Processo nº 570/2011/A
Requerente: A (XXX)
Entidade requerida: Senhor Secretário para os Transportes e Obras Públicas
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.:
A, devidamente identificado nos autos, veio, ao abrigo do disposto nos art°s 120° e S.S., requerer a suspensão de eficácia do despacho, datado de 04JUL2011, do Senhor Secretário para os Transportes e Obras Públicas que indeferiu o pedido da renovação da licença de ocupação a título precário da ponte-cais nº 23 do Porto Interior e em consequência determinou a desocupação e da entrega da mesma à gestão da Administração da RAEM, tendo para tal deduzido, no seu requerimento a fls. 2 a 46 dos p. autos, as razões de facto e de direito que se dão aqui por integralmente reproduzidas.
Terminou pedindo que seja decretada a suspensão da eficácia do despacho recorrido.
Citada a entidade requerida, veio contestar invocando a inverificação in casu do pressuposto processual exigido no art° 120° e requisitos previstos no art° 121°/1-a) e b) e 4, todos do CPAC e pugnando pelo indeferimento do pedido de suspensão de eficácia - cf. fls. 60 a 69 dos p. autos.
O Digno Magistrado do Ministério Público emitiu o seu douto parecer de fls. 74 a 75 dos presentes autos, que se transcreve o seguinte:
“Percorrendo o longo e, aliás, douto Requerimento, percebemos que há conexão intrínseca entre este processo e o n.º 569/2011/A, apesar de serem diferentes os respectivos actos suspendendos, a qual tem por origem a “procuração” referida nos arts. l2° e 13° do Requerimento destes autos.
Analisando os argumentos aduzidos no Requerimento e na contestação, e ressalvado o respeito pela opinião diferente, entendemos que o pedido de Suspensão de Eficácia merecerá deferimento.
Ora, a alí. a) do n.º 1 do art.121° do CPAC dispõe (sublinha nossa): A execução do acto cause previsivelmente prejuízo de difícil reparação para o requerente ou para os interesses que este defenda ou venha a defender no recurso.
Óbvio é que se permite o requerente defender, com a suspensão de eficácia, além do direito ou interesse pessoal e próprio, interesses alheios e impróprios.
Interpretando este segmento legal em conjugação com o art.33° do CPAC, parece-nos que os interesses contemplados na última parte desta alí. a) incluem apenas aos interesses públicos, difusos subjacentes a acção popular, e os referidos na alí. d) do art. 33°.
De qualquer maneira, não entra na previsão os interesses privados de outrem, como bem decidiu e esclarece o Venerando TUI no Acórdão decretado no Processo n.º 14/2011: Sendo pessoas colectivas diferente, os prejuízos causados pela execução do acto administrativo a uma não podem ser imputados pura e simplesmente a outra, mesmo com posição social dominante sobre aquela, com o fim de justificar a suspensão de eficácia do acto.
De outra banda, vale relembrar que em regra, cabe ao requerente o ónus de alegar e ainda demonstrar, mediante prova verosímil e susceptível de objectiva apreciação, o preenchimento do requisito consagrado na a) do referido nº 1, por aí não se estabelecer a presunção do prejuízo de difícil reparação.
No vertente caso, sucede que o requerente nunca alegou, de todo em todo lado, nenhum prejuízos de difícil reparação para si próprio, nem sequer apresentar prova alguma. O que alegou, nos arts. 54° a 64.º do seu Requerimento, são os potenciais prejuízos que a《Companhia de Importação e Exportação B, Lda.》eventualmente sofreu ou sofreria.
Nestes termos, não vislumbramos que se verifique in casu o requisito consignado na alí. a) do n.° 1 do art. 121 ° do CPAC.
Sabe-se que é pacífico e constante que “A não verificação de um dos requisitos da suspensão de eficácia de acto administrativo previstos no nº 1 do art. 121° do Código de Processo Administrativo Contencioso torna desnecessária a apreciação dos restantes porque o seu deferimento exige a verificação cumulativa de todos os requisitos e estes são independentes entre si.” (Acórdão do TUI no Processo n.º 2/2009).
