Recurso Contencioso nº 695/2009
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 20 de Outubro de 2011.
Descritores: Procedimento Disciplinar
Dever de lealdade
Pena de demissão.
Inviabilização da manutenção da relação funcional
SUMÁRIO:
I- A violação do dever de lealdade (art. 279º, nº2, al. d), do RJFPM) não gera automaticamente a pena de demissão, pois para tanto é necessário que ela inviabilize a manutenção da relação jurídico-funcional (art. 315º, nº1, do RJFPM).
II- O conceito inviabilização da manutenção da relação funcional concretiza-se através de juízos de prognose em que a Administração goza de grande liberdade de apreciação, embora se reconheça ao tribunal, em certos casos, o poder de averiguar da integração e subsunção dos factos à referida cláusula geral contida na referida fórmula
III- No que se refere à moldura da pena, diz-se que, se ao tribunal é possível analisar da existência material dos factos e averiguar se eles constituem infracções disciplinares, já lhe não cabe apreciar a medida concreta da pena, ou a justiça e oportunidade da punição, salvo em casos de erro grosseiro e manifesto, porque essa é uma tarefa da Administração que se insere na chamada discricionariedade técnica ou administrativa.
Recurso Contencioso nº695/2009
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I- Relatório
A, inspector especialista, 1º escalão, do quadro de pessoal da Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais, com domicílio na Rua do Padre João Clímaco, nºX, Xº andar, “X”, edif. “XXXX”, em Macau, interpôs recurso contencioso do despacho de 3/07/2009 do Ex.mo Secretário para a Economia e Finanças do Governo da RAEM que lhe aplicou a pena de demissão.
Ao acto administrativo em causa imputara o recorrente o vício de forma por falta de fundamentação (violação do art. 115º do CPA) e, embora de forma menos explícita, a violação do artigo ao abrigo do qual foi punido.
O pedido, esse, era no sentido da anulação do acto e, caso assim não fosse entendido, de substituição por outro que aplicasse, quando muito e ao abrigo do art. 314º, nº2, al.h), do ETAPM, a pena de suspensão.
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Na sua contestação, a entidade recorrida defendeu a absolvição do 2º pedido, por considerar que ele não pode ser decretado pelo tribunal ao abrigo do princípio da separação de poderes e da natureza do recurso contencioso. Quanto ao mais, defendeu a improcedência do recurso.
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Houve lugar a produção de prova testemunhal e, na oportunidade, as partes apresentaram alegações facultativas.
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O recorrente concluiu as suas desta maneira:
i) o acto recorrido carece de fundamentação já que, mesmo a admitir-se que alguma foi dada, a mesma é obscura e insuficiente, o que equivale à sua inexistência;
ii) o acto recorrido é anulável por violação dos artº 114º, nº 1, alíneas a) e b) e artº 115º, nºs. 1 e 2 do Código do Procedimento Administrativo;
iii) o recorrente, em toda a actuação que teve no âmbito doa autos de inquérito nº XXXX/2008, não infringiu o dever de lealdade para com a D.S.A.L.;
iv) o recorrente elaborou, mesmo, a informação nº XXXXX/DIT/XXXX/2008 onde propunha o arquivamento dos autos de inquérito nº X/2008 na parte referente à afectação das queixosas a funções diferentes das que exerciam quando foram contratadas (por a entidade patronal as haver recolocado no exercício das funções anteriores);
v) Propunha o recorrente, também, nessa informação, a continuação das averiguações, por parte da DSAL, no que respeitava a alegada substituição das queixosas por trabalhadores não-residentes;
vi) depois de parecer favorável do superior hierárquico do ora recorrente, a informação foi submetida a despacho do Chefe de Departamento de Inspecção do Trabalho;
vii) foi decidido, nesse despacho, mandar arquivar o processo de inquérito, quer por se verificar que as queixosas haviam regressado já às funções para que haviam sido contratadas, quer por entender ter sido a queixa apresentada sem fundamento.
