Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau
Recurso extraordinário de fixação de jurisprudência
N.° 30 / 2004
Recorrente: A
1. Relatório
A recorrente veio interpor o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal de Segunda Instância proferido em 6 de Maio de 2004 do processo n.° 83/2004, alegando que aquele está em oposição com outro acórdão do mesmo tribunal proferido em 13 de Julho de 2000 do processo n.° 87/2000.
Para tanto, a recorrente formulou as seguintes conclusões:
O recorrido, nas suas alegações, formulou as seguintes conclusões:
“1. A interposição do presente recurso é oportuna.
2. O acórdão do Tribunal de Segunda Instância proferido em 6 de Maio de 2004 do recurso penal n.° 83/2004 está em oposição com outro proferido, em unanimidade por três juízes do colectivo, em 13 de Julho de 2000 do recurso penal n.° 87/2000 (publicado em Acórdãos do Tribunal de Segunda Instância da RAEM de 2000, vol. II).
3. Segundo o acórdão recorrido, a exigência imposta pelo art.° 4.°, n.° 2 da Lei n.° 2/90/M da menção do prazo de proibição de reentrada na ordem de expulsão destina-se essencialmente a garantir o conhecimento efectivo pelo expulso do momento de que pode entrar legalmente, e não visa a proibir a entrada legal de pessoas munidas de documentos de identificação ou de viagem exigidos pela legislação de Macau para o efeito. Por isso, não compromete a exigência prevista no n.° 2 deste artigo o recurso à expressão literal “até à obtenção de documentos legalmente exigidos para a entrada ou permanência em Macau, o interessado fica interditado de aqui entrar” para fixar o prazo de proibição de entrada dos imigrantes ilegais expulsos.
4. O acórdão recorrido entende ainda que pode entrar em Macau a qualquer momento quando munido de documento legal.
5. Pelo contrário, considera o acórdão que está em oposição com o acórdão recorrido que constitui uma sanção única a expulsão determinada ao abrigo da Lei n.° 2/90/M para os indivíduos que se encontram em clandestinidade. Ao mesmo tempo, é também proibida a reentrada durante um certo período mesmo que tenham documentos legais.
6. Tal acórdão considera ainda que o prazo de proibição de reentrada constitui pressuposto necessário e suficiente do crime de violação da proibição de reentrada previsto no art.° 14.°, n.° 1 da referida Lei.
7. A posição da recorrente é a mesma do acórdão que está em oposição com o acórdão recorrido.
8. A razão consiste em que a intenção do legislador, ao prescrever os art.°s 2.° e 4.°, n.° 1 da Lei n.° 2/90/M, era fixar uma sanção única para os indivíduos que se encontram em situação de clandestinidade, e esta sanção visa precisamente limitar a liberdade pessoal destes indivíduos. Isto é, não podem reentrar em Macau durante o prazo de proibição de reentrada constante da ordem de expulsão, em obediência desta ordem, mesmo que obtenham documentos legais.
9. A sanção tem a natureza de limitação de liberdade pessoal, por isso, não se pode fixar por Lei uma limitação indeterminada para os expulsos, e deve constar da ordem de expulsão um prazo de proibição de reentrada para os expulsos.
10. Por outro lado, em obediência do princípio de nullum crimen sine lege, nulla poena sine lege, o expulso só comete o crime de violação da proibição de reentrada previsto no art.° 4.° da referida Lei quando viola a ordem de expulsão emitida segundo o mesmo artigo.
11. Se na prática as Autoridades utilizam no texto da ordem de expulsão emitida contra uma pessoa clandestina a seguinte expressão: “até à obtenção de documentos legalmente exigidos para a entrada ou permanência em Macau, o interessado fica interditado de aqui entrar.”, o expulso vai conseguir frustrar a sanção de expulsão imposta quando entrar em Macau dias depois com documento legal e a incriminação por crime de violação da proibição de reentrada previsto no n.° 1 do art.° 14.°, uma vez que não viola a ordem de expulsão emitida segundo o n.° 2 do art.° 4.°. Mais ainda, mesmo que o expulso entre em Macau sem documentos legais, não comete o crime de violação da proibição de reentrada previsto no n.° 1 do art.° 14.° porque a ordem de expulsão não foi emitida nos termos do n.° 2 do art.° 4.°, e no máximo será novamente expulso. Deste modo, não comete o crime de violação de proibição de reentrada previsto no art.° 14.°, n.° 1 o expulso que entra em Macau com ou sem documentos legais exigidos para o efeito.
12. Se for esse o entendimento do acórdão recorrido, então a tal posição contraria mesmo a intenção legislativa da referida Lei e viola o princípio nullum crimen sine lege, nulla poena sine lege, princípio fundamental do Direito Penal.”
Pedindo ao Tribunal a fixação da seguinte jurisprudência:
“Constitui uma sanção a expulsão de indivíduos que se encontram em situação de clandestinidade determinada nos termos do art.° 4.° da Lei n.° 2/90/M que proibe a entrada em Macau do expulso durante um certo período de tempo, munido ou não de documentos legalmente exigidos para a entrada em Macau.
