Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau
Recurso penal
N.° 1 / 2005
Recorrente: A
1. Relatório
O recorrente foi condenado no Tribunal Judicial de Base, pelo acórdão de 17 de Setembro de 2004 proferido no processo comum colectivo n.° PCC-043-04-1, pela prática de:
- um crime de furto qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelo art.° 198.°, n.° 2, al. e) do Código Penal (CP) na pena de 3 anos e 3 meses de prisão;
- um crime de resistência previsto e punido pelo art.° 311.° do CP na pena de 3 anos e 6 meses de prisão;
- um crime de armas proibidas previsto e punido pelo art.° 262.°, n.° 1 do CP na pena de 4 anos de prisão;
- um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos art.°s 128.° e 129.°, n.° 2, al. h) do CP na pena de 9 anos de prisão.
Em cúmulo, foi condenado na pena única de 15 anos de prisão.
Inconformado recorreu para a segunda instância. Por acórdão de 14 de Dezembro de 2004 proferido no processo n.° 307/2004, o Tribunal de Segunda Instância julgou parcialmente procedente o recurso, absolvendo o recorrente do crime de armas proibidas e reduzindo a pena única para 11 anos de prisão.
Vem agora o recorrente interpor recurso deste último acórdão para o Tribunal de Última Instância, formulando as seguintes conclusões da motivação:
“1. Nos termos do acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância, considerou-se parcialmente procedente o recurso interposto pelo recorrente A, absolvendo-o de um crime de detenção de arma proibida, mantendo os restantes crimes condenados, assim, o recorrente ainda deve cumprir a pena única de 11 anos de prisão. Não se conformando com o referido acórdão, vem o recorrente interpor o recurso do referido acórdão.
2. O presente recurso vem interposto do acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância que considerou que o Tribunal a quo não violou as regras da experiência na formação da convicção (artigo 114.º do Código de Processo Penal de Macau); não existiu nenhum vício no apuramento dos factos (artigo 400.º, n.º 2 do Código de Processo Penal de Macau); não existiu nenhuma questão na aplicação da lei, designadamente se o crime de resistência deve ser integrado no crime de homicídio qualificado na forma tentada e são insuficientes os fundamentos para considerar que a determinação da medida da pena não é excessiva.
3. O recorrente considera que o Colectivo do Tribunal a quo violou as regras da experiência na formação da convicção. Sobre isto, o recorrente já fez uma exposição pormenorizada na sua motivação do recurso apresentada para o Tribunal de Segunda Instância, por isso, não vem discutir mais e só repete dois pontos-chaves.
4. Em primeiro lugar, o recorrente sabia perfeitamente que a pistola era enferrujada e tinha uma só bala na altura, e que ele estava a enfrentar 5 guardas policiais e cada um deles estava com pistola na mão. Face a esta situação, porque é que o recorrente continuou a abrir fogo contra eles pois mesmo que ele conseguisse ferir um, a sua conduta não ajudaria muito a sua fuga, pelo contrário, levaria os outros guardas a disparar contra ele, o que lhe causaria o perigo vital, pelo que ele nunca podia ter intenção dolosa de matar, porque isto é absolutamente desfavorável a ele.
5. Em segundo lugar, na doutrina tradicional, ou seja, no exemplo do Manual do Direito Penal da Alemanha (tradução chinesa) de Hans-Heinrich Jescheck e de Thomas Weigend, expressa-se que o acto no estado da indeterminação criminosa ainda não é acto doloso, esta situação é manifestamente similar à do recorrente em causa: quando o recorrente segurou a pistola na mão, ele ainda não sabia o que estava a fazer, encontrando-se no estado da indeterminação criminosa. Nestes termos, no apuramento dos factos, o Tribunal a quo violou manifestamente o ponto de vista dos académicos supra mencionados.
6. O recorrente não concorda com o Venerando Tribunal Colectivo do Tribunal de Segunda Instância, que entendeu que o Tribunal a quo não violou as regras da experiência na formação da convicção, designadamente:
7. No acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância, refere-se que “havia efectivamente a possibilidade de causar a morte do referido guarda policial”. Nesta frase, o Tribunal de Segunda Instância só considerou que a conduta do recorrente tinha possibilidade de causar a morte do referido guarda policial mas não conseguiu comprovar que o recorrente conformou com a ocorrência daquele facto. Porém, como é sabido, se um acto só pode corresponder a uma consequência criminosa mas o agente não se conforma com essa, o referido acto ainda não pode ser considerado doloso mas sim negligente. Isto, só assim, corresponde à regra comum e é muito similar à jurisprudência alemã supra mencionada. Nestes termos, são obviamente insuficientes os fundamentos do acórdão do Tribunal de Segunda Instância para considerar que o Tribunal a quo não violou as regras de experiência na formação da convicção.
8. No acórdão do Tribunal de Segunda Instância, referiu-se também que “não pode excluir totalmente a possibilidade de que na altura, viria de repente à mente do arguido a ideia de matar realmente o referido guarda policial (pelo menos, na forma de dolo necessário)”. Quanto a isso, o Tribunal de Segunda Instância só considerou que não se pode excluir a intenção repentina de matar, mas, por outra palavra, também não se pode excluir a possibilidade de que o recorrente realmente não tem tal intenção, porque na teoria do direito penal, o agente só pode ser condenado pelo crime doloso depois de ser comprovado que o agente age com dolo e, nunca se pode confirmar que o agente age com dolo só por razão de que o recorrente não consegue excluir o referido dolo. Esta presunção do Tribunal de Segunda Instância violou manifestamente o princípio fundamental in dubio pro reo.
