打印全文

Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau




Recurso de decisão jurisdicional em matéria administrativa
N.° 16 / 2005

Recorrente: A
Recorrido: Chefe do Executivo da RAEM






1. Relatório
   O ora recorrente interpôs recurso contencioso do acto do Chefe do Executivo de 8 de Julho de 2004 que indeferiu o seu pedido de subsídio de protecção às vítimas de crimes violentos.
   Por acórdão de 17 de Março de 2005 do processo n.° 227/2004, o Tribunal de Segunda Instância negou provimento ao referido recurso contencioso.
   Vem agora o recorrente apresentar o presente recurso jurisdicional perante o Tribunal de Última Instância, formulando as seguintes conclusões das alegações:
   “1. A perturbação considerável do nível de vida não se reduz à modificação substancial dos danos materiais emergentes;
   2. O direito a indemnização por danos não patrimoniais são os que resultam da ofensa de interesses insusceptíveis de avaliação pecuniária:
   - Os danos morais são “prejuízos que não atingem em si o património, não o fazendo diminuir, nem frustrando o seu acréscimo. O Património não é afectado: nem passa a valer menos nem deixa de valer mais”.
   3. “In casu”, porque de danos morais se trata, o nível de vida já não pode ser aferido em termos economistas, entre aquilo que se possuía e o que se deixou de possuir, para ser aferido em termos de qualidade de vida, que antes tinha e que deixou de ter depois do crime;
   4. Os danos morais, para além da sua natureza e gravidade, para merecerem a tutela do direito positivo têm de ter perturbado o nível de vida da vítima, no sentido não só da sua qualidade de vida, mas que compensando-se a sua dor, não se está a eliminar o dano;
   5. Assim, o douto acórdão recorrido interpretou a al. c) do n.º 1 do art.º 1.º da lei em mérito como se estivessem em causa danos patrimoniais.
   6. Os factos, demonstráveis do direito à indemnização, encontram-se plasmados nos documentos constantes dos autos, devidamente alegados e verificáveis ou constatáveis pelo recurso às regras da experiência humana.
   7. O douto acórdão recorrido fez incorrecta interpretação e aplicação do art.º 1.º, n.º 1, al. c) da lei n.º 6/98/M de 17/08, militando no vício de violação de Lei.”
   Pedindo o provimento do presente recurso, com a revogação do acórdão recorrido e a anulação do acto praticado pela Administração.
   
   O recorrido, nas suas alegações, formulou as seguintes conclusões:
   “1. Por acórdão de 17 de Março de 2005, no qual rejeitou, desde logo, o pedido de intimação da Administração, o Tribunal de Segunda Instância conheceu sucessivamente de todas as questões suscitadas pelo recorrente e negou provimento ao recurso contencioso, com argumentos e fundamentos a que a entidade recorrida adere integralmente;
   2. No presente recurso jurisdicional, o recorrente insiste na defesa do mérito da sua pretensão mas o certo é que não formula críticas nem pede a reapreciação da decisão recorrida, sobretudo na parte em que constatou a não ocorrência do vício de “violação da lei” assacado ao acto administrativo;
   3. Pelo contrário, as próprias teses expostas no recurso jurisdicional pelo recorrente permitem comprovar o seu acordo, tácito, acerca da não ocorrência do vício de “violação de lei” que assacara ao acto administrativo no recurso contencioso;
   4. No entendimento para que então se inclinava, o recorrente defendia que ao requisito da “perturbação do nível de vida” estatuído na al. c) do n.º 1 do art.º 1.º, da Lei n.º 6/98/M, de 17 de Agosto, não pode ser dado o sentido de “perturbação considerável da situação económico-financeira”; por lhe ter dado este sentido, o acto administrativo incorria em vício de violação de lei, isto é, violava o disposto naquela al. c) do n.º 1 do art.º 1.º, da referida Lei;
   5. Agora, o recorrente vem defender uma outra tese: o requisito do nível de vida consagrado na al. c) do n.º 1 do art.º 1.º, deve ser substituído ou eliminado, em virtude de uma adaptação imposta pelo n.º 5 do mesmo artigo;
   6. Simplesmente, o recorrente só pode colocar as hipóteses de substituição ou eliminação do requisito legal consagrado na al. c) do n.º 1, na sequência de ter passado a admitir que à expressão “perturbação considerável do nível de vida” se pode imputar o sentido de perturbação considerável da situação económica-financeira, sem que esta interpretação viole a al. c) do n.º 1 do art.º 1.º, da Lei n.º 6/98/M, de 17 de Agosto;
   7. É precisamente por admitir a normalidade dessa interpretação, vale dizer a normalidade da interpretação seguida no acto administrativo, que o recorrente invoca agora outra disposição legal para afastar (por substituição ou por eliminação) aquele requisito consagrado na al. c), relativo à situação económico-financeira do interessado;
   8. Neste contexto, em que o próprio recorrente admite, expressa e tacitamente, a não ocorrência dos vícios que assacou ao acto administrativo no recurso contencioso, faltam, de todo em todo, razões justificativas para a revogação de um acórdão que se mostra bem fundamentado na apreciação que fez de todas as questões levantadas e que, por constatar a não ocorrência daqueles vícios, julgou improcedente o recurso contencioso;
   9. Acresce, por outro lado, que a única questão levantada neste recurso jurisdicional é questão nova;
   10. Efectivamente, o requerente insurge-se contra o acórdão do Tribunal de Segunda Instância e termina pedindo a sua revogação com o pretexto de que a decisão recorrida não procedeu à adaptação – isto é, substituição ou eliminação – do requisito consagrado na al. c) do n.º 1; adaptação que, alega o recorrente, será imposta pelo n.º 5 do art.º 1.º da Lei em causa;
   11. Todavia, nunca antes, em passo algum do recurso contencioso, o recorrente mencionou um imperativo de adaptação do texto legal da al. c) do n.º 1, por força de outra disposição legal; tão pouco deu qualquer notícia acerca das teses agora expostas sobre a substituição ou a eliminação do requisito da “perturbação considerável do nível de vida”;
   12. Donde, não tendo o recorrente suscitado esta questão no recurso contencioso, a mesma também não deve ser apreciada no presente recurso jurisdicional.”
   Pedindo que seja declarado improcedente o recurso jurisdicional com a manutenção do acórdão recorrido.
   
