Processo n.º 36/2004. Recurso jurisdicional em matéria cível.
Recorrente: F.
Recorrido: D.
Assunto: Casamento. Bigamia. Lei do Casamento da República Popular da China de 1950. Hong Kong Marriage Ordinance.
Data da Sessão: 20 de Abril de 2005.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Sam Hou Fai e Chu Kin.
SUMÁRIO:
I – À face da Lei do Casamento da República Popular da China de 1950, um casamento celebrado entre chineses é inválido se um dos nubentes fosse casado ao tempo da celebração do casamento.
II – Um casamento celebrado entre chineses, no registo civil público de Hong Kong, em 1958, ao abrigo da Hong Kong Marriage Ordinance, é inválido se um dos nubentes fosse casado ao tempo da celebração do casamento.
O Relator
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
I – Relatório e factos com interesse para a decisão
D, residente em Hong Kong, de nacionalidade chinesa, requereu, em 8 de Novembro de 1994, no Tribunal de Competência Genérica de Macau, inventário obrigatório por morte de seu marido E, de nacionalidade chinesa, falecido em Hong Kong, em 7 de Junho de 1994.
Provou, além do mais, ter casado com o falecido em 31 de Maio de 1958, em Hong Kong, no regime de separação de bens e que o inventariado deixara 5 filhos, 2 deles menores.
D foi nomeada cabeça-de-casal.
Em 8 de Fevereiro de 1996, veio F impugnar a nomeação da cabeça-de-casal, dizendo que:
- A legítima esposa do falecido era G ou G1, mãe do requerente, que se casou com o inventariado no dia 6 de Junho de 1948, na Aldeia Lai Chun, Zona Lon Kau, Distrito de Son Tak, Província de Guangdong, na China, casamento que nunca foi dissolvido até à morte do inventariado;
- Assim, a cabeça-de-casal D não é a legítima esposa do inventariado E.
O Ex.mo Juiz, por despacho de 23 de Maio de 2002, decidiu que:
- G ou G1 é a legítima esposa do inventariado E, por terem contraído casamento em 6 de Junho de 1948, segundo os usos e costumes chineses, na China;
- O casamento de D com E é inválido.
Não conformada, recorreu D, tendo o Tribunal de Segunda Instância, por acórdão de 15 de Janeiro de 2004, rectificado a 5 de Fevereiro de 2004, decidido o seguinte:
- G ou G1 é a legítima esposa do inventariado E, por terem contraído casamento em 6 de Junho de 1948, segundo os usos e costumes chineses, na China;
- O casamento de D com E, celebrado em Hong Kong, em 31 de Maio de 1958, é válido.
Não conformado, recorre agora F, entretanto nomeado cabeça-de-casal, para este Tribunal de Última Instância, tendo apresentado as seguintes conclusões:
1 - O douto Acórdão recorrido, (na II parte decisória relativamente ao segundo matrimónio) faz confusão da forma da celebração do casamento com o respectivo registo e considera que o registo integra a forma do casamento.
2 - Notando-se, no presente caso em apreço, um grande desconhecimento ou uma grande confusão por parte do M.mo Juíz-Relator no tocante às questões registrais (nomeadamente no tocante ao "Código de Registo Civil") .
3 - O registo civil em rigor não contende nem com a validade dos actos a ele sujeitos, nem com a sua eficácia. Apenas desempenha a função de conferir aos actos a invocabilidade "erga omnes" e fazer a sua prova.
4 - Quando o M.mo Juíz-Relator afirma, na supra-mencionada II parte do Acórdão recorrido, que "respeitante à validade do segundo casamento tem que se discutir a capacidade para contrair casamento (validade material) e forma do casamento (validade formal)", dá azo para nós aqui afirmar com veemência que a primeira questão é prejudicial da segunda. Se o casamento é inválido não há relação matrimonial.
5 - Quando ao que o M.mo Juíz-Relator afirma aí de que «o casamento foi registado em Hong-Kong pela forma legal daí, sua validade não teria qualquer dúvida.», é jus aqui concluir que o M.mo Juíz-Relator confunde aqui forma de celebração do casamento com o respectivo registo.