9. Pelo exposto, é manifestamente insuficiente o fundamento do Tribunal de Segunda Instância para considerar que o Tribunal a quo não violou as regras de experiência na formação da convicção, ou seja, isto violou o disposto nos artigos 400.º, n.º 1 e 114.º do Código de Processo Penal de Macau), violando o princípio fundamental in dubio pro reo, pelo que pede-se aos MM.ºs Juízes do Tribunal de Última Instância que profiram uma decisão justa para determinar se o Tribunal a quo violou ou não as regras da experiência na formação da convicção. Se o Venerando Tribunal de Última Instância concordar com os pontos de vista acima referidos do recorrente, solicita que os MM.ºs Juízes do Tribunal de Última Instância absolvam o recorrente do crime de homicídio qualificado na forma tentada.
10. Mesmo que os MM.ºs Juízes não concordem com os pontos de vista acima referidos do recorrente, o recorrente considera ainda que não são suficientes os fundamentos do Tribunal de Segunda Instância para considerar que o acórdão do Tribunal a quo não está enfermo da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
11. O recorrente repete simplesmente a sua motivação do recurso apresentada para o Tribunal de Segunda Instância: em primeiro lugar, nos factos provados, o Tribunal Colectivo considerou que o recorrente agiu “com a intenção de matá-los”, mas na descrição dos factos, não indicou claramente quem é que o recorrente queria matar. O bem jurídico protegido no crime de homicídio é o direito à vida que toda a gente goza. Quando o agente viola o direito à vida do ofendido, é necessário indicar claramente quem é que o agente matou, senão, carece do objecto específico do crime, de forma que existe o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; em segundo lugar, nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal e nos pontos de vista dos académicos (cfr. a motivação do recurso apresentada para o Tribunal de Segunda Instância), evidencia-se que o dolo eventual e a tentativa não se podem verificar no mesmo tempo porque os académicos entendem que no acto praticado na forma tentada, o agente tem de ter um plano pormenorizado, mas no acto praticado com dolo eventual, não existe plano nenhum. Nos factos provados, o Tribunal Colectivo não classificou o dolo do recorrente, pelo que deve existir o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
12. O Colectivo do Tribunal de Segunda Instância entendeu que, conforme o contexto dos factos provados, o recorrente só puxou com sucesso o gatilho da pistola contra o guarda B mas não conseguiu puxar o gatilho contra o guarda C, pelo que só procede o ponto de vista de matar o guarda B.
13. O recorrente não concorda com isso. O recorrente considera que se o Tribunal confirmasse que ele tinha a intenção de matar, assim, conforme a situação concreta, o recorrente tinha puxado, por várias vezes, o gatilho da pistola contra vários guardas policiais e nos factos provados em causa, referiram-se os nomes dos vários guardas, pelo que ao entender a frase “com a intenção de matá-los”, é fácil de entender que o recorrente pretendia matar todos os guardas presentes.
14. Pelo que, não se pode confirmar que o recorrente só tinha a intenção de matar o guarda B. Como carece do objecto específico exigido pelo crime de homicídio, os factos provados que fundamentam a condenação do recorrente no crime de homicídio qualificado na forma tentada são notoriamente insuficientes para a decisão em causa.
15. Quanto à questão de que o dolo eventual e a tentativa não se podem verificar no mesmo tempo, suscitada na motivação do recurso pelo recorrente para o Tribunal de Segunda Instância, o Colectivo do Tribunal de Segunda Instância considerou que o recorrente agiu com dolo necessário, mas não fez exposição pormenorizada sobre isto, contudo, o recorrente considera que existem alguns pontos inadequados no entendimento do Tribunal de Segunda Instância.
16. No acórdão do Tribunal de Segunda Instância, lê-se a seguinte frase: “havia efectivamente possibilidade de causar a morte do referido guarda policial” e depois, também lê-se que “não pode excluir totalmente a possibilidade de que na altura, viria de repente à mente do arguido a ideia de matar realmente o referido guarda policial (pelo menos, na forma do dolo necessário)”. Como é sabido, a diferença entre o dolo necessário e o dolo eventual reside em que, ao praticar um acto, o acto do agente causa necessariamente uma consequência criminosa mas o agente ainda pratica-o, acto esse só pode ser considerado como dolo necessário, porém, se o acto praticado pelo agente só causa uma consequência criminosa possível mas o agente ainda conformar com aquela consequência, acto esse é considerado como dolo eventual. Visto que o Tribunal de Segunda Instância considera que o acto do recorrente só causa a possibilidade da morte do referido guarda, então, porque é que considerá-lo como dolo necessário? Nestes termos, mesmo que o Tribunal Colectivo entendesse que o recorrente tinha realmente a intenção de matar, a intenção do recorrente deve ser considerada como dolo eventual.
17. Na motivação do recurso apresentada pelo recorrente para o Tribunal de Segunda Instância, o recorrente já expôs pormenorizadamente os pontos de vista dos autores portugueses que entendem principalmente que um dos requisitos da punição da tentativa é: ao praticar um acto, o agente deve ter um plano pormenorizado e começa a praticá-lo mas o plano não chega a ser realizado por motivo fora da vontade do agente, contudo, no dolo eventual, ao praticar o acto, o agente só sabe que o seu acto causa uma consequência criminosa possível, por isso, necessariamente, o agente não tem nenhum plano criminoso, pelo que não se preenche plenamente o requisito da punição do crime na forma tentada. Nestes termos, os autores consideram que o crime com dolo eventual praticado na forma tentada não deve ser punido.
