrida e confirmada a decisão absolutória proferida em primeira instância quanto à ora recorrente no tocante ao pedido de indemnização formulado nos presentes autos.

Na sua motivação, o arguido concluiu de seguinte forma:
   “1. Ao considerar que as partes civis têm legitimidade para recorrer da decisão penal absolutória, o acórdão recorrido viola a norma prevista no n.º 1 do art.º 391.º do CPP.
   2. Sendo a decisão penal do Tribunal de Primeira Instância irrecorrível por parte dos demandantes cíveis nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 391.º do CPP, o caso julgado devia formar-se e formou-se sobre aquela.
   3. Igualmente, se estes não recorreram daquela decisão, o caso julgado formou-se sobre a mesma.
   4. Logo, o Tribunal de Segunda Instância, ao revogar ou alterar o julgamento do Tribunal de Primeira Instância, ofendeu necessariamente o caso julgado.
   5. A reapreciação do acórdão quanto aos factos que motivaram a absolvição do arguido, inclusivamente para efeitos meramente civis, ofende igualmente o caso julgado.
   6. Porquanto os demandantes civis apenas são livres de questionar a matéria de facto contida no seu pedido de indemnização civil apresentado após ter sido deduzida acusação pelo Ministério Público.
   7. O acórdão recorrido parte do pressuposto de que ao arguido competia formular um juízo de previsibilidade mesmo perante o contexto adverso em que se encontrava inserido.
   8. Não é essa, no entanto, a percepção que um homem médio colocado na posição do arguido poderá fazer perante o contexto tido como provado nos autos.
   9. Não existe qualquer contradição insanável na fundamentação do acórdão do Tribunal de Primeira Instância, pelo que também não se verifica naquele o vício previsto no disposto na al. c) do n.º 2 do art.º 400.º do CPP cuja aplicação é portanto deslocada.
   10. A utilização do expediente do reenvio só é legítima quando a renovação da prova não possa corrigir o vício da decisão.
   11. Era ainda possível ao tribunal recorrido corrigir o alegado vício do acórdão da primeira instância, pelo que a decisão ora impugnada viola ainda o disposto no art.º 415.º do CPP.”

Em relação aos dois recursos, o Ministério Público emitiu o seguinte parecer:
   “Recorrem A e o arguido, impugnando o douto acórdão deste Venerando Tribunal.
   O Mº Pº, entretanto, apenas tem legitimidade para responder à alegada ofensa de caso julgado, suscitada por ambos os recorrentes.
   Quanto ao mais, de qualquer forma, afigura-se-nos manifesta a irrecorribilidade da decisão em questão, face ao comando do art.º 390.º, n.º 1, al. d) do C. P. Penal.
   Relativamente, ao mencionado caso julgado, todavia, propendemos pela aplicação do comando do art.º 583.º, n.º 2, al. a) do C. P. Civil, “ex vi” do disposto no art.º 4.º do citado C. P. Penal.
   A “ratio” desse comando, na verdade, aponta, a nosso ver, nesse sentido.
   A excepção em apreço, com efeito, prende-se com a intenção de preservar, até ao limite da hierarquia judicial, o respeito pelo caso julgado.
   Conforme salienta Alberto dos Reis – referindo-se, do mesmo passo, à problemática da incompetência absoluta – “os interesses protegidos por estas normas são de ordem pública; elevou-se ao máximo a sua tutela” (cfr. C. P. Civil, Anotado, V, 233).
   
   Cremos, efectivamente, que se violou, “in casu”, um caso julgado.
   E, a propósito, não podemos deixar de acompanhar as considerações aduzidas nas motivações dos recursos, baseadas, aliás, na douta declaração de voto.
   O acórdão da 1ª Instância, no que tange à parte criminal, não foi objecto de impugnação (por quem tinha legitimidade para o efeito).
   E os demandantes do pedido de indemnização apenas poderiam atacar, em nosso juízo, a respectiva parte cível.
   O douto acórdão, ao reconhecer-lhes legitimidade para impugnar a decisão penal, ao apreciar essa decisão e ao reenviar o processo (também) em relação à mesma, ofendeu, assim, no nosso entender, o caso julgado formado sobre a matéria criminal .
   E, a esse respeito, nada temos a acrescentar à argumentação dos recorrentes e à fundamentação da aludida declaração de voto.
   No sentido propugnado tem decidido o STJ de Portugal, como resulta do aresto junto a fls. 366 e sgs..
   Deve, pelo exposto, na parte em causa, ser concedido provimento aos recursos.”
   