Nestes termos,
Nos mais de Direito aplicáveis, e sempre com o douto suprimento de Vossas Excelências, requer-se, tal como o havia sido já na petição oportunamente apresentada, seja declarada a nulidade do acto administrativo recorrido, por violação dos artigos 114º e 115º do C.P.A., decorrente da inexistência de elemento essencial do acto, qual seja a respectiva fundamentação.
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A entidade recorrida não alegou.
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O digno magistrado do MP opinou no sentido da improcedência do recurso.
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Cumpre decidir.
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II- Os Factos
1- Ao recorrente foi instaurado um procedimento disciplinar.
2- O relatório final desse procedimento, considerou verdadeira a seguinte factualidade:
“ (…) 43. No dia 23 de Setembro de 2008, B, C, D, E e F compareceram juntas na DSAL para apresentarem uma queixa contra a sua entidade empregadora, o “YYYY”, cuja matéria envolveu o “trabalho ilegal”, a “violação da “Lei de Bases da Política de Emprego e dos Direitos Laborais””, e “outros (programação de trabalho)” (vide páginas 9 - 58 do processo).
44. O DIT da DSAL instruiu o processo nº XXXX/2008 respeitante àquela queixa, sendo o inspector A (arguido deste processo) o responsável pela investigação do caso (vide páginas 9 - 58 do processo).
45. Relativamente à queixa de “trabalho ilegal” contra a “YYYY”, acima referida, o arguido tinha perfeito conhecimento que, durante a fase de investigação, era muito provável o DIT da DSAL enviar pessoal ao respectivo local para uma visita inspectiva (conhecida por acção de combate ao trabalho ilegal) (vide páginas 15,20,52,64 e 71 do processo).
46. Por volta das 16 horas do dia 8 de Outubro de 2008, a gerente da Secção Administrativa e de Recursos Humanos do “YYYY”, Sra. G, o assistente de gerente da Secção Administrativa e de Recursos Humanos, Sr. H, B, C, D, E e F compareceram juntos na DSAL, para negociarem o cancelamento da queixa referida no artigo 43º do presente relatório (vide páginas 14, 19,23,29,31,33,35 e 38 do processo).
47. Por volta das 16:10 horas daquele dia, antes do encontro com as trabalhadoras reclamantes, o arguido encontrou-se com os representantes da “StarWold”, G e H, na sala de atendimento 9 do 1º andar da DSAL (vide páginas 14, 19,23,38,41 a 44 do processo).
48. Às 16:12 horas, G e H solicitaram a opinião do arguido sobre como fazer com que as reclamantes cancelassem voluntariamente a queixa apresentada (vide páginas 20 e 42 do processo).
49. O arguido entregou, naquele momento, um documento a G, tendo esta feito a sua leitura e dito: “Assim é induzi-las, já que é, um mal entendido, sigo-te” (vide pág. 42 do processo).
50. Além do referido no artigo anterior, de acordo com parte da conversa do mesmo dia, pelas 16:13 horas, entre o arguido, G e H, na sala de atendimento 9 do 1º andar da DSAL, das palavras do arguido às 17:02 horas na sala de atendimento 5 do 1º andar da DSAL e das palavras de G às 17:07 horas na sala de atendimento 5 do 1º andar da DSAL, para que as reclamantes assinassem voluntariamente o “acordo de cancelamento da queixa”, de modo que a DSAL não levasse a cabo uma visita inspectiva de trabalho ilegal (acção de combate ao trabalho ilegal) à empresa reclamada (“YYYY”), o arguido, durante o seu encontro com G e H, ensinou-os a induzir as trabalhadoras reclamantes a dizerem que a queixa apresentada na DSAL contra aquela empresa tinha sido apresentada devido a um mal entendido e que não existia “trabalho ilegal” como tinham reclamado (vide páginas 15,20,43,65 e 68 do processo).
51. Às 16:17 horas, a secretária geral da Associação de Empregados das Empresas de Jogo de Macau, Sra. I, compareceu com as cinco trabalhadoras reclamantes e outras duas trabalhadoras na sala de atendimento 9 do 1º andar da DSAL, sendo que, naquele momento, o arguido, G e H também se encontravam na mesma sala (vide páginas 14, 19,23,29,31,33,35,38 e 44 do processo).
