ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
I – Relatório
Em processo de querela, no âmbito do Código de Processo Penal de 1929, o Tribunal Colectivo do Tribunal de Competência Genérica de Macau, por Acórdão de 12 de Novembro de 1999, condenou os arguidos A, B, C, D e E:
a) como co-autores materiais de um crime de roubo praticado na pessoa do taxista p. e p. pelo artigo 435.º n.° 2 e 436.º n.° 5 do Código Penal de 1886, na pena de seis anos e seis meses de prisão (pena não aplicável aos 4.º e 5.º arguidos uma vez que não participaram neste roubo);
b) como co-autores materiais de um crime de roubo previsto nas mesmas disposições legais praticado no casino, na pena de sete anos e meio de prisão.
c) como co-autores materiais de um crime de detenção de armas proibidas, p. e p. pelo art. 1.º n.° 1 do Decreto-Lei n.º 11/93/M, de 15/3, na pena de quatro anos de prisão e seis meses de multa à razão de trinta patacas diárias.
d) como co-autores de um crime de auxílio à imigração clandestina p. e p. pelo art. 7.° n.° 1 da Lei n.° 2/90/M, de 3/5 na pena de três anos de prisão (pena não aplicável ao terceiro arguido).
e) como co-autores materiais de um crime de acolhimento p. e p. pelo art. 8.° n.° 1 da Lei n.° 2/90/M, de 3/5, na pena de oito meses de prisão (não aplicável ao terceiro arguido).
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Em cúmulo jurídico destas penas e, no caso dos arguidos A, B e C considerando ainda as penas aplicadas noutros processos, o Tribunal condenou-os na seguinte pena única:
a) A – onze anos de prisão e seis meses de multa à razão de trinta patacas diárias o que perfaz multa de cinco mil e quatrocentas patacas, com a alternativa de cento e vinte dias de prisão.
b) B - onze anos de prisão e seis meses de multa à razão de trinta patacas diárias o que perfaz multa de cinco mil e quatrocentas patacas, com a alternativa de cento e vinte dias de prisão.
c) C - nove anos de prisão e seis meses de multa à razão de trinta patacas diárias o que perfaz multa de cinco mil e quatrocentas patacas, com a alternativa de cento e vinte dias de prisão.
d) D - oito anos de prisão e seis meses de multa à razão de trinta patacas diárias o que perfaz multa de cinco mil e quatrocentas patacas, com a alternativa de cento e vinte dias de prisão.
e) E - oito anos de prisão e seis meses de multa à razão de trinta patacas diárias o que perfaz multa de cinco mil e quatrocentas patacas, com a alternativa de cento e vinte dias de prisão.
Entretanto, os arguidos foram julgados pelos tribunais do interior da China, em parte, pelo menos, pelos mesmos factos e aí condenados, o D e o E em 10 anos de prisão, que cumpriram.
Os 4.º e 5.º arguidos, respectivamente, D e E interpuseram recurso para o Tribunal de Segunda Instância (TSI).
Na parte que agora releva, este Tribunal decidiu o seguinte:
- Julgar parcialmente procedente o pedido formulado pelo 4.º réu D no seu recurso do acórdão condenatório final da Primeira Instância de 12 de Novembro de 1999, ainda que com fundamentação diversa da por este alegada, e, consequentemente e por decorrência legal, desfazer o cúmulo jurídico (equivalente à pena de oito anos de prisão e seis meses de multa) outrora aí encontrado identicamente para o mesmo 4.º réu e o 5.º réu não recorrente E por causa do cometimento, por estes dois, dos crimes de roubo praticado no casino, de detenção de armas proibidas, de auxílio à imigração clandestina e de acolhimento, e ordenar a baixa dos autos ao Tribunal a quo, a fim de aí proceder ao novo cúmulo jurídico tão-só das penas parcelares (igual e respectivamente de três anos de prisão e de oito meses de prisão) anteriormente impostas aos mesmos dois réus pelos crimes de auxílio à imigração clandestina e de acolhimento (por as penas parcelares outrora a eles impostas e correspondentes aos crimes de roubo e de detenção de armas proibidas deverem ser consideradas totalmente descontadas em sede de execução da pena).