   Nesta instância, o Ministério Público mantém a posição assumida na resposta.
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   Os recorrentes foram prevenidos da eventual irrecorribilidade da decisão do reenvio por causa do disposto na al. d) do n.° 1 do art.° 390.° do Código de Processo Penal e, para a A, também da parte penal segundo a al. c) do mesmo artigo.
   
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 Recorribilidade da parte penal: ilegitimidade do lesado, ofensa do caso julgado
   Tanto A como o arguido vieram recorrer contra a parte do acórdão do Tribunal de Segunda Instância em que reconheceu ao lesado legitimidade para recorrer do acórdão de primeira instância na parte relativa ao crime e contravenção imputados ao arguido, com fundamento na ilegitimidade do lesado em recorrer da parte penal da decisão final de primeira instância e na ofensa do caso julgado entretanto já formado quanto à esta parte penal da decisão.
   Apreciamos agora os recursos na parte respeitante à matéria criminal e, em primeiro lugar, o interposto pelo arguido.
   O arguido está acusado pela prática de um crime de homicídio por negligência previsto no art.° 134.°, n.° 1 do Código Penal (CP), agravado pelo art.° 66.°, n.° 1 do Código da Estrada, e punível com a pena de prisão de 1 ano e 1 mês até 3 anos e de uma contravenção estradal.
   Em princípio, a decisão proferida pelo Tribunal de Segunda Instância em relação a essa imputação criminal e contravencional é irrecorrível por causa de a pena cominável não ser superior a oito anos de prisão, nos termos do art.° 390.°, n.° 1, al. f) do Código de Processo Penal (CPP) na redacção dada pelo art.° 73.° da Lei n.° 9/1999.
   No entanto, foi invocada a violação do caso julgado como fundamento do recurso do arguido.
   A questão já foi ensaiada no recente acórdão deste Tribunal de Última Instância de 11 de Maio de 2005 proferido no processo n.° 6/2005, em que decidiu que “não é de afastar a possibilidade de aplicação subsidiária da alínea a) do n.º 2 do art. 583.º do Código de Processo Civil ao processo penal, permitindo um recurso para o Tribunal de Última Instância, com fundamento na violação do caso julgado ou das regras de competência, para além do que dispõe o art. 390.º do Código de Processo Penal de 1997.”
   Quanto à permissão do recurso de decisão judicial proferida em processo penal com esse fundamento é omisso no CPP. Ao invés, no processo civil está consagrada essa possibilidade. Prescreve o art.° 583.°, n.° 2, al. a) do Código de Processo Civil: “O recurso é sempre admissível, independentemente do valor, se tiver por fundamento a violação das regras de competência, sem prejuízo do disposto no n.° 3 do artigo 34.°, ou a ofensa de caso julgado.”.
   Nos termos do art.° 4.° do CPP, esta norma de processo civil deve ser aplicada subsidiariamente ao processo penal com devida adaptação: o recurso é sempre admissível, independentemente de pena cominável, se tiver por fundamento a ofensa de caso julgado.
   Assim, a parte penal do recurso do arguido é admissível.
   