52. De acordo com uma parte da conversa que no dia 8 de Outubro de 2008, entre as 16:25 e 16:27 horas e as 16:31 e 16:32 horas, na sala de atendimento 9 do 1º andar da DSAL, o arguido, G e H tiveram com as trabalhadoras reclamantes e I, para que as reclamantes assinassem voluntariamente o “acordo de cancelamento da queixa”, de modo que a DSAL não levasse a cabo uma visita inspectiva de trabalho ilegal (acção de combate ao trabalho ilegal) à empresa reclamada (“YYYY”), o arguido, durante o seu encontro com as trabalhadoras reclamantes, I, G e H, propôs às trabalhadoras reclamantes a alteração do conteúdo da queixa apresentada na DSAL contra a “YYYY”, no sentido de passar a constar que “apresentaram aquela queixa devido a um mal entendido e que não existia a situação de “trabalho ilegal” reclamada” (vide páginas 20, 38, 47 a 49 do processo).
53. Quanto à proposta acima referida, I manifestou, de imediato, que era um facto o quê as trabalhadoras se queixavam, questionando a razão da sua correcção; pois, a correcção dos depoimentos feitos no acto da apresentação de queixa pode constituir falsas declarações (vide páginas 21, 31,33,35,38 e 50 do processo).
54. I manifestou, entre as 16:43 e 16:44 horas, que era um facto o que as reclamantes tinham visto, portanto, mesmo que elas não reclamassem, o Governo tinha o dever de controlar (vide páginas 39, 52 e 53 do processo).
55. O arguido saiu, às 16:46 horas, da sala de atendimento 9 do 1º andar da DSAL, deixando I, G, H e as trabalhadoras reclamantes negociarem sozinhos (vide pág. 53 do processo)
56. G e H saíram, às 16:51 horas do dia 8 de Outubro de 2008, da sala de atendimento 9 do 1º andar da DSAL, deixando I e as trabalhadoras negociarem sozinhas (vide pág. 55 do processo).
57. O arguido encontrou-se, pelas 16:53 horas, na sala de atendimento 5 do 1º andar da DSAL, com G e H (vide páginas 16,21, 25,61 a 69 do processo).
58. De acordo com a conversa do dia 8 de Outubro de 2008, entre as 16:53 e 16:58 horas, 17:03 e 17:05 horas, na sala de atendimento 5 do 1º andar da DSAL, entre o arguido, G e H, e as palavras de G, às 17:07 horas, 17:30 horas, na mesma sala de atendimento, depois de Uma reunião para negociação com as trabalhadoras reclamantes e com I e ainda sem terem conseguido chegar a um consenso, o arguido propôs a G e a H para não assinarem, naquele dia, o acordo com as reclamantes, tendo proposto ainda que entregassem às reclamantes o acordo de cancelamento da queixa só depois de voltarem à empresa, para que as reclamantes o assinassem separadamente; o arguido ensinou também a G e H para serem firmes com as trabalhadoras, com o objectivo de as trabalhadoras reclamantes lhe entregarem o acordo, depois de o terem assinado, para que ele as convocasse à DSAL para confirmarem os documentos assinados (vide páginas 61 a 63,66 a 68 e 71 do processo).
59. A pedido de G e de H, o arguido entregou, às 17:48 horas, a G, um “modelo de acordo de cancelamento de queixa” preparado previamente por si, para que aqueles o levassem à empresa e entregassem às trabalhadoras reclamantes para assinarem, na perspectiva de as trabalhadoras reclamantes declararem por iniciativa própria que não haviam trabalhadores não residentes a trabalharem na área do casino nem a substituírem as suas tarefas (vide páginas 16, 20, 74 e 75 do processo)”.
3- O referido terminava da seguinte maneira:
“ 60. O arguido praticou o acto acima referido livre, consciente e voluntariamente, tendo atentado contra a dignidade e honra das suas funções de inspector de trabalho.
61. O acto do arguido contradiz as atribuições do serviço a que se encontra afecto (ou seja, da Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais), designadamente quanto à fiscalização do cumprimento do “Regulamento sobre a Proibição de Trabalho Ilegal”.