Novamente inconformado, recorre D para o Tribunal de Última Instância, pedindo:
a) Ser julgado o crime de auxílio à emigração clandestina englobado no objecto da acusação e julgamento na jurisdição chinesa (ao lado dos crimes de roubo e de detenção de armas).
b) De qualquer modo, e mesmo que assim não fosse entendido, determinar um cúmulo jurídico de todas as penas aplicadas ao recorrente, após os descontos impostos pelo caso julgado e reconhecido este em toda a sua extensão e na plenitude das suas consequências.
c) Aplicar ou mandar aplicar ao recorrente uma pena global nunca superior à pena global resultante do cúmulo jurídico na jurisdição de Macau (1.ª Instância) ou, ao menos, nunca superior à pena aplicada na R.P. da China.
d) Ordenar a restituição do recorrente à liberdade.
Para tal, formulou as seguintes conclusões:
1.ª Quer com base na ideia de lacuna da lei e feita a sua integração, quer através da repristinação da norma do art.º 666.º do C. Processo Penal de 1929, quer através da retroactividade da lei penal (adjectiva) mais favorável - e, sempre, tendo por base as competência do Venerando TUI, em matéria penal - parece defensável a admissibilidade do presente recurso, como tentará demonstrar-se.
2.ª Atento o facto de, hoje, ser permitido o recurso penal de segundo grau de jurisdição para o Venerando TUI dos acórdãos do Venerando TSI nos casos previstos nas alíneas f) e g) do art.º 390.º do Código de Processo Penal de Macau, verifica-se uma lacuna da lei quanto aos processos em que é aplicável o antigo Código de Processo Penal de 1929.
3.ª Perante uma lacuna de lei, a ordem jurídica dispõe sempre de mecanismos de resolução de qualquer questão jurídica não regulamentada: em primeiro lugar, recorre-se à regulamentação de casos análogos; em segundo, não havendo casos análogos, a solução residirá na norma que o intérprete criaria se tivesse de legislar dentro do espírito do sistema, e de acordo com os princípios por que se rege o direito constituído.
4.ª A abertura do recurso de segundo grau de jurisdição no regime da lei actual afere-se, não pela pena concretamente aplicada, mas pela moldura penal abstractamente aplicável.
5.ª Deve ter-se a norma do art.º 666.º do antigo CPP por repristinada, tendo em consideração o princípio da igualdade, por resultar intuitivamente da lei que um arguido que responda sendo aplicável ao processo o C. Processo Penal de 1929 não deve ter menos direitos do que os consagrados para um arguido, em situação idêntica, no novo C. Processo Penal de Macau.
6.ª Face ao princípio da retroactividade da lei penal mais favorável (nela incluídas as chamadas normas processuais penais materiais), parece, ainda, de todo, defensável, numa outra perspectiva, a possibilidade deste recurso de 2.º grau de jurisdição.
7.ª Fruto do desenvolvimento da consciência jurídico-política e político-criminal, é hoje defensável a retroactividade das normas processuais penais materiais, as que condicionam a efectivação da responsabilidade penal ou contendem directamente com os direitos do arguido ou do recluso.
8.ª Existe, no caso sub judicio, em conclusão de quanto se deixou exposto, susceptibilidade de impugnação do douto Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal de Segunda Instância, uma vez que o presente recurso se não reconduz a nenhuma das hipóteses de inadmissibilidade previstas nos Códigos de Processo Penal.
9.ª O crime de roubo qualificado imputado ao recorrente e pelo qual foi condenado é p. e p. quer pelos art.ºs 435.º, n.º 2, e 436.º, n.º 5 do C. Penal de 1886 (e abstractamente punível com pena de prisão de 5 anos e 4 meses a 8 anos) quer pelo art.º 204.º, n.º 2 do C. Penal de Macau (e abstractamente punível com pena de 3 a 15 anos de prisão), conforme o regime que, em concreto, se mostre mais favorável, do que decorre que, face à obrigatoriedade de ponderação dos dois regimes abstractos, se trata de um caso de admissibilidade legal de recurso para o TUI.