   A Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de Última Instância emitiu o seguinte parecer:
   “No presente recurso, o recorrido levantou, na sua alegação, uma questão que pode impedir o tribunal de conhecer o recurso, considerando que o recorrente apresentou uma nova questão, a qual, não pertence ao âmbito de conhecimento oficioso do Tribunal, pelo que, o Tribunal de Última Instância não deve conhecê-lo, mas sim, deve julgá-lo improcedente.
   Parece que o ponto de vista do recorrente acima referido não é completamente irrazoável.
   Como se sabe, no recurso interposto ao Tribunal de Última Instância, se o recorrente tiver interposto uma questão nova que não deve ser conhecido oficiosamente pelo tribunal, então, o tribunal não pode conhecer a questão em causa, pois o objectivo do recurso contencioso não reside na resolução da matéria nova que nunca foi discutida, e o âmbito do conhecimento limite-se ao teor do recurso apresentado ao Tribunal de Segunda Instância, com excepção da matéria que o tribunal deve conhecer oficiosamente.
   Então, no presente recurso, o que enfrentamos é exactamente uma “questão nova” ?
   No recurso interposto ao Tribunal de Segunda Instância, o recorrente alega que a decisão de indeferir o requerimento de concessão de subsídio proferida pela Administração viola o artigo 1.º, n.º 1, alínea c) da Lei n.º 6/98/M, visto que o recorrente considera que os factos alegados por si respeitam completamente às disposições em causa. Todavia, a Administração considera que, nos autos, não se encontram informações ou documentos que demonstrem ter o prejuízo provocado uma perturbação considerável do nível de vida da vítima ou das pessoas com direito a alimentos, indeferindo o seu requerimento com base na falta das condições exigidas pela lei acima referida.
   Na alegação apresentada ao Tribunal de Última Instância, o recorrente expressou o seu entendimento sobre os dispostos do artigo 1.º, n.º 5 e n.º 1, alínea c) da Lei n.º 6/98/M com base nos pressupostos do requerimento do subsídio pelos danos não patrimoniais, chegando à conclusão de que a decisão recorrida não aplicou as disposições do mesmo artigo n.º 1 a 4, nomeadamente o n.º 1, alínea c), com as devidas adaptações nos termos do n.º 5, nem levou em conta que o caso refere-se aos danos não patrimoniais.
   Das letras, tanto no recurso interposto ao Tribunal de Segunda Instância, como no Tribunal de Última Instância, o que o recorrente alegou foi a violação do artigo 1.º, n.º 1, alínea c) da Lei n.º 6/98/M, entretanto, tendo analisado pormenorizadamente o modo de apresentação das questões do recorrente e o teor das suas alegações, não é difícil verificar que o recorrente já alterou ocultamente a fundamentação do recurso: no início, sustentava que o seu requerimento corresponde aos dispostos dos artigos acima referidos, e agora, passou a colocar o ponto de gravidade da discussão na aplicação dos respectivos dispostos do artigo 1.º, n.º 5 da mesma lei. Podemos afirmar que, no presente recurso, o recorrente critica o Tribunal de Segunda Instância, dizendo que, ao apreciar se o requerimento do apoio do recorrente satisfaz as condições, o referido Tribunal não aplicou as devidas adaptações nos termos da lei, de forma que, na realidade, o recorrente quer dizer que o Tribunal viola os dispostos no artigo 1.º, n.º 5. Quanto ao n.º 1, alínea c), trata-se apenas de uma questão necessária provocada indirectamente e solidariamente.
   É óbvio que, em relação à interpretação e à aplicação do artigo 1.º, n.º 5 da Lei n.º 6/98/M, o recorrente não mencionou-os directamente no recurso interposto ao Tribunal de Segunda Instância. É verdade que o recorrente apresentou o seu requerimento de apoio com base nos danos não patrimoniais, mas a matéria não tinha sido apresentada no recurso interposto para ser discutido, pois só foi apresentada pela primeira vez, no presente recurso, pelo recorrente para ser conhecido.
   