Afinal, lembramos que no que concerne à função do instituto de suspensão de eficácia o Venerando TUI determina no Acórdão decretado no Processo n.º 37/2009: O objecto do procedimento de suspensão de eficácia de actos administrativos não é a legalidade do acto impugnado, mas sim se é justo negar a executoriedade imediata dum acto com determinado conteúdo e sentido decisório. Assim, não cabe discutir neste processo a verdade dos factos que fundamentam o acto impugnado ou a existência de vícios neste.
De harmonia com essa determinação jurisprudencial acima referida, não vamos pronunciar sobre os argumentos da requerente acerca das ilegalidade do despacho suspendendo.
Pelo exposto, propomos que se digne indeferir o pedido de suspensão de eficácia em apreço.”
Sem vistos - art° 129°/2 do CPAC, cumpre apreciar e decidir.
Este Tribunal é o competente.
As partes são dotadas às personalidades e capacidades judiciárias e mostram-se legítimas.
As partes são regularmente patrocinadas.
Não há questões-prévias e outras nulidades que cumprem conhecer.
Conhecendo.
De acordo com os elementos constantes dos autos e do processo instrutor, podem ser seleccionados os seguintes factos com relevância à decisão do presente pedido da suspensão de eficácia:
- Desde 1993, a A, foi concedida a licença para a ocupação a título precário da ponte-cais nº 23;
- Após as sucessivas renovações com a duração de um ano, a data do terminus da última renovação é 31DEZ2010;
- Em 14 Outubro de 2010, a Companhia de Importação e Exportação B, Limitada, na qualidade do procurador e em representação do titular da licença A, formulou o pedido da renovação da mesma licença;
- Pedido esse veio a ser indeferido por despacho datado de 4 Julho de 2011 do Senhor Secretário para os Transportes e Obras Públicas;
- E em consequência, pelo mesmo despacho, foi determinada desocupação e entrega da ponte-cais à gestão pela Administração da RAEM;
Nos presentes autos, o requerente veio pedir a suspensão de eficácia do acto de indeferimento da renovação da licença de ocupação a título precário da ponte-cais nº 23 do Porto Interior, alegando que se verificaram todos os pressupostos e requisitos legais.
Ao contrário, a entidade recorrida veio invocar a inexistência do conteúdo positivo no acto de indeferimento, pugnando pelo indeferimento do pedido.
Vejamos.
Como se sabe, o mecanismo de suspensão da eficácia do acto administrativo tem a natureza e a estrutura do processo cautelar, tendo como requisitos a instrumentalidade (artigo 123º do CPAC), o fumus bonni juris, o periculum in mora, e, até certo posto, a proporcionalidade.1
Para que possa ser concedida a dita suspensão da eficácia terão de satisfazer-se, cumulativamente, o pressuposto do artigo 120º e os três requisitos gerais do nº 1 do artigo 121º do Código de Processo Administrativo Contencioso.
Vejamos em primeiro lugar os pressupostos.
Dispõem os artigos 120º (Suspensão de eficácia de actos administrativos):
“A eficácia de actos administrativos pode ser suspensa quando os actos:
a. Tenham conteúdo positivo;
b. Tendo conteúdo negativo, apresentem uma vertente positiva e a suspensão seja circunscrita a esta vertente.”
Como se vê, a suspensão da eficácia de um acto administrativo pressupõe a existência do acto de conteúdo positivo.
Os actos positivos são aqueles que alteram a ordem jurídica, relativamente ao momento em que foram praticados, e os actos negativos são aqueles que não alteram a relação jurídica preexistente, deixando-a na mesma, ou seja, na palavra do Prof. Freitas Amaral, são “aqueles que consistem na recusa de introduzir uma alteração na ordem jurídica”. 2
Há três exemplos típicos destes actos negativos: a omissão de um comportamento devido, o silêncio perante um pedido apresentado à Administração por um particular, e o indeferimento expresso ou tácito duma pretensão apresentada. E a destruição de um acto negativo implica a necessidade de praticar os actos positivos que por lei deviam ter sido praticados e não foram (é o chamado dever de praticar o contrarius actus).3
Razão por que só os actos positivos é que podem ser objecto da suspensão de eficácia e os actos de conteúdo negativo podem ser objecto de dita suspensão desde que contiver vertente positiva e a suspensão só se cinge nesta vertente (al. b. do artigo 120º do CPAC).
Assim, perante um pedido de um acto de conteúdo negativo, deve ser sempre analisado caso a caso para se determinar se se trata de um acto negativo puro ou se coexistem efeitos secundários positivos.