6 - Um casamento válido tem de obeceder às regras da capacidade matrimonial de ambos os nubentes e às regras legais da forma de celebração do casamento.
7 - Tendo em consideração a matéria fáctica, constante do aludido Acórdão recorrido, relativamente ao segundo casamento, nomeadamente que à data da celebração do segundo casamento do inventariado com a D, aquele encontrava-se ainda casado, segundo os usos e costumes chineses, com a G, casamento este não dissolvido, é jus, assim, a ilação correcta de que o segundo casamento do inventariado não é válido.
8 - Não há, no presente caso em apreço, relação matrimonial entre o inventariado e a D.
9 - O segundo casamento não obedeceu às regras da capacidade matrimonial de ambos os nubentes, nem tão-pouco obedeceu às regras legais da forma de celebração do casamento, razão porque o mesmo é (e deve ser considerado) inválido.
10 - O M.mo Juíz-Relator considera o segundo casamento válido unicamente pelo facto do mesmo ter sido celebrado e registado no "Hong-Kong Marriage Registry". Por outro lado,
11 - O acórdão recorrido "choca" com o princípio de ordem e interesse público;
12 - O Direito Internacional Privado não aceita bigamia.
13 - Ora, o acórdão recorrido é uma autêntica consagração da bigamia.
14 - O acórdão recorrido comete erros grassos no tocante à interpretação do Direito de Família e do Direito de Sucessões respectivamente.
15 - Um casamento é válido quando e somente quando é celebrado em consonância com as formalidades requeridas pela legislação do local da celebração do casamento.
16 - O primeiro casamento do inventariado foi um casamento tradicional, celebrado segundo os usos e costumes chineses, em 1948, na China.
17 - O supra-referido casamento é válido perante a "Marriage Ordinance of 1875", em vigor em Hong-Kong antes da "Marriage Reform Ordinance" que entrou em vigor em Hong-Kong em 7 de Outubro de 1971.
18 - Segundo o "7(2) of the Marriage Reform Ordinance", um casamento é tido como celebrado segundos os usos e costumes chineses se o mesmo teve lugar antes de 7 de Outubro de 1971.
19 - O aludido casamento foi realizado em acordo com o art.º 2.º do "Código dos Usos e Costumes Chineses", de 17 de Junho de 1909, em vigor em Macau antes de 1983.
20 - O aludido casamento celebrado segundo os usos e costumes chineses é válido perante a ordem jurídica de Macau, mesmo antes do falecimento do inventariado.
21 - O aludido casamento não foi dissolvido em vida do inventariado.
22 - O inventariado casou com a D no estado de viúvo, como o mesmo declarou no "Hong-Kong Marriage Registry", como ademais consta do "Marriage certificate" junto aos autos.
23 - A D não apresentou aos autos qualquer elemento, que permite provar a falsidade dos documentos notariais apresentados pela G, os quais se encontram juntos aos autos.
24 - O primeiro casamento é válido em conformidade com o Direito Internacional Privado, nomeadamente com as regras de conflito de normas previstas no Código Civil de Macau.
25 - Ora, tendo em consideração o atrás mencionado, o T.S.I. "pecou" por não reconhecer a Sra. G ou G1 como herdeira na qualidade de cônjuge sobreviva do inventariado.
26 - Assim como, em não excluir a D do inventário em causa.
27 - A existência, formação e efeitos do contrato esponsalício regulam-se pela lei pessoal das partes.
28 - Um dos impedimentos matrimoniais, que aqui se realça, é que quem se casou e não dissolveu o seu casamento, está impedido de casar de novo mesmo que esteja separado de facto do cônjuge há muitos anos.
Para contrair segundas núpcias necessita primeiramente de divorciar-se e esperar que decorra o prazo internupcial.
29 - A bigamia é considerado crime quer na ordem jurídica de Macau, quer na ordem jurídica de Hong-Kong, quer mesmo na ordem jurídica da República Popular da China.
30 - A lei pessoal é, em princípio, a lei da residência habitual do indivíduo - art.30, N.º 1 do C.C. de Macau.
