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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
   O A interpôs, em 20 de Outubro de 2004, recurso contencioso de anulação do despacho do Secretário para a Economia e Finanças, de 29 de Novembro de 2000, que autorizou a sua aposentação e lhe fixou a pensão de aposentação calculada com base no índice 650 da função pública.
Por acórdão de 16 de Junho de 2005, do Tribunal de Segunda Instância, (TSI) foi negado provimento ao recurso.
Inconformado, interpõe o A o presente recurso jurisdicional, terminando a respectiva alegação com a formulação das seguintes conclusões:
   A - O acto recorrido padece do vício de nulidade, em virtude de vir pôr em causa o direito fundamental à pensão de sobrevivência do ora recorrente, nos exactos termos em que foi reconhecido pela Administração de Macau antes da transferência da soberania.
   B – À data em que ocorreu o facto determinante da aposentação, o Recorrente desempenhava o cargo de Administrador da Universidade, em regime de comissão de serviço, auferindo um rendimento igual ao índice remuneratório 1000.
C - No despacho recorrido a Administração fez uma interpretação errada do regime jurídico da aposentação.
D - Efectivamente, o legislador de Macau, na alínea a) do n.º 1, do artigo 265.° do Estatuto, foi determinante ao afirmar que todos os funcionários na situação ali prevista têm direito a aposentação com base no vencimento único que respeitar à categoria ou cargo à data da verificação dos requisitos legais para a aposentação.
E - Por outro lado, a situação em apreço não se enquadra na previsão do n.º 3 do referido artigo 265.°, porquanto o recorrente ao desempenhar as funções de Administrador da Universidade não se encontrava na situação de interinidade, requisição, acumulação ou substituição, mas sim em regime de comissão de serviço, no cargo de Administrador da Universidade.
F - Recorde-se que a entidade recorrida não impugnou tal facto, pelo que se deverá considerar por assente e sobejamente sabido que o mesmo desempenhou funções junto da Universidade em comissão de serviço.
G - Na verdade o direito à aposentação tinha sido reconhecido ao ora recorrente, com determinado conteúdo, através de um acto administrativo constitutivo de direitos, adoptado ao abrigo da legislação especial.
   H - O acto recorrido revogou aquele acto administrativo, diminuindo o conteúdo do direito do recorrente, baixando unilateralmente o índice que serviu de base ao cálculo da pensão, ofendendo, como já se disse um direito adquirido pelo mesmo, baseando-se num dispositivo legal geral aplicável à generalidade da função pública de Macau e afastando uma norma especial que conferia um tratamento mais favorável ao recorrente.
   I - Daí que tal acto é nulo, justamente por ofender um direito fundamental do recorrente e contraria o principio da legalidade e da protecção dos direitos adquiridos.
   J - Acresce que o acto que reconheceu originariamente o direito à aposentação é irrevogável atendendo aos imperativos de segurança e certeza jurídica que, como é sabido, são a base da confiança dos particulares nos actos definitivos da Administração Pública (cfr. artigos 3.°, 4.°, 7.° do CPA e artigos 36.°, 39.° e 40.° da Lei Básica da RAEM).
   K - Aliás, é o próprio legislador da Lei Básica, que previu a possibilidade dos funcionários e agentes públicos continuarem com a mesma regalia que usufruíam antes da transferência da soberania, tendo esse direito sido reconhecido judicialmente no acórdão 7/2001 do TUI.
   