De um modo geral, apontam-se vários requisitos necessários para que uma situação de facto, anteriormente existente à prática de um acto negativo, possa ser objecto de suspensão:4
1. Só podem relevar situações de facto pré-existente que se tenham constituído ou se mantenham à sombra da ordem judicial;
2. O requerente deve poder suscitar uma vocação ou expectativa de alguma forma reconhecida ou protegida com vista à manutenção da situação;
3. A modificação da situação de facto em causa deve ser uma consequência imediata e necessária do acto negativo; e
4. A suspensão da eficácia do acto negativo traduz-se apenas na paralisação, a título provisório, dos efeitos ablativos e, em determinadas condições, na salvaguarda do efeito prático do recurso, ou da utilidade da sentença.
Como se sabe, a suspensão de eficácia de um acto administrativo traduz-se, aí, tão somente, na paralisação provisória dos efeitos ablativos do acto, aguardando-se que o recurso contencioso conheça da sua legalidade intrínseca, ou seja, tratando-se de um provisório "congelamento" da situação, de uma conservação da res integra, como é típico das medidas cautelares, visando assegurar que a sentença de mérito a proferir possa ter eficácia prática.
Uma decisão que indeferiu uma pretensão, em princípio, não vem a alterar-se as suas respectivas situações jurídicas anteriormente existentes e a suspensão da eficácia também não lhe viria a alterar as situações preexistentes, mas em alguns casos, este tipo de acto de conteúdo negativo pode ter, para além do seu efeito típico principal, ligado a um efeito secundário, ou acessório, que modifica a situação jurídica e de facto preexistente, que se mantivera antes, sendo essa modificação uma consequência imediata e necessária do acto negativo5.
Trata-se o acto ora suspendendo um acto que indeferiu o pedido da renovação da licença de ocupação da ponte-cais, diferente do caso de mero indeferimento do pedido de primeira licença de ocupação (acto de conteúdo negativo puro), pois, a decisão de não renovação, vem necessariamente alterar a sua situação actual e pre-existente, e a suspensão do mesmo acto teria potencialidade para determinar, ela mesma, a produção dos efeitos jurídicos negados ao administrado com a prática do acto suspendendo, pelo que do decretamento da suspensão da eficácia poderia resultar para o requerente efeito útil, ou evitar os prejuízos para a sua esfera jurídica.
São actos de que resulta o indeferimento da manutenção de uma situação jurídica anterior: por exemplo, quando denegam a renovação ou prorrogação de uma situação jurídica pré-existente e que, por isso, além de ferirem legítimas expectativas de conservação dos efeitos jurídicos de um acto administrativo anterior, colocam o interessado numa posição jurídica substantiva diferente da que detinham até ao momento da sua prática. Nessas hipóteses, os actos alteram realmente a situação jurídica ou de facto do requerente6
Ou seja, com a suspensão da eficácia da não renovação da licença da ocupação, podem tão só ver-se a manutenção do status quo, como se fosse a situação antes de renovação – a continuação da ocupação da pont-cais.
Nesta conformidade, verifica-se efectivamente um acto de conteúdo negativo com a vertente positiva, satisfazendo o pressuposto do pedido de suspensão de eficácia.
Passa-se a apreciar se estão verificados os requisitos legais, o que determina substancialmente a concessão da suspensão pretendida.
Prevê o artigo 121° do CPAC que:
“Artigo 121º (Legitimidade e requisitos)
1. A suspensão de eficácia dos actos administrativos, que pode ser pedida por quem tenha legitimidade para deles interpor recurso contencioso, é concedida pelo tribunal quando se verifiquem os seguintes requisitos:
a. A execução do acto cause previsivelmente prejuízo de difícil reparação para o requerente ou para os interesses que este defenda ou venha a defender no recurso;
b. A suspensão não determine grave lesão do interesse público concretamente prosseguido pelo acto; e
c. Do processo não resultem fortes indícios de ilegalidade do recurso.
2. Quando o acto tenha sido declarado nulo ou juridicamente inexistente, por sentença ou acórdão pendentes de recurso jurisdicional, a suspensão de eficácia depende apenas da verificação do requisito previsto na alínea a) do número anterior.
3. Não é exigível a verificação do requisito previsto na alínea a) do n.º 1 para que seja concedida a suspensão de eficácia de acto com a natureza de sanção disciplinar.