10.ª Tal admissibilidade não é prejudicada pelo facto de haver o julgador optado pelo regime do código anterior como sendo o mais favorável, porque a porta do recurso para o Venerando TUI abre-se em função da pena abstracta, numa operação que é necessariamente anterior à opção de regimes feita pelo julgador quando essa opção exista, sendo certo que essa opção existe por imposição legal.
11.ª Nem é, por outro lado e ainda, tal admissibilidade prejudicada pelo facto de, na decisão de que se recorre, haver sido considerado o desconto da pena do crime de roubo - aquele que abre a porta ao recurso de segundo grau de jurisdição - porque o que releva é a pena abstracta aplicável no julgamento da 1.ª instância.
12.ª Diferentemente do que entendeu o Venerando Tribunal de Segunda Instância, entende o recorrente que o objecto da acusação (e do julgamento) a que o ora recorrente foi submetido na R.P.C. engloba não só os factos integradores dos crimes de roubo e de detenção de armas (na respectiva tipologia de Macau) mas também o objecto do crime de auxílio à emigração clandestina.
13.ª Trata-se de uma questão de direito, que cabe, naturalmente, nas competências do Venerando Tribunal de Última Instância.
14.ª O caso julgado material é impeditivo de nova decisão sobre o mesmo objecto em qualquer processo ulterior, isto é, de uma nova acção sobre os mesmos factos.
15.ª Tomando por base a factualidade apurada nas duas jurisdições, há que concluir que o ora recorrente foi submetido a julgamento (quer em Macau quer na RPC) pelos factos integradores dos crimes de roubo, de detenção de armas e de auxílio à emigração clandestina (apenas ficando de fora, no julgamento da RPC, os factos integradores do crime de acolhimento por que foi também levado a julgamento em Macau).
16.ª Verifica-se, assim, a excepção do caso julgado, emanação do princípio de que ninguém pode ser condenado duas vezes pelos mesmos factos. expresso no art.º 117.º do C. Penal de 1886, norma que manda descontar na pena aplicada por tribunal de Macau a prisão que houver sido cumprida por sentença de tribunal estrangeiro proferida pelos mesmos factos.
17.ª Em consequência da verificação do caso julgado, na amplitude que aqui se propugna, haveria, então, que proceder ao desconto da(s) pena(s) parcelares aplicadas em Macau e correspondentes aos factos por que foi levado a julgamento na RPC - integradores dos três crimes indicados, os de roubo, arma e auxílio à emigração clandestina, refazendo-se, consequentemente, o cúmulo jurídico das penas tendo em consideração a aludida extensão também ao crime de auxílio à emigração clandestina.
18.ª O facto de se tratar de um cúmulo jurídico resultante de penas aplicadas em ordens jurídicas diferentes, não altera, essencialmente, a aplicação das regras internas (da jurisdição de Macau) que seriam aplicáveis caso estivéssemos perante um cúmulo jurídico a operar de penas aplicadas em diferentes processos da jurisdição de Macau.
19.ª Não se vê motivo para que a solução seja outra quando, como é o caso, o conhecimento da condenação (aqui numa jurisdição distinta) é posterior ao cúmulo efectuado e há que proceder, por isso, à reformulação daquele cúmulo.
20.ª Há que recorrer à equidade lá onde não existam soluções imediatas na comparação entre sistemas jurídicos distintos.
21.ª Atento o facto da punição do roubo na RPC ter sido superior à punição do mesmo crime em Macau, o cúmulo jurídico de todas as penas não deve ser superior à pena do roubo (na RPC: dez anos) ou ao cúmulo que deveria operar-se entre os crimes de roubo, arma e auxílio (em Macau), o que se afigura imposto por uma razão de compreensão geral do sistema e com fundamento no princípio da justiça e da equidade, uma vez que, para aquele conjunto de crimes (e neles incluído ainda o crime de acolhimento), a nossa jurisdição havia já entendido como justa uma pena global de oito anos de prisão.