31 - A questão de saber se foi celebrado o casamento válido é apreciada segunda a lei ou leis designadas pelos arts. 48 e segs. do C.C. de Macau.
32 - As relações entre os cônjuges são reguladas pela lei da sua residência habitual comum. Não tendo os cônjuges a mesma residência habitual, é aplicada a lei do lugar com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa (art. 50 do C.C. de Macau).
33 - "Uma pessoa que tem um cônjuge não pode contrair um outro casamento" preceitua o art. 985, do Livro IV, do Código Civil da República da China (ou Código Civil Republicano), que entrou em vigor na China Continental em 5 de Maio de 1931 e foi revogado em 1949, quando da fundação da República Popular da China nesse mesmo ano (1949).
34 - No ano de 1950, o concubinato foi expressamente proibido no Continente Chinês, pelo art. 2.º da Lei do Casamento (Marriage Law), aí promulgada em 30 de Abril de 1950.
35 - Segundo o art. 1 da supra-mencionada Lei do Casamento "a monogamia é uma das bases do novo sistema de casamento a ser posto aí em vigor."
36 - No tempo da celebração do casamento entre E e G, em 1948, na China, quer o Código Civil da República da China (o Código Civil Republicano) quer a Lei do Casamento da República Popular da China, proibiam a poligamia.
37 - Em 31 de Maio de 1958, E e D casaram-se ao abrigo do "Hong-Kong Marriage Ordinance, Cap. 181."
38 - A "Section 40" do "Hong-Kong Marriage Ordinance" estatui que "todo o casamento regulado por esta lei será um casamento cristão ou o civil equivalente de um casamento cristão".
39 - "A expressão" casamento cristão ou o civil equivalente de um casamento cristão "subentende uma cerimónia formal reconhecida por lei como envolvendo a união voluntária vitalícia de um homem e de uma mulher em exclusão de todos os outros." - (2) da "Section 40" da "Hong-Kong Marriage Ordinance".
40 - "... O casamento celebrado, ao abrigo do "Marriage Ordinance" é um casamento monógamo e é mais ou menos um casamento cristão. É trivial que se uma pessoa tem um casamento válido, ele não podia casar-se, ao abrigo do "Marriage Registry".
41 - "Um casamento será nulo se o ex-marido ou ex-esposa, de qualquer parte, estejam a viver no tempo do casamento e que o casamento com tal ex-marido ou ex-esposa esteja então ainda em vigor" - ("Section 13 (1)" da "Divorce Ordinance Cap. 179" das "Laws of Hong-Kong").
42 - O casamento celebrado entre E e D no "Marriage Registry of Hong-Kong" é nulo porque um casamento cristão ou o seu civil equivalente celebrado no "Marriage Registry" (na Conservatória de Registo de Casamentos) é monógamo. Desde que E e G estavam validamente casados na aludida altura, o supra-referido E não podia validamente casar-se com D - ("Section 13 (1) (c)" da "Divorce Ordinance").
43 - "Todo o casamento celebrado ao abrigo da "Marriage Ordinance (Cap. 181)", (como fora o casamento entre o E e G, como ademais consta do "Marriage Registry" junto aos autos) "terá de ser um casamento cristão ou o civil equivalente de um casamento cristão. Um casamento cristão ou o seu civil equivalente subentende uma cerimónia formal reconhecida por lei como envolvendo união voluntária vitalícia de um homem e de uma mulher com a exclusão de todos os outros".
44 - "Antes de um homem poder contrair um casamento no "Marriage Registry" (na Conservatória de Registo dos Casamentos) ele não poderá ter ou estar a viver com uma pessoa não divorciada"
45 - "Tendo sido estabelecido que o primeiro casamento é um válido casamento segundo os usos e costumes chineses, o ónus de provar que o mesmo terminou, pertence à pessoa, que reclama ter contraído o segundo casamento. O segundo casamento não pode ser presumido válido a não ser que o antigo casamento tenha sido dissolvido. Não há prova, no presente caso, que o primeiro casamento tenha sido dissolvido ou que tenha legalmente terminado por ocasião da celebração do segundo casamento"
46 - O aludido princípio é também existente na ordem jurídica de Macau.
