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Processo nº 794/2010
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 24 de Novembro de 2011
Descritores:
-Declaração de remissão/quitação
-Vícios da vontade

SUMÁRIO

I - A remissão consiste no que é vulgarmente designado por perdão de dívida.
II - A quitação (ou recibo, no caso de obrigação pecuniária) é a declaração do credor, corporizada num documento, de que recebeu a prestação.
III - O reconhecimento negativo de dívida é o negócio pelo qual o possível credor declara vinculativamente, perante a contraparte, que a obrigação não existe.
IV - O reconhecimento negativo da dívida pode ser elemento de uma transacção, se o credor obtém, em troca do reconhecimento, uma concessão; mas não o é, se não se obtém nada em troca, havendo então um contrato de reconhecimento ou fixação unilateral, que se distingue da transacção por não haver concessões recíprocas.
V - A remissão ou quitação de créditos do contrato de trabalho é possível após a extinção das relações laborais.
VI - É válida a declaração assinada por um trabalhador, em que afirma ter recebido determinada quantia como compensação pelo trabalho prestado em dias de descanso semanal, anual e feriados obrigatórios, e em que anuncia não subsistir nenhum outro crédito emergente da relação laboral sobre a sua entidade se não ficar provado que tal declaração foi assinada com vício da vontade ou com outro qualquer vício que a torne nula ou anulável.







Processo nº 794/2010
(recurso Cível e laboral)

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.


I- Relatório

A, com os demais sinais dos autos, intentou contra a STDM e SJM acção de processo comum de trabalho pedindo a condenação desta no pagamento da quantia total de MOP$ 757.383,63, a título de indemnização pelo não pagamento do trabalho prestado em dias de descanso semanal, anual e feriados, danos não patrimoniais e dos juros respectivos.
Pediu ainda a declaração de nulidade ou anulação da declaração a que se refere nos arts. 173º e sgs. da petição inicial.
*
Na sua contestação, a STDM, antes da defesa por impugnação, excepcionou a prescrição dos créditos invocados pelo autor e remissão da dívida.
A SJM, por seu turno, além da impugnação, excepcionou a sua ilegitimidade passiva e o pagamento dos créditos reclamados.
*
No despacho saneador, a 1ª instância julgou improcedente a excepção de prescrição e de ilegitimidade passiva da 2ª ré e relegou para final o conhecimento da excepção de pagamento/renúncia.
*
Os autos prosseguiram o seu normal andamento e, na oportunidade, foi proferida sentença, que julgou a acção totalmente improcedente e absolveu as rés do pedido.
*
É dessa sentença que ora vem interposto o presente recurso jurisdicional, em cujas alegações o autor da acção apresentou as seguintes conclusões:
1. Ao contrário do que terá feito o douto Tribunal a quo, em caso algum se poderia ter olvidado que a quantia recebida e aceite pelo Autor, aqui Recorrente, se tratava de um simples e mero “prémio de serviço”, tal qual resulta, aliás, do único sentido literal possível;
2. Assim, o Autor, ora Recorrente, tão-só assinou a “declaração” e aceitou o montante do “prémio de serviço” por estar convencido de que uma mera liberalidade ou compensação extra se tratava, tal qual lhe havia sido expressamente comunicado e informado pela DSTE;
3. Em concreto, da simples leitura do primeiro parágrafo da declaração subscrita pelo Autor, ora Recorrente, em 16 de Julho de 2003, fácil é de ver que a mesma faz referência a um «prémio de serviço» “referente ao pagamento de compensação extraordinária de eventuais direitos relativos a descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, eventual licença de maternidade e rescisão por acordo do contrato de trabalho decorrentes do vínculo laboral com a STDM”;
Ao que acresce que,
4. Todo o conteúdo da referida declaração é manifestamente vago, ambíguo e impreciso, porquanto se limita a falar em “compensações extraordinárias”, “eventuais direitos” e “eventual licença”, sem apresentar quaisquer factos ou circunstâncias que dissessem respeito à concreta relação laboral que o Autor manteve com a 1.a Ré (STDM), o que só por si torna impossível a mesma de servir enquanto instrumento de renúncia, pois esta pressupõe a existência de um certo e determinado direito na esfera do seu titular;