   A Exm.ª Procuradora-Adjunta emitiu o seguinte parecer:
   “Inconformando com o douto Acórdão do TSI que julgou improcedente o recurso contencioso por si interposto, vem A interpor recurso, invocando a violação do direito fundamental de aposentação, do princípio da legalidade e da protecção dos direitos adquiridos bem como a errada interpretação do regime jurídico da aposentação, concretamente do disposto na al. a) do n.º 1 do art.º 265.º do ETAPM.
   Antes de mais, é de salientar que não está em causa a interpretação e aplicação da referida disposição legal, uma vez que no recurso contencioso nem sequer foi discutida a questão.
   Resulta do douto Acórdão ora recorrido que o Tribunal a quo julgou improcedente o recurso uma vez que, em virtude do tempo decorrido entre a data do acto impugnado e a da imposição do recurso contencioso, ficam sanados eventuais vícios geradores de anulabilidade que prendem com a alegada violação de lei resultante de errada interpretação e aplicação do art.º 265.º do ETAPM, por um lado, e não se verifica qualquer situação de nulidade que permite a interposição do recurso contencioso a todo o tempo, sobretudo a referida na al. d) do n.º 1 do art.º 122.º Código de Procedimento Administrativo, por outro lado.
   Daí que a questão essencial colocada à apreciação do Tribunal reside apenas em saber se foi posto em causa qualquer direito fundamental, concretamente o direito de aposentação, do recorrente que conduz à nulidade do acto administrativo impugnado.
   Nos termos do art.º 122.º n.º 2, al. d) do CPA, são nulos "os actos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental".
   Como se sabe, os direitos fundamentais consagrados para os cidadãos de Macau são os previstos na Lei Básica da RAEM.
   E resulta do disposto no art.º 39.º do referido diploma que "o bem-estar e a garantia de aposentação dos trabalhadores são legalmente protegidos".
   Daqui parece que o direito à aposentação é um dos direitos fundamentais consagrados na Lei Básica da RAEM.
   No entanto, não se nos afigura que, com o acto administrativo que fixou a pensão mensal do recorrente por referência ao índice 650, e não ao índice 1000 como pretende o recorrente, foi violado o direito à aposentação do recorrente.
   De facto, a Administração reconhece sempre tal direito ao recorrente, fixando a respectiva pensão.
   