47 - "Não há qualquer prova, no presente caso em apreço, que o primeiro casamento tenha sido dissolvido ou que tenha legalmente terminado por ocasião da celebração do segundo casamento".
48 - "Um homem não pode ter uma esposa "Kit Fat" e uma esposa "Tin Fong" ao mesmo tempo"
49 - "Duas esposas numa vez é expressamente proibido pelo Código da Dinastia Ching e os costumes, aí referidos, são de uma estrita aplicação e não se aplicam aos factos deste caso: nem se aplicam em Hong-Kong..."
50 - Um outro fundamento de que o casamento de E com o D não fora um casamento válido: é por causa de E ter-se falsamente identificado, ele próprio, como um viúvo no "Hong-Kong Marriage Registry" em 1958. É por demais evidente que se o E revelasse verdadeiramente que ele tinha ainda uma esposa viva, não seria emitido a seu favor e de D qualquer certificado de casamento. Ou seja, não seria possível E e D contraírem casamento.
51 - Ao abrigo do Código da Dinastia Ching, não era permitido, então, ao E ter duas esposas ao mesmo tempo. Somente era permitido ao E tomar concubinas durante o seu válido casamento com G.
52 - Ao abrigo da Lei de Hong-Kong, o casamento registado de E e de D é nulo e sem qualquer efeito legal, tendo em consideração o atrás referido.
53 - Segundo o art. 1973 do C.C. de Macau, "a ordem porque são chamados os herdeiros é a seguinte:
a) Cônjuge e descendentes;
b) Cônjuge e ascendentes;
c) Irmãos e seus descendentes;
d) Outros Colaterais até ao quatro grau;
e) Território de Macau."
54 - Assim, é por demais irrealista a todos os títulos, no tocante ao Direito de Sucessões de Macau, o Acórdão recorrido, quando dá por válido o primeiro casamento do inventariado, reconhecendo implicitamente a primeira mulher, G, como herdeira do inventariado e, igualmente reconhece o segundo casamento do inventariado como válido e reconhece, em consequência, a D como herdeira na qualidade de cônjuge sobreviva do inventariado.
55 - Finalmente, não é possível proceder no presente inventário à "Forma de Partilha", tendo em conta o mencionado no parágrafo anterior.
Contra-alegou D, tendo apresentado as seguintes conclusões:
1. O alegado casamento entre a recorrente e o falecido, não se compadece com a simples prova por certidão notarial, pois não tendo o notário presenciado o facto do casamento, nem atestado a sua existência com base nas suas percepções, tal facto é de livre apreciação do juiz, e como tal é manifesta a insuficiência da prova.
2. O tribunal da primeira instância podia como devia remeter para os meios ordinários para a produção da prova.
3. Sem se fazer a verdadeira prova do casamento, em face da clara insuficiência dos certificados notariais, é claro que à recorrente não assiste o direito de suceder, nem agora apresentar o seu recurso
4. Ainda que o primeiro casamento seja dado como provado, portanto válido, não pode o segundo casamento ser anulado aqui no presente processo, nem ignorado para efeitos do processo sucessório em curso.
5. O disposto no art. 1505.º do actual Código Civil de Macau (cfr. art. 1632, CC'66) é uma norma de ordem pública: exige-se a certeza e segurança que só uma sentença proferida em acção especialmente intentada para o efeito, pode conferir, para destruir a aparência que o casamento cria no seio do casal, da família e de terceiros, sendo uma norma central no que respeita ao Direito Matrimonial, em particular à arguição das invalidades matrimoniais, aplicável portanto, sempre que estas sejam invocadas para quaisquer efeitos a serem produzidos em Macau.
6. São consequências decorrentes do princípio expresso por esta norma: a invalidade não opera ipso jure, o casamento produz todos os seus efeitos até ao trânsito em julgado da acção anulatória; as partes não podem invocar a anulabilidade por via de excepção, devem fazê-lo em acção própria (autónoma).