Por isso, só constitui a ordem de expulsão em sentido próprio daquele artigo quando dela consta expressamente o prazo de execução, o prazo determinado de proibição de reentrada do interessado e o local de recambiamento.
A falta de qualquer um dos requisitos impede a formação de ordem de expulsão no sentido da respectiva Lei.
Ao mesmo tempo, só os factos que violam a ordem de expulsão do sentido daquela Lei constitui o crime de violação da proibição de reentrada previsto no art.° 14.°, n.° 1 da mesma Lei.
O expulso comete o crime de violação da proibição de reentrada previsto no art.° 14.°, n.° 1 daquela Lei quando entrar em Macau durante o período de proibição de reentrada, mesmo munido de documento legal.”
O Ministério Público emitiu resposta no sentido de admissão e prosseguimento do presente recurso por estarem verificados os respectivos requisitos, nomeadamente tratar-se da mesma questão de direito, pois o que está em causa é saber se na ordem de expulsão o indivíduo expulso fica advertido de que estaria interditado de reentrar em Macau se não fosse munido de documentos legais exigidos para a sua entrada ou permanência em Macau, isto deve ou não ser considerado como uma forma de fixar o período durante o qual o indivíduo fica interditado de reentrar em Macau.
Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
2. Fundamentos
2.1 Admissibilidade do recurso
O fundamento do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência está previsto no art.° 419.° do Código de Processo Penal (CPP), na redacção dada pelo art.° 73.° da Lei n.° 9/1999 com a rectificação publicada no Boletim Oficial da RAEM de 24 de Janeiro de 2000:
“1. Quando, no domínio da mesma legislação, o Tribunal de Última Instância proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, o Ministério Público, o arguido, o assistente ou a parte civil podem recorrer, para uniformização de jurisprudência, do acórdão proferido em último lugar.
2. É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando o Tribunal de Segunda Instância proferir acórdão que esteja em oposição com outro do mesmo tribunal ou do Tribunal de Última Instância, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Tribunal de Última Instância.
3. Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.
4. Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.”
As condições cumulativas de admissibilidade e prosseguimento do recurso são:
1. Dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas (art.° 419.°, n.° 1 do CPP);
2. No domínio da mesma legislação (art.° 419.°, n.°s 1 e 3 do CPP);
3. O acórdão fundamento foi proferido antes do acórdão recorrido e transitou em julgado (art.° 419.°, n.°s 1 e 4 do CPP);
4. Do acórdão recorrido não é admissível recurso ordinário (art.° 419.°, n.° 2 do CPP);
5. A orientação perfilhada no acórdão recorrido não está de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Tribunal de Última Instância (art.° 419.°, n.° 2 do CPP).
São dois acórdãos do Tribunal de Segunda Instância que se alega estarem em oposição.
O acórdão fundamento foi proferido em 13 de Julho de 2000 e transitou em julgado.
O acórdão ora recorrido foi proferido posteriormente em 6 de Maio de 2004 e dele não é admissível recurso ordinário para o Tribunal de Última Instância por estar em causa o crime de violação da proibição de reentrada previsto no art.° 14.°, n.° 1 da Lei n.° 2/90/M e punível apenas com pena de prisão até um ano (art.° 390.°, n.° 1, al. f) do CPP, na redacção dada pelo art.° 73.° da Lei n.° 9/1999).
No primeiro, entende-se que não fixou o prazo de interdição de reentrada na advertência de que estaria interditado de reentrar em Macau se não fosse munido de documentos legais exigidos para a sua entrada ou permanência, e caso assim fizesse, estaria sujeito às sanções da Lei de Macau, nos termos do art.° 4.° da Lei n.° 2/90/M.
No segundo, considera que a expressão constante da ordem de expulsão, “até à obtenção de documentos legalmente exigidos para a entrada ou permanência em Macau, o interessado fica interditado de aqui entrar.” não compromete a exigência de elementos da ordem de expulsão prevista no n.° 2 do mesmo art.° 4.°.
Assim, está patente a oposição dos dois acórdãos relativos a mesma questão de direito, a fixação do prazo de interdição de reentrada na ordem de expulsão ao abrigo do art.° 4.°, n.° 2 da Lei n.° 2/90/M.
Embora esta Lei foi revogada pela nova Lei da Imigração Ilegal e da Expulsão (Lei n.° 6/2004), o crime em causa continua previsto no art.° 21.° da nova lei e o prazo durante o qual fica interdita a pessoa expulsa de entrar na RAEM continua a ser o requisito necessário da ordem de expulsão (art.° 10.°, n.° 1 da lei nova).
Aquando da prolação do acórdão recorrido não houve jurisprudência anteriormente fixada pelo Tribunal de Última Instância.
Deste modo, é de admitir o presente recurso, prosseguindo os respectivos trâmites.
