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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso penal
N.° 20 / 2005

Recorrentes: A
B
C
D





1. Relatório
Os arguidos A, B, C e D foram condenados pelo Tribunal Judicial de Base, de acordo com o seu acórdão de 8 de Abril de 2005 proferido no processo comum colectivo n.° CR3-04-0117-PCC, pela prática de um crime de homicídio previsto e punido pelo art.° 128.° do Código Penal na pena de 18 anos de prisão e um crime de detenção e uso de arma proibida previsto e punido pelos art.°s 262.°, n.° 1 do mesmo Código e 6.°, n.° 1, al. b) e 1.°, n.° 1, al. e) do Decreto-Lei n.° 77/99/M na pena de 3 anos de prisão e, em cúmulo, na pena de 19 anos e 6 meses de prisão para cada um.
Todos os arguidos recorreram para o Tribunal de Segunda Instância. Por seu acórdão de 28 de Julho de 2005 do processo n.° 123/2005, foi julgado improcedente o recurso na parte respeitantes aos vícios determinantes do reenvio do processo para novo julgamento e parcialmente procedente o recurso no sentido de baixar as penas parcelares dos arguidos sobre o crime de homicídio para 17 anos de prisão e consequentemente fixar novamente as penas, em cúmulo jurídico, em 18 anos e 6 meses de prisão.
Novamente inconformados, os arguidos recorreram agora para este Tribunal de Última Instância, formulando as seguintes conclusões na respectiva motivação:
   “1. Imputam os recorrentes ao douto acórdão recorrido os seguintes vícios: (i) contradição insanável da fundamentação, previsto na al. b) do n.º 2 do art.º 400.º do Código de Processo Penal; (ii) nulidade da sentença por omissão de pronúncia de questões que deviam ser apreciadas; (iii) erro de direito consubstanciado na aplicação de penas excessivas e desproporcionadas relativamente à culpa dos recorrentes e às exigências da prevenção, vício que se integra no fundamento a que alude o n.º 1 do já citado art.º 400.º do CPP e violação do princípio in dubio pro reo.
   2. O invocado vício da contradição insanável da fundamentação, que segundo a jurisprudência pode ocorrer entre vários sectores do mesmo plano, manifesta-se, no douto acórdão recorrido lá onde os Ilustres Julgadores, partindo de determinadas premissas, constroem uma conclusão defeituosa e, assim, partindo da premissa que os recorrentes se encontraram com a vítima dos autos e os seus três amigos, conclui que a actuação dos recorrentes foi de tal forma que impediu a vítima de se defender.
   3. Este vício da contradição insanável da fundamentação também se manifesta, no douto acórdão recorrido quando os Ilustres Julgadores dão por provado um facto que tem como suporte probatório elementos que não têm virtualidade para tal; dá-se como provado que o 4.º arguido utilizou um punhal para agredir a vítima dos autos e indica-se como prova os autos de apreensão de três armas e o exame directo de quatro armas, sendo que dos autos constam relatórios periciais efectuados com recurso a técnicas de alta fiabilidade (DNA) que não comprovam que o mesmo arguido tenha utilizado um punhal.
   4. A este propósito e no desenvolvimento da matéria de facto dada por provada no que se refere especificamente à prova tomada em consideração pelos Ilustres Julgadores a quo, também, se identifica a invocada violação da regra da livre apreciação da prova em processo penal, porquanto, o douto Tribunal recorrido não podia ter feito descaso absoluto do resultado dos exames periciais efectuados com vista a determinar a quem pertencia o sangue que se encontrava num dos punhais, que veio a apurar-se tratar-se não pertencer à vítima mas sim pertencer ao 3.º arguido, conforme relatórios constante de fls. 230 e 295.
   5. A nulidade de que padece a douta decisão recorrida, na modesta opinião dos recorrentes, afere-se pela falta de pronúncia por parte dos Ilustres Julgadores do Tribunal de Segunda Instância de questões que deviam ser apreciadas, nomeadamente, porque existem três normativos nos quais seria possível serem subsumíveis os factos dados por provados: o art.º 128.º (homicídio simples), o art.º 130.º (homicídio privilegiado) e o art.º 145.º (participação em rixa), pelo que o douto Tribunal recorrido teria que se pronunciar, antes de mais, sobre os motivos que levaram ao cometimento do homicídio para saber se neles se enquadravam circunstâncias respeitantes à ilicitude e à culpa.
   6. Também se verifica a nulidade da sentença por falta de pronúncia de questões que deviam ser apreciadas, pois, tomando como ponto de partida alguns factos dados por provados não se poderia, desde logo, arredar a hipótese da morte da infeliz vítima ter ocorrido durante uma rixa em que estiveram envolvidas 8 pessoas, não tendo o douto Tribunal recorrido deixado claras circunstâncias que antecederam a morte, embora tenha dado por provado que essas 8 pessoas se encontraram a determinada hora e em determinado local, tendo o douto Tribunal de Segunda Instância dado por assente que a intenção dos recorrentes era vingarem-se da vítima dos autos e dos seus três amigos.