7. A arguição da nulidade fundada em vínculo matrimonial anterior não dissolvido tem prazo de seis meses a contar da data da dissolução do casamento. Não o fazendo, como não o foi, o vício sana-se, o casamento inválido subsiste ao lado do primeiro, com todas as consequências legais, mormente quanto ao concurso de ambos os consortes à herança do finado.
8. Assim, este Venerando Tribunal, ainda que por mera hipótese de raciocínio que se não admite, conclua pela existência de causas de anulabilidade, não pode no presente processo anular o casamento, substituindo-se a uma iniciativa que deve ser tomada pelas partes em acção especialmente intentada para o efeito.
9. Nada impede que duas pessoas, que por circunstâncias especiais ocupem a posição de cônjuge sobrevivem, compartilhando equitativamente o quinhão hereditário destinado ao sucessor que é chamado nesta qualidade.
Foram solicitadas informações sobre o direito material da República Popular da China e de Hong Kong sobre a questão de fundo, respectivamente, ao Supremo Tribunal Popular e ao Departamento de Justiça de Hong Kong, tendo sido apenas recebida resposta do primeiro.
II – O Direito
1. As questões a resolver
O tribunal de primeira instância decidiu que G ou G1 é a legítima esposa do inventariado E, por terem contraído casamento em 6 de Junho de 1948, na China e que o casamento de D com E, celebrado em Hong Kong, em 31 de Maio de 1958, é inválido.
No recurso interposto por D para o Tribunal de Segunda Instância, este decidiu que:
1 - G ou G1 é a legítima esposa do inventariado E, por terem contraído casamento em 6 de Junho de 1948, segundo os usos e costumes chineses, na China;
2 - O casamento de D com E, celebrado em Hong Kong, em 31 de Maio de 1958, é válido.
Quer isto dizer que o recurso improcedeu quanto à primeira questão e procedeu quanto à segunda. Ora, D não recorreu quanto à primeira questão em que ficou vencida, pela que a decisão do acórdão recorrido transitou em julgado, nessa parte.
Deste modo, a única questão a resolver no presente recurso é a de saber se o casamento de D com E é válido.
2. Regras de conflitos
É indiscutível que o caso dos autos põe em contacto mais de um sistema jurídico, a saber, o do foro (Macau), o do interior da República Popular da China (a ordem jurídica da nacionalidade das pessoas em questão) e o de Hong Kong (o sistema jurídico do local do 2.º casamento de D com E e o da residência deste último, o inventariado).
Assim, embora os três sistemas jurídicos sejam internos da República Popular da China, não deixam de convocar as regras de conflitos próprias do Direito Internacional Privado, exactamente porque coexistem vários sistemas jurídicos no interior do mesmo Estado.1 Acresce que, no caso em apreço, à data dos factos relevantes, nem Macau nem Hong Kong eram administrados pela República Popular da China.
3. Aplicação no tempo do Direito de Conflitos
Importa apurar se o casamento de D com E era válido à data do falecimento deste ou, mais precisamente, à data da instauração da acção, que ocorreu em 8 de Novembro de 1994.
O casamento de D com E foi celebrado em 1958, quando vigorava em Macau o Código Civil de 1867 (Código de Seabra).
O inventariado faleceu em 1994, ano em que o processo foi instaurado, quando vigorava em Macau o Código Civil de 1966.
Actualmente, desde 1999 vigora em Macau um outro Código Civil.
Sendo certo que é o Código Civil o diploma legal donde constam as normas de conflitos, isto é, as normas que indicam qual o sistema jurídico aplicável à resolução da questão dos autos, põe-se um problema de aplicação de normas de conflitos no tempo, de que nem o acórdão recorrido, nem as partes se deram conta.
Na verdade, o acórdão recorrido aplicou as normas de conflitos do actual Código Civil, mas este é o único que é seguro que não pode ser aplicado, visto que os factos relevantes sucederam quando o Código não vigorava ainda, sendo que o processo de inventário foi instaurado em 1994. Ora, para não ir mais longe, dispõe o n.º 2, do art. 6.º do Decreto-Lei n.º 39/99/M, de 3 de Agosto, que aprovou o novo Código Civil, que o Código não é aplicável às acções que estejam pendentes nos tribunais à data da sua entrada em vigor, salvo o disposto nalgumas normas, que não vêm para o caso.