4. Ainda que o tribunal não dê como verificado o requisito previsto na alínea b) do n.º 1. a suspensão de eficácia pode ser concedida quando, preenchidos os restantes requisitos, sejam desproporcionadamente superiores os prejuízos que a imediata execução do acto cause ao requerente.
5. Verificados os requisitos previstos no n.º 1 ou na hipótese prevista no número anterior, a suspensão não é, contudo, concedida quando os contra-interessa-dos façam prova de que dela lhes resulta prejuízo de mais difícil reparação do que o que resulta para o requerente da execução do acto.”
Como podemos ver claramente, a suspensão de eficácia deste tipo do acto, depende da verificação, em cumulativo,7 dos seguintes requisitos:
a) A execução do acto causará previsivelmente prejuízo, de difícil reparação, para o requerente ou para os interesses que este defenda ou venha a defender no recurso (requisito positivo) e
b) a suspensão do acto não causará grave lesão de interesse público pelo facto da suspensão, (1° requisito negativo) e
c) não resultarão do processo fortes indícios da ilegalidade do recurso (2° requisito negativo).
A verificação cumulativa implica que a não se observar qualquer deles, é de improceder a providência requerida.8 E, tratando-se de requisitos cumulativos, a ordem na sua análise não dependerá de qualquer ordem pré-determinada, a não ser quando se verifique que um deles manifestamente não se observa, o que conduzirá à improcedência da providência, afigurando-se desnecessário prosseguir com a análise dos restantes. Sem embargo de proceder ao cotejo entre eles, se tal se mostrar necessário.9
Vejamos, então, o requisito positivo, relativo à existência de prejuízo de difícil reparação que a execução do acto possa, previsivelmente causar para o requerente ou para os interesses que este venha a defender no recurso - al. a) do n.º 1 do art. 121º do CPAC.
No acórdão deste TSI de 10 de Março de 2011 do processo n° 41/2011-A considerou que, “Na verdade, o conceito indeterminado prejuízo de difícil reparação de que trata a alínea a), do n,1, do art. 121º, do CPAC tem que ser concretizado, reproduzido ou traduzido caso a caso por factos que o interessado requerente deve trazer ao processo. Não, bem entendido, através de uma demonstração cabal, perfeita e exaustiva da invocação factual, uma vez que neste processo não é possível efectuar prova testemunhal10, e até porque a lei não é tão exigente a esse ponto ao bastar-se com uma forte aparência, com um mero padrão de probabilidade («...cause previsivelmente...»). Mas, de qualquer modo, cabe ao requerente expor as razões fácticas que se integrem no conceito, devendo para isso ser explícito, específico e concreto, não lhe sendo permitido recorrer a expressões vagas, genéricas e irredutíveis a factos que não permitam o julgador extrair aquele juízo.11”
Assim sendo será preciso ver em cada caso qual a natureza do acto e quais as suas consequências directas, e carece alegar factos concretos para que possa chegar à conclusão de que lhe provocarão os danos directos, com contornos de difícil de reparação.
Todavia, adiantando, no caso dos autos, não nos parece que exista algum dano que facilmente atinja o requerente.
O requerente, nas suas intensas alegações do requerimento, não alegou, de todo em todo lado, nenhum factos concretos demonstradores dos prejuízos directos, muitos menos de difícil reparação para si próprio, nem sequer apresentar prova para tal conclusão.
Na grande parte do requerimento, a requerente alegou os fundamentos que poderiam eventualmente servir dos fundamentos do recurso contencioso, onde se discute a legalidade do acto administrativo. Mas, no presente pedido de suspensão de eficácia, não estará em causa a análise dos fundamentos e pressupostos do acto recorrido - domínio por onde se espraia a requerente desta providência, alegação que aqui se mostra inócua - , havendo que partir, no âmbito do presente procedimento preventivo e conservatório, da presunção da legalidade do acto e da veracidade dos respectivos pressupostos e que serão analisados no recurso contencioso de que aquele depende.12
O que o mesmo alegou se encontra essencialmente nos articulados 54° a 68º do seu Requerimento, a não renovação implica a desocupação desse imóvel, a dissolução e liquidação da 《Companhia de Importação e Exportação B, Lda.》, com a extinção dos postos de trabalho dos trabalhadores. Porém, tais ditos prejuízos não virão causar ao próprio requerente, eventualmente sofreu ou sofreria.