18. Como não se conseguiu expressar concretamente o dolo do recorrente nos factos provados e nos factos objectivos, pode-se presumir que o recorrente só agiu com dolo eventual, os factos provados são manifestamente insuficientes para o Tribunal a quo proferir uma boa decisão.
19. Nestes termos, são manifestamente insuficientes os fundamentos do Tribunal de Segunda Instância para considerar que o Tribunal a quo não violou o disposto no artigo 400.º, n.º 2, alínea a) do CPPM, por isso, solicita que os MM.ºs Juízes do Tribunal de Última Instância absolvam o recorrente do crime de homicídio qualificado na forma tentada ou ordenem o reenvio do processo para o novo julgamento do crime de homicídio qualificado na forma tentada, nos termos do artigo 418.º, n.º 1 do mesmo Código.
20. Na sua motivação do recurso apresentada para o Tribunal de Segunda Instância, o recorrente já expressou os seus pontos de vista sobre a determinação da medida da pena dos referidos crimes e a determinação da medida da pena de cada crime deve ser: Quanto ao 1º crime que é o crime de furto qualificado na forma tentada, o arguido confessou-o sem reserva nenhuma. Nos termos do artigo 198.º, n.º 2, alínea e) do Código Penal, a moldura da pena de prisão deste crime é de 2 anos a 10 anos, mas, como o recorrente agiu na forma tentada, a pena de prisão deve ser alterada para 1 mês a 6 anos e 8 meses, nos termos do artigo 22.º do Código Penal e do artigo 67.º n.º 1, alíneas a) e b) do mesmo Código, pelo que o recorrente considera que a condenação na pena de 2 anos e 6 meses de prisão deve ser bastante adequada. Quanto ao crime de resistência e de coacção, a sua moldura da pena de prisão é de 1 mês a 5 anos, mas, é manifestamente excessiva a condenação do recorrente na pena de 3 anos e 6 meses de prisão. O recorrente considera que é bastante adequada a condenação da pena de 1 ano e 9 meses da prisão. Quanto ao crime de homicídio qualificado na forma tentada, a sua moldura da pena de prisão é de 15 anos a 25 anos, nos termos do artigo 129.º, n.º 2, alínea h) do Código Penal. Visto que o recorrente agiu na forma tentada, a moldura da pena de prisão deve ser alterada para 3 anos a 16 anos e 8 meses, nos termos do artigo 22.º do Código Penal e do artigo 67.º, n.º 1, alíneas a) e b) do mesmo Código, pelo que é manifestamente excessiva a pena de 9 anos de prisão condenada ao recorrente. O recorrente considera que é bastante adequada a condenação da a pena de 6 anos de prisão.
21. Em conjugação com o artigo 71.º do Código Penal, a moldura da pena de prisão deve ser de 6 anos a 10 anos e 3 meses e, considerando-se de novo a atitude do recorrente no presente processo, nenhuma consequência grave foi causada pela conduta do recorrente, a confissão dos restantes crimes do recorrente, com a excepção do crime de homicídio qualificado na forma tentada e o grau do dolo global não foi muito elevada, a condenação do recorrente na pena de 7 anos de prisão é bastante adequada.
22. O Ministério Público também deu a sua resposta sobre a motivação do recurso apresentada pelo recorrente para o Tribunal de Segunda Instância, considerando que comparada a pena condenada pelo Colectivo do Tribunal a quo com a propugnada pelo recorrente, o Ministério Público concorda mais com a pena propugnada pelo recorrente, isto é, o Ministério Público também entende que a medida da pena determinada pelo Tribunal a quo foi excessiva.
23. O recorrente não concorda com o ponto de vista do Colectivo do Tribunal de Segunda Instância porque o Tribunal de Segunda Instância entendeu que a determinação da medida da pena do Tribunal a quo foi muito adequada e não violou os dispostos nos artigos 40.º e 65.º do Código Penal de Macau, contudo, ao alegar os seus fundamentos, o Tribunal de Segunda Instância citou o disposto no artigo 14.º, n.º 2 da Lei n.º 2/90/M, de 3 de Maio, considerando que se deve condenar o recorrente numa pena mais pesada, uma vez que o recorrente é um indivíduo em situação de clandestinidade.
24. O recorrente procedeu a uma leitura pormenorizada do disposto acima referido. Segundo o qual, parece que a pena do recorrente não deve ser determinada como o entendido pelo Tribunal de Segunda Instância (este considera que deve condenar o recorrente numa pena pesada), mas, a conduta criminosa do recorrente foi praticada em situação de clandestinidade e isto só constitui uma circunstância agravante. Deve-se tomar atenção a que esta é apenas uma circunstância agravante, por isso, deve ser devidamente imputada na acusação e só assim se pode aplicar a respectiva pena. A pena daquela circunstância agravante nunca pode ser oficiosamente condenada pelo tribunal colectivo na determinação da medida da pena.
25. Como esta circunstância agravante não foi imputada na acusação, e na audiência de julgamento também não foi feita nenhuma alteração nos termos do artigo 339.º do Código de Processo Penal, o recorrente considera que a referida circunstância agravantes não é aplicável ao recorrente, pelo que, ao considerar que o recorrente tem esta circunstância agravante, o Tribunal de Segunda Instância viola manifestamente o disposto no artigo 339.º do Código de Processo Penal.