   Por outro lado, nota-se que, para os efeitos referidos no art.º 122.º do CPA, a lei exige a ofensa do "conteúdo essencial" de um direito fundamental.
   O acto administrativo que ofenda um direito fundamental só é culminado de nulidade se atingir o seu cerne ou conteúdo essencial, como fala o legislador.
   Nas palavras dos Drs. Lino Ribeiro e Cândido de Pinho, "Nem todos os actos administrativos que ofendam direitos fundamentais são nulos, mas apenas aqueles que violem o seu conteúdo essencial. Mas o que é o conteúdo essencial dum direito fundamental? ...Reconhece-se que cada direito fundamental tem um conteúdo elástico, só determinável em concreto. E a protecção constitucional não é sempre a mesma: a partir dum núcleo fundamental de protecção máxima, irradiam espaços de protecção progressivamente menos intensa. Por exemplo, o legislador pode estabelecer determinadas regras que condicionam o direito de reunião ou manifestação. Mas não pode estabelecer normas que conduzam à destruição completa do direito, ou mesmo a uma restrição desnecessária ou desproporcionada. Quer dizer, os valores contidos em cada um dos preceitos que prevêem direitos fundamentais, e que, como refere Vieira de Andrade, são a projecção da《dignidade do homem concreto como ser livre》, constituem um limite absoluto à intervenção legislativa e, ..., também à intervenção administrativa. Há, pois, de averiguar se o acto administrativo que toca direitos fundamentais subverteu ou desfigurar o valor e a garantia constitucional ínsita em cada um dos preceitos relativos aos direitos fundamentais. Só neste caso é que o acto será nulo". (Código do Procedimento Administrativo de Macau, Anotado e Comentado, pág. 712 e 713)
   Conforme o Prof. Vieira de Andrade, cada direito tem um conteúdo principal, que abrange as faculdades ou garantias específicas de cada hipótese normativa, e um conteúdo instrumental.
   E no conteúdo principal distinguem-se o núcleo essencial e as camadas envolcentes, com diferença decrescente e contínua de intensidade normativa.
   "O《núcleo essencial》 corresponde às faculdades típicas que integram o direito, tal como é definido na hipótese normativa, e que corresponde à projecção da ideia de dignidade humana individual na respectiva esfera da realidade - abrangem aquelas dimensões dos valores pessoais que a Constituição visa em primeira linha proteger e que caracterizam e justificam a existência autónoma daquele direito fundamental”, enquanto “as《camadas envolventes》incluem outros valores (bens, comportamentos, garantias) que aquele direito também visa assegurar, mas que correspondem a aspectos em que, por serem menos típicos, mais relativos ou menos importantes, a protecção constitucional deve ser considerada de menos intensidade".
   Há ainda casos em que “a Constituição remete para a lei ordinária, expressa ou implicitamente, a determinação do conteúdo de um direito, de modo que, nessas hipóteses, o conteúdo constitucional fica autolimitado em face da liberdade constitutiva do legislador e o núcleo essencial se configura como um 《conteúdo mínimo》do direito, como acontece em certas liberdades económicas (direito de propriedade, liberdade de iniciativa económica) e sobretudo nos direitos económicos, sociais e culturais”. (cfr. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2 edição, pág. 171 a 173)
   Postas tais judiciosas considerações e analisado o caso sub judice, entendemos que, ao fixar para o recorrente quantum da pensão por referência ao índice 650, a Administração não ofendeu o "conteúdo essencial" do seu direito à aposentação.
   De facto, com a redacção do referido art.º 39.º da Lei Básica da RAEM, revela-se claramente que cabe ao legislador tomar medidas concretas a fim de tomar possível ou efectivo o exercício do direito à aposentação, estabelecendo o respectivo regime concreto, incluindo o quantum da pensão.
   A norma em questão confere aos trabalhadores a garantia de aposentação, que não foi posta em causa pelo acto administrativo impugnado.
   Quanto ao montante da respectiva pensão, cabe à Administração a fixá-lo conforme a lei e o eventual vício, originado pela errada interpretação e aplicação das disposições legais contidas na lei que estabelece o regime concreto da aposentação, constitui mera anulabilidade.
   Resumindo, a fixação pela Administração da pensão do ora recorrente correspondente ao índice 650, e não ao índice 1000 como pretende o recorrente, não afecta o “conteúdo essencial”, tal como é exigido na al. d) do n.º 2 do art.º 122.º do CPA, do seu direito à aposentação, não se divisando que tenha desvalorizado a respectiva garantia a nível constitucional.
   Alega ainda o recorrente a violação do princípio da legalidade e da protecção dos direitos adquiridos.
   Também não se vislumbra como e em que termos se ocorre tal violação.
   Na verdade, antes do acto administrativo impugnado nunca foi fixado ao recorrente qualquer montante concreto a título de pensão, e muito menos a fixação por referência ao índice 1000.
   Com o despacho proferido pelo então Encarregado do Governo em 30-10-1995, o que aconteceu não passa de reconhecer, tão só, ao recorrente o direito de aposentação com transferência da responsabilidade pelo pagamento das pensões para a Caixa Geral de Aposentação de Portugal.
   Deste despacho não resulta qualquer fixação da pensão para o recorrente; o que nem poderia ter sido, pois o facto de aposentação só iria ocorrer depois.
   E os descontos para efeitos de aposentação por referência ao índice 1000, correspondente ao seu vencimento, foram efectuados de acordo com a lei vigente.
   No entanto, por despacho do então Governador de 24-3-1999, foi deferido o requerimento do recorrente no sentido de revogar o anterior despacho e passar a aposentar-se em Macau, recebendo a sua pensão por conta do Fundo de Pensões de Macau, pelo qual os seus descontos passaram a serem processados com referência ao índice 650, reembolsando-se a diferença resultante dos anteriores descontos já efectuados com referência ao índice 1000.
   Daí que deixou de ser aplicado o regime especial consagrado no DL n.º 14/94/M e no DL n.º 43/94/M, aplicável ao pessoal que reúna condições de integração nos serviços da República Portuguesa ou de transferência da responsabilidade das pensões de aposentação e de sobrevivência para a Caixa Geral de Aposentações de Portugal.
   Ora, face a tais elementos, é de concluir que não estão em causa quaisquer direitos adquiridos invocados pelo recorrente, sendo certo que, com a autorização de aposentar-se em Macau, a Administração passou já a efectuar os respectivos descontos por referência ao índice 650.
   Pelo exposto, entendemos que se deve julgar improcedente o presente recurso”.
   