   7. E, embora os recorrentes tenham pedido ao Tribunal de Segunda Instância para se pronunciar sobre a insuficiência da matéria de facto – vício que os recorrentes imputaram ao acórdão da Primeira Instância que dera por provada uma agressão sofrida pelo 3.º arguido perpetrada pela vítima na presença de três amigos da infeliz vítima e não se pronunciara sobre as razões dessa agressão e demais circunstâncias por forma a aquilatar-se se os actos dos arguidos que culminaram com uma morte não foram praticados estando eles dominados por uma compreensível emoção violenta – o douto Tribunal não se pronunciou concretamente sobre esta questão tão relevante para uma decisão de direito justa e conforme à lei.
   8. Também deve ser considerada nula a decisão recorrida por não ter analisado todas as circunstâncias que antecederam os últimos actos ocorridos na fatídica madrugada do dia 10 de Fevereiro de 2004, na perspectiva de serem consideradas favoráveis aos arguidos, aqui recorrentes, tal como foi requerido na sua motivação de recurso para o Tribunal de Segunda Instância.
   9. Face aos vícios que se encontram assinalados na douta decisão recorrida, no modesto entender dos recorrentes, outra consequência não poderia ter que não fosse a manutenção do incorrecto enquadramento jurídico dos factos feito pelo Tribunal de Primeira Instância, tendo o douto Tribunal recorrido concluído que os arguidos cometeram, efectivamente, um crime de homicídio previsto no art.º 130.º do Código Penal de Macau, certo sendo que se o legislador prevê um tipo simples, acompanhado de um tipo privilegiado (e um tipo agravado), é verdade que é no crime simples ou no crime-tipo que desenha a conduta proibida enquanto elemento do tipo e prevê o quadro abstracto de punição dessa mesma conduta, portanto é importante definir a verificação dos elementos atenuativos (ou agravativos) para se permitir o abandono do tipo simples.
   10. Por último, imputam os recorrentes ao acórdão recorrido erro de direito consubstanciado na aplicação de penas excessivas e desproporcionadas relativamente à culpa dos recorrentes e às exigências da prevenção, vício que se integra no fundamento a que alude o n.º 1 do já citado art.º 400.º do CPP.
   11. Mesmo que Vossas Excelências, Venerandos Juízes, venham a considerar que a douta decisão recorrida não enferma de qualquer nulidade ou vício dos invocados pelos recorrentes e que é de manter o enquadramento feito pelo Tribunal de Segunda Instância, não pode ser mantida a pena escolhida: 17 anos, numa moldura penal em que o mínimo se fixa em 10 anos e o máximo em 20 anos, não sendo de valorar – nesse particular – o douto parecer do Exm.º Procurador-Adjunto quando afirma que as circunstâncias em que ocorreram os factos aproximam-se das previstas no tipo do crime de homicídio agravado, certo sendo que o Tribunal da Segunda Instância estava impedido de vir em sede de recurso indicar circunstâncias que podem ser consideraras agravativas do crime de homicídio simples e que não constam da acusação / pronúncia, tais como “premeditação” e “motivo fútil”.
   12. Tendo a douta sentença recorrida apontado circunstâncias agravantes que não se verificaram – porque não constavam dos factos provados no Tribunal da Primeira Instância – e, aliás, estão em contradição com outros factos dados por assentes pelo próprio Tribunal ora recorrido, não podem ser valoradas nem justificam o quantum exacto da pena concreta.
   13. Mesmo tendo em conta o grau de ilicitude, a intensidade do dolo na modalidade de dolo directo e também as acentuadas razões de prevenção geral e a especial necessidade de tutela do bem jurídico violado, a vida humana, os sentimentos manifestados pelos arguidos e as suas condições pessoais, de que se anota a confissão objectiva, o arrependimento verbalizado e o bom comportamento à data dos factos, e as razões de prevenção especial de socialização, atenta a situação em que se encontram depois do mal por eles causado – vivendo como se fosse um pesadelo (do qual gostariam de acordar pois a sua personalidade não se adequa ao desprezo pela vida humana, o que só por si, lhes causa um sofrimento atroz) o que lhes ocorreu, pois, apenas se haviam deslocado a Macau em visita de recreio (três deles pela primeira vez), por ocasião das festividades do Ano Novo Chinês, sem que, em nenhum momento, lhes tivesse passado pela cabeça que poderiam ter sido envolvidos num caso igual ao que se encontra retratado nos autos –, entende-se, por adequada e necessária, a pena de 12 anos de prisão.
   14. O Tribunal de Segunda Instância violou o princípio in dubio pro reo pois, perante um estado de dúvidas sobre vários pontos da matéria de facto, resolveu-as em desfavor dos recorrentes.
15. O Tribunal de Segunda Instância não apreciou detalhadamente a impugnação dos recorrentes quanto à matéria de facto fixada pelo Tribunal de Primeira Instância, nem se pronunciou concretamente sobre todas as questões que foram levadas ao seu conhecimento pelos recorrentes, razão por que, pode o Venerando Tribunal de Última Instância atender à fundamentação feita pelo Ilustre Colectivo da Primeira Instância e verificar que este deu por provada, na íntegra, a acusação, concluindo que, efectivamente a sentença da primeira instância é nula, por um lado e, por outro lado, está eivada dos vícios da contradição insanável da fundamentação, do erro notório na apreciação da prova e da insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito.”
Pedindo que seja dados por verificados os vícios determinantes do reenvio do processo para as instâncias ou julgado verificado o erro de direito e baixar a pena aplicada ao crime de homicídio para 12 anos de prisão.