22.ª Os factos integradores do crime de auxílio à emigração clandestina mostram-se insertos no libelo acusatório deduzido na jurisdição chinesa e foram ponderados em julgamento e nas sentenças explicitadas na R.P.C.
23.ª Qualquer que fosse, porém, a extensão concretamente encontrada para o caso julgado, a execução da decisão não poderia abrir a porta à punição do recorrente a uma pena global superior quer à pena aplicada na R.P.C. quer à resultante do cúmulo jurídico de todas as penas aplicadas por todos os (quatro) crimes na jurisdição de Macau.
24.ª Não pode permitir-se a possibilidade abstracta de vir o arguido a cumprir uma nova pena de prisão efectiva situada (l.ª hipótese) entre a pena aplicada ao crime mais gravemente punido (3 anos) e a soma das penas aplicadas a ambos os crimes (3 anos e 8 meses) - 71.º, n.º 2 do C. Penal de Macau - ou uma nova pena correspondente à mais grave das penas aplicadas (3 anos) agravada segundo as regras gerais resultantes da acumulação de crimes - 102.º, n.º 2.º do C. Penal de 1886).
25.ª A jurisdição de Macau aplicara, por todos os crimes (roubo, detenção de armas, auxílio à emigração clandestina e acolhimento) uma pena global de 8 anos de prisão e 6 meses de multa e este é, absolutamente, o limite máximo que pode resultar para o recorrente da prática dos aludidos crimes (simultaneamente submetidos a duas distintas jurisdições por motivos que escaparam inteiramente ao arguido ora recorrente).
26.ª Estão em causa os princípios da justiça e da equidade que, no caso, têm mais força e um mais amplo leque de consequências do que a mera operação aritmética de contabilização de penas parcelares (ou global delas emergente).
27.ª O tribunal recorrido procedeu a uma aplicação mecanicista das regras do direito interno de Macau, sem ponderar que a questão objecto do precedente recurso não é uma questão de direito penal interno, mas é antes uma questão de direito internacional penal, por estarem em confronto decisões de dois tribunais de países distintos ou, ao menos, de territórios com sistemas de justiça próprios.
28.ª Os princípios jurídicos, no confronto de sistemas de direito, não se reduzem ao tratamento de um particular problema metodológico mas co-envolvem questões mais gerais, nomeadamente as relativas à racionalidade das valorações judiciárias e ao efectivo achamento da decisão no caso concreto.
29.ª Havendo o arguido cumprido integralmente a pena aplicada na RPC, não há já qualquer possibilidade de fazer a aplicação das regras e das consequências do caso julgado, impondo-se o recurso aos princípios da justiça, da equidade e da conformação global do sistema, a fim de lograr a realização de uma justiça efectiva no caso.
30.ª Mostra-se, assim absolutamente, secundário - perante o integral cumprimento da pena na RPC - o facto histórico de que, no momento da condenação do recorrente na jurisdição de Macau, era desconhecida a existência de um processo na RPC ou a possibilidade de vir, na RPC, a ser condenado essencialmente pelos mesmos crimes ou ao menos por alguns dos crimes por que estava a ser julgado em Macau.
31.ª Na jurisdição da RPC, não foi deduzida nem podia ter sido deduzida a excepção do caso julgado perante os tribunais chineses, porque o arguido ignorava, ao tempo do julgamento na China, que tinha já sido objecto de condenação em Macau.
32.ª Só a jurisdição de Macau pode resolver a situação porque, não havendo a pena de Macau sido cumprida, os tribunais de Macau estão ainda em tempo de resolver o problema e essa resolução impõe o ficcionamento da situação do caso julgado material.