A aplicação de normas de conflitos no tempo é daquelas matérias muito controvertidas na doutrina.2
Na situação que temos perante nós, a aplicação da lei no tempo levanta especiais dificuldades. Se o direito material aplicável fosse o de Macau (não é seguramente o caso), tendo em atenção o disposto no art. 12.º do Código Civil de 1966, relativamente à capacidade para contrair casamento (impedimentos) teria de se aplicar a lei vigente à data do casamento (teoria dos direitos adquiridos). Mas, de acordo com a lei e a doutrina, embora ninguém possa casar sendo já casado, o 2.º casamento que não for anulado torna-se definitivamente válido se decorrer o prazo previsto para tal, sendo, no caso, até seis meses depois da dissolução do casamento [arts. 1601.º, alínea c), 1631.º, alínea a) e 1643.º, n.º 1, alínea c) do Código Civil de 1966].3 Relativamente a esta matéria, a lei material aplicável seria, seguramente, a lei vigente à data da dissolução do casamento, posto que nenhuma acção de anulação do casamento foi intentada.4
De qualquer forma, a nossa tarefa está facilitada, pois que, como veremos, tanto o Direito de Conflitos do Código Civil de Seabra, como o do Código Civil de 1966, apontam no mesmo sentido.
4. Determinação da lei aplicável, de acordo com o Código Civil de 1867: a lei chinesa
No domínio do Código Civil de 1867, como explicava A. FERRER CORREIA 5 “a lei pessoal do indivíduo é a do Estado a que ele pertence como cidadão, e na esfera de competência da lei pessoal compreendem-se, além do estado e da capacidade civil, ainda as relações de família”.
Especificamente quanto à capacidade matrimonial (impedimentos), o Código Civil de 1867 elegia a lei nacional.6
E o regime das sanções das condições de validade do casamento (nulidade, anulabilidade), no Código de Seabra, seguia o princípio de que a lei competente para formular o preceito, “é igualmente competente para estabelecer a sanção”.7
Por conseguinte, na vigência do Código Civil de 1867 era à lei nacional do indivíduo que competia regular a matéria da capacidade matrimonial (impedimentos) e as sanções decorrentes da violação das normas nesta matéria.
Ou seja, a lei da República Popular da China.
5. Determinação da lei aplicável, de acordo com o Código Civil de 1966: a lei chinesa
Face ao Código Civil de 1966, conquanto a forma do casamento seja regulada – tal como no Código de Seabra – pela lei do Estado em que o acto é celebrado (art. 50.º), já a capacidade para contrair casamento é regulada “em relação a cada nubente, pela respectiva lei pessoal, à qual compete ainda definir o regime da falta e dos vícios da vontade” (art. 49.º). Ora, de acordo com o art. 31.º do mesmo Código Civil:
“Artigo 31.º
(Determinação da lei pessoal)
1. A lei pessoal é a da nacionalidade do indivíduo.
2. Aos residentes habituais no Território aplicar-se-á a lei vigente em Macau”.
Quer isto dizer que as condições de validade intrínseca do casamento, como a matéria de impedimentos matrimoniais 8– que eventualmente impede a celebração de casamento a quem seja casado - é regulada pela lei pessoal dos nubentes, no caso, a chinesa.
E quanto às restantes matérias, como as relativas às consequências da violação das disposições respeitantes aos impedimentos?
Ensina J. BAPTISTA MACHADO, 9 com a concordância de L. LIMA PINHEIRO, 10 que as consequências da violação das disposições de fundo atinentes ao casamento “são regidas pela lei cujas disposições foram violadas: compete à lei que fixa as condições de validade determinar a sanção que corresponde à sua inobservância e o respectivo regime. Esta lei dirá, portanto, se o casamento é inexistente ou anulável e, neste último caso, se a invalidade é sanável, quem tem legitimidade para a invocar e dentro de que prazo o pode fazer”.