O Ministério Público concluiu, na sua resposta, de seguinte forma:
   “1. Só com uma contradição insanável ou irredutível dos factos assume a relevância jurídica de se tornar operante tal vício;
   2. O poder de cognição do tribunal está limitado aso factos trazidos pela acusação ou pronúncia, excepto na situações previstas nos art.ºs 339.º e 340.º, ambos do CPPM;
   3. De acordo com a acta de audiência de discussão e julgamento, não foi requerido pelos recorrentes qualquer aditamento de novos factos (na perspectiva de outro enquadramento jurídico dos factos) para que o julgamento se prossiga nesse sentido;
   4. Trata-se, de um direito de defesa concedido por lei processual, e a consequência desfavorável da sua não utilização não pode, ao final, imputar ao tribunal;
   5. Sendo certo que o crime de homicídio privilegiado é um crime especial em relação ao crime de homicídio simples, contudo, não estabeleça a lei a barreira ao tribunal de proceder, a priori, o afastamento de aplicabilidade do crime especial para que se torne operante o crime geral;
   6. Ao invés, é lógico que a aplicabilidade do crime especial depende, em primeira mão, o preenchimento total do tipo do crime geral;
   7. A existência ou não de emoção compreensível violenta é um juízo de valor conclusivo, a extrair através dos factos;
   8. No caso, não é viável de afirmar a existência de emoção compreensível violenta por falta de mínimo suporte factual;
   9. Pensamos que o tribunal recorrido tomou já todas as circunstâncias devidas na determinação da pena;
10. E a pena concreta encontrada para todos os recorrentes é equilibrada no caso concreto.”
Entendendo que o recurso não merece procedência nas suas todas as vertentes e deve ser mantido o acórdão recorrido nos seus precisos termos.