5. Suscita estranheza que um “documento” assinado em 16 de Julho de 2003 faça referência à “rescisão por acordo do contrato de trabalho decorrente, do vínculo laboral com a STDM”, porquanto se encontra provado nos presentes autos que” a partir do dia 21 de Julho de 2002, o Autor iniciou a sua prestação de trabalho para a 2.a Ré (SJM)” (4.º);
6. Assim, a única consequência que se poderá retirar da “declaração” assinada pelo Autor, ora Recorrente, em 16 de Julho de 2003, é a de que a mesma tão-só e apenas comprova o recebimento da quantia na mesma descriminada;
7. Confrontando-se o valor constante da declaração assinada pelo Autor, ora Recorrente, e o valor total do pedido, é notório que o montante constante da declaração é manifestamente inferior àquele, o que deixa ver que, nos termos do disposto no art. 6º do Decreto-Lei nº 24/89/M, de 3 de Abril, interpretado a contrario, em caso algum poderão ser admitidos acordos ou convenções, estabelecidos entre os empregadores e trabalhadores, dos quais resultam condições de trabalho menos favoráveis para os trabalhadores do que as que resultariam da aplicação da Lei;
8. Ademais, resulta do pedido que os créditos reclamados pelo Autor, ora Recorrente, e reivindicados nos presentes autos são créditos resultantes do incumprimento por parte da 1.a Ré (STDM) do mínimo das condições de trabalho imperativamente fixadas no Decreto-Lei nº 24/89/M, de 3Abril;
9. E, neste sentido, com facilidade se nota que o benefício que o “prémio de serviço” representa para o Autor, ora Recorrente, é claramente muito inferior ao que lhe é devido à luz do Regime Jurídico das Relações Laborais;
10. Ora, dada a natureza imperativa do artº 6º do Decreto-Lei nº 24/89/M, de 3Abril, em caso algum se poderá aceitar como lícito um acordo entre empregador e trabalhador que se mostre aquém do mínimo de protecção que a Lei das Relações de Trabalho quer dispensar aos trabalhadores da RAEM;
11. Ao contrário do que terá concluído o Tribunal a quo, o conteúdo da segunda parte da declaração assinada pelo Autor, ora Recorrente, em 16 de Julho de 2003, é nulo e de nenhum efeito, desde logo porque frontalmente viola o disposto nos artigos 5.º e 6.º do Decreto-Lei n,” 24/89/M, de 3 de Abril, ao consagrar uma diminuição ou eliminação de condições de trabalho estabelecidas e observadas entre a I.” Ré (STDM) e o Autor, ora Recorrente;
12. O facto de a declaração ter sido subscrita no momento ou após ter cessado a relação de trabalho que unia o Autor, ora Recorrente, à 1.a Ré (STDM) em caso algum poderá ser invocado como argumento válido para afastar o Autor, aqui Recorrente, do âmbito da protecção mínima estabelecida no art.º 6º do Decreto-Lei nº 24/89/M, de 3Abri1;
Desde logo, porque,
13. “O salário, se é certo que se não confunde com o direito à vida, traduz-se numa das suas mais significativas exigências, podendo dizer-se que constitui uma necessidade vital do trabalhador e respectiva família” (cfr. Jorge Leite, Direito do Trabalho, Vo1. II, Coimbra, p. 161);
E, deste modo,
14. “ (...) não se vê em que é que o facto de o crédito salarial se vencer o torna menos merecedor de tutela do que o crédito salarial vincendo - a sua natureza alimentar não desaparece, por certo, após o vencimento (...) ” (cfr. João Leal Amado, A Protecção do Salário, Coimbra, 1993, p. 215, nota n.º 56);
Porquanto,
15. (...) a irrenunciabilidade é outrossim reclamada pela natureza do próprio direito ao salário, enquanto direito marcado por uma nota fortemente alimentar, sendo evidente que a função alimentar da retribuição não se altera com a cessação do contrato, pelo que não se vislumbram razões válidas para baixar a guarda ao direito ao salário após a extinção do vínculo laboral. Urge, pois, superar a perspectiva tradicional - unidimensional - sobre esta questão, substituindo-a por uma perspectiva bidimensional que funde a tendencial irrenunciabilidade dos créditos salariais, não apenas no carácter hierarquizado ou subordinado da relação de trabalho, mas também na função alimentar desempenhada por estes créditos, função que subsiste mesmo após a dissolução do contrato de trabalho” (Cfr. João Leal Amado, «A RETRIBUIÇÃO E A LEI DAS RELAÇÕES DE TRABALHO DE MACAU: HESITAÇÕES E CONVICÇÕES DE UM JURISTA LUSITANO», «SEMINÁRIO SOBRE O NOVO REGIME DAS RELAÇÕES DE TRABALHO», organizado pelo Centro de Formação Jurídica e Judiciária, que decorreu na RAEM nos dias 25 e 26 de Julho de 2009);
E, sendo assim,