Nestas questões rege, pois, a lei pessoal de E, a chinesa, pois é em relação a ele que se suscitam as questões relativas à validade do casamento.
Em conclusão, aplica-se a lei da República Popular da China tanto às matérias que qualificamos como impedimentos matrimoniais, como a saber se o 2.º casamento é inexistente, nulo ou anulável e o regime aplicável à invalidade.
6. A lei da República Popular da China relativa a impedimentos matrimoniais e ao regime da invalidade
Vejamos, pois, como é que a lei da República Popular da China dá resposta às questões suscitadas.
Ao abrigo dos arts. 2.º e 23.º do Acordo sobre os pedidos de citação ou notificação de actos judiciais e de produção de prova em matéria civil e comercial entre os tribunais do Interior da China e os da Região administrativa Especial de Macau, assinado em Macau, em 15 de Agosto de 2001, publicado na II Série do Boletim Oficial, de 29 de Agosto de 2001, solicitámos ao Supremo Tribunal Popular a seguinte informação jurídica sobre a questão em apreço:
“A, do sexo masculino e B e C, ambas do sexo feminino, têm nacionalidade chinesa.
A casou com B na China, em 1948.
Não estando este casamento dissolvido, A casou com C, em Hong Kong, em 1958.
A faleceu em 1994, sem o seu casamento com C ter sido dissolvido anteriormente e corre processo de inventário nos tribunais de Macau para partilhar os seus bens.
Pretende-se saber a resposta do direito chinês para a seguinte questão:
Atendendo a que o casamento de A com C não era válido, em 1958, face ao art. 2.º da Lei do Casamento de 1950, mas tendo em consideração que este casamento não foi anulado, C deve, em 1994, ser considerada cônjuge de A (ao lado de B), entre outros efeitos, para os da sucessão de A? Ou seja, pretende-se saber se a eventual invalidade do 2.º casamento de A se sanou, por não ter sido pedida a sua anulação ou por outra razão.
A título informativo podemos esclarecer que o Direito de Macau – não aplicável ao caso - distingue dois tipos de invalidade de casamento: o casamento inexistente e o casamento anulável. O casamento juridicamente inexistente não produz qualquer efeito e nunca se sana. O casamento anulável, como é o caso de casamento celebrado por quem já é casado, sana-se – isto é, passa definitivamente a ser válido - se não for intentada acção judicial para o efeito, acção esta que só pode ser intentada por alguns interessados, até seis meses depois da dissolução do casamento”.
A Divisão de Cooperação Judiciária do Supremo Tribunal Popular emitiu o seguinte parecer:
“Muito embora a Lei do Casamento da China de 1950 não tenha previsões sobre o instituto de casamento inválido, segundo o princípio da monogamia por ela determinado, o casamento de A com C deve ser considerado inválido. De acordo com o disposto no artigo 10.º da actual Lei do Casamento, alterada em 2001, o casamento de A com C é bigamia, devendo ser inválido. Entretanto, face ao artigo 7.º das “Interpretações de Algumas Questões relativas à Aplicação da Lei do Casamento da República Popular da China(1)”, feitas pelo Supremo Tribunal Popular da República Popular da China, a declaração judicial da invalidade do referido casamento deve ser pedida pelas partes do casamento e pelos interessados, e quando o casamento for legalmente declarado inválido, não tem efeito jurídico desde o seu início. Cumpre explicar que a actual Lei do Casamento não tem nenhuma norma relativa ao prazo de caducidade do requerimento da invalidade do casamento”.
7. Temos, assim, que de acordo com o direito chinês, o casamento celebrado por E e D, em 31 de Maio de 1958, em Hong Kong, não é válido.
Como se sabe, o Direito da República Popular da China só conhece uma forma de invalidade, correspondendo, grosso modo, à nulidade do Direito de Macau.
Logo, o referido casamento é inválido.
8. A lei de Hong Kong
Mas ainda que o direito material aplicável à questão da validade do 2.º casamento do inventariado fosse o de Hong Kong, também a conclusão a que se chega é idêntica à do Direito da República Popular da China.