Nestes termos, e sem mais fundamentos alongados, não vislumbramos que se verifique in casu o requisito consignado na alí. a) do n.° 1 do art. 121 ° do CPAC.
Assim sendo, dão-se por inverificados os requisitos da suspensão de eficácia do acto administrativo ora em causa, indeferindo o pedido.
Pelo exposto, acordam neste Tribunal de Segunda Instância em indeferir a requerida suspensão de eficácia.
Custas pelo requerente.
Macau, RAE, aos 29 de Setembro de 2011
Choi Mou Pan
João A. G. Gil de Oliveira
Lai Kin Hong (Vencido nos termos da declaração de voto que se junta)
Estive presente
Mai Man Ieng
Processo nº 570/2011/A
Declaração de voto de vencido
Enquanto relator, apresentei o projecto do Acórdão sugerindo o indeferimento da requerida suspensão de eficácia com fundamento no seguinte:
De acordo com os elementos constantes doa autos e do processo instrutor, podem ser seleccionados os seguintes factos com relevância à decisão do presente pedido da suspensão de eficácia:
* Desde 1993, a A, foi concedida a licença para a ocupação a título precário da ponte-cais nº 23;
* Após as sucessivas renovações com a duração de um ano, a data do terminus da última renovação é 31DEZ2010;
* Em 14OUT2010, a Companhia de Importação e Exportação B, Limitada, na qualidade do procurador e em representação do titular da licença A, formulou o pedido da renovação da mesma licença;
* Pedido esse veio a ser indeferido por despacho datado de 04JUL2011 do Senhor Secretário para os Transportes e Obras Públicas;
* E em consequência, pelo mesmo despacho, foi determinada desocupação e entrega da ponte-cais à gestão pela Administração da RAEM;
Antes de mais, é de frisar que, como vimos supra, a entidade requerida suscitou a questão sobre a natureza do acto administrativo cuja suspensão se requer, defendendo que o acto em causa tem conteúdo meramente negativo, e consequentemente não susceptível de ser objecto do pedido de suspensão de eficácia.
Assim sendo, temos de nos debruçar sobre esta questão primeiro.
Tradicionalmente falando, a suspensão de eficácia tem uma função conservatória ou cautelar, admitida no âmbito dos processos do contencioso administrativo, que visa obter provisoriamente a paralização dos efeitos ou da execução de um acto administrativo. Assim, o acto administrativo cuja suspensão se requer tem de ter, por natureza, conteúdo positivo, pois de outro modo, a ser decretada a suspensão, em nada alteraria a realidade preexistente, deixando o requerente precisamente na mesma situação em que se encontra.
In casu, trata-se de uma questão inserida na matéria do uso privativo dos terrenos do domínio público hídrico.
Matéria essa era regida, antes do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau, pela Lei nº 6/86/M de 26JUL.
Por força do disposto no Anexo II à Lei de Reunificação (a Lei nº 1/1999), a mesma Lei nº 6/86/M não foi adoptada como lei da Região Administrativa Especial de Macau por ser contrária à Lei Básica.
Apesar disto, não há ainda diploma legal emanado pelo órgão competente próprio da Região Administrativa Especial de Macau a preencher a lacuna deixada pelo simples facto de a Lei de Reunificação não ter adoptado a Lei nº 8/86/M como lei da Região Administrativa Especial de Macau.
Todavia, o legislador do primeiro diploma legal após o estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau, já alertado e cauteloso, já fez consagrar na Lei de Reunificação, mais concretamente no seu Anexo II, uma norma transitória, nos termos da qual “enquanto não for elaborada nova legislação, pode a Região Administrativa Especial de Macau tratar as questões nela reguladas de acordo com os princípios contidos na Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau, tendo por referência as práticas anteriores.”.
Não havendo uma lei reguladora dessa matéria, elaborada pelo órgão constitucionalmente competente, após o estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau, as sucessivas renovações da licença foram deferidas justamente com fundamento nas regras seguidas pelas práticas anteriores.
Então neste contexto passemos à apreciação do presente pedido da suspensão tendo por referência as práticas anteriores, fundadas nas disposições consagradas na então Lei nº 8/86/M, desde que em nada contrariam os princípios contidos na Lei Básica.