16. Em caso algum o Tribunal a quo deveria ter concluído que os créditos laborais do Autor, ora Recorrente, eram indisponíveis somente durante a vigência do contrato e disponíveis após a sua cessação e mostrando-se o conteúdo da “declaração” assinada pelo Autor em 16 de Julho de 2003, contrário ao conteúdo de uma norma imperativa, é a mesma ser nula, nos termos do disposto no art.º 279º do Código Civil;
17. Sendo nula e de nenhum efeito a declaração assinada pelo Autor em 16 de Julho de 2003 e não obstante ter ficado prejudicada a apreciação dos pedidos apresentados pelo autor, da prova produzida já resultam os elementos necessários à decisão por parte do Tribunal de Segunda Instância;
18. Resultando provado que “O rendimento do Autor desdobrava-se em duas partes, uma fixa, e outra parte variável”, sendo “a segunda determinada em função do montante das “gorjetas” oferecidas pelos clientes”, deve a este respeito seguir-se o entendimento unânime do Tribunal de Segunda Instância e considerar que” o salário (dos trabalhadores da STDM, e in casu do Recorrente) corresponde a um rendimento global/total (...) uma quantia fixa e as gorjetas”, devendo ser este o montante a ter em conta na determinação dos montantes indemnizatórios devidos pelas Rés ao Autor em virtude do não gozo de dias de descanso semanal, anual e, bem assim, de feriados obrigatórios;
19. Ademais, o Autor, ora Recorrente, sempre entendeu que o seu salário era integrado exactamente pelas duas referidas quantias: uma fixa e outra variável composta pelas chamadas “gorjetas” e a isto acresce que, foi justamente a soma destas duas quantias que durante toda a relação laboral serviram para retribuir a sua prestação de trabalho;
20. Face à desproporção do montante variável pago a título de “gorjetas” em relação à retribuição fixa estabelecida no contrato, o Autor, aqui Recorrente, nunca teria aceite estabelecer qualquer relação de trabalho com a Ré caso a sua quota-parte no valor daquelas não fizesse parte do vencimento;
21. In casu, as gorjetas auferidas pelo Recorrente, na sua última ratio devem ainda ser vistas como “rendimentos do trabalho”, sendo devidos em função, por causa e por ocasião da prestação de trabalho, ainda que não originariamente como correspectividade dessa mesma prestação de trabalho, mas que o passam a ser a partir do momento em que pela prática: habitual, montantes e forma de distribuição, com eles o trabalhador passa a contar;
22. Tendo ficado provado que desde o início da relação de trabalho entre o Autor e a 1.a Ré (STDM) até ao seu termo, por imposição da 1.a Ré (STDM), o Autor trabalhou todos os dias de descanso semanal, anual e feriados obrigatórios” (cfr. Quesito 1º); “Nunca beneficiou ou gozou de qualquer dia de descanso semanal, anual e feriados obrigatórios” (cfr. Quesito 2.º) e que, iii) “ (...) o Autor nunca beneficiou de qualquer acréscimo salarial pelo trabalho prestado nos dias de descanso semanal, anual e feriados obrigatórios (...) ” (Quesito 3.º), devem as Rés ser condenadas a pagar ao Autor a quantia de MOP$578,096.00 (quinhentas e setenta e oito mil e noventa e seis patacas) a título de compensação pelo número de dias de descanso semanal que o autor deixou de gozar, acrescido de MOP$95,310.00 (noventa e cinco mil e trezentas e dez patacas) a título de compensação pelo número de dias de descanso anual que o autor deixou de gozar e de MOP$97,038.00 (noventa e sete mil e trinta e oito patacas) a título de compensação pelo número de dias de feriados obrigatórios remunerados que o autor deixou de gozar, tudo tal qual alegado pelo Autor na sua Petição Inicial.
*
A STDM respondeu ao recurso nos seguintes termos conclusivos:
A. A Douta Sentença Recorrida andou bem ao julgar que não existiu qualquer transmissão de empresa comercial entre a ora Recorrida e a Sociedade de Jogos de Macau, S. A.;
B. Pelo que deve manter-se o decidido, absolvendo-se integralmente qualquer das duas Recorridas.
C. O Recorrente e Recorrida celebraram validamente um negócio jurídico de Remissão de Créditos, cerca de um ano depois da cessação da relação laboral; não merecendo reparo a decisão tomada pelo Tribunal a quo.
D. As fichas que a outra Recorrida nos presentes autos, Sociedade de Jogos de Macau S. A., ficou autorizada a utilizar (por força da cláusula centésima, quarta do Contrato de Concessão da para a Exploração de Jogos de Fortuna e Azar em Casino) não são um estabelecimento comercial à luz da lei de Macau.
E. O Recorrente celebrou com a Recorrida um negócio jurídico de Remissão de Créditos válido, cerca de um ano depois da cessação da relação laboral.