   II – Os factos
   O acórdão recorrido considerou assentes os seguintes factos:
   A) O ora recorrente, A, pertenceu ao quadro de pessoal da Direcção dos Serviços de Turismo de Macau até à data da sua aposentação voluntária que ocorreu em 1 de Setembro de 2000, detendo, na altura, a categoria de "técnico superior assessor" do 3.º escalão;
   B) No período de Março de 1992 a 31 de Agosto de 2000, exerceu, em comissão de serviço, o cargo de Administrador da Universidade;
   C) A seu pedido e por despacho do então Encarregado do Governo de Macau datado de 30 de Outubro de 1995, foi-lhe reconhecido o direito de aposentação com transferência da responsabilidade pelo pagamento da sua pensão para a Caixa Geral de Aposentações, em Portugal, passando, a partir daí, a processar-se os descontos para tal efeito com referência ao índice 1000, com base no qual era calculado o seu vencimento do atrás referido cargo;
   D) Em 28 de Maio de 1998, requereu o ora recorrente a revogação do assim decidido, pedindo fosse "autorizado a aposentar-se em Macau e a receber a sua pensão por conta do Fundo de Pensões de Macau",
   E) Por despacho do então Governador de Macau de 24 de Março de 1999, foi a sua pretensão deferida, passando-se, desde então, a processar os seus descontos com referência ao índice 650, reembolsando-se o mesmo da diferença resultante dos anteriores descontos efectuados com referência ao índice l000;
   F) Em 29 de Maio de 2000, alegando ter completado 38 anos de serviço efectivo, requereu a sua aposentação com efeitos a partir de 1 de Setembro do mesmo ano;
   G) Por despacho do Exmº Secretário para a Economia e Finanças de 24 de Novembro de 2000 e publicado do B.O.R.A.E.M. n.° 49, de 6 de Dezembro de 2000, foi-lhe autorizada a requerida aposentação, com início em 1 de Setembro de 2000 e com uma pensão mensal correspondente ao índice 650, (com base no qual se calcula o vencimento de um trabalhador da função pública com a categoria de "técnico superior assessor" do 3º escalão).
  Este é o acto recorrido.
  
   III – O Direito
   
   1. Delimitação do objecto do recurso
  O recorrente, no recurso contencioso, imputou ao acto administrativo vários vícios.
  A entidade recorrida, na contestação, suscitou a questão de à maior parte dos vícios invocados pelo recorrente caber a sanção de anulabilidade, pelo que, tendo o recurso contencioso sido interposto cerca de 4 anos após a publicação da prática do acto, ter caducado o direito de recorrer, com excepção do único vício gerador de nulidade, o da ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental, a que poderia caber a sanção da nulidade. Isto porque o recorrente havia suscitado a violação dos princípios dos direitos adquiridos e dos interesses legalmente protegidos face à alegada revogação de um acto administrativo constitutivo de direitos por parte do acto recorrido.
  O acórdão recorrido após ter afirmado que o vício de violação do art. 265.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (ETAPM) seria gerador de anulabilidade, pelo que estaria sanado, passou a conhecer do fundo da causa quanto à imputação de violação dos princípios dos direitos adquiridos e dos interesses legalmente protegidos, incluindo uma alegada violação do direito fundamental à pensão, sem se pronunciar expressamente se a tais vícios caberia a sanção da nulidade.
  Ora, tendo em conta que o direito de recurso de actos anuláveis caduca no prazo de 30 dias quando o recorrente resida em Macau [art. 25.º, n.º 2, alínea a)] e só o recurso de actos nulos ou inexistentes pode ser interposto a todo o tempo (n.º 1 do art. 25.º do mesmo diploma legal), e sendo certo que o recorrente só veio interpor recurso contencioso cerca de 4 anos após a data da prática do acto administrativo recorrido, a primeira questão a apreciar, para efeitos de decidir da tempestividade do recurso contencioso, é a de saber se à alegada revogação de um acto administrativo constitutivo de direitos por parte do acto recorrido, cabe a sanção da nulidade.
  Isto porque, como já decidimos no Acórdão de 27 de Novembro de 2002, no Processo n.º 13/2002, no recurso de decisões do Tribunal de Segunda Instância, pode o Tribunal de Última Instância conhecer de excepções ou questões prévias de conhecimento oficioso – como a falta de pressuposto processual do recurso contencioso - e não decididas com trânsito em julgado1.
  Por outro lado, não conheceremos da questão de saber se aos vícios de violação de lei, do art. 265.º do ETAPM, cabe a sanção da anulabilidade porque o recorrente não impugnou o acórdão recorrido na parte em que este decidiu neste sentido e não conheceu do recurso.
  