   Todavia, não concordamos sem reserva com a opinião do recorrente, principalmente porque consideramos que o requerimento do recorrente foi apresentado com base nas lesões não patrimoniais sofridas, por isso, está necessariamente ligado aos respectivos dispostos no artigo 1.º, n.º 5 da Lei n.º 6/98/M e, este artigo tem uma relação íntima com o n.º 1, alínea c). Ao rigor, é difícil distinguir as duas situações e consideram-nas como duas questões.
   Foi exactamente por causa disso que o Tribunal de Segunda Instância efectuou, na sentença recorrida, uma analise plena dos dispostos no artigo 1.º da Lei n.º 6/98/M, nisto o Tribunal tem a seguinte posição : embora o artigo 1.º, n.º 5 estenda o subsídio às vítimas de crimes violentos aos danos não patrimoniais, o legislador exige que os danos não patrimoniais, pela sua natureza e gravidade, mereçam a mesma tutela que os danos mencionados no n.º 1, pelo que, não se pode ignorar os requisitos previstos na alínea c) do n.º 1 e, o nível da vida das vítimas deve ser perturbado consideravelmente pelos danos, e, quanto à sua natureza, o termo “nível da vida” que aqui se refere, deve ser relacionado com o âmbito de património, mas não com o psicológico ou o espírito. Ou seja, “o nível da vida” não é igual a “qualidade da vida” e, a “perturbação considerável” refere-se a descida efectiva do nível da vida original. Portanto, o recorrente deve apresentar as respectivas matérias para comprovar o estado económico antes de crimes violentos e o padrão da vida após destes.
   Nestes termos, não podemos concluir firmemente que a matéria apresentada pelo recorrente é uma nova questão no sentido real que pode impedir o tribunal de conhecê-la.
   