62. O facto praticado pelo arguido, acima referido, demonstra falta de respeito para com o serviço a que se encontra afecto, não permitindo manter a sua situação jurídico-funcional.
63. Os actos do arguido deste processo infringiram o dever de lealdade previsto no na alínea d) do nº 2 e nº 6 do artigo 279º do ETAPM, e também o nº 1 do artigo 315º do ETAPM, sendo este acto sujeito a pena de demissão.
64. Considerando que desde que o arguido começou a exercer funções públicas, em 1 de Agosto de 1988, até à presente data, sempre obteve uma classificação de serviço não inferior a “Bom”, aplicam-se a circunstância atenuante, nos termos do disposto na alínea a) do artigo 282º do ETAPM.
65.
* Em 10 de Abril de 2002, foi aplicada a pena de repreensão escrita ao arguido, por violação da alínea h) do nº 2 do artigo 279º do ETAPM (vide pág. 80 do processo).
* Em 9 de Dezembro de 2005, foi aplicada a pena de repreensão escrita ao arguido, por violação nº 4 do artigo 279º do ETAPM (vide pág. 80 do processo).
Tendo em conta as duas penas disciplinares acima referidas, aplicam-se ao arguido a circunstância agravante, prevista na alínea g) do nº 1 do artigo 283º do ETAPM.
66. Nos termos do disposto no nos 1, 2 e 5 do artigo 316º do ETAPM e tendo ponderado sobre as circunstâncias agravante e atenuante, acima referidas, propõe-se a aplicação da pena de demissão ao arguido.
67. A aplicação da pena referida no artigo anterior é da competência do Exmº Sr. Secretário para a Economia e Finanças, nos termos do artigo 322º do ETAPM, nº 2 da Ordem Executiva nº 6/2005, de 14 de Fevereiro e nº 1 da Ordem Executiva nº 12/2000, de 28 de Fevereiro. 23 de Junho de 2009”.
4- A entidade recorrida, logo após o parecer de 23/06/2009, em 3/07/2009, proferiu o seguinte despacho (quadro do lado direito, infra):
Parecer:
Exmo. Secretário para a Economia e Finanças,
Concordo com o teor e as propostas da Informação n.º 02/ST/DSAL/2009.
À consideração superior.
(Ass.: V d. o original)
23/6/09
Despacho:
Autorizo, e, conforme o teor e as razões constantes da Informação elaborada pelo instrutor, decido aplicar a pena de demissão ao arguido.
Deve a DSAL notificar o arguido da aplicação de pena e pôr em prática as respectivas diligências subsequentes.
(Ass. V d. o original)
3/7/09
5- O recorrente elaborou em 15/10/2008 a Informação nº XXXXX/DIT/XXXX/2008, propondo o prosseguimento da investigação da DSAL no respeitante à denúncia na parte relativa à contratação de trabalhadores não residentes (fls. 64-65 do p.a., tradução a fls. 5 e 6 do apenso “traduções”).
6- Em 15/10/2010 o recorrente prestou a Informação nº XXXXX/DIT/XXXX/2008 em que propunha o arquivamento do procedimento da queixa quanto à “distribuição de tarefas irrazoável e à Lei de Bases da Política de Emprego e dos Direitos Laborais” de que as trabalhadoras se tinham queixado. Quanto ao “trabalho ilegal”, propunha que o caso fosse transferido para Divisão de Protecção da Actividade laboral para abrir um processo e proceder ao seu acompanhamento” (fls. 65 do p.a e tradução a fls. 5 do apenso “traduções”).
7- O Chefe de Departamento decidiu:
“…relativamente ao trabalho ilegal, entende-se ser também uma imputação de facto falso, por isso, também pode proceder-se ao seu arquivamento. Por tudo o que acima foi exposto, não é necessário o acompanhamento mais profundo da queixa apresentada, podendo esta ser arquivada. Ao GAP para acompanhamento” (fls. 64 do p.a. e tradução a fls. 2 do apenso”traduções” ).