26. No acórdão recorrido do Tribunal de Segunda Instância, também se pode saber que o Tribunal de Segunda Instância concorda que a determinação da medida da pena do Tribunal a quo é excessiva se o recorrente não tiver a circunstância agravante prevista no artigo 14.º, n.º 2 da Lei n.º 2/90/M, de 3 de Maio. Nestes termos, como o Tribunal a quo não pode aplicar oficiosamente ao recorrente a circunstância agravante prevista no artigo 14.º, n.º 2 da Lei n.º 2/90/M, de 3 de Maio, o Tribunal a quo condenou manifestamente o recorrente na pena excessiva na sua determinação da medida da pena.
27. Pelo exposto, são manifestamente insuficientes os fundamentos do Tribunal de Segunda Instância para considerar que o Tribunal a quo, ao determinar a medida da pena, não condenou o recorrente numa pena excessiva, de forma que o Tribunal de Segunda Instância viola os dispostos nos artigos 40.º e 60.º do Código Penal, pelo que, solicita que os MM.ºs Juízes do Colectivo do Tribunal de Última Instância concordem com os pontos de vista do recorrente, determinando de novo uma pena mais adequada ao recorrente. O recorrente considera que é mais adequada a pena única de 7 anos de prisão.”
O Ministério Público, na sua resposta, concluiu de forma seguinte:
“1. Nos termos das alíneas f) e g) do n.º 1 do art.º 390.º do Código de Processo Penal, as decisões que admitem recurso interposto ao TUI limitam-se aos acórdãos proferidos, em recurso, pelo TSI, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão superior a oito ou dez anos, “mesmo em concurso de infracções”.
2. Só se pode interpor recurso para o TUI quando a pena aplicável a cada crime for superior a 8 e 10 anos de prisão, num processo que abrange vários crimes só se pode interpor recurso para o TUI relativamente aos crimes que preenchem as condições supracitadas; e os restantes crimes não são abrangidos no âmbito de recurso.
3. O crime de furto qualificado (na forma tentada) e o crime de resistência e coacção determinados não estão abrangidos no âmbito de recurso para o TUI .
4. O recorrente defendeu que a pistola estava enferrujada e continha uma só bala. Além disso, o recorrente estava a enfrentar cinco guardas, todos com pistola na mão. Face a tal situação, o mesmo que disparasse, não ajudaria muito a sua fuga. Estes fundamentos não podem excluir a intenção de matar com dolo.
5. No crime de homicídio, é extremamente complicado determinar o dolo de matar. Embora este seja uma questão de natureza subjectiva, deve ser determinado através de uma série de factores objectivos.
6. Segundo os referidos factos assentes, sobretudo os factos de que o recorrente em duas vezes apontava com pistola o guarda B e puxou o gatilho com a intenção de disparar, abraçou, por detrás, o pescoço do guarda e apontou a testa direita do guarda com a pistola que segurava na mão direita, o recorrente praticou tais actos, não apenas para tentar fugir; pelo contrário, o recorrente em várias vezes apontava o guarda com pistola e puxou o gatilho, até apontou-lhe a pistola directamente à cabeça do guarda e tentou puxar gatilho, só não conseguiu disparar por motivo fora da vontade. Isto reflecte explicitamente que o recorrente tinha intenção de matar o guarda (pelo menos com o dolo necessário).
7. Pela mesma razão, não podemos admitir a interpretação formulada pelo recorrente de que o mesmo não sabia o que estava a fazer aquando da prática, encontrando-se num estado de indeterminação criminosa.
8. No acórdão recorrido não existe o vício de insuficiência para decisão da matéria de facto provada, que o recorrente indicou, pois dos factos de caso já se sabe bem qual pessoa constituir o “objecto específico” exigido pelo crime de homicídio.
9. Desde que é abrangida nos factos assentes a factualidade de que o agente tinha o dolo de matar, já está preenchido o respectivo requisito para a constituição do elemento subjectivo do crime de homicídio. E a determinação do tipo de dolo, da forma mais rigorosa, já não deve pertencer ao âmbito da matéria de facto, mas sim, deve ser considerada como uma questão jurídica, em outras palavras, o tribunal, partindo dos factos assentes, procede à classificação do dolo do agente. Por isso, não pode proceder o recurso interposto pelo recorrente com um vício da matéria de facto como fundamento.
10. Mesmo que aceitemos o dolo eventual que o recorrente formulou, não podemos aceitar a fundamentação de que o crime na forma tentada e com dolo eventual não é punível.
11. Mesmo que não causasse consequência grave por ser praticado sob forma tentada, o crime de homicídio qualificado do recorrente, pela sua natureza, constitui um crime de violência da máxima gravidade. Além do mais, devemos ter em consideração as circunstâncias do crime e o objecto visado pelo crime, o que é suficiente para demonstrar a gravidade do acto criminoso e não se deve dizer que não é elevada a intensidade de dolo.
12. O disposto no art.º 339.º do Código de Processo Penal é aplicável à alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia. Mas in casu não existe nenhuma alteração de factos para exigir a respectiva comunicação ao arguido, pois, não se verifica o pressuposto da aplicação do art.º 339.º do Código de Processo Penal.