  2. A revogação de actos administrativos
  O recorrente está equivocado em duas questões, qualquer delas inviabilizando que se conheça do fundo da causa, nesta parte.
  Primeira, o acto recorrido não revogou nenhum acto administrativo.
  Segunda, e ainda que assim não fosse, à revogação de um acto administrativo constitutivo de direitos, não cabe a sanção da nulidade, mas a da anulabilidade.
  Quanto à primeira questão.
  Ensinava MARCELLO CAETANO2 que a revogação de acto administrativo é o acto administrativo que tem por objecto destruir ou fazer cessar os efeitos de outro acto administrativo anterior praticado pelo mesmo órgão ou por um seu delegado ou subalterno.
  Como resulta do disposto nos arts. 127.º, 129.º e 131.º, entre outros, do Código do Procedimento Administrativo vigente (CPA) (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 57/99/M, de 11 de Outubro), bem como do Código anterior – arts. 119.º, 121.º e 122.º (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 35/94/M, de 18 de Julho), no nosso Direito, a revogação (i) tanto abrange as situações em que o acto é extinto por iniciativa da Administração (revogação oficiosa), como aquelas em que tem lugar por requerimento dos interessados, e (ii) quer o acto anterior revogado seja válido, mas inconveniente ou inoportuno (revogação abrogatória ou extintiva), quer o acto revogado seja inválido (revogação anulatória).3
  A revogação é, por natureza, um acto secundário, ou um acto sobre acto, já que “os seus efeitos jurídicos recaem sobre um acto anteriormente praticado, não se concebendo a sua existência desligada desse acto preexistente”.4
  Apreciemos, então, a situação dos autos.
  Por acto praticado em 30 de Outubro de 1995 foi fixada a pensão do recorrente, com referência ao índice 1000, com transferência da responsabilidade pelo pagamento para a Caixa Geral de Aposentações (Portugal), embora continuasse a exercer funções públicas em Macau.
  Em 1998, o recorrente requereu a revogação de acto, por pretender no futuro vir a aposentar-se e a receber a sua pensão por conta do Fundo de Pensões de Macau, em vez da Caixa Geral de Aposentações.
  Por despacho proferido em 24 de Março de 1999, foi a sua pretensão deferida e foi expressamente revogado o acto de 1995, passando o recorrente a ver efectuados descontos para a aposentação, com base no índice 650, sendo-lhe devolvidos as diferenças dos descontos feitos com base no índice 1000.
  Em 2000, o recorrente requereu a sua aposentação e, pelo acto recorrido, de 24 de Novembro de 2000, foi autorizada a aposentação, com início em 1 de Setembro de 2000, fixando-se a pensão mensal correspondente ao índice 650.
  Pois bem, é evidente que o acto recorrido não revogou nenhum acto anterior. O acto revogatório foi o despacho de 24 de Março de 1999, que revogou, a pedido do recorrente, o despacho de 30 de Outubro de 1995.
  Com o despacho de 24 de Março de 1999 desapareceu do mundo do Direito o acto de 1995, que autorizara a aposentação do recorrente, pelo índice 1000. O recorrente continuou a exercer funções públicas e deixou de ter existência o acto de 1995. Ou seja, quando foi praticado o acto recorrido não tinha existência jurídica nenhum acto administrativo que se referisse à aposentação do recorrente.
  Quando, a seu pedido, o recorrente foi autorizado a aposentar-se, com responsabilidades a cargo do Fundo de Pensões de Macau, pelo despacho recorrido, de 24 de Novembro de 2000, foi-lhe fixada, ex novo, a pensão mensal correspondente ao índice 650.
  Este acto recorrido foi um acto primário e não um acto secundário, porque antes dele já não existia nada.
  Portanto, o acto recorrido não foi um acto revogatório – e mal se percebe que alguém possa defender esta tese - pois não revogou o acto que fixara a pensão pelo índice 1000, a ser paga por Portugal. Quem revogou este acto de 1995 foi o despacho de 24 de Março de 1999, emitido a pedido do recorrente e satisfazendo integralmente as suas pretensões.
  Em conclusão, o acto recorrido não revogou nenhum acto administrativo, constitutivo ou não de direitos. Logo, não houve violação dos princípios dos direitos adquiridos e dos interesses legalmente protegidos, que o recorrente imputara ao acto recorrido, a título de acto revogatório. Deste modo, aos hipotéticos vícios do acto recorrido não cabe a sanção da nulidade, mas meramente a da anulabilidade, com o que foi claramente intempestivo o recurso contencioso.
  