8- O modelo de cancelamento de queixa a que respeita a matéria do ponto 59 do relatório tinha o seguinte conteúdo: “Eu, titular do BIRM…aceito o projecto de formação de hotelaria e tomei conhecimento de que a companhia comprometeu que irá colocar-me no cargo de empregado de mesa na próxima Segunda-feira, isto é, a companhia não recrutou trabalhador não residente de Macau…e outros trabalhos…são efectivamente atribuídos aos trabalhadores locais…” (fls. 75 do p.a.).
***
IV- O Direito
1- De acordo com a factualidade constante do relatório e com base na qual viria a ser sancionado, o recorrente, inspector da DSAL, nomeado para instruir um procedimento de queixa apresentada naquela Direcção de Serviços por cinco trabalhadoras do grupo empresarial “YYYY”, em vez de dar a devida sequência à queixa, procedendo a diligências investigatórias, acabou por servir de intermediário em reunião havida nas instalações da DSAL entre trabalhadoras (empregadas de restaurante, mas que alegadamente haviam sido destacados para lavar pratos) e entidade empregadora, no sentido de que aquelas desistissem da queixa, sendo inclusive o autor de um modelo de “acordo de cancelamento de queixa” que entregou à gerente da secção administrativa e de recursos humanos da empresa, de nome Lai Kuai Iong, a fim de que esta o entregasse às trabalhadoras para posteriormente o assinarem.
E importa sublinhar que tal queixa visava, essencialmente, duas coisas:
- No que respeitava a si mesmas, trabalhadoras, ela tinha por objectivo a denúncia de violação de direitos laborais (afectação a serviço diferente daquele a que correspondia o seu posto laboral);
- Na parte restante, tinha por objectivo a acusação de emprego por parte da empregadora “YYYY” de “trabalhadoras ilegais”.
Duas imputações portanto.
Quanto à primeira, a posição do recorrente pode inscrever-se no âmbito do disposto no art. 7º, nº4, al. 1), do Regulamento Administrativo nº 24/2004, de 26 de Julho, uma vez que aquela disposição estabelece que à Divisão do Controlo dos Direitos Laborais (onde o recorrente estava colocado) compete, entre o mais, procurar conciliar as partes. Esta conciliação, obviamente, é a possível em cada caso concreto, por conseguinte, aquela que a disponibilidade de direitos permitir.
Enfim, quanto a essa parte, o recorrente podia, tanto quanto nos parece, estabelecer ou fomentar o diálogo entre empregador e trabalhadoras de modo a obter-se uma solução que visasse repor a normalidade funcional sem quebra de direitos inderrogáveis. Portanto, nada de ilegal terá sido cometido.
Diferente é a segunda parte. O que estava em causa era uma questão de violação da lei imperativa quanto ao emprego de mão-de-obra “clandestina”, assim se diz, por vezes. Ora, aqui nada podia ser “negociado” porque fora do alcance de qualquer conciliação. Na verdade, perante uma denúncia destas, dando conta de uma infracção que reclamaria uma actuação vinculada da Administração, o que havia a fazer era encaminhar o caso para o departamento competente para a acção investigadora de um caso que podia ser, efectivamente, de trabalho ilegal (ver art. 7º Regulamento nº 17/2004, de 14/06/2004).
Em vez disso, o que o recorrente fez foi tentar incluir esta matéria no quadro mais amplo da “conciliação”. E tanto assim que acabou por englobá-la no modelo de cancelamento de queixa. Ou seja, o recorrente, com esta atitude, colaborou com a entidade patronal das denunciantes, fazendo com que estas desdissessem aquilo que antes havia feito parte da substância da sua própria denúncia. E sobretudo fez com que ao procedimento fossem apresentadas declarações que tinham um efeito contrário ao da investigação que se impunha, com vista a apreciar da veracidade da denúncia acerca da situação de emprego ilegal de trabalhadores não residentes.
Este posicionamento, independentemente da razão e dos interesses subjacentes, é criticável, e o próprio recorrente o admite.
A questão é: seria tal comportamento subsumível à previsão normativa que remete o caso para a violação do dever de lealdade? E estaria assim verificada a inviabilidade da manutenção da relação funcional?