Por força do disposto no artº 12º/1 da então Lei nº 8/86/M, são objecto de licença todos os usos privativos do terreno do domínio público hídrico que não exijam a realização de investimento em instalações fixas e indesmontáveis e que não sejam considerados de utilidade pública.
Por sua vez, o artº 14º do mesmo diploma reza que as licenças são outorgadas pelo período de um ano, não podendo o prazo das renovações sucessivas exceder, para cada uma, um ano.
Quanto à caducidade e à extinção da licença, os artºs 17º e 20º estabelecem que decorrido o prazo da licença entretanto não renovada, as instalações desmontáveis devem ser removidas e que as licenças podem ser extintas, mediante acto fundamentado.
Atendendo ao conteúdo desse conjunto dos dispositivos, salta à vista que nenhum deles contaria os princípios e normativos contidos na Lei Básica na matéria da gestão dos terrenos e recursos naturais da Região Administrativa Especial de Macau.
Na verdade, dispõe o artº 7º da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau que:
Os solos e os recursos naturais na Região Administrativa Especial de Macau são propriedade do Estado, salvo os terrenos que sejam reconhecidos, de acordo com a lei, como propriedade privada, antes do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau. O Governo da Região Administrativa Especial de Macau é responsável pela sua gestão, uso e desenvolvimento, bem como pelo seu arrendamento ou concessão a pessoas singulares ou colectivas para uso ou desenvolvimento. Os rendimentos daí resultantes ficam exclusivamente à disposição do Governo da Região Administrativa Especial de Macau.
A concessão da licença para a ocupação a título precário mostra-se portanto perfeitamente compatível com os princípios fundamentais contidos nesse artº 7º da Lei Básica.
Então podemos passar a analisar o presente caso tranquilamente tomando como padrão as práticas anteriores fundadas na Lei nº 8/86/M, nomeadamente no disposto naquelas normas acima referidas.
Compulsados os autos, verifica-se que foi ao abrigo da prática anterior coberta pelo disposto no artº 14º da Lei nº 8/86/M que o ora requerente requereu ao Governo da RAEM a renovação da licença para a ocupação a título precário da ponte-cais nº 23 do Porto Interior.
Nos termos do disposto do artº 20º/1 e 2 do mesmo diploma, a licença pode ser extinta, mediante acto fundamentado, se o objecto da licença for considerado necessário à utilização pelo público sob a forma de uso comum ou se outro motivo de interesse público assim o exigir.
Por maior da razão, a renovação de uma licença pode indeferida com base nos mesmos fundamentos por força dos quais, o interesse do titular da licença deve recuar perante a necessidade de prossecução de interesses públicos.
O que significa logo que a renovação de uma licença para a ocupação a título precário comporta sempre o exercício de um poder discricionário e nunca um acto vinculado.
Pela leitura da informação sobre a qual incidiu o despacho de cuja eficácia ora se requer a suspensão, sabe-se que é pela necessidade da construção de uma via rodoviária exclusiva a transporte colectivo, ligando as Portas do Cerco à Barra e necessariamente passando pelo terreno onde se situa a ponte-cais nº 23, que lhe foi indeferida a renovação da licença, uma vez que os terrenos para a cuja ocupação a título precário foi licenciado o ora requerente são considerados necessários, segundo a política de transporte traçada pela Administração, à construção daquela infra-estrutura de transporte.
Para o requerente, o indeferimento da requerida renovação implica a perda da titularidade da licença de ocupação, a consequente dissolução e liquidação da sociedade procuradora dele (a Companhia B), a perda dos rendimentos com os quais há muitos anos têm podido contar e a final o despedimento não desejável dos trabalhadores desse procurador seu.
Independentemente da questão de saber se essas alegadas “perdas” são do próprio requerente, o acto cuja suspensão se requer não pode deixar de ser um acto meramente negativo sem vertente positiva.
Pois, se é certo que ao requerente foi concedida e depois sucessivamente renovada a licença para a ocupação, inicialmente na Administração portuguesa ao abrigo do diploma regulador do uso privativo de um bem no domínio público hídrico, e depois na Administração da RAEM com base nas práticas anteriores, não é menos verdade que essa licença é aprazada, a título precário, ou seja, tinha um prazo de validade previamente determinada e um carácter precário.
Assim, apesar de a lei prever a possibilidade de renovação da tal licença, o certo é que a renovação representa sempre o exercício de um poder discricionário da Administração da Região Administrativa Especial de Macau.