   A seguir, analisamos as questões apresentadas pelo recorrente.
   Quanto ao subsídio às vítimas de crimes violentos, a lei n.º 6/98/M não exclui os danos não patrimoniais das vítimas, sempre que os danos não patrimoniais, pela sua natureza e gravidade, mereçam a mesma tutela que os danos patrimoniais. Em relação às condições de autorização do subsídio, aplica-se também, com as devidas adaptações, às condições estipuladas para os danos patrimoniais (artigo 1.º, n.º 5).
   Nos termos do artigo 1.º, n.º 1, alínea c), um dos pressupostos da concessão do subsídio às vítimas de crime violentos é : “Ter o prejuízo provocado uma perturbação considerável do nível de vida da vítima ou das pessoas com direito a alimentos”.
   O recorrente entende que, com as devidas adaptações, só pode haver duas interpretações do artigo 1.º, n.º 1, alínea c) : A primeira, como se refere apenas aos danos não patrimoniais in casu, não se pode fazer uma comparação, no ponto de vista económica, da vida antes e depois de crimes violentos com base do termo “nível de vida” referido no n.º 1, alínea c), mas sim, deve-se formar o termo “qualidade da vida” como critério. A segunda, quando se refere aos danos não patrimoniais, não se deve ponderar os requisitos previstos na alínea c), porque a disposição em causa só tem a ver com os danos patrimoniais. Neste caso, fazem o uso das “devidas adaptações”, equivale ao cancelamento deste requisito. Portanto, ao proferir a sentença recorrida, o Tribunal de Segunda Instância interpretou erradamente o artigo 1.º, n.º 1, alínea c) da Lei n.º 6/98/M.
   Não podemos concordar com a interpretação acima referida.
   Em primeiro lugar, mesmo que se refira aos danos não patrimoniais, os requisitos previstos no n.º 1, alínea c) não devem ser cancelados.
   O cancelamento deste requisito, significa que quaisquer danos não patrimoniais devem ser protegidos, desde que os danos atinjam ao determinado nível de gravidade, e devem ser compensados correspondentemente, sem considerar se os danos não patrimoniais provoque perturbação à vida da vítima. O que implica a autorização automática de concessão do subsídio às vítimas dos danos não patrimoniais, e é incompatível com o regime integral que protege as vítimas de crimes violentos e o pensamento geral de legislação.
   Como se sabe, o legislador elabore a Lei n.º 6/98/M visa fornecer, do ponto de vista do humanismo e do princípio da solidariedade social, subsídio às vítimas de crimes violentos quando os mesmos não podem ser compensados através de acesso judicial, o que se vê obviamente nos dispostos da lei acima referida (artigo 1.º, n.º 1, alínea d) e n.º 6 e artigo 15.º, n.º 1).
   Por outro lado, nem todas as vítimas de crime violentos tem o direito ao subsídio, o legislador estabeleceram uma série de condições de concessão do subsídio, sendo um dos requisitos “ter o prejuízo provocado uma perturbação considerável do nível de vida da vítima ou das pessoas com direito a alimentos”. Disso se depreende que o subsídio referido só deve ser concedido à vítima ou seus familiares quando a sua situação económica deteriora ou até está em apuros económicos.
   Mesmo que o requerente solicita o subsídio com base nos danos não patrimoniais, os requisitos previstos no artigo 1.º, n.º 1, alínea c) da Lei n.º 6/98/M continuam a ser aplicáveis.
   
   O requerente refere ainda que depois de se aplicar, com as devidas adaptações, o n.º 1, alínea c) pela sua natureza de danos não patrimoniais, este artigo deve ser entendido como “ter os danos não patrimoniais provocado uma perturbação considerável do nível de vida da vítima”.
   Comparando o conteúdo do artigo 1.º, n.º 1, alínea c) supracitado e a explicação do recorrente, entendemos que o ponto crucial da solução não reside no prejuízo ou danos patrimoniais sofridos pelo recorrente, pois em ambos os casos o legislador concede à vítima o direito ao subsídio. O ponto crucial reside em que a Administração deve fazer as apreciações e avaliações necessárias para ver se foi consideravelmente perturbado o nível de vida da vítima, a fim de decidir sobre a autorização de subsídio. Nisto, sem importar a natureza dos danos da vítima, tanto para os danos patrimoniais como para os não patrimoniais, a exigência do legislador é unânime, estabelece-se o critério comum.
   É difícil avaliar com dinheiro os danos não patrimoniais, mas isso não significa que a ferida espiritual da vítima não se reflicta no nível da vida da mesma, como por exemplo, a vítima não pode trabalhar devido à ferida espiritual, perdendo a fonte de economia, e causando uma descida significativa do nível da vida da mesma.
   “Ter provocado uma perturbação considerável do nível de vida” deve ser analisado do ponto de vista económica ou material, mesmo quando o recorrente apresenta o requerimento por causa de danos não patrimoniais, ou seja, sempre que o prejuízo tiver provocado uma perturbação considerável do modo de vida do recorrente, diminuindo os seus bens ou as suas receitas até ao nível em que as condições de viver da vítima foram reduzidas consideravelmente, deve conceder-lhe o subsídio a fim de compensá-lo. Consideramos que esta interpretação está conforme com a ideia original do legislador.
    Ao mesmo tempo, para apreciar se o nível de vida da vítima é perturbada , deve-se comparar o nível de vida da vítima antes de crimes violentos e com o nível de vida depois destes, mas não deve ponderar como seria o nível de vida da vítima se não ocorressem os crimes violentos.
   