  3. Revogação de acto administrativo. Anulabilidade
  Mas ainda que o acto recorrido tivesse sido revogatório do que fixara a pensão com base no índice 1000 - e não foi - à revogação de um acto administrativo constitutivo de direitos, não cabe a sanção da nulidade, mas a da anulabilidade.
  É que ao pretenso acto revogatório não falta nenhum dos seus elementos essenciais, nem a lei comina expressamente esta forma de invalidade para o caso, nem se trata de acto afectado por qualquer dos vícios previstos no n.º 2 do art. 122.º do CPA.
  Também por este motivo, o acto recorrido não poderia ser nulo e, portanto, não havia que dele conhecer dada a manifesta intempestividade do recurso.
  
  4. Direito à aposentação. Direitos fundamentais
  São nulos “Os actos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental” [alínea d) do n.º 2 do art. 122.º do CPA].
  No âmbito jurídico da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) não está, ainda, estudado, em pormenor, o alcance do conceito direitos fundamentais.
  LINO RIBEIRO e J. CÂNDIDO DE PINHO5 a propósito da interpretação daquela alínea d) do n.º 2 do art. 122.º do CPA, defendem que os direitos fundamentais são os previstos na Lei Básica, mas não esclarecem se se estão a referir aos direitos previstos no Capítulo III (a todos?) ou também a outros direitos, previstos noutros locais da Lei Básica.
  Não é este o local para dilucidar a questão em termos gerais, certo que só nos interessa saber se o direito à aposentação e à pensão de aposentação pode ser considerado um direito fundamental, para efeitos da referida alínea d) do n.º 2 do art. 122.º do CPA.
  É sabido que a origem moderna dos direitos fundamentais entronca em dois contributos principais: 6
  i) A origem anglo-saxónica, na garantia constitucional de certos direitos ou liberdades perante os poderes públicos (Magna Charta de 1215, Petition of Right, em 1628, na Abolition of Star Chamber, de 1641, no Habeas Corpus Act, de 1679 e no Bill of Rights, de 1689), que seriam a origem dos direitos dos homens das Declarações de Direitos dos Estados americanos (Virgínia, Pensilvânia e Maryland), de 1776 e da Constituição federal, de 1787 e os seus primeiros nove aditamentos;
  ii) A origem francesa, da Revolução Francesa, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789.
  Com a II Guerra Mundial ganhou novo fôlego a consciência da necessidade de criar, na comunidade internacional, mecanismos jurídicos protectores dos direitos fundamentais dos cidadãos nos diversos Estados.
  Foram, então, elaborados, entre outros, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948, e os Pactos Internacionais sobre Direitos Civis e Políticos e sobre Direitos Económicos, Sociais e Culturais, em 1966.
  E o movimento prosseguiu a outros níveis, o dos Estados Americanos, com a Convenção Americana dos Direitos do Homem, assinada em 1969, em S. José da Costa Rica e na Europa, ao nível do Conselho da Europa, com a Convenção Europeia para Salvaguarda dos Direitos do Homem, de 1950, com os seus Protocolos Adicionais e completada pela Carta Social Europeia, de 1961.
  Há, ainda, que considerar que a Constituição da República Popular da China, de 1982, contém um Capítulo intitulado Os direitos e deveres fundamentais dos cidadãos (arts. 33.º a 56.º), estabelecendo um conjunto de direitos inerentes ao homem, determinados direitos políticos, bem como garantias dos cidadãos perante os poderes públicos e ainda direitos económicos, sociais e culturais.
  