33.ª Há (ao menos) que ficcionar a verificação do caso julgado e extrair dela a máxima amplitude de consequências no sentido não só da tutela dos interesses do arguido mas, muito mais importante do que isso, da tutela dos princípios da justiça e da equidade e da tutela dos valores fundamentais do direito penal de Macau e da tutela da jurisdição de Macau, que não pode, em quaisquer circunstâncias, ser colocada em causa.
34.ª Não pode, na verdade, sejam quais forem os caminhos técnicos que se encontrem, a construção ou reconstrução de conceitos e de institutos a que se proceda, permitir-se a grave contradição de sistema que redundaria do facto de o resultado final da condenação nas duas jurisdições representar para o recorrente uma consequência mais gravosa do que a que resultou da sua condenação na jurisdição de Macau para os quatro crimes por que foi, aqui, condenado.
35.ª Não pode permitir-se um cúmulo jurídico entre duas penas (do crime de auxílio, por um lado, e do crime de acolhimento, por outro) que venham a ser materialmente somadas a uma outra pena resultante de uma ficção preexistente entre dois outros crimes (roubo e detenção de armas), porque o nosso sistema de direito impõe uma única pena e não duas somadas através do recurso a um cúmulo material de penas.
36.ª O desconto de penas de que fala o art.º 117.º do C. Penal de 1886 pressupõe a verificação do caso julgado, de tal sorte que não pode haver desconto de pena sem se reconhecer a existência do caso julgado.
37.ª Surge ininteligível o contraponto feito na decisão recorrida entre a recusa da admissão do caso julgado e a determinação do desconto da pena.
38.ª Mesmo o desconto de pena em sede de execução de pena só parece existir se for reconhecido o caso julgado, como parece claramente decorrer da frase «que houver sido cumprida em execução de condenação por tribunal estrangeiro pelo mesmo crime» inserta no n.º 2.º do art.º 117.º do C. Penal de 1886.
39.ª Tal desconto teria de ser feito com recurso às regras da equidade, por apenas essas regras poderem permitir a salvaguarda da unidade do sistema jurídico de Macau.
40.ª A norma do art.º 140.º do C. P. Penal de 1929 permite a dedução das excepções do caso julgado e da litispendência em qualquer altura do processo e até decisão final, diferentemente, por exemplo, da excepção da incompetência, que só pode ser arguida até à audiência de julgamento em l.ª instância.
41.ª O conceito de «decisão final» terá de ser interpretado como a decisão que põe termo definitivamente à causa, a qual se não confunde com a «audiência de julgamento em 1.ª instância» ou com a «decisão» proferida ainda susceptível de recurso.
42.ª Trata, no caso, de uma situação de um único cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas a cada um dos quatro crimes porque foram crimes cometidos todos na mesma ocasião.
43.ª Não se mandando operar um cúmulo jurídico global, como parece transcorrer da sentença recorrida, corre-se o risco de o ora recorrente ter de cumprir uma pena (global, resultante das duas condenações por dois crimes) acumulada materialmente - ao mais completo arrepio da lei - com outra pena (global, resultante de duas outras condenações por dois outros crimes (no sistema de Macau) ou por uma outra condenação (no sistema da China).
44.ª E mais: a pena global resultante dos quatro crimes - na solução propugnada pelo ac. recorrido - poderia ser superior a treze anos de prisão, quando a ordem jurídica de Macau considerara já ajustada uma pena única de oito anos de prisão (na ponderação de todos os quatro crimes por que fora condenado nas duas jurisdições), possibilidade que se afiguraria de todo inadmissível.
45.ª O tribunal recorrido não pode aplicar as regras do desconto das penas da China sem aplicar as regras do cúmulo jurídico global que a nossa ordem jurídica impõe por força da acumulação de infracções (citados art.ºs 38.° e 102.° do C. Penal de 1886).
46.ª A decisão recorrida incorreu em erro de direito ao não considerar o crime de auxílio à emigração clandestina incluído no objecto do julgamento na jurisdição chinesa, ao não reconhecer o caso julgado na dimensão aqui propugnada e ao não operar um único cúmulo jurídico de todas as penas.