Nesta instância, o Ministério Público deu o seguinte parecer:
   “Acompanhamos as doutas e circunstanciadas considerações do nosso Exm.º Colega.
   E nada temos, de facto, a acrescentar-lhes.
   As mesmas, aliás, estão em sintonia com a (nossa) resposta à motivação do recurso interposto para o Tribunal de Segunda Instância.
   E, efectivamente, os recorrentes limitam-se a reiterar a argumentação já aduzida perante esse Tribunal.
   
   Pode ter-se como pertinente, entretanto, uma breve nota sobre o alegado “excesso” da pena imposta pelo crime do homicídio.
   A esse respeito, igualmente, mantemos e damos como reproduzida a posição assumida na referida resposta.
   E o certo é que o acórdão recorrido reduziu tal pena em 12 meses, fixando-a em 17 anos de prisão.
   Cremos, convictamente, que essa medida concreta deve ser mantida por este Venerando Tribunal.
   E temos presente, a propósito, o debate sobre a questão da controlabilidade da determinação da pena em sede de recurso – nomeadamente em “matéria de direito” (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pg. 196).
   
   Deve, pelo exposto, o recurso ser julgado improcedente – ou até, mesmo, manifestamente improcedente (com a sua consequente rejeição nos termos dos art.ºs 407.º, n.º 3-c, 409.º, n.º 2-a e 410.º, do C.P. Penal).”

   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 Foram dados como provados pelo Tribunal Judicial de Base e Tribunal de Segunda Instância os seguintes factos:
   “No dia 10 de Fevereiro de 2004, cerca das 4h00 de madrugada, o arguido C envolveu-se no conflito no Hotel(1), sito na [Endereço(1)] com o ofendido E e outros três amigos (um de nome F – fls. 344, um de alcunha “G”, o outro de alcunha “H”) e foi ferido pelo ofendido.
   Visto que na altura o grupo do ofendido E tinha quatro pessoas, o arguido C, considerando que a minoria não resiste à maioria, voltou à moradia em Macau, [Endereço(2)], e contou o respectivo assunto aos arguidos A e B.
   Para vingar pelo arguido C, o arguido A trouxe da referida fracção um cutelo, cujo gume tem o comprimento de 18cm (vide a fls. 3 e o auto de apreensão e exame a fls. 390), o arguido B trouxe um martelo, de comprimento de 26 cm e peso total de 891 gr (vide a fls. 4 e o auto de apreensão e exame a fls. 390), o arguido C trouxe um canivete dobrável, cujo gume tem comprimento de 19 cm (vide a fls. 46, 124, 299, 403 e o auto de apreensão e exame a fls. 390), e foram em conjunto ao Hotel(1), a fim de se vingar ao ofendido E e os aludidos três amigos.
   Além disso, os arguidos A, B e C ainda trouxeram um outro canivete dobrável igual ao referido em cima, cujo gume tem comprimento de 10 cm (vide a fls. 5 e o auto de apreensão e exame a fls. 390), com vista de dar a utilizar ao arguido D que na altura estava no Hotel(1), e o arguido A telefonara-lhe, combinando com este encontrar-se no lobby do Hotel(1).
   No lobby do Hotel(1), o arguido D juntou-se com os arguidos A, B e C, tendo como objectivo de se vingar ao ofendido E.
   No mesmo dia, cerca das 5h00 de madrugada, os arguidos A, B, C e D encontraram novamente o ofendido E e os seus três amigos perto da porta do Hotel(1).
   Os arguidos A, B, C e D em conjunto agrediram na cabeça, pescoço, corpo e quatro membros do ofendido E, utilizando respectivamente as supracitadas armas, só pararam quando a polícia da PSP chegou ao local, e fugiram imediatamente.
   A agressão sofrida do ofendido E é o motivo necessário e directo da sua morte (vide o relatório de exame directo a fls. 7 e o relatório de autópsia a fls. 161-166; cujo teor se dá aqui por reproduzido para todos os efeitos legais).
   Os arguidos A, B, C e D praticaram a referida conduta com objectivo de causar ao ofendido E a morte.
   Os arguidos A, B, C e D agrediram em conjunto nos principais órgãos corporais do ofendido E, utilizando armas afiadas e agressivas, facto que originou a morte deste.
   Os arguidos A, B, C e D conheciam perfeitamente a natureza e carácter das aludidas armas, sabendo que podem causar ferimentos graves ou morte quando os referidos instrumentos são utilizados para agressão; bem sabiam que é proibido por lei o uso dos referidos instrumentos para a aludida utilidade.
   Os arguidos A, B, C e D agiram de forma livre, voluntária e consciente, na circunstância de acordo de vontade e força ao praticar as referidas condutas.
   Os arguidos A, B, C e D sabiam perfeitamente que as suas condutas são proibidas e punidas por lei.
   O arguido A trabalhava antes de ser preso em agência de ferragens, com salário mensal de RMB$5.000.
   É solteiro, tem a seu cargo a mãe.
   Confessou parte dos factos, é delinquente primário.
   O arguido B antes de ser preso era trabalhador por conta própria (vender pequeno almoço), com salário mensal de RMB$2.000.
   É solteiro, sem ninguém a seu cargo.
   Confessou parte dos factos, é delinquente primário.
   O arguido C é solteiro, desempregado antes de ser preso, sem ninguém a seu cargo.
   Confessou parte dos factos, é delinquente primário.
   O arguido D era cabeleireiro antes de ser preso, com salário mensal de RMB$1.000-2.000.
   É solteiro, sem ninguém a seu cargo.
   Confessou parte dos factos, é delinquente primário.
   Factos não provados: não há.”
   