   Pelo exposto, consideramos que a sentença recorrida não viola as respectivas disposições da lei, e deve-se julgar improcedente recurso interposto pelo recorrente.”
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 Foram dados como provados os seguintes factos pelo Tribunal de Segunda Instância:
   “– Com data de 9 de Junho de 1999, o aqui recorrente formulou pedido de subsídio ao Território de Macau, nos termos da Lei n.º 6/98/M de 17/08 (Doc. n.º 1).
   – O mesmo tinha como causa o atentado à sua vida de que fora alvo no dia 13 de Novembro de 1998, por meliantes ainda desconhecidos, na esplanada da Pastelaria, sita na [Endereço].
   – Ficou gravemente ferido, sendo a sua situação clínica extremamente crítica, ao que viria, em consequência, a ter danos físicos permanentes.
   – Pelo despacho de 24/11/99, o Governador indeferiu o pedido, estribando-se nas razões aduzidas pelas Comissão de protecção às Vítimas de Crimes Violentos.
   – Por ofício de 2/12/1999, foi o indeferimento notificado ao recorrente.
   – Em 14/12/1999, deduziu o recorrente a reclamação perante o então Governador.
   – Por despacho de 3/2/2000, o Chefe do Executivo indeferiu a reclamação, sendo como base o parecer da referida Comissão de 18/1/2000 que opinou não dever ser atendido o pedido de reclamação no sentido de revogar a decisão tomada no despacho de Sua Excelência o Encarregado do Governo do Território de Macau, de 24 de Novembro de 1999 (exarado nos presentes autos).
   – O recorrente interpôs recurso contencioso desta decisão, perante o Tribunal de Segunda Instância.
   – Por acórdão de 20 de Março de 2003, no Processo n.º 22/2000, obtendo a procedência do recurso no sentido de anulação do acto recorrido.
   – Inconformado com esta decisão judicial, o Chefe do Executivo recorreu para o Tribunal de Última Instância, onde, por sua vez obteve o provimento do recurso no sentido da revogação do acórdão recorrido, devendo o TSI conhecer das questões suscitadas pelo recorrente no contencioso.
   – Por acórdão de 5 de Fevereiro de 2004, o Tribunal de Segunda Instância pronunciou-se no mesmo processo de recurso contencioso n.º 22/2000, e concedeu provimento ao recurso contencioso interposto pela vítima e anulou o acto administrativo recorrido com o fundamento de que, em virtude de as lesões por arma de fogo sofridas pelo requerente A se tratarem de um caso de “acidente não em serviço”, a Administração actuou com erro nos pressupostos de direito, ao indeferir com fundamento no disposto no art.º 1.º n.º 6/98/M, de 17 de Agosto, o pedido de concessão de subsídio formulado pelo requerente ao abrigo desta mesma Lei.
   – O Chefe do Executivo não recorreu deste acórdão e em consequência.
   – O Chefe do Executivo, por despacho de 8 de Julho de 2004, reapreciou o pedido do recorrente e acabou por indeferir novamente o pedido.
   – A decisão do Chefe do Executivo foi tomada com base essencialmente no seguinte parecer da referida Comissão (elaborado em chinês), traduzido em português:
   “……
   A Comissão reuniu em 20 de Abril de 2004 para reapreciar o pedido formulado pelo requerente A e elaborar o presente parecer, tendo em atenção o acórdão do Tribunal de Segunda Instância supramencionado, especialmente a classificação do caso de crime violento de que a vítima tinha sido alvo como sendo “acidente não em serviço”.
   De acordo com o constante a folhas 422 e seguintes dos autos, o requerente A dirigiu em 25 de Março de 2004 ao Chefe do Executivo um pedido, solicitando que o subsídio de Esc.6.500.000$00 seja convertido em €32.421,863.
   Embora o trágico acontecimento que ocorreu ao requerente A se trate de um caso de “acidente não em serviço”, o pedido de atribuição de subsídio dependia ainda da verificação de outros requisitos previstos na Lei n.º 6/98/M, designadamente da verificação cumulativa dos requisitos previstos nas al.s a), b), c) e d) do n.º 1 do art.º 1.º da referida lei.
   No que se refere ao requisito da al. c) do n.º 1 do art.º 1.º da Lei n.º 6/98/M (“ter o prejuízo provocado uma perturbação considerável do nível de vida da vítima ou das pessoas com direito a alimentos”), não existe nos autos nenhum elemento ou documento que mostre que esse acontecimento trágico tenha provocado uma perturbação considerável do nível de vida da vítima ou das pessoas com direito a alimentos. Pelo contrário, ficou demonstrado nos autos que o requerente continuou a receber, após o acidente, $20 750,00 (vinte mil setecentas e cinquenta patacas) de remuneração mensal paga pelo então Território de Macau até ao termo do contrato além do quadro (30 de Setembro de 1999), data a partir da qual passou a ser remunerado pela Direcção Geral dos Serviços Prisionais, e a sua esposa, B, percebia em 1999, como professora, um vencimento mensal de Esc. 241725$00 (duzentos e quarenta e um mil setecentos e vinte e cinco escudos) (a fls. 168 e seguintes).
   Por outro lado, a Administração de Macau suportou também outras despesas, incluindo $108.884,80 (cento e oito mil oitocentas e oitenta e quatro patacas e oitenta avos), a título de despesas médicas e medicamentosas, e $218.504,00 (duzentas e dezoito mil quinhentas e quatro patacas), a título de despesas de transporte (a fls. 420), tudo em virtude das lesões sofridas pelo requerente, A.
   Pelos factos acima expostos e constantes dos autos, é mais do que evidente que não está reunido o requisito exigido na al. c) do n.º 1 do art.º 1.º da Lei n.º 6/98/M.
   Pelo exposto e em cumprimento do disposto no artigo 11.º da Lei n.º 6/98/M, de 17 de Agosto, propomos que seja indeferido o pedido de concessão de subsídio, uma vez que o mesmo não reúne o requisito exigido na al. c) do n.º 1 do art.º 1.º da citada Lei.
   9 de Junho de 2004.
   (Assinaturas)”
   