13. A agravação da pena devido à situação de clandestinidade em que o agente se encontra não passa de uma questão de aplicação da lei, uma vez que o respectivo facto está abrangido na factualidade imputada, o tribunal pode, partindo totalmente da qualidade do recorrente como imigrante clandestino, aplicar o disposto no n.º 2 do art.º 14.º da Lei n.º 2/90/M para condenar o recorrente numa pena agravada, independentemente da referência de tais circunstâncias agravantes na parte da qualificação jurídica da acusação.”
Considerando, a final, que o recurso não pode proceder.
Nesta instância, o Ministério Público mantém a posição assumida na resposta acima transcrita.
Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
2. Fundamentos
2.1 Foram dados como provados pelo Tribunal Judicial de Base e Tribunal de Segunda Instância os seguintes factos:
“No mês de Novembro de 2003, numa data não apurada, o arguido A entrou clandestinamente em Macau, e desde então, tem permanecido ilegalmente, em Macau.
No dia 26 de Janeiro de 2004, por volta das 03H00 da madrugada, o arguido levando consigo a pistola acima referida, certos instrumentos como uma tesoura de cor preta, um martelo de carpinteiro, uma mala de cor preta e da marca YUQIER, uma mala de cor preta e da marca ERENA, uma chave de parafuso, um tablete de três adesivos da marca BANITORE, um rolo de fita cola, uma algema e uma lanterna de cor azul (vide fls. 3 e 4 dos autos), e deslocou-se ao “Supermercado” sito em Macau, na [Endereço(1)], a fim de praticar furto.
O arguido forçou a porta traseira de madeira do Supermercado com a chave de parafuso, e introduziu-se imediatamente no supermercado para encontrar objectos valiosos, mas, de repente, ouviu o toque do alarme anti-roubo, por isso, tentou pôr-se em fuga.
Entretanto o arguido viu que alguém estava lá fora, tornando-se assim difícil a fuga, escondeu-se então, rapidamente, na casa de banho no 5.º andar do supermercado.
Nessa altura; alguns guardas da PSP que estavam precisamente a exercer patrulhas de prevenção e operações contra roubos realizadas na [Endereço(1)], foram alertados pelo toque do alarme anti-roubo, e aproximaram-se logo ao Edifício para efeitos de investigação. Descobriram que apresentavam vestígios de dano na janela da sobreloja da porta traseira do “Supermercado” voltada para a Rua Oeste do Mercado de S. Domingos, suspeitando assim que alguém tivesse entrado no supermercado para prática de furto.
Os guardas entraram então no Edifício, contactando o porteiro que estava de serviço D (identificado a fls. 1 dos autos), e este conduziu-os para o “Supermercado” sito no mesmo centro comercial no sentido de proceder à busca.
Os guardas verificaram na porta traseira do “Supermercado” vestígios de dano provocados pelo furto, suspeitaram assim que o arguido ainda permanecesse no supermercado, e nessa consequência, os guardas continuaram a fazer busca dentro do supermercado, conseguindo encontrar, posteriormente, alguns instrumentos para prática de crime, tais como uma tesoura de cor preta, um martelo de carpinteiro, duas chaves de parafuso com cabo de cor verde (vide fls. 3 dos autos).
De seguida, sob a condução do porteiro D, os guardas deram continuidade à busca no supermercado, piso por piso.
Quando chegaram ao 5.º andar, o porteiro D foi o primeiro quem descobriu que o arguido tinha escondido na casa de banho para homens e munia de uma pistola de cor preta na mão direita, portanto, o porteiro retrocedeu imediatamente, para que os guardas pudessem entrar e apanhar o arguido (vide esboço do local a fls. 23 dos autos).
Em virtude de o arguido estar munido de pistola, os guardas sacaram as suas armas de serviço como medidas de precaução e ordenaram o arguido para deixar a pistola de cor preta que segurava na mão.
Neste momento, o arguido saíu da casa de banho com ímpeto e tentou fugir-se, com a pistola na mão, apontou o guarda B e puxou o gatilho da pistola, com a intenção de disparar contra o mesmo guarda.
Mas, na altura, a pistola do arguido não conseguiu disparar.
Ao mesmo tempo, o guarda B deu um tiro, de intimidação, ao ar, só que, o arguido ignorou esta alerta do guarda e apontou novamente o guarda B com a pistola, com a intenção de novamente disparar contra o mesmo.
Como o guarda B sentiu-se que a sua vida estivesse em perigo, deu, o 2.º tiro, desta vez foi contra o arguido, mas não tendo conseguido acertar o mesmo (vide esboço do local a fls. 24 dos autos).
Neste momento, o arguido saíu novamente da casa de banho com ímpeto, lançando-se ao guarda C que estava fora para tomada de precaução.
Pelo encontrão dado pelo arguido ao guarda C, este perdeu o equilíbrio, neste momento, o arguido, com a sua mão esquerda, abraçou, por detrás, o pescoço do guarda, e em simultâneo, apontou a testa direita do guarda C com a pistola que segurava na sua mão direita, com a intenção de tomá-lo como refém.
Ao mesmo tempo, o guarda C carregou, de imediato, no cão da pistola segurada na mão do arguido com o dedo indicador da mão direita, com a tentativa de impedir o funcionamento mecânico da mesma pistola.
Durante o envolvimento, o arguido chegou a tentar puxar o gatilho da pistola, só que, o cão da pistola do arguido foi carregado pelo dedo indicador da mão direita do guarda C, e por isso, não conseguiu disparar.
Seguidamente, o arguido conseguiu afastar o dedo indicador da mão direita do guarda C.