   
   2.2 Contradição insanável da fundamentação
   O vício de contradição insanável da fundamentação indicado pelos recorrentes relaciona com dois factos dados por provados pelo tribunal colectivo de primeira instância em que num se refere que “juntos deslocaram-se ao Hotel(2), com intuito de se vingarem da vítima E e dos seus três amigos” e noutro “juntou-se aos arguidos A, B e C, a fim de se vingarem da vítima E”, pois os objectivos mencionados nos dois factos são diferentes.
   Mas os próprios recorrentes, embora em discordância da decisão do Tribunal de Segunda Instância de considerar não existir tal vício, aceitam-se que a contradição verificada em nada afectará a decisão de direito face à posição da segunda instância de ter como provado “o intuito de se vingarem da vítima E e dos seus três amigos”.
   
   Estão em causa dois factos provados:
   “Para vingar pelo arguido C, o arguidos A trouxe da referida fracção um cutelo, cujo gume tem o comprimento de 18cm (...), o arguido B trouxe um martelo, de comprimento de 26 cm e peso total de 891 gr (...), o arguido C trouxe um canivete dobrável, cujo gume tem comprido de 10 cm (...), e foram em conjunto ao Hotel(1), a fim de se vingar do ofendido E e dos aludidos três amigos.”
   “No lobby do Hotel(1), o arguido D juntou-se com os arguidos A, B e C, tendo como objectivo de se vingar do ofendido E.”
   Não parece que haja contradição entre os dois factos transcritos, e muito menos insanável. No primeiro facto destaca a intenção dos três arguidos A, B e C de vingarem do ofendido E e dos três amigos deste. No segundo, é a intenção do próprio arguido D que está em causa, ou seja, juntar com os outros três arguidos a fim de vingar do ofendido E.
   A contradição entre os factos provados pressupõe que as realidades neles veiculadas são de sentido oposto, inconciliável entre si.
   No âmbito dos dois factos em apreço, admite-se que as pessoas objecto da vingança são mais para alguns arguidos e menos para outro. No entanto, o fundamental é que o ofendido E é o visado comum pelos todos os quatro arguidos para levar a cabo as acções de represália cujos interesses estão a ser acautelados pela incriminação das condutas ilícitas destes. Não há contradição insanável entre os dois factos provados apontada.
   
   Ainda no âmbito deste vício, os recorrentes alegam que o vício também se verifica no acórdão de primeira instância por ter indicado prova não correspondente a um facto provado. Isto é, ao dar como provado que o 4° arguido D utilizara um punhal para agredir a vítima dos autos, indicou como prova deste facto os autos de apreensão de três armas e o exame directo de quatro armas, sem atender aos relatórios de DNA que não comprovam a utilização de punhal pelo arguido. Com o vício neste aspecto, os recorrentes colocaram ainda o erro notório na apreciação da prova e a falta de fundamentação do acórdão ora recorrido por não ter pronunciado sobre este vício.
   