47.ª A decisão recorrida violou, nomeadamente, as normas dos art.ºs 40.° da Lei Básica, 14.°, n.º 7 do PIDCP, 32.°, 102.° e 117.° do C. Penal de 1886, 140.° do C.P.P. de 1929 e ainda os princípios da justiça, da equidade, da conformação do sistema, da racionalidade das valorações judiciárias e da proporcionalidade.
Na sua resposta a Exm.ª Procuradora-Adjunta suscitou a questão prévia da irrecorribilidade da decisão recorrida, tendo concluído nos seguintes termos:
1 - O objecto do presente recurso é o douto Acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância em segundo grau de jurisdição.
2 - Face à disposição legal vigente na matéria do recurso para o Tribunal de Última Instância, afigura-se-nos que o referido Acórdão não é susceptível de recurso para este Alto Tribunal.
3 - Com a criação e o funcionamento do Tribunal de Última Instância, a lei não pode deixar de prever a competência deste tribunal, sendo uma dela "julgar os recursos dos acórdãos do tribunal de Segunda Instância proferidos, em matéria criminal, em segundo grau de jurisdição, quando sejam susceptíveis de impugnação nos termos das leis de processo" (al. 3) do n° 2 do art° 44º da Lei de Bases da Organização Judiciária.
4 - E resulta do n° 2 do art° 72º da mesma lei que se aplicam aos processos pendentes à data da entrada em vigor desta lei as al.s 2), 3) e 4) do n° 2 do referido art° 44º, "desde que fosse admissível recurso ordinário para o plenário do Tribunal Superior de Justiça". (o sublinhado é nosso)
5 - Daí que o que interessa saber é, no presente caso, caberia ou não recurso ordinário para o plenário do antigo Tribunal Superior de Justiça.
6 - A competência do Tribunal Superior de Justiça, funcionando em plenário, está delimitada nas várias alíneas do n° 1 do art° 14º da Lei n° 112/91 (Lei de Bases da Organização Judiciária de Macau então vigente em Macau).
7 - É evidente que o presente caso não se enquadre em nenhuma das situações aí referidas.
8 - Conjugando as disposições legais atrás mencionadas, entendemos que do douto Acórdão proferido nos presentes autos pelo Tribunal de Segunda Instância não cabe recurso para o Tribunal de Última Instância.
9 - É de concluir pela inadmissibilidade do presente recurso.
Ouvido o recorrente, veio defender que o art. 72.º, n.º 2 da Lei de Bases da Organização Judiciária deve ser desaplicado por contrariar o princípio da igualdade dos cidadãos, previsto na Lei Básica e em outras leis e diplomas.
No seu parecer, a Exm.ª Procuradora-Adjunta manteve a posição assumida na resposta à motivação de recurso, tendo considerado que o disposto no art. 72.º, n.º 2 da Lei de Bases da Organização Judiciária não contraria o princípio da igualdade dos cidadãos, previsto na Lei Básica.
II – Fundamentação
1. Irrecorribilidade da decisão recorrida. Processos pendentes em 20 de Dezembro de 1999 e regidos pelo Código de Processo Penal de 1929
Trata-se de saber se o acórdão do TSI é recorrível.
O presente processo foi iniciado na vigência do Código de Processo Penal de 1929.
Em 1 de Abril de 1997 entrou em vigor um novo Código de Processo Penal, mas este apenas se aplica “...aos processos instaurados a partir dessa data, independentemente do momento em que a infracção tiver sido cometida, continuando os processo pendentes àquela data a reger-se, até ao trânsito em julgado da decisão que lhes ponha termo, pela legislação ora revogada” (art. 6.º do Decreto-Lei n.º 48/94/M, de 2 de Setembro, que aprovou o novo Código).
Donde, ao presente processo é aplicável o Código de Processo Penal de 1929 até ao trânsito em julgado da sua decisão final.