Como as circunstâncias do local estavam urgentes e a vida do guarda C estivesse em perigo, o guarda E disparou imediatamente um tiro com a sua arma de serviço contra o arguido, no seu abdómen.
Depois de ter sido acertado no abdómen, o arguido tentou ainda a resistência, mas acabou por ser controlado pelos guardas.
Durante a resistência oferecida pelo arguido, usando pistola e empregando violência, contra as acções de detenção por parte dos guardas acima referidos, foram resultados ferimentos em várias partes do corpo dos 5 guardas.
O Relatório de Exame Directo e a Perícia de Medicina Legal do guarda E constam-se a fls. 7 e 95 dos presentes autos, e sendo aqui considerados integralmente reproduzidos.
O Relatório de Exame Directo e a Perícia de Medicina Legal do guarda B constam-se a fls. 8 e 94 dos presentes autos, e sendo aqui considerados integralmente reproduzidos.
O Relatório de Exame Directo e a Perícia de Medicina Legal do guarda C constam-se a fls. 9 e 93 dos presentes autos, e sendo aqui considerados integralmente reproduzidos.
O Relatório de Exame Directo e a Perícia de Medicina Legal do guarda F constam-se a fls. 10 e 92 dos presentes autos, e sendo aqui considerados integralmente reproduzidos.
O Relatório de Exame Directo e a Perícia de Medicina Legal do guarda G constam-se a fls. 11 e 91 dos presentes autos, e sendo aqui considerados integralmente reproduzidos.
Segundo o Parecer de Exame Clínico de Medicina Legal constante a fls. 95 dos presentes autos, os ferimentos do guarda E necessitaram de 3 dias para se recuperar, e este ficou sem capacidade de trabalho durante este período, sendo considerada como uma ofensa simples à integridade física.
Segundo o Parecer de Exame Clínico de Medicina Legal constante a fls. 94 dos presentes autos, os ferimentos do guarda B necessitaram de 3 dias para se recuperar, e este ficou sem capacidade de trabalho durante este período, sendo considerada como uma ofensa simples à integridade física.
Segundo o Parecer de Exame Clínico de Medicina Legal constante a fls. 93 dos presentes autos, os ferimentos do guarda C necessitaram de 3 dias para se recuperar, e este ficou sem capacidade de trabalho durante este período, sendo considerada como uma ofensa simples à integridade física.
Segundo o Parecer de Exame Clínico de Medicina Legal constante a fls. 92 dos presentes autos, os ferimentos do guarda F necessitaram de 1 dia para se recuperar, e este ficou sem capacidade de trabalho durante este período, sendo considerada como uma ofensa simples à integridade física.
Segundo o Parecer de Exame Clínico de Medicina Legal constante a fls. 91 dos presentes autos, os ferimentos do guarda G necessitaram de 1 dia para se recuperar, e este ficou sem capacidade de trabalho durante este período, sendo considerada como uma ofensa simples à integridade física.
Quando se introduziu no “Supermercado”, o arguido danificou a porta de madeira do mesmo supermercado, causando um prejuízo no valor aproximado de MOP$3.500,00 (três mil e quinhentas patacas).
Caso o arguido conseguisse concretizar o furto no supermercado e levasse o dinheiro dentro da cofre do escritório, haveria um prejuízo no valor mínimo de MOP$76.000,00 (setenta e seis mil patacas).
O arguido agiu com dolo, livre e conscientemente, ao praticar o facto acima referido.
O arguido, com ilegítima intenção de apropriação para si da coisa móvel alheia, introduziu-se em estabelecimento comercial do terceiro por meio de danificação, a fim de levar coisa móvel alheia, no entanto, objectivo este não foi alcançado por motivos fora da perspectiva do arguido.
O arguido bem sabia que os ditos guardas estavam a exercer funções, entretanto, empregou violência contra eles para se opor a que eles praticassem acto relativo ao exercício das suas funções, fazendo com que sofressem ferimentos corporais.
O arguido bem sabia que não devia deter e trazer consigo, fora das condições legais, arma proibida que podia ser usada como instrumento de agressão a terceiro.
O arguido, durante a resistência oferecida aos guardas através do uso da pistola e resistência à detenção, por várias vezes, os guardas, bem como puxou por várias vezes, o gatilho da pistola, com a intenção de matá-los, todavia, este objectivo ou intenção de homicídio contra os guardas não foi alcançada por motivos fora da perspectiva do arguido.
O arguido bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei de Macau.
O arguido era desempregado na RPC.
É casado e tem a mulher e um filho a seu cargo.
Confessou parcialmente os factos e é primário.
O Supermercado deseja indemnização pelos prejuízos sofridos.
Não ficaram provados os restantes factos da acusação, designadamente:
No mês de Dezembro de 2003, numa data não apurada, o arguido achou uma pistola numa fracção autónoma desocupada sita em Macau, no Bairro da Guia.
Até ao Ano Novo Chinês, o arguido, por ter falta de dinheiro para regressar a casa, apareceu-lhe a ideia de praticar furtos.”
2.2 Recorribilidade do acórdão
O Ministério Público suscitou a questão de irrecorribilidade do acórdão do Tribunal de Segunda Instância na parte relativa aos crimes de furto qualificado tentado e de resistência.
O recorrente discordou, mas sem razão.
Segundo o art.° 390.°, n.° 1, al. f) do Código de Processo Penal (CPP), na redacção dada pelo art.° 73.° da Lei n.° 9/1999, não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelo Tribunal de Segunda Instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de infracções.