   Ora, a contradição ora invocada é votada necessariamente ao insucesso por duas razões.
   Em primeiro lugar, só com o facto provado indicado não se alcança que o 4° arguido tinha utilizado um punhal para agredir a vítima.
   É do seguinte teor tal facto provado: “Além disso, os arguidos A, B e C ainda trouxeram um outro canivete dobrável igual ao referido em cima, cujo gume tem comprimento de 10 cm (vide a fls. 5 e o auto de apreensão e exame a fls. 390), com vista de dar a utilizar ao arguido D que na altura estava no Hotel(1), e o arguido A telefonara-lhe, combinando com este encontrar-se no lobby do Hotel(1).”.
   Com este facto se pode concluir apenas que os três arguidos trouxeram mais um canivete para ser utilizado pelo 4° arguido D, sem mais referência sobre se este arguido chegou a utilizar efectivamente tal canivete ou não. Assim, a indicação dos documentos constantes das fls. 5 e 390 dos autos está em perfeita consonância com a factualidade dada por provada, pois estes documentos fornecem sobretudo as características físicas da arma. Não existe, neste aspecto, qualquer contradição entre o facto provado e a prova indicada.
   Em segundo lugar, a tese defendida pelos recorrentes é insustentável por ter confundido constantemente os exames laboratoriais da Polícia Judiciária sobre os dois canivetes apreendidos, um por agentes da PSP logo após a detenção dos dois primeiros arguidos e outro pela PJ em momento posterior.
   No primeiro canivete apreendido pela PSP, de número do Laboratório de PJ Bio-D087, existia vestígio de sangue, mas o respectivo resultado do exame de DNA é negativo e consequentemente impossível de determinar a sua origem, conforme a conclusão do relatório do exame a fls. 231.
   Já no segundo canivete apreendido pela PJ, de número do Laboratório de PJ Bio-D062, os vestígios de sangue encontrados nas lâminas do canivete (Bio-D062a e Bio-D062b) foram identificados da vítima E (conforme o relatório do exame a fls. 177) e os encontrados no cabo (Bio-D062c) com a mistura de DNA do 3° arguido C e uma outra pessoa, conforme o relatório do exame a fls. 295 dos autos realizado mediante a comparação com as amostras de saliva dos arguidos.
   Os recorrentes deram particular importância à existência de sangue do 3° arguido no punhal que foi encontrado posteriormente. Então este punhal ou canivete só pode ser o com número laboratorial de Bio-D062. Mas os recorrentes não referiram na motivação de que o vestígio de sangue deste arguido foi apenas encontrado no cabo do canivete e nas respectivas lâminas encontraram-se os vestígios de sangue do próprio ofendido.
   Os fundamentos da tese dos recorrentes são infirmados pelos referidos resultados dos exames laboratoriais. Com o teor de resultados destes exames, não se pode afirmar que o ofendido E agrediu o 3° arguido C com o punhal ou canivete que foi apreendido posteriormente.
   
   E finalmente, os recorrentes imputam o mesmo vício ao acórdão do Tribunal de Segunda Instância ora recorrido. Estão em causa duas afirmações do acórdão: “... o único ponto que numa primeira leitura poderia levantar algumas interrogações a carecerem de resposta seria a de indagar da reacção dos amigos da vítima, já que se sabe que os arguidos, às 5 horas e tal, nas proximidades da porta do Hotel(2) voltaram a encontrar a vítima e os amigos.” e “Ora, do silêncio do texto e do circunstancialismo da agressão, forma do cometimento, ferimentos causados, das próprias omissões do acórdão não é difícil configurar que os amigos da vítima fugiram ou foram embora e daí a omissão, por irrelevante, na pronúncia e no acórdão de tal facto, aliás, resultante das declarações dos arguidos aquando do seu interrogatório ...”.
   Entendem os recorrentes que as duas afirmações estão em contradição umas com as outras por pretender assentar a falta de essencialidade dos pontos da matéria de facto nas “próprias omissões do acórdão” e na “omissão na pronúncia” e, por outro lado, estão preenchidas por juízos conclusivos.
   