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1.1- A lealdade é um dever fulcral que, tanto na acção administrativa, como no relacionamento entre superiores e subalternos deve estar sempre presente, de forma a garantir um clima de confiança e de verdade e visar impelir o funcionário ao cumprimento das tarefas em subordinação aos objectivos do serviço e na perspectiva da prossecução do interesse público. Nesta medida, a acção do recorrente atenta contra estes princípios, pois em vez de imediatamente desencadear os mecanismos investigatórios respeitantes à contratação de trabalhadores ditos “ilegais”, procurou pôr de acordo denunciantes e denunciada, gerando algum obstáculo a que pudesse ser eficiente e eficaz uma actividade inspectiva no sentido da prossecução do interesse público envolvido. Quer isto dizer, pois, que a lealdade, nesta óptica (art. 279º, nº6, RJFPM) foi violada. É verdade que em 15/10/2008 o recorrente propôs o acompanhamento do caso relativamente a essa parte. Mas, como facilmente se adivinha, essa posição peca por tardia, na medida em que até essa data já tudo ele havia feito para conseguir que as partes pusessem termo ao procedimento de queixa, não só na parte que dizia respeito às trabalhadoras denunciantes, como ainda à invocada contratação de mão-de-obra não residente. Quer dizer, o mal estava já feito e a proposta constante da Informação nº XXXXX já não iria ser eficaz (tanto assim que até o procedimento nessa parte também fora arquivado).
É claro que, quanto à moldura da pena, se diz que, se ao tribunal é possível analisar da existência material dos factos nos moldes acima referidos e averiguar se eles constituem infracções disciplinares, já lhe não cabe apreciar a medida concreta da pena, ou a justiça e oportunidade da punição, salvo em casos de erro grosseiro e manifesto, porque essa é uma tarefa da Administração que se insere na chamada discricionariedade técnica ou administrativa1,
Vejamos, então, se a pena será de manter-se.
A violação do dever de lealdade, como se vê pela análise do relatório que antecede a decisão final, não foi suficiente para afastar o recorrente. Aliás, por si só ela não geraria o seu afastamento do serviço, como é tradicionalmente entendido. A violação dos deveres, isoladamente, não gera afastamento do serviço. É preciso que a violação, em concreto, e fundadamente, importe a inviabilidade da manutenção da relação funcional prevista no nº1, do art. 315º do RJFPM.
Ora, como se sabe, o conceito inviabilização da manutenção da relação funcional concretiza-se através de juízos de prognose em que a Administração goza de grande liberdade de apreciação (Acs. TUI, de 3/05/2000, Proc. nº 9/2000; 15/10/2003, Proc. nº 26/2003; 29/06/2005, Proc. nº 15/2005)2.
Sem embargo, por outro lado, também se reconhece ao tribunal, em certos casos, o poder de averiguar da integração e subsunção dos factos à referida cláusula geral contida na referida fórmula3.
Nessa tarefa, para a subsunção ao preceito (art. 315º nº1, do RJFPM) não basta a gravidade do facto objectivo. É necessário ter ainda em conta as circunstâncias particulares em que ele foi praticado, os seus efeitos ou consequências no desenvolvimento da função e o reconhecimento de que o seu autor revela uma personalidade inadequada ao exercício de funções públicas4.