Tal como foi decidido em vários acórdãos do Tribunal de Última Instância1, em caso de concurso de crimes, para que seja admissível recurso de decisão do Tribunal de Segunda Instância para o Tribunal de Última Instância, é necessário que a pena abstracta aplicável a cada crime exceda oito ou dez anos de prisão, respectivamente, nos termos das al.s f) e g) do n.° 1 do referido artigo do CPP.
Para os crimes condenados na forma tentada, é a moldura abstracta da pena destes crimes na forma tentada que releva para efeito de determinar a admissibilidade do recurso segundo aquelas normas.
O crime de furto qualificado na forma tentada é punível com pena de prisão até seis anos e oito meses (art.°s 198.°, n.° 2, al. e), 22.°, n.° 2 e 67.°, n.° 1 do CP).
O crime de resistência é punível com pena de prisão até cinco anos (art.° 311.° do CP).
Por o limite máximo das molduras de pena destes dois crimes não ultrapassar oito anos de prisão, a decisão do Tribunal de Segunda Instância não é recorrível em relação a estes dois crimes.
2.3 Violação de regras de experiência na formação de convicção
O recorrente sustenta que o tribunal, ao dar por provada a intenção dele de matar os polícias, não respeitou as regras de experiência na formação de convicção, em violação dos art.°s 400.°, n.° 1 e 114.° do CPP, salientando que a sua pistola já se encontrava enferrujada, só tinha uma bala e não tinha a intenção de matar os polícias. Em nome do princípio de in dubio pro reo, entende que deve ser absolvido do crime de homicídio qualificado tentado.
É de relembrar os seguintes factos provados:
“Neste momento, o arguido saíu da casa de banho com ímpeto e tentou fugir-se, com a pistola na mão, apontou o guarda B e puxou o gatilho da pistola, com a intenção de disparar contra o mesmo guarda.
Mas, na altura, a pistola do arguido não conseguiu disparar.
Ao mesmo tempo, o guarda B deu um tiro, de intimidação, ao ar, só que, o arguido ignorou esta alerta do guarda e apontou novamente o guarda B com a pistola, com a intenção de novamente disparar contra o mesmo.”
“Pelo encontrão dado pelo arguido ao guarda C, este perdeu o equilíbrio, neste momento, o arguido, com a sua mão esquerda, abraçou, por detrás, o pescoço do guarda, e em simultâneo, apontou a testa direita do guarda C com a pistola que segurava na sua mão direita, com a intenção de tomá-lo como refém.
Ao mesmo tempo, o guarda C carregou, de imediato, no cão da pistola segurada na mão do arguido com o dedo indicador da mão direita, com a tentativa de impedir o funcionamento mecânico da mesma pistola.
Durante o envolvimento, o arguido chegou a tentar puxar o gatilho da pistola, só que, o cão da pistola do arguido foi carregado pelo dedo indicador da mão direita do guarda C, e por isso, não conseguiu disparar.”
Destes factos provados resultam com bastante clareza de que o recorrente agiu com a intenção de matar os guardas B e C, pois apontou o primeiro guarda com a pistola e puxou o gatilho desta com a intenção de disparar contra ele e, momento depois, apontou a testa direita do segundo guarda e chegou a tentar puxar o gatilho da pistola.
Os guardas não foram atingidos porque em relação ao primeiro o recorrente não conseguiu disparar e ao segundo o cão da pistola do recorrente foi carregado pelo dedo indicador da mão direita deste guarda.
Dos actos de puxar o gatilho da pistola contra os dois guardas conclui-se que o recorrente tinha manifestamente, em dois momentos diferentes, a intenção clara de matar os dois guardas policiais.
É mesmo difícil sustentar que o recorrente se encontrava, na altura, na situação de indeciso, sem saber o que estava a fazer ao pegar a pistola.
Improcede o recurso nesta parte.
2.4 Insuficiência da matéria de facto provada para a decisão
Sob este vício, o recorrente alega que nos factos provados não está especificada a pessoa que ele pretendeu matar. Por isso, na falta do objecto do crime de homicídio, o recorrente deve ser absolvido deste crime.
De acordo com o recorrente, está em causa o seguinte facto provado:
“O arguido, durante a resistência oferecida aos guardas através do uso da pistola e resistência à detenção, por várias vezes, os guardas, bem como puxou por várias vezes, o gatilho da pistola, com a intenção de matá-los, todavia, este objectivo ou intenção de homicídio contra os guardas não foi alcançada por motivos fora da perspectiva do arguido.”
Para o recorrente, “com a intenção de matá-los” significa que o Colectivo deu como provado que aquele tinha a intenção de matar todos os guardas. Ao não ter especificado concretamente qual guarda que o recorrente pretendeu matar, incorre o tribunal recorrido no vício apontado.
Ora, este facto provado está inserido na parte dos elementos subjectivos de entre os factos praticados pelo recorrente integráveis nos crimes a que foi condenado.
Na realidade, no facto acima referido devia descrever com maior precisão as pessoas a que visava a intenção do arguido de praticar o crime de homicídio. Mas, se conjugamos este facto com os transcritos no ponto 2.3 da fundamentação do presente acórdão, em que evidencia que o recorrente “apontou o guarda B e puxou o gatilho da pistola, com a intenção de disparar contra o mesmo guarda.” e “apontou a testa direita do guarda C” e “chegou a tentar puxar o gatilho da pistola”, podemos chegar à conclusão, sem dificuldade, de que o recorrente agiu com a intenção de matar os guardas B e C.