   O trecho do acórdão citado pelos recorrentes prende com a questão de insuficiência da matéria de facto suscitada relativa à reacção dos amigos da vítima nos actos descritos na pronúncia. A segunda afirmação acima citada do acórdão recorrido é apenas uma expressão da posição do tribunal recorrido sobre a causa possível, e a mais provável, da omissão dos factos da reacção dos amigos da vítima. Sendo pouco relevante esta afirmação do acórdão recorrido para fundamentar a sua decisão em relação a este vício, não há contradição insanável de fundamentação alegada, pois todo o n.° 4 do acórdão recorrido, em que as duas afirmações estão inseridas, aponta no sentido da não essencialidade dos referidos elementos fácticos, e as duas afirmações do acórdão recorrido está em consonância com esta conclusão.
   
   
   2.3 Omissão de pronúncia – falta de valoração de outros dois crimes privilegiados
   Sob o vício da nulidade da sentença por omissão de pronúncia, os recorrentes voltaram a pôr a questão da possibilidade de integrar a actuação dos mesmos nos crimes menos graves: o crime de homicídio privilegiado previsto no art.° 130.° do Código Penal (CP) por compreensível emoção violenta e o crime de participação em rixa previsto no art.° 145.° do CP, ou pelo menos considerar a tal compreensível emoção violenta como uma circunstância atenuante especial ou geral do crime de homicídio simples.
   
   O tribunal recorrido pronunciou expressamente sobre a questão no sentido de que, embora seja ideal dotar de todos os pormenores do incidente mortal, no presente caso não há insuficiência da matéria de facto e não permite a integração típica pretendida.
   Os recorrentes procuraram colocar as possibilidades de, por um lado, os mesmos terem actuado sobre compreensível emoção violenta, ou seja, a provocação exercida pela vítima e os seus amigos, e, por outro, de a morte da vítima ter ocorrido durante uma rixa, realçando a importância da atitude dos três amigos da vítima após o encontro entre os dois grupos.
   Só que a tese dos recorrentes não tem suporte fáctico na matéria de facto provada. Em princípio, o tribunal está limitado ao objecto do processo definido pelo conteúdo da acusação ou pronúncia e da contestação. Fora dos mecanismos de alteração dos factos previstos nos art.°s 339.° e 340.° do Código de Processo Penal (CPP), não é possível ao tribunal investigar novos factos fora do objecto processual.1
   Os recorrentes não utilizaram os meios previstos nos referidos art.°s 339.° e 340.° do CPP, sendo certo que também não foram suscitados oficiosamente pelo tribunal, em relação às circunstâncias que poderiam conduzir à compreensível emoção violenta dos arguidos e revelar as atitudes dos três amigos da vítima dos autos. A insuficiência da matéria de facto só se verifica com a falta de apuramento de todos os factos dentro do objecto do processo, sem alteração por força dos mencionados meios processuais.
   A situação não consubstancia uma omissão de pronúncia por parte de, nomeadamente, o tribunal colectivo de primeira instância, mas sim a falta de matéria de facto que permite a integração nos outros dois crimes não constantes da pronúncia, embora menos graves.
   Assim, não se pode reenviar o processo para o tribunal voltar a investigar factos não integrados no objecto do processo.
   
   
   2.4 Violação do princípio in dubio pro reo
   Os recorrentes consideram que o Tribunal de Segunda Instância resolveu contra os mesmo perante as dúvida sobre determinados pontos da matéria de facto, ao afirmar que “o apuramento cabal de toda a realidade não deixaria de ser mais vantajoso de forma a dotar o Tribunal de todos os elementos que permitissem uma visão mais detalhada de como as coisa se terão passado”; “não é difícil configurar que os amigos da vítima fugiram ou foram se embora”; “aqui o único ponto que, numa primeira leitura poderia levantar algumas interrogações a carecerem de resposta seria a de indagar da reacção dos amigos da vítima ...”; “... ser sempre desejável um apuramento mais exaustivo da realidade”; e ainda sobre a utilização de armas pelo grupo da vítima.
   