Há-de haver, além disso, um “quid” perturbador da relação de confiança recíproca que inviabilize a manutenção do vínculo profissional. Como ainda se disse noutro aresto, a pena de demissão aplica-se «a comportamentos que atinjam um grau de desvalor de tal modo grave que mine e quebre, definitiva e irreversivelmente, a confiança que deve existir entre o serviço público e o agente»5
Tal como se decidiu no Ac. de 01.04.2003 do mesmo tribunal português, que aqui se convoca a título de jurisprudência comparada – Rec. 1.228/02, “A valoração das infracções disciplinares como inviabilizantes da manutenção da relação funcional tem de assentar não só na gravidade objectiva dos factos cometidos, mas ainda no reflexo dos seus efeitos no desenvolvimento da função exercida e no reconhecimento, através da natureza do acto e das circunstâncias em que foi cometido, de que o seu autor revela uma personalidade inadequada ao exercício dessas funções”6
Quer dizer, se é certo que ao órgão com competência disciplinar se reconhece «no preenchimento dessa cláusula geral, ampla margem de liberdade administrativa, tal tarefa está limitada pelos princípios da imparcialidade, justiça e proporcionalidade – além de ficar, depois, sujeita ao poder sindicante dos tribunais administrativos, se forem detectáveis erros manifestos» 7
Ou, como é dito noutro aresto «…o preenchimento do conceito indeterminado que corresponde à inviabilidade da manutenção da relação funcional, a que alude o nº 1, do artigo 26º do ED, constitui tarefa da Administração, a concretizar mediante um juízo de prognose. Contudo, a jurisprudência deste STA, tem realçado que tais juízos têm de assentar em pressupostos como a gravidade objectiva do facto cometido, o reflexo no exercício das funções e a personalidade do agente se revelar inadequado para o exercício de funções públicas. Confrontar, a título meramente exemplificativo, os Acs. STA de 6-10-93 – Rec. 30463 e de 18-6-96 – Rec. 39860»8
Ora, manda o rigor que se diga que os elementos trazidos aos autos não nos permitem concluir pelo erro grave, grosseiro e manifesto de que falávamos. Ou seja, o quadro de facto, realmente, pode ser revelador de uma insustentável manutenção da relação funcional do recorrente. Eles demonstram a violação do dever de lealdade (cfr. art. 279º, nº2, als. b) e d), nº3 e 6 do RJFPM) de uma forma particularmente severa.
Com efeito, um agente de controlo e de fiscalização, como é o caso do recorrente, não pode pactuar com interesses privados porque se supõe que o exercício do seu munus visa, precisamente, evitar situações de desrespeito da lei. Em última análise, a sua tarefa, aquela para a qual foi nomeado, aquela que lhe cumpre observar, é perseguir os autores de delitos laborais e trazê-los á justiça quando necessário, nunca o contrário, isto é, nunca a defesa do particular faltoso e desviante, do empregador violador da lei.
Ao agir daquele modo, o que o recorrente fez foi proteger ilicitamente um empregador alegadamente autor de prática de acto ilícito, foi favorecê-lo, foi encobrir a situação que as trabalhadoras queixosas denunciavam.
Mesmo a circunstância de em 15 de Outubro de 2008, segundo consta do p.a., o recorrente ter elaborado uma informação em que propunha o prosseguimento da investigação da DSAL relativamente à denúncia sobre a contratação de mão-de-obra não residente ao serviço da empregadora (fls. 64/65 do p.a), já não releva no sentido da diminuição do desvalor resultante da sua actuação primitiva. Tem que se considerar que este facto foi tardio e praticado ao jeito de contrição. Na realidade, nessa altura, já essa informação atrasada não podia afastar o espectro do sentido, vontade e objectivo inicial, que era o de evitar a investigação sobre a contratação ilegal de alguns trabalhadores. E assim, o acto primitivo acabou por criar um obstáculo à inspecção sobre aquela alegada ilegalidade, quando dele se esperava uma atitude absolutamente contrária, face à natureza das suas funções de investigador.
Com isso, se algum favorecimento resultou do seu comportamento, ele recaiu, sem dívida, na empregadora, que assim se viu, naquele momento, sem qualquer acção inspectiva concernente ao apuramento da verdade sobre a imputação feita pelas trabalhadoras. Ora, sendo assim, o quadro de facto parece apontar para a subsunção ao quadro típico do desvio de um dever de lealdade.
E também por ser assim, e ainda atendendo aos critérios da graduação da pena previstos no art. 316º, nº1 e 2, do RJFPM, não nos parece que haja aqui um absoluto desacerto da pena, mais a mais devido à circunstância de o próprio recorrente ter sido anteriormente punido com duas repreensões escritas (uma, por violação do dever de pontualidade do art. 279º, nº2, al. h); outra, por violação do dever de zelo, prevista no art. 279º, nº4, do RJFPM), revelador aparentemente de alguma personalidade pouco consentânea com o exercício de funções públicas, não obstante desde o início do exercício de funções públicas (1/08/1988) sempre ter obtido uma classificação não inferior a “Bom”.