  5. A Lei Básica da RAEM não define o conceito de direitos fundamentais.
  No seu art. 4.º - integrado no Capítulo I, epigrafado Princípios gerais – estatui-se que “A Região Administrativa Especial de Macau assegura, nos termos da lei, os direitos e liberdades dos residentes da Região Administrativa Especial de Macau e de outras pessoas na Região”.
  Por seu turno, no art. 11.º, 1.º parágrafo, integrado no mesmo Capítulo da Lei Básica, dispõe-se que “De acordo com o artigo 31.º da Constituição da República Popular da China, os sistemas e políticas aplicados na Região Administrativa Especial de Macau, incluindo os sistemas social e económico, o sistema de garantia dos direitos e liberdades fundamentais dos seus residentes, os sistemas executivo, legislativo e judicial, bem como as políticas com eles relacionadas, baseiam-se nas disposições desta Lei”.
  A Lei Básica contém um Capítulo III denominado Direitos e deveres fundamentais dos residentes, composto pelos arts. 24.º a 44.º.
  Aí se prevêem e garantem vários direitos, desde a igualdade dos residentes perante a lei (art. 25.º), a liberdade de expressão, de imprensa, de edição, de associação, de reunião, de desfile e de manifestação, bem como do direito e liberdade de organizar e participar em associações sindicais e em greves (art. 27.º), a liberdade pessoal, não ser sujeito a captura, detenção e prisão arbitrárias ou ilegais, direito ao pedido de habeas corpus, em virtude de detenção ou prisão arbitrárias ou ilegais, a proibição de revistas ilegais, bem como a privação ou a restrição ilegais da liberdade pessoal dos residentes, não ser submetido a tortura ou a tratos desumanos (art. 28.º), não poder ser punido criminalmente senão em virtude de lei em vigor que, no momento da correspondente conduta, declare expressamente criminosa e punível a sua acção, presumir-se inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação pelo tribunal, em processo crime (art. 29.º), o direito à reserva da intimidade da vida privada (art. 30.º), a inviolabilidade do domicílio (art. 31.º), a liberdade de deslocação dentro de e para fora de Macau (art. 33.º), a liberdade religiosa (art. 34.º), o direito de acesso ao direito e aos tribunais (art. 36.º), a liberdade de educação, investigação e criação artística (art. 37.º), a continuação da aplicação do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (art. 40.º), etc.
  Mas, como é sabido, fora do mencionado Capítulo III, a Lei Básica consagra outros direitos a algumas categorias de pessoas, embora não os qualifique como direitos fundamentais, como faz naquele Capítulo. É o caso do art. 98.º que assegura aos funcionários e agentes públicos a manutenção dos “seus vínculos funcionais e continuar a trabalhar com vencimento, subsídios e benefícios não inferiores aos anteriores...”, como também o direito à manutenção dos contratos de concessão de terras anteriormente celebrados ao estabelecimento da Região (art. 120.º), a liberdade de escolha dos estabelecimentos de ensino por parte dos estudantes (art. 122.º), o direito de as organizações religiosas adquirirem, usarem, disporem e herdarem património e de aceitarem doações (art. 128.º), etc..
  
  6. Neste contexto, afigura-se que, pelo menos, os direitos e liberdades consagrados no Capítulo III da Lei Básica - e como tal expressamente qualificados como fundamentais - e aqueles que os complementem, previstos noutros locais da Lei Básica,7 devem ser considerados direitos fundamentais, para os efeitos previstos na alínea d) do n.º 2 do art. 122.º do CPA.
  Na verdade, apresentando a Lei Básica um catálogo de direitos, liberdades e garantias, que denomina de direitos fundamentais dos residentes, não pode sofrer dúvida de que seja a estes, pelo menos, que o CPA se refira quando fulmine com a nulidade a ofensa do conteúdo essencial dos direitos.
  Resta, agora, apurar o que significa a ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental.
  Afigura-se-nos que só são sancionados com a nulidade os actos que afectem decisivamente, de maneira desproporcionada, um direito fundamental. Quando assim não suceda, a sanção é a anulabilidade.
Assim, os actos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental, sancionados com nulidade pela alínea d) do n.º 2 do art. 122.º do CPA, são aqueles actos que afectem decisivamente, de maneira desproporcionada, o núcleo essencial de um direito fundamental.
  