Tal incongruência nos factos provados relativos aos elementos objectivos e subjectivos do crime de homicídio poderá consubstanciar no vício da contradição da fundamentação. Só que esta contradição é longe de ser insanável (art.° 400.°, n.° 2, al. b) do CPP), pois se mostra ultrapassada através do esforço de conjugar os vários factos provados para obter uma visão certa da actuação do recorrente.
Por outro lado, o recorrente sustentou ainda que devia considerar que ele tinha apenas o dolo eventual ao praticar o crime de homicídio, insusceptível de ser punido a título de tentativa. A ideia central desta posição reside na falta do plano de praticar o crime de homicídio.
É verdade que, tal como refere no acórdão recorrido, “a actuação de apontar a cabeça do guarda B, ... é mesmo possível de provocar a morte do guarda ...”.
Ficou provado que o recorrente puxou, no primeiro momento, e tentou puxar, em momento posterior, o gatilho da sua pistola contra os dois guardas policiais, respectivamente.
Nos termos do art.° 13.°, n.° 3 do Código Penal, o dolo eventual define-se como: “Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização.”
No presente caso, o recorrente agiu não apenas conformando com a possibilidade de a sua conduta preencher o tipo do crime de homicídio, mas agiu com a intenção clara de o realizar, ou seja, com o dolo directo.
Chegado a essa conclusão, nem se põe o problema da compatibilidade do dolo eventual com a figura de tentativa.
Assim, não há insuficiência da matéria de facto provada para a decisão que fundamenta a pretensão do arguido de ser absolvido do crime de homicídio tentado.
É de acrescentar ainda que, no caso concreto, ficou provado que o recorrente pretendeu matar dois guardas policiais, o que será suficiente para condenar o mesmo pela prática de dois crimes de homicídio tentado, e não apenas um como vem acusado pelo Ministério Público e assim condenado pelo Tribunal Judicial de Base.
2.5 Medida da pena
O recorrente pede, a final, a redução das penas parcelares e da pena única resultada do cúmulo jurídico.
Tendo em conta a decisão de irrecorribilidade do acórdão recorrido em relação aos crimes de furto qualificado tentado e de resistência, não tomamos conhecimento da parte do recurso sobre a redução das penas destes crimes.
Resta conhecer a parte relativa ao crime de homicídio qualificado tentado. O recorrente entende que a pena ajustada para este crime será seis anos de prisão, em contraste de nove anos de prisão a que foi condenado em primeira instância e mantida em segunda. Sustenta ainda que o tribunal recorrido não podia aplicar o disposto no art.° 14.°, n.° 2 da Lei n.° 2/90/M, onde prevê a agravação da pena por se encontrar em situação de clandestinidade, pois não foi acusado com esta agravante e não deu comprimento ao disposto no art.° 339.° do CPP.
Prescreve assim o n.° 2 do art.° 14.° da Lei n.° 2/90/M:
“2. Na determinação da medida da pena correspondente aos crimes previstos na legislação comum, o facto de o agente ser um indivíduo em situação de clandestinidade constitui circunstância agravante.”
A situação de clandestinidade de arguido constitui uma circunstância agravante que deve ser atendida na fixação da pena concreta, nos termos do art.° 65.°, n.° 2 do CP.
Por ser apenas uma circunstância a ser considerada na determinação da medida concreta da pena que não altera os elementos típicos do crime, não há necessidade de referir na acusação que o arguido é acusado com esta agravante, basta constar da acusação o facto que mostra a situação de clandestinidade de arguido.
Esta agravação da pena não é o caso de alteração não substancial dos factos descritos na acusação prevista no art.° 339.° do CPP. O que está em causa neste artigo é a verificação de um novo facto relevante para a decisão mas não consta da acusação. Manifestamente não é o nosso caso, pois o facto de o recorrente se encontrar em situação de clandestinidade já consta da acusação.
Foi um deste tipo de facto que integra na acusação e que foi provado na audiência: “No mês de Novembro de 2003, numa data não apurada, o arguido A entrou clandestinamente em Macau, e desde então, tem permanecido ilegalmente em Macau.”
Provada a situação de clandestinidade do recorrente, esta circunstância deve ser levada em conta na fixação das penas concretas.
Considerando o modo de executar o crime de homicídio, nomeadamente a violência e o meio empregado, o resultado causado, o facto de ser acusado apenas por um crime mas são duas pessoas ofendidas em situações autonomizadas e a agravante acima referida, entendemos ser ajustada a pena de nove anos de prisão fixada nas duas instâncias para o crime de homicídio tentado, numa moldura abstracta de 3 anos a 16 anos e 8 meses de prisão, e deve ser mantida a pena única de onze anos de prisão fixada por segunda instância.
3. Decisão
Face ao exposto, acordam em julgar improcedente o recurso.
Custas pelo recorrente com a taxa de justiça fixada em 6UC (três mil cento e vinte patacas) e honorários do defensor nomeado em mil duzentas patacas.
Aos 13 de Abril de 2005.
Juízes:Chu Kin (Relator)
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai
1 Acórdãos do TUI proferidos nos processos de n.°s 20/2003, 25/2003 e 44/2004, respectivamente de 17 de Setembro de 2003, 15 de Outubro de 2003 e 15 de Dezembro de 2004.
---------------
------------------------------------------------------------
---------------
------------------------------------------------------------
Processo n.° 1 / 2005 1