Na verdade, ao contrário do que se disse no acórdão recorrido, o casamento celebrado em Hong Kong, em 31 de Maio de 1958, entre o inventariado e D não foi um “chinese customary marriage”, mas um casamento celebrado no registo civil público, celebrado ao abrigo da Hong Kong Marriage Ordinance, o que de acordo com o Direito de Hong Kong significa que é equivalente a um casamento cristão, a um casamento monogâmico, “... uma união voluntária para toda a vida, de um homem e uma mulher, com exclusão de quaisquer outros” (Secção 40 do Hong Kong Marriage Ordinance, Capítulo 181, a fls. 365). É o que também se defende a p. 9 (fls. 494) do parecer junto com as contra-alegações pela própria D. Por alguma razão, o inventariado declarou falsamente, aquando do 2.º casamento, que era viúvo (fls. 518). Se ele pudesse celebrar um 2.º casamento com o 1.º casamento ainda subsistente, certamente não teria tido necessidade de declarar que era viúvo.
Ora, de acordo com a secção 13 (1) do Divorce Ordinance, Capítulo 179, vigente ao tempo (actualmente secção 20, que continua a aplicar-se em relação aos casamentos que foram celebrados antes de 1 de Julho de 1972), “Um casamento é nulo com um dos seguintes fundamentos:
(a)
(b)...
(c) que o anterior marido ou mulher de algum dos nubentes estivesse vivo ao tempo do casamento e o casamento com esse anterior marido ou mulher ainda se mantivesse...”
Logo, também pela lei de Hong Kong, o 2.º casamento do inventariado, celebrado em Hong Kong, em 1958, é nulo.
III – Decisão
Face ao expendido, concede-se provimento ao recurso e revoga-se parcialmente o acórdão recorrido, decidindo-se que o casamento de D com E, celebrado em Hong Kong, em 31 de Maio de 1958, é inválido.
Custas pela recorrida D, tanto neste Tribunal, como no recurso para o Tribunal de Segunda Instância.
Macau, 20 de Abril de 2005
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin
1 A. FERRER CORREIA, Lições de Direito Internacional Privado, Universidade de Coimbra, 1973, p. 58 e segs.
2 Sobre a questão, cfr. J. BAPTISTA MACHADO, Lições de Direito Internacional Privado, Almedina, Coimbra, 1992, 3.ª edição, p. 222 e segs. e L. LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado, Volume I , Introdução e Direito de Conflitos, Parte Geral, Almedina, Coimbra, 2003, reimpressão, p. 313 e segs.
3 ANTUNES VARELA, Direito da Família, Livraria Petrony, Lisboa, 1999, 5.ª edição, 1.º vol., p. 293.
4 E se a acção de anulação tivesse sido intentada após o início da vigência do Código Civil, 1 de Janeiro de 1968, tanto a legitimidade processual como os prazos seriam regidos pela lei nova (art. 11.º da Portaria n.º 22869, publicada no 2.º Suplemento do Boletim Oficial de Macau n.º 46 de 1967).
5 A. FERRER CORREIA, Direito Internacional Privado, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 24, de Maio de 1951, p. 13. No mesmo sentido, A. MACHADO VILLELA, Tratado Elementar(Teórico e Prático) de Direito Internacional Privado, Coimbra Editora, 1921, I Vol. p. 416 e 422, invocando os arts. 26.º e 27.º do Código e I. MAGALHÃES COLLAÇO, Direito Internacional Privado (Lições), p. 81, 82 e 187.
6 A.MACHADO VILLELA, obra citada, II Vol., p. 436 e segs.
7 A.MACHADO VILLELA, obra citada, II Vol., p. 479.
8 J. BAPTISTA MACHADO, obra citada, p. 393.
9 J. BAPTISTA MACHADO, obra citada, p. 397.
10 L. LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado, Parte Especial (Direito de Conflitos), Almedina, Coimbra, 1999, p. 265.
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Processo n.º 36/2004
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Processo n.º 36/2004