   Essas afirmações constantes do acórdão recorrido não deixam de ser apenas a opinião do tribunal recorrido quanto ao modo como devia desencadear a investigação de todas as circunstâncias do incidente e são sempre irrelevantes por não respeitam ao objecto do processo definido pela pronúncia e contestação. E o próprio tribunal recorrido também concluiu pela não essencialidade destes elementos fácticos. Nunca está aqui em causa o princípio invocado.
   
   
   2.5 Medida da pena
   Os recorrentes sustentam que as penas deviam ser baixadas para 12 anos de prisão. Alegam que a afirmação do tribunal recorrido de que “a actuação em mútuo acordo e em conjugação de esforços por parte dos arguidos, actuação que, nas circunstâncias em que ocorreu, não deixou à vítima qualquer possibilidade de defesa.” entra em contradição quando o tribunal deu por assente que os recorrentes se dirigiram para o Hotel para se vingarem da vítima e dos seus amigos e os dois grupos se encontraram nas proximidades de tal hotel.
   Ora, é certo que os recorrentes actuaram com o objectivo de vingar e encontraram na proximidade da porta do Hotel o grupo da vítima, mas não é menos certo que, de acordo com os factos provados, a vítima foi agredida pelos quatro arguidos com as armas de cutelo, martelo e canivete nas zonas de cabeça, pescoço, tronco, braços e pernas, que só pararam com a intervenção de polícias. Não parece que haja aqui contradição, mas antes uma ilação tirada das circunstâncias provadas do incidente de agressão.
   
   Por outro lado, os recorrentes entendem que o tribunal recorrido não podia afirmar que eles angariaram premeditadamente as armas utilizadas na agressão que tinha na sua génese uma motivação quase fútil. Consideram que são factos que não constam da pronúncia nem da acusação que poderiam levar à integração no crime de homicídio qualificado e ainda que estava vedada ao tribunal recorrido a possibilidade de considerar que o crime em causa assume uma censurabilidade / perversidade que o aproxima do homicídio qualificado.
   É verdade que os conceitos de censurabilidade, perversidade do agente e o motivo fútil e premeditação como reveladoras daquelas são empregados pelo legislador para imputar o crime de homicídio qualificado previsto no art.° 129.° do CP. Os arguidos também não foram pronunciados por este crime.
   Mas atendendo às actuações dos recorrentes, a violência exercida sobre a vítima, as armas utilizadas, as zonas do corpo da vítima atingidas pelos golpes agressivos, não se vê como é possível vedar ao tribunal recorrido chegar a essas conclusões. Mesmo assim, os arguidos continuam a ser punidos com o crime de homicídio simples e não qualificado e tais circunstâncias pouco abonatórias reflectem naturalmente na fixação da medida concreta de pena numa moldura de 10 a 20 anos de prisão.
   
   Para fundamentar a pretendida redução das penas, os recorrentes referem ainda as circunstâncias previstas no art.° 65.°, n.° 2 do CP, nomeadamente o arrependimento verbalizado, o bom comportamento à data dos factos, a prevenção especial e a situação como turista na Região.
   Estas circunstâncias são tão diminutas em comparação com as agressões violentas praticadas pelos recorrentes sobre a vítima.
   Os referidos fundamentos não têm virtualidade para fazer reduzir as penas já baixadas pelo Tribunal de Segunda Instância, e muito menos para 12 anos de prisão.
   
   Os recursos dos arguidos devem ser rejeitados por manifesta improcedência.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em rejeitar o recurso.
   Nos termos do art.° 410.°, n.° 4 do Código de Processo Penal, condenam cada um dos recorrente a pagar 4UC.
   Custas pelos recorrentes solidariamente com a taxa de justiça fixada individualmente em 4UC.
   
   
   Aos 19 de Outubro de 2005.



Os juízes:Chu Kin (Relator)
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

1 Cfr. os acórdãos do TUI dos processos n.°s 44/2004, 18/2002 e 3/2002 respectivamente de 15/12/2004, 30/01/2003 e 20/03/2002
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Processo n.° 20 / 2005 1