   
   2.2 Questão nova suscitada pelo recorrente
   O recorrido defendeu, nas suas alegações, que o recorrente suscitou uma questão nova, de direito, que consiste em apurar se o requisito legal da “perturbação considerável do nível de vida”, consagrado na al. c) do n.° 1 do art.° 1 da Lei n.° 6/98/M de 17 de Agosto, deve ser substituído por um requisito de “perturbação da qualidade de vida” ou eliminado em virtude de uma adaptação que será imposta pelo n.° 5 do mesmo artigo. Tal constitui obstáculo à pretensão do recorrente, sendo certo que tal questão não é de conhecimento oficioso.
   
   Sob o vício de violação de lei, o recorrente do recurso contencioso, que também é recorrente do presente recurso jurisdicional, sustentava que os factos alegados no seu pedido do subsídio às vítimas de crime violento por dano moral eram abrangidos na previsão da referida al. c) do n.° 1 do art.° 1 da Lei n.° 6/98/M e o sentido da expressão “perturbação do nível de vida” constante desta alínea era muito mais do que a parte económica, norma essa que foi mal interpretada e aplicada pela entidade recorrida.
   No acórdão recorrido que recai sobre o recurso contencioso, o Tribunal de Segunda Instância considera que o requisito implica o cotejo da situação económica do requerente da indemnização no momento imediatamente anterior ao da prática do crime e os seus padrões de vida depois dele e por causa dele. E uma vez que o requerente não tinha apresentado os respectivos elementos comprovativos, entende que a entidade recorrida não incorreu neste vício.
   No presente recurso jurisdicional, o recorrente pede a revogação do acórdão recorrido com fundamento de que o tribunal não tinha realizado qualquer adaptação do requisito previsto na mesma al. c) para pedido de danos não patrimoniais, tal como exigido pelo n.° 5 do art.° 1.° da Lei n.° 6/98/M, apresentando agora duas interpretações possíveis resultadas da adaptação: ou o nível de vida que foi perturbado consideravelmente refere à qualidade de vida, ou este requisito deve ser eliminado por este relacionar apenas com os danos patrimoniais.
   
   A questão que o recorrente suscita agora não é nova, pois se trata ainda da discussão sobre o sentido do al. c) do n.° 1 do art.° 1.° da Lei n.° 6/98/M, embora o entendimento do recorrente no presente recurso seja algo diferente do que sustentado no recurso contencioso.
   No fundo, o recorrente limita-se, neste recurso, a rebater os argumentos utilizados pelo Tribunal de Segunda Instância para negar o provimento ao vício de violação de lei por ele suscitado no recurso contencioso, continuando a alegar que “o nível de vida” deve ser entendido como qualidade de vida para os danos não patrimoniais, acrescentando uma nova perspectiva de que o requisito até pode ser não aplicável no caso de pedido por danos não patrimoniais, tudo à volta da interpretação a ser dada à al. c) do n.° 1 do art.° 1.° da Lei n.° 6/98/M.
   Assim, deve-se proceder à apreciação da questão levantada pelo recorrente.
   
