Processo nº 498/2011 Data: 29.09.2011
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “ofensa simples à integridade física”.
Erro notório na apreciação da prova.
SUMÁRIO
1. O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.
É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.
2. O facto de o instrumento utilizado no cometimento do crime de “ofensa à integridade física” não apresentar vestígios de impressões digitais do arguido e de sangue do ofendido não permite concluir que se incorreu em “erro notório na apreciação da prova” quanto à agressão pelo arguido infligida no ofendido.
3. Com efeito, circunstâncias várias podem levar à ausência de tais vestígios, e os mesmos não são imprescindíveis para se dar como provada uma ofensa à integridade física e o seu respectivo autor e ofendido.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 498/2011
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Sob acusação pública e em audiência colectiva no T.J.B. respondeu A vindo a ser condenado pela prática de 1 crime de “ofensa simples à integridade física” p. e p. pelo art. 137°, n.° 1 do C.P.M., na pena de 5 meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de 1 ano; (cfr., fls. 201 a 201-v).
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Inconformado, o arguido recorreu, imputando ao Acórdão recorrido o vício de “erro notório na apreciação da prova”; (cfr., fls. 213 a 218).
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Respondendo, pugna o Exmo. Magistrado do Ministério Público pela rejeição do recurso; (cfr., fls. 221 a 222-v).
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Admitido o recurso com efeito e modo de subida adequadamente fixados, vieram os autos a este T.S.I..
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Em sede de vista entende o Ilustre Procurador Adjunto que motivos não existem para a procedência do recurso.
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Cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão provados os factos seguintes:
“1. O casal B (arguido) e C (ofendida) e o casal A (arguido) e D (ofendida) residiam conjuntamente na fracção sita no Pátio do Mungo, n.º 35, Edf. Son Seng, 3º-andar-T, Macau, os dois casais alojavam respectivamente um quarto da fracção, partilham a cozinha e a casa de banho.
2. Em 22 de Dezembro de 2007, por volta das 21h35 à noite, quando a ofendida C e o arguido A estavam cozinhar na cozinha, C ficou insatisfeita por o arguido A utilizar o fogão resultando monte de fumaça, pelo que, as duas partes envolveram-se numa discussão, na altura, o arguido A agrediu a ofendida C na cabeça com uma tigela cerâmica, ferindo a fronte esquerda que sangrou, partindo e caindo no chão a tigela cerâmica.
3. Ambos o arguido B e a ofendida D ouviram o barulho, entrando na cozinha. Quando o arguido B viu que a cabeça da sua mulher estava a sangrar, agrediu o arguido A com mãos dando-lhe socos, resultando a ferida da cabeça e do pescoço de A. Quando a ofendida D pretendeu calmar os dois, também foi agredida na cabeça pelos socos do arguido B, resultando a ferida da fronte.
4. A e D foram levados para o Centro Hospitalar Conde de S. Januário para tratamento e tiveram alta no mesmo dia, enquanto C foi levada para o Hospital Kiang Wu para tratamento e teve alta no mesmo dia.
5. Após efectuada a perícia médico-legal dos ferimentos de C em 11 de Março de 2008, foi verificado que C sofreu da contusão e laceração em tecidos moles (4cm) da fronte de C, lesões essas são causadas por algum equipamento contundente ou análogo que necessita de 7 dias para se recuperar. (cfr. a resposta dada pelo Hospital Kiang Wu constante da fls. 45 e o auto de perícia de medicina legal clínica constante da fls. 49 dos autos)
6. Após efectuada a perícia médico-legal dos ferimentos de A em 11 de Março de 2008, foi verificado que A sofreu da contusão e abrasão em tecidos moles da fronte, pescoço e da mão esquerda, lesões essas são causadas por algum equipamento contundente ou análogo que necessitavam de 3 dias para se recuperar. (cfr. o relatório do exame directo constante da fls. 25 e o auto de perícia de medicina legal clínica constante da fls. 47 dos autos)
7. Após efectuada a perícia médico-legal dos ferimentos de D em 11 de Março de 2008, foi verificado que D sofreu da contusão e abrasão em tecidos moles da fronte esquerda e do cotovelo direito, lesões essas são causadas por algum equipamento contundente ou análogo que necessita de 3 dias para se recuperar. (cfr. o relatório do exame directo constante da fls. 24 e o auto de perícia de medicina legal clínica constante da fls. 48 dos autos)
8. Os dois arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente e agrediram dolosamente os corpos de outrem.
9. O arguido B ofendeu a integridade física da ofendida D e do arguido A.
10. O arguido A ofendeu a integridade física da ofendida C.
11. Os dois arguidos sabiam bem que os seus actos violaram a lei e devem ser punidos pela lei.
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Além disso, a audiência de julgamento também se provou os seguintes factos:
O arguido B alegou que já foi aposentado, auferia mensalmente MOP$ 13.600,00, tendo 1º ano do ensino secundário como as habilitações literárias e tendo filha a seu cargo.