   No acórdão recorrido, foi julgado que o lesado tem legitimidade para recorrer do acórdão de primeira instância, inclusivé a parte penal e contravencional, e determinou o reenvio de todo o objecto do processo para novo julgamento, abrangendo a parte penal e contravencional. O arguido, ora recorrente, sustenta o contrário.
   No presente processo, o arguido foi acusado criminalmente e o representante dos sucessores da vítima do acidente de viação formulou um pedido de indemnização civil.
   Trata-se de duas acções que correm simultaneamente no mesmo processo penal, uma penal para apurar a responsabilidade penal de arguido e outra civil com vista ao ressarcimento dos danos provocados pelos ilícitos criminais, mantendo autonomia entre si. É o sistema de adesão consagrado no art.° 60.° do CPP, ou seja, o pedido de indemnização civil é enxertado na acção penal e nela é conhecido em conjunto.
   Esta característica reflecte na situação processual das partes civis. Interessa-nos agora a situação processual do lesado.
   Prescreve o art.° 63.°, n.° 1 do CPP:
   “1. A intervenção processual do lesado restringe-se à sustentação e à prova do pedido de indemnização civil, competindo-lhe, correspondentemente, os direitos que a lei confere ao assistente.”
   A intervenção do lesado no processo penal deve ser limitada à sustentação do seu pedido de indemnização civil, não podendo ir além do estritamente necessário à defesa dos interesses que o crime prejudicou.1
   Em matéria de recurso, a parte civil tem legitimidade para recorrer da parte das decisões contra ela proferidas (art.° 391.°, n.° 1, al. c) do CPP).
   “As decisões proferidas contra cada uma das partes civis são tanto as que absolvem ou condenam em quantia inferior ao pedido – proferida contra quem pede – como as que condenam o responsável civil em quantia superior à que admitiu como devida – proferida contra o condenado.”2
   O lesado só pode recorrer da decisão em relação ao seu pedido de indemnização civil na parte desfavorável a ele. Por isso, no presente caso, o lesado não tem legitimidade para recorrer da decisão de absolvição do arguido do crime e contravenção imputados.
   Na realidade, o Ministério Público não recorreu desta decisão de absolvição penal, pelo que esta transitou em julgado. O tribunal recorrido, ao determinar o reenvio do processo para novo julgamento também em relação à parte criminal e contravencional, violou o caso julgado entretanto já formado.
   O recurso do arguido quanto à parte penal procede e o acórdão recorrido deve ser revogado na parte em que reconheceu a legitimidade do lesado de recorrer da parte penal do acórdão de primeira instância e determinou o reenvio do processo para novo julgamento na parte respeitante ao objecto criminal e contravencional.
   
   Em relação ao recurso da A, tal como resulta do acima exposto, como parte civil passiva, ela não tem legitimidade para recorrer da matéria penal do acórdão de segunda instância. Assim, não conhecemos esta parte do seu recurso por inadmissibilidade de recurso.
   
   
   2.2 Irrecorribilidade da decisão do reenvio do processo para novo julgamento
   A recorrente A sustenta a inexistência dos vícios da contradição insanável da fundamentação e do erro notório na apreciação da prova, bem como a inexistência de erro na aplicação de direito no acórdão de primeira instância, para fundamentar o seu pedido de confirmação do acórdão do Tribunal Judicial de Base que a absolveu do pedido de indemnização civil.
   O arguido também manifestou, no seu recurso, contra a decisão do reenvio do processo para novo julgamento por violação do art.° 415.° do CPP, entendendo que não há contradição insanável da fundamentação no acórdão de primeira instância.
   
   O Tribunal recorrido decidiu reenviar o processo para novo julgamento, “devido ao alcance do vício de contradição insanável de fundamentação de que padece efectivamente o mesmo acórdão recorrido”.
   Ora, esta não é uma decisão final que conhece do mérito da causa. Decidir reenviar o processo significa que o tribunal a quem não profere uma decisão de fundo por causa de verificação de determinado vício, mandando o processo para trás a fim de sanar o vício e emitir nova decisão final.
   De acordo com a al. d) do n.° 1 do art.° 390.° do CPP: “Não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelo Tribunal de Segunda Instância, que não ponham termo à causa.”.
   Não constituindo a decisão do reenvio do processo para novo julgamento uma decisão que põe termo do processo, esta parte do acórdão de segunda instância não é recorrível.
   Assim, não é de conhecer dos recursos da A e do arguido nas partes respeitantes ao reenvio do processo para novo julgamento relativo ao pedido de indemnização civil por irrecorribilidade.
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em:
   – não conhecer do recurso interposto pela A por irrecorribilidade;
   – julgar parcialmente procedente o recurso do arguido B, revogando o acórdão recorrido nas partes em que reconheceu a legitimidade do lesado de recorrer da parte penal do acórdão de primeira instância e que determinou o reenvio do processo para novo julgamento na parte respeitante ao objecto criminal e contravencional, mantendo a restante parte da decisão do acórdão recorrido;
   – não conhecendo demais parte do recurso do arguido por irrecorribilidade.
   Custas pelos recorrentes, com as taxas de justiça fixadas em 4UC para a recorrente A e 2UC e honorários do defensor nomeado em mil duzentas patacas para o recorrente B.
   
   Aos 20 de Maio de 2005.

Os juízes:Chu Kin (Relator)
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

1 Cfr. Manuel Leal-Henriques, Manuel Simas-Santos, Código de Processo Penal de Macau, Macau, 1997, p. 172.
2 Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Editorial Verbo, Lisboa / São Paulo, 1994, p. 316.
---------------

------------------------------------------------------------

---------------

------------------------------------------------------------

Processo n.° 25 / 2004 1