   
   2.3 Interpretação e aplicação da al. c) do n.° 1 do art.° 1.° da Lei n.° 6/98/M no caso de pedido do subsídio por danos não patrimoniais
   O recorrente apresentou um pedido de subsídio às vítimas de crimes violentos por danos não patrimoniais em consequência do atentado com arma de fogo contra ele praticado.
   Antes de mais nada, é necessário atender ao teor no art.° 1.° da Lei n.° 6/98/M que rege as condições de concessão do subsídio em causa:
   “1. As vítimas de lesões corporais graves resultantes directamente de actos intencionais de violência praticados em Macau ou a bordo de navios ou aeronaves matriculados em Macau, bem como, no caso de morte, as pessoas a quem a lei civil conceda direito a alimentos, podem requerer ao Território a concessão de um subsídio, ainda que não se tenham constituído ou não possam constituir-se assistentes no processo penal, verificados os seguintes requisitos:
   a) As vítimas encontrarem-se legalmente no Território ou a bordo do navio ou aeronave;
   b) Da lesão ter resultado a morte, uma incapacidade permanente ou uma incapacidade temporária e absoluta para o trabalho de pelo menos 30 dias;
   c) Ter o prejuízo provocado uma perturbação considerável do nível de vida da vítima ou das pessoas com direito a alimentos; e
   d) Não terem obtido efectiva reparação do dano em execução de sentença condenatória relativa a pedido deduzido nos termos dos artigos 60.º a 74.º do Código de Processo Penal ou se for razoavelmente de prever que o delinquente e responsáveis civis não repararão o dano, sem que seja possível obter de outra fonte uma reparação efectiva e suficiente.
   2. O direito ao subsídio mantém-se mesmo que não seja conhecida a identidade do autor dos actos intencionais de violência ou por outra razão ele não possa ser acusado ou condenado.
   3. Podem igualmente requerer um subsídio as pessoas que voluntariamente tenham auxiliado a vítima ou colaborado com as autoridades na prevenção da infracção ou na perseguição ou detenção do delinquente, verificados os requisitos constantes das alíneas a) a d) do n.º 1.
   4. A concessão do subsídio às pessoas referidas no número anterior não depende da concessão de subsídio às vítimas de lesão.
   5. O disposto nos números anteriores aplica-se, com as devidas adaptações, aos danos não patrimoniais que, pela sua natureza e gravidade, mereçam a mesma tutela que os danos mencionados no n.º 1.
   6. Não haverá lugar à aplicação do disposto na presente lei quando o dano for causado por um veículo terrestre a motor, bem como se forem aplicáveis as regras sobre acidentes de trabalho ou em serviço.”
   