Por outro lado, somos levados a pensar que o afastamento do recorrente se deve a um quadro factual que abale a eficiência, o prestígio e a idoneidade do Serviço onde está colocado, comprometendo a relação de confiança entre Administrador Público e funcionário em causa e, concomitantemente, o interesse público relevante.
Serve isto para dizer que o comportamento concreto do recorrente neste caso foi grave e merece censura severa, nada havendo nos autos que inculque ter sido manifesto o erro da medida disciplinar punitiva que lhe foi aplicada.
O mesmo é dizer que não pode ser satisfeita nem a pretensão principal (anulatória), nem a pretensão secundária contida no pedido formulado em ii) da petição inicial (determinação da prática de despacho que aplique, quando muito e face ao disposto no art. 314º, nº2, al.h), do ETAPM, a pena de suspensão).
*
2- Quanto ao vício de falta de fundamentação imputado ao acto, estamos de acordo com o digno Magistrado do MP e com a entidade recorrida: não se vê como seja possível defender a sua existência.
Com efeito, o acto punitivo acolheu o conteúdo do relatório final do procedimento disciplinar, para ele remetendo os seus fundamentos. É a chamada fundamentação por remissão.
E do relatório é mais do que visível qual a factualidade dada por provada no seio do procedimento (pontos 43 a 61), a sua caracterização como infracção disciplinar (ver ponto 62, 63), o contributo para a dosimetria concreta da pena das circunstâncias atenuantes e agravantes (pontos 64 e 65) e a pena a aplicar (pontos 66 e 67).
Por conseguinte, os elementos ali contidos satisfazem o dever de fundamentação tal como ele se encontra plasmado no art. 115º do CPA.
Razão que nos leva a considerar, sem mais escusados considerandos, improcedente este vício.
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IV- Decidindo
Nos termos e fundamentos expostos, acordam em julgar improcedente o recurso contencioso e, em consequência, mantendo o acto impugnado.
Custas pelo recorrente.
TSI, 20 / 10 / 2011.
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José Cândido de Pinho
(Relator)
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Lai Kin Hong
(Primeiro Juiz-Adjunto)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
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Vitor Manuel Carvalho Coelho
(Magistrado do M.oP.o) (Presente)
1 Acs. do STA, de 11/12/86, in BMJ nº 362/434 e de 5/06/90, in BMJ nº 398/355;de 02/10/90, in BMJ nº 400/712; de 03/03/94, Proc. Nº 033069; de 23/03/95, Proc. Nº 032586, entre outros.
2 Ver ainda, a título comparativo, em Portugal: Ac. do STA de 01/03/91, Proc. Nº 28 339; cit. ac. do STA, de 6/10/93, in Ap. ao DR de 15/10/96, pag. 4831, Proc. Nº 30 463; Ac. do STA de 03/05/94, Proc. Nº 29 726; Ac do STA de 30/11/94, Proc. Nº 32 500).
3 Ver ainda, a título comparativo, em Portugal Ac. do STA de 30/11/94, Proc. Nº 032 500; ver ainda o Ac. do STA de 05/05/87, Proc. Nº 024 090.
4 Entre outros, o Ac. do STA de 6/10/93, in Ap. ao DR de 15/10/96, pag. 4831.
5 Ac. do STA de 11/10/2006, Proc. nº 010/06.
6 N mesmo sentido, os acórdãos do STA 18.6.96, proc.º nº 39.860, de 16.5.02, proc.º nº 39.260, de 5.12.02, proc.º nº 934/02, de 24/03/2004, Proc. nº 0757/03; e 11/10/2006, Proc. nº 010/06.
7 Cfr. o cit. 24/03/2004, Proc. nº 0757/03; tb. Ac. do STA/Pleno de 19/03/99, Proc. nº 030896.
8 Ac. do STA de 2/12/2004, Proc. nº 01038/04.
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