  7. Dispõe o art. 39.º da Lei Básica que “Os residentes de Macau gozam do direito a benefícios sociais nos termos da lei. O bem-estar e a garantia de aposentação dos trabalhadores são legalmente protegidos”.
  E, no art. 98.º, 2.º parágrafo, estatui que “Aos funcionários e agentes públicos, que mantenham os seus vínculos funcionais e gozem, conforme a lei anteriormente vigente em Macau, do direito às pensões de aposentação e de sobrevivência e que se aposentem depois do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau, ou aos seus familiares, a Região Administrativa Especial de Macau paga as devidas pensões de aposentação e de sobrevivência em condições não menos favoráveis do que as anteriores, independentemente da sua nacionalidade e do seu local de residência”.
  Não é sustentável a interpretação do art. 39.º no sentido que a Lei Básica garanta a aposentação de todos os trabalhadores de Macau, designadamente, dos da Administração Pública, mas admite-se a interpretação de que, nos casos em que a lei preveja o direito à aposentação e a fixação da correspondente pensão, a extinção do direito já adquirido à aposentação por acto administrativo e a supressão da correspondente pensão, por meio de acto legislativo viole o citado preceito da Lei Básica.
  Como também parece certo que, se um acto administrativo revogar ilegalmente - isto é, violando a lei que estabelece os termos da revogação de actos constitutivos de direitos - acto atributivo de pensão de aposentação, constitui um acto ofensivo do conteúdo essencial de um direito fundamental. E, portanto, nulo.
  Ora, o acto recorrido autorizou a aposentação do recorrente e fixou a respectiva pensão com base no índice 650, pelo que não praticou nenhum acto ofensivo do seu direito à aposentação. Não suprimiu o conteúdo essencial do seu direito. Eventualmente, pode ter afectado o seu direito à fixação da pensão em determinado montante. Mas, neste caso, não estamos no campo da previsão da sanção da nulidade.
  Claro que o recorrente pode estar (e pode não estar) cheio de razão, no sentido de que deveria ter sido aposentado com base no índice 1000 e não com base no 650. Mas para que o Tribunal pudesse apreciar esta questão era necessário que tivesse recorrido ao Tribunal nos 30 dias seguintes à publicação do acto, pois ao vício de violação de lei corresponde a sanção da anulabilidade. Tendo-o feito cerca de 4 anos depois, impede tal apreciação.
  Não merece censura, pois, o acórdão recorrido.
  
  IV - Decisão
  Face ao expendido:
  a) Rejeitam o recurso contencioso por intempestividade, na parte relativa à violação dos princípios dos direitos adquiridos e dos interesses legalmente protegidos, face à alegada revogação de um acto administrativo constitutivo de direitos, por parte do acto recorrido;
  b) Negam provimento ao recurso jurisdicional, na parte relativa à alegada violação do conteúdo essencial do direito à aposentação e à pensão de aposentação.
  Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 8 UC.
  
  Macau, 16 de Novembro de 2005.
  
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin

Fui presente:
Song Man Lei
1 Publicado em Acórdãos do Tribunal de Última Instância da R.A.E.M., 2002, p. 387.
2 MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, I, 10ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 1980, p. 531. Substancialmente, no mesmo sentido, FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Almedina, Coimbra, Vol. II, 2001, p. 426 e segs.
3 MARIO AROSO DE ALMEIDA, Anulação de Actos Administrativos e Relações Jurídicas Emergentes, Almedina, Coimbra, 2002, p. 244.
4 FREITAS DO AMARAL, obra e volume citados, p. 427.
5 LINO RIBEIRO e J. CÂNDIDO DE PINHO, Código do Procedimento Administrativo de Macau Anotado e Comentado, Macau, 1998, p. 712.
6 Sobre esta matéria, cfr. J. C. VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Almedina, Coimbra, 2.ª ed., 2001, p. 18 e segs.
  7 Como é caso da liberdade de escolha dos estabelecimentos de ensino por parte dos estudantes (art. 122.º), que complementa claramente a liberdade de educação, investigação e criação artística (art. 37.º) ou o direito de as organizações religiosas adquirirem, usarem, disporem e herdarem património e de aceitarem doações (art. 128.º), que é instrumental do direito à liberdade religiosa, à liberdade de pregar e de promover actividades religiosas (art. 34.º).
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Processo n.º 22/2005