   Há até interesse em recordar o que constava da exposição de motivos da Lei de Protecção às Vítimas de Crimes Violentos aqui em discussão:
   “A criminalidade é um fenómeno indissociável das sociedades modernas, atingindo por vezes níveis de violência que geram situações de total desprotecção, não só das vítimas directas, como também das suas famílias. Justifica-se, assim, e urge mesmo uma intervenção social do Território em seu apoio, não com base em qualquer teoria de responsabilização da autoridade pelos efeitos nocivos dessa criminalidade, mas, antes, num princípio de solidariedade social ...”
   O subsídio às vítimas de crimes violentos previsto na Lei n.° 6/98/M, em vez de ser uma compensação ou indemnização por danos provocados por actos criminosos violentos, constitui uma manifestação de solidariedade social prestada através da RAEM, embora esta não seja a responsável pelos danos causados. De facto, o subsídio tem como limite máximo o montante correspondente a cinco vezes do valor do índice 1000 da tabela indiciária da função pública e será tomada em conta toda a importância recebida de outra fonte (art.° 2.° da Lei n.° 6/98/M). E a conduta e as situações da vítima, tais como as suas relações com o autor do crime ou a sua ligação ao crime organizado, pode levar à redução ou até exclusão do subsídio (art.° 3.° da mesma Lei).
   E o diploma visa sobretudo as situações em que a vítima ou, no caso de morte desta, as pessoas com direito a alimentos ficam numa situação de elevado grau de desprotecção. Assim, a lei exige especialmente, nas al.s b) a c) do n.° 1 do art.° 1.°, que se verificam a morte da vítima, incapacidade permanente ou temporária e absoluta para o trabalho de pelo menos 30 dias, a perturbação considerável do nível de vida e a impossibilidade de obter reparação do dano por parte do delinquente e responsáveis civis.
   O n.° 5 do referido art.° 1.° permite expressamente que os danos não patrimoniais podem ser fundamento do pedido de subsídio, atendendo à sua natureza e gravidade, quando mereçam a mesma tutela dos danos patrimoniais. Para este caso, o disposto nos n.°s 1 a 4 do mesmo artigo é aplicável com as devidas adaptações.
   Uma das alternativas propostas pelo recorrente consiste na eliminação do requisito constante da al. c) do n.° 1 por se reportar apenas a danos patrimoniais.
   Não parece esta a interpretação mais razoável da al. c) face aos danos não patrimoniais. A condição de perturbação considerável do nível de vida da vítima provocada pelo prejuízo prevista na al. c) é fundamental, senão a mais importante, para a concessão do subsídio e que caracteriza todo o seu regime. É com este requisito que se pretende que o subsídio seja atribuído a interessados em situação de maior necessidade e desprotecção e de que os prejuízos reflectem significativamente na vida da vítima.
   É compreensível a sua previsão para os prejuízos patrimoniais. Mas a dispensa deste requisito para os danos não patrimoniais será alheia ao espírito do legislador, pois o subsídio só é concedido aos casos de maior carência e que urge de ser acorridos. Ao não aplicar o requisito da al. c), a concessão do subsídio por danos não patrimoniais tornaria automática logo que sejam preenchidos os requisitos objectivos das al. a), b) e d), sem necessidade de qualquer apreciação valorativa sobre a consequência destes danos nas situações concretas da vida do interessado, ou seja, a concessão do subsídio por danos não patrimoniais seria muito menos exigente em comparação com os danos patrimoniais.
   
   Se o subsídio pode ser concedido por causa dos danos não patrimoniais quando estes mereçam a mesma tutela que os danos patrimoniais, a sua concessão deve sujeitar ao quadro de exigências semelhante ao dos danos patrimoniais.
   É certo que se os prejuízos por causa de danos não patrimoniais provocam alterações significativas na vida económica do interessado, esta parte de prejuízo deve ser considerada a título de danos patrimoniais indirectos.1
   Assim, por força do n.° 5 do mesmo art.° 1.°, adaptando as al.s b) e c) aos danos não patrimoniais, é razoável exigir que o prejuízo de danos não patrimoniais provoque uma perturbação prolongada e considerável do nível de vida espiritual ou psíquica da vítima ou das pessoas com direito a alimentos, designadamente quando o prejuízo provoca sequela prolongada e sofrimento enorme no estado psíquico de interessados.
   
   O acto recorrido indeferiu o pedido do recorrente com fundamento de que não está reunido o requisito previsto na al. c) do n.° 1 do art.° 1.° da Lei n.° 6/98/M, tomando a condição de “alteração do nível de vida da vítima” como referente à sua situação económica. A base da decisão reside na falta de elementos que mostrem a perturbação considerável do nível de vida económica do recorrente, e na prova do recebimento de diversas quantias após o incidente a títulos de remuneração, medicamento e transporte com cuidado médico de Macau para Portugal.
   Portanto, a entidade recorrida, ao proferir a decisão impugnada, não considerou se os danos não patrimoniais alegados pelo recorrente tinham provocado uma perturbação prolongada e considerável no nível de vida espiritual ou psíquica deste, tendo em conta as situações anteriores e posteriores da prática do crime causador dos danos. Verifica-se assim o vício de violação da lei no acto recorrido por ofensa ao disposto nas al.s b) e c) do n.° 1 do referido art.° 1.°.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em julgar procedente o recurso, revogar o acórdão recorrido e, em consequência, julgar procedente o recurso contencioso, anulando o acto impugnado.
   Sem custas por o recorrido estar legalmente isento.
   
   Aos 28 de Novembro de 2005.



Juízes:Chu Kin (Relator)
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai
O Procurador-Adjunto presente na conferência:
Augusto Serafim de Basto do Vale e Vasconcelos

1 Cfr. João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. I, 10ª ed., Almedina, Coimbra, 2003, p. 601.
---------------

------------------------------------------------------------

---------------

------------------------------------------------------------

Processo n.° 16 / 2005 23