Assim, as normas do Código de Processo Penal de 1997 relativas a recursos, designadamente para o Tribunal de Última Instância, não se aplicam ao processo.
O art. 44.º da Lei de Bases da Organização Judiciária aprovada pela Lei n.º 9/1999, estabelece a competência do Tribunal de Última Instância, dispondo o seu n.º 2, alínea 3), que este Tribunal é competente para “Julgar os recursos dos acórdãos do Tribunal de Segunda Instância proferidos, em matéria criminal, em segundo grau de jurisdição, quando sejam susceptíveis de impugnação nos termos das leis de processo”.
Simplesmente, no Capítulo VI, intitulado Disposições finais e transitórias, a mesma Lei n.º 9/1999 contém normas transitórias em matéria de admissibilidade de recurso nos processos pendentes, dispondo o art. 72.º o seguinte:
“Artigo 72.º
Admissibilidade de recurso nos processos pendentes
1. A inadmissibilidade de recurso por efeito da criação ou da elevação da alçada dos tribunais, nos termos do artigo 18.º, não é aplicável aos processos pendentes à data da entrada em vigor da presente lei.
2. Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, as alíneas 2), 3) e 4) do n.º 2 do artigo 44.º são aplicáveis aos processos pendentes, sem decisão transitada em julgado, desde que fosse admissível recurso ordinário para o plenário do Tribunal Superior de Justiça”.
Deste modo, a admissibilidade dos recursos para o Tribunal de Última Instância, em matéria criminal, nos processos pendentes em 20 de Dezembro de 1999, depende de anteriormente a esta data, ser admissível recurso para o plenário do Tribunal Superior de Justiça.
Como se sabe, com a autonomia da organização judiciária de Macau, em 26 de Abril de 1993, 1 relativamente à organização judiciária portuguesa – organização aquela regulada pela Lei n.º 112/91, de 29 de Agosto e pelos Decretos-Lei n. os 17/92/M, de 2 de Março e 55/92/M, de 18 de Agosto - passou a haver, em regra, em matéria criminal e cível, apenas dois graus de jurisdição, primeira e segunda instâncias, sendo um de recurso, para a secção do Tribunal Superior de Justiça.
Só em casos excepcionais, como se verá, intervinha o plenário do Tribunal Superior de Justiça.
Pois bem, em matéria criminal, de acordo com o art. 14.º da Lei n.º 112/91, a competência para conhecer dos recursos dos tribunais de primeira instância pertencia sempre ao Tribunal Superior de Justiça, funcionando em secções. E, nestes casos, nunca havia recurso para o plenário do Tribunal Superior de Justiça, salvo no caso de uniformização de jurisprudência, com vista à emissão de assento. Ou seja, no caso dos autos, o plenário deste Tribunal não teria jurisdição para conhecer de recursos interpostos da secção do mesmo Tribunal Superior de Justiça.
Logo, o Tribunal de Última Instância não pode conhecer em recurso de decisão do Tribunal de Segunda Instância.
É que o legislador da Lei n.º 9/1999 pretendeu que, nos processo pendentes, em matéria criminal, só houvesse um grau de recurso para o Tribunal de Segunda Instância. E só permitiu, nesses processos, um recurso para o Tribunal de Última Instância quando, de acordo com a lei anterior, fosse admissível recurso para o plenário do Tribunal Superior de Justiça.
Ora, se o presente processo tivesse sido finalizado antes de 20 de Dezembro de 1999, só haveria um grau de recurso para a secção do Tribunal Superior de Justiça. Mas nunca seria possível o recurso para o plenário do mesmo Tribunal. Logo, também não é possível o recurso para o Tribunal de Última Instância.
Foi, aliás, o que decidimos no recente Acórdão de 15 de Dezembro de 2004, no Processo n.º 41/2004.