Não atribuindo a lei aos interessados uma expectativa firme de ser renovada a tal licença para ocupação a título precário, não podemos dizer que no caso sub judice da execução do despacho de não renovação da tal licença decorra um efeito ablativo de um bem jurídico detido pelo interessado, pois não se pode olvidar que o statu quo ante não era temporalmente ilimitado e definitivo, mas sim com a duração previamente fixada, embora renovável, e com o carácter precário.
Falando sob outro prisma, se a renovação da licença não decorrer do exercício de poderes vinculados, mas sim de poderes discricionários, o acto de não renovação não pode deixar de ser meramente negativo sem vertente positiva.
Por outro lado, mesmo admitindo a existência de vertente positiva susceptível de suspensão, a decisão deste tribunal administrativo nunca se substitui à decisão da Administração no sentido de fazer renovar ou prorrogar a licença já expirada por forma a permitir a ocupação por parte do requerente ou do seu procurador da ponte-cais nº 23.
A não ser assim, ao decretar a suspensão de eficácia do despacho em causa, estaria o Tribunal a dar uma ordem à Administração de renovar ou prorrogar a licença já caducada, substituindo-se assim à Administração no desempenho das suas funções administrativas.
O que obviamente colide com o princípio de separação de poderes.
De facto, a simples não execução do despacho de indeferimento do pedido da renovação não implica directamente a renovação de uma licença, renovação essa que é justamente o efeito pretendido pelo requerente.
Pelo exposto, entendemos que é de indeferir o presente requerimento de suspensão de eficácia pela não verificação ab initio do pressuposto a que se alude o artº 120º-b) do CPAC.
Convicto da bondade da posição por mim assumida neste segmento do projecto que submeti à apreciação em conferência, votei vencido o Acórdão antecedente.
RAEM, 29SET2011
Lai Kin Hong
1Acórdão do TSI do processo 30/ 00/ A.
2 F. Amaral, in “Direito Administrativo” III, pp. 155-156.
3 F. Amaral, in “Direito Administrativo” III, pp. 155-156.
4 Maria Fernanda dos Santos Maçãs, A suspensão judicial da eficácia dos actos administrativos e a garantia constitucional da tutela judicial efectiva, in Boletim da Faculdade de Direito de Universidade de Ciombra, Stvdia Ivridica, 22º, 1996, p. 85.
5Cfr., a propósito, Drs. Cláudio Monteiro, “Suspensão de Eficácia dos Actos Administrativos de Conteúdo Negativo” ed. A.A.F.D.L. 1990, e Pedro Machete, “Suspensão Jurisdicional da Eficácia dos Actos Administrativos e a Garantia Constitucional do Tutela Efectiva, 45-107). Neste sentido também o Acórdão deste TSI de 21 de Fevereiro de 2002 do Processo nº 190/2001/A
6 Vide no nosso acórdão de 10 de Março de 2011 do processo n° 41/2011-A, onde também citou dos autores: DIOGO FREITAS DO AMARAL Curso de Direito Administrativo, vol. II, Almedina, Coimbra, 2001, p. 279; MARIA FERNANDA MAÇÃS, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº2, 13 e 16, JOSÉ CARLOS VIEIRA de ANDRADE, in A Justiça administrativa, pag. 143; M. ESTEVES DE LIVEIRA e outros, in Código de Procedimento Administrativo, 2ª ed., pag. 716/717; SÉRVULO CORREIA in, “Noções de Direito Administrativo”, Vol. I, pág. 527; Ac. do TSI de 13/10/2005, Proc. n. 238/2005-A.
7 - Vieira de Andrade, Justiça Administrativa, 3ª ed., 176; v.g. Ac. do TSI, de 2/12/2004, proc.299/03
8 - Ac. STA, de 8/3/00, proc. 45851-A
9 - Vieira de Almeida, ob. cit., 179. Neste sentido o acórdão deste Tribunal de 17 de Janeiro de 2008, do processo n° 717/2007.
10 Neste sentido, por exemplo, ver o Ac. do TUI de 14/05/2010, Proc. n.15/2010.
11 Ac. do TUI de 13/05/2009, Proc. n. 2/2009.
12 Neste sentido vide o Acórdão do TSI de 2 de Junho de 2011 do processo n° 273/2011.
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