2.2 Fixação de jurisprudência na pendência do recurso
Entretanto, na pendência do presente recurso, ou seja, em 22 de Setembro de 2004, foi proferido pelo Tribunal de Última Instância acórdão noutro recurso extraordinário para fixação de jurisprudência de n.° 17/2004, em que a oposição das decisões é a mesma do presente recurso, no sentido de:
“Os indivíduos expulsos da Região Administrativa Especial de Macau por se encontrarem em situação de clandestinidade, que tenham reentrado ou permanecido clandestinamente em Macau, não praticaram o crime previsto e punido pelo art.° 14.°, n.° 1 da Lei n.° 2/90/M, se o acto administrativo de expulsão não tiver fixado um período determinado de interdição de reentrada na Região, como impunha o n.° 2 do art.° 4.° da mesma Lei.”
É de indagar a eficácia da jurisprudência fixada em relação a outros recursos extraordinários para fixação de jurisprudência que estão pendentes.
Prescreve o art.° 427.° do CPP, na redacção dada pelo art.° 73.° da Lei n.° 9/1999:
“1. Sem prejuízo do disposto no n.° 2 do artigo 425.°, a decisão que resolver o conflito tem eficácia no processo em que o recurso foi interposto e constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais da Região Administrativa Especial de Macau.
2. O Tribunal de Última Instância, conforme os casos, revê a decisão recorrida ou reenvia o processo.”
Aparentemente, esta norma determina apenas a eficácia da jurisprudência fixada no próprio processo em que foi proferida.
Mas a resposta não deixa de ser positiva em relação aos recursos extraordinários para fixação de jurisprudência pendentes aquando da prolação da jurisprudência uniformizada sobre o mesmo objecto.
Na realidade, os recursos extraordinários para fixação de jurisprudência, mesmo que sejam provenientes de oposições de acórdãos sobre a mesma questão fundamental de direito e que tenham o mesmo objectivo de fixação de jurisprudência, são todos processos independentes que podem ter a consequência de alterar a decisão dos próprios casos concretos para sentido contrário.
Assim, quando um destes recursos foi decidido com a fixação de jurisprudência, não se pode sustentar que os outros recursos perdem o seu objecto, obstando o seu prosseguimento. Antes pelo contrário, estes devem correr os seus próprios trâmites processuais, ajustados com a realidade de já ter sido proferida a jurisprudência uniformizada sobre a mesma questão de direito.
O recorrente não deve ser obrigado a ver o seu recurso ser julgado extinto e perder a possibilidade de ser alterada a decisão a ele respeita pela situação que não depende da sua vontade, pois se não houver jurisprudência fixada na pendência do seu recurso, este poderia ter o seu prosseguimento e desfecho normal.
Considerando que a jurisprudência fixada constitui jurisprudência obrigatória para todos os tribunais da Região, ao abrigo do n.° 1 do art.° 427.° do CPP, noutros recursos extraordinários para fixação de jurisprudência devem observar a jurisprudência fixada na sua pendência, revendo a decisão recorrida ou reenviando o processo de acordo com a jurisprudência uniformizada, conforme os casos.
2.3 Aplicação da jurisprudência fixada no presente recurso
O acórdão recorrido decidiu alterar a sentença da primeira instância para condenar a arguida pela prática de um crime de violação da proibição de reentrada previsto no art.° 14.°, n.° 1 da Lei n.° 2/90/M com o fundamento de que não viola os requisitos previstos no n.° 2 do art.° 4.° da mesma Lei a prática da polícia de Macau de fixar o período de proibição da entrada para os imigrantes ilegais expulsos através da expressão a expulsa fica “interdita de entrar em Macau até à obtenção dos documentos legais exigidos para a sua entrada ou permanência.”
Segundo a jurisprudência fixada no processo n.° 17/2004 do Tribunal de Última Instância, no acto administrativo de expulsão deve fixar um período determinado de interdição de reentrada na Região nos termos do art.° 4.°, n.° 2 da Lei n.° 2/90/M.
Neste acórdão do Tribunal de Última Instância entende-se que a referida expressão não satisfaz os requisitos previstos no n.° 2 do art.° 4.° da Lei n.° 2/90/M e que viola a lei um acto administrativo que não estabeleça um período determinado durante o qual o expulso fica proibido de reentrar na Região.
Por isso, em obediência da jurisprudência fixada, deve considerar que a ordem de expulsão a que a recorrente estava sujeita não satisfaz o requisito do prazo de interdição de reentrada previsto no n.° 2 do art.° 4.° da Lei n.° 2/90/M por não estar indicado o prazo certo de interdição de reentrada na Região e consequentemente a recorrente não cometeu o crime de violação da proibição de reentrada. Por essa razão, a decisão recorrida deve ser alterada em conformidade, no sentido de absolver a recorrente do crime.
3. Decisão
Face ao exposto, acordam em julgar procedente o recurso, revogando o acórdão recorrido, para ficar a subsistir a sentença de primeira instância que absolvera a arguida pela prática do crime de violação da proibição de reentrada.
Sem custas nesta e na segunda instância.
Ao 1 de Abril de 2005.
Juízes:Chu Kin (Relator)
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai
Processo n.° 30 / 2004 12