2. O princípio da igualdade
Nem faz sentido invocar qualquer desigualdade relativamente aos processos instaurados após 20 de Dezembro de 1999, porque até esta data só havia dois graus de jurisdição e, a partir dela, passou a haver três graus de jurisdição. Foi uma opção razoável do legislador, na sua discricionariedade, manter nos processos criminais pendentes o regime que até aí vigorava. Não há violação do princípio da igualdade porque as circunstâncias são diferentes. Antes só havia um tribunal superior. Agora há dois tribunais superiores. Nos processos antigos os interessados sabiam que só havia um grau de recurso. É razoável ter o legislador entendido que a situação nesses processos, quanto a número do grau de recursos, se manteria com a nova organização judiciária.
3. Processos pendentes em 20 de Dezembro de 1999, a que é aplicável o novo Código de Processo Penal
É certo que este Tribunal já conheceu de recursos de decisões do Tribunal de Segunda Instância, em matéria criminal, relativamente a processos pendentes em 20 de Dezembro de 1999. Mas tratava-se de processos a que era aplicável o novo Código de Processo Penal de 1997 tendo-se, então, feito uma interpretação restritiva do n.º 2 do art. 72.º da Lei n.º 9/1999, em face da alteração ao art. 390.º do mesmo Código de Processo Penal, introduzida pelo art. 73.º da Lei n.º 9/1999. Ou seja, nesses casos, em benefício do direito ao recurso dos interessados, prevaleceu o entendimento – que aqui não cabe desenvolver - de que o referido art. 72.º, n.º 2 da Lei n.º 9/1999, não se aplicaria aos processos penais a que fosse aplicável o novo Código de Processo Penal, já que este foi alterado pela própria Lei n.º 9/1999.
Não é esse o caso dos autos que é regido pelo Código de Processo Penal de 1929 e cuja competência em matéria de recursos estava prevista na antiga lei de organização judiciária, a Lei n.º 112/91.
4. Caso julgado
Mas, dir-se-á, o recurso poderia ser admissível, já que o seu fundamento é a violação do caso julgado e este é fundamento para recurso, em processo civil, mesmo quando o valor da causa ou o da sucumbência não o permite, nos termos do art. 583.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente, com as necessárias adaptações.
Sem afastar a possibilidade de aplicação subsidiária da alínea a) do n.º 2 do art. 583.º do Código de Processo Civil ao processo penal,2 permitindo um recurso para o Tribunal de Última Instância, com fundamento na violação do caso julgado ou das regras de competência, para além do que dispõe o art. 390.º do Código de Processo Penal de 1997 – questão que merece melhor estudo - no caso dos autos não o temos como possível. É que a lei antiga só previa dois graus de jurisdição, com tribunais de primeira instância e o Tribunal Superior de Justiça. E, na vigência da lei de organização judiciária anterior não teria sido possível recorrer da Secção do Tribunal Superior de Justiça para o respectivo Plenário. Ora, quando não exista – como era o caso no âmbito da antiga organização judiciária – mais nenhum tribunal para onde se possa interpor recurso, por a decisão ter sido proferida pelo mais alto tribunal do sistema judiciário, naturalmente não tem aplicação o disposto no art. 583.º do Código de Processo Civil. E como se viu, no caso dos autos, por via de disposição transitória da Lei n.º 9/1999, mantém-se apenas dois graus de jurisdição, tribunais de primeira instância e Tribunal de Segunda Instância.
Quer isto dizer que, em casos como o dos autos, não é invocável a violação do caso julgado para abrir um 3.º grau de jurisdição.
Em conclusão, o acórdão recorrido não é recorrível.
III – Decisão
Face ao expendido, dão provimento à questão suscitada pelo Ministério Público e não admitem o recurso por irrecorribilidade da decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UC.
Remeta cópia desta decisão ao processo referido a fls. 1702, informando que o acórdão ainda não transitou em julgado.
Quando ocorrer o trânsito em julgado, informe o mesmo processo.
Macau, 11 de Maio de 2005.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin
1 Cr. o Despacho n.º 23/GM/93.
2 Com as necessárias adaptações, já que em processo penal a causa não tem valor nem existe valor de sucumbência.
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Processo n.º 6/2005