O arguido A alegou que trabalhava como empregado do supermercado, auferia mensalmente MOP$ 5.600,00, tendo 1º ano do ensino secundário como as habilitações literárias, sem cargo familiar.
De acordo com os CRC, ambos os dois arguidos B e A são delinquentes primários”; (cfr.,fls. 238 a 241).
Do direito
3. Vem o arguido A recorrer da decisão que o condenou pela prática de 1 crime de “ofensa simples à integridade física” p. e p. pelo art. 137°, n.° 1 do C.P.M., na pena de 5 meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, assacando à mesma o vício de “erro notório na apreciação da prova”.
Em síntese diz que tendo-se dado como provado que agrediu a ofendida C na cabeça com uma tigela, deixando-a a sangrar, provado devia estar também que na dita tigela havia vestígios de sangue da ofendida assim como (vestígios) das suas impressões digitais.
E assim, não existindo tais “vestígios”, errada foi a decisão de se dar como provado que agrediu a mencionada ofendida com a dita tigela.
Mostra-se-nos de dizer que labora o recorrente em equívoco, nenhuma censura merecendo o Acórdão recorrido.
Vejamos.
Repetidamente tem este Tribunal afirmado que:
“O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.”
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.”; (cfr., v.g., Ac. de 12.05.2011, Proc. n° 165/2011, e mais recentemente de 26.05.2011, Proc. n.° 268/2011 do ora relator).
No caso, é verdade que provado ficou que “em 22 de Dezembro de 2007, por volta das 21h35 à noite, quando a ofendida C e o arguido A estavam cozinhar na cozinha, C ficou insatisfeita por o arguido A utilizar o fogão resultando monte de fumaça, pelo que, as duas partes envolveram-se numa discussão, na altura, o arguido A agrediu a ofendida C na cabeça com uma tigela cerâmica, ferindo a fronte esquerda que sangrou, partindo e caindo no chão a tigela cerâmica”.
Todavia, para se chegar a tal decisão (da matéria de facto) necessária não era a presença de vestígios de sangue da ofendida ou das impressões digitais do recorrente na tigela utilizada como instrumento de agressão.
Aliás, importa reconhecer que o resultado negativo do exame lofoscópico não implica (impreterivelmente) que inexistam impressões digitais, podendo também significar (apenas) que os vestígios não estavam em condições de permitir uma identificação.
Por sua vez, o facto de a agressão ter provocado uma ferida na ofendida não pressupõe também necessariamente que o objecto utilizado na agressão fique com vestígios de sangue.
Com efeito, é da experiência comum que, por vezes, só algum tempo depois da agressão é que a lesão (ferida) com aquela causada começa a deitar sangue.
Por fim, em sede de fundamentação da sua convicção, consignou o Colectivo a quo o que segue: “na audiência de julgamento, os dois arguidos e as suas mulheres contaram o percurso concreto da ocorrência do caso.
Os factos baseiam-se nas declarações prestadas pelos arguidos B e A, nos depoimentos prestados pelas testemunhas na audiência de julgamento e nos respectivos documentos dos autos, incluindo o relatório do exame directo do Centro Hospitalar Conde de S. Januário, a resposta dada pelo Hospital Kiang Wu e auto de perícia de medicina legal clínica”; (cfr., fls. 241-v a 242).
Ora, tal exposição de motivos parece-nos absolutamente clara, não se vislumbrando também, como, onde ou em que termos terá o Colectivo incorrido em violação das regras sobre a prova tarifada, as regras de experiência ou legis artis, o que, desde logo, afasta a possibilidade de ocorrência do assacado vício.
Daí, não existindo o alegado “erro”, e sendo evidente a improcedência do recurso, impõe-se a sua rejeição.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam rejeitar o recurso; (cfr., art. 409°, n.° 2, al. a) e 410, n.° 1 do C.P.P.M.).
Pagará o recorrente 5UCs de taxa de justiça, e como sanção pela rejeição do seu recurso, o equivalente a 3UCs, (cfr., art. 410°, n.° 4 do C.P.P.M.).
Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$900.00.
Macau, aos 29 de Setembro de 2011
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
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