F. Veja-se, a mero título de exemplo, um excerto do douto Acórdão do Tribunal de Última Instância da R. A. E. M. de de 30 de Julho de 2008, proferido no Processo n.º 27/2008: “A remissão de créditos do contrato de trabalho é possível após extinção das relações laborais”.
G. A Sentença Recorrida respeitou o artigo 8540 do Código Civil, na medida em que todos os pressupostos dessa modalidade de extinção de dívidas se encontravam preenchidos na data em que foi proferida a declaração remissiva.
H. A remissão de créditos é um negócio jurídico de extinção das obrigações, previsto nos artigos 854º a 858º do CC em Macau e as relações laborais entre o ora Recorrente e a aqui Recorrida, já tinham terminado quando foram remitidas as dívidas.
I. O objectivo dos então aplicáveis, Regime Jurídico das Relações de Trabalho de 1984 e de 1989 (RJRT de 1984 e RJRT de 1989, respectivamente) é o de definir (em) os condicionalismos mínimos que devem ser observados na contratação de trabalhadores residentes e não as relações jurídicas pós-contratação, como no caso sub judice.
J. Dissecando o preceito normativo do artigo 6º do RJRT de 1984 e de 1989, encontramos três definições essenciais, que estão expressamente estatuídas no Diploma que regula as relações de trabalho e que, de per si, bastariam para que não pudesse ser outro o sentido da decisão recorrida, como muito bem considera a mesma: “Empregador”, “Trabalhador” e “Condição de Trabalho”.
K. Ora, no caso dos autos:
i. Já não estávamos em presença de trabalhadores e empregadores, visto que essa relação laboral tinha cessado há cerca de um ano;
ii. Não pode falar-se em “condição de trabalho” sem que haja um trabalhador e um empregador e uma relação laboral entre eles.
L. Não existindo relação laboral, contratual ou outra entre a ora Recorrida e o Recorrente à data da assinatura da declaração junta à Contestação como Documento n.º 1 de fls. 245 destes autos, não existia qualquer indisponibilidade de créditos, pelo que a referida declaração é válida e eficaz entre as partes.
M. Pelo que, salvo melhor entendimento, não procede a alegação do Recorrente em considerar serem de aplicar ao caso o preceituado nos artigos 6º do RJRT de 1989, 5º do mesmo RJRT de 1989, 33º do mesmo RJRT de 1989,279º do CC de 1999 e 287º do mesmo Código.
N. Falecendo a única doutrina invocada longamente nas páginas 5, 6, 7, 8, 9, a nota de rodapé n.º 4 de página 9, Conclusões “14., 15.” e, amiúde, a douta Jurisprudência invocada na Conclusão 18. das mesmas alegações de recurso ora contraditadas.
O. Assim, deve manter-se integralmente a Sentença de Absolvição da Ré e aqui ora Recorrida, de acordo com a decisão proferida em 16 de Julho de 2010,
P. Só assim se fazendo a habitual e costumada Justiça, que V. Exas do Douto Tribunal recorrente também, certamente, o farão.
*
A SJM aderiu ao teor da resposta ao recurso apresentada pela STDM.
*
Cumpre decidir.
***
II- Os Factos
A sentença recorrida deu por provada a seguinte factualidade:
  Desde Janeiro de 1962, a 1a Ré (STDM) foi titular de um Contrato de Concessão para a Exploração, em regime de exclusividade, de jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casinos, para o Território de Macau, criado pela portaria n.º 18267, de 13 de Fevereiro de 1961. (A)
  Por Despacho do Chefe do Executivo n.º 76/2002, de 27 de Março, foi adjudicada uma concessão de exploração do sector do jogo à 2a Ré (SIM), que se encontra titulada pelo “Contrato de Concessão para a Exploração de Jogos de Fortuna ou Azar ou Outros Jogos em Casino na RAEM”, publicado no BO-RAEM n.º 14, II Série, Suplemento de 3 de Abril de 2002, pelo prazo de 18 (dezoito) anos. (B)
  O autor manteve uma relação contratual com a Ré STDM no período temporal compreendido entre 14 de Junho de 1990 e 20 de Julho de 2002.(C)
  Exercendo funções de “croupier”, “dealer”, e trabalhando sobre as ordens, direcção, instruções e fiscalização desta. (D)
  O rendimento do Autor desdobrava-se em duas partes, uma parte fixa, e outra parte variável. (E)
  A primeira calculada com base no valor da remuneração fixa diária. (F)
  Sendo de HKD$ 10,00 desde o início da relação laboral até 30 de Abril de 1995; e desde O 1 de Maio de 1995 até ao fim da relação laboral de HKD$ 15,00. (G)
  E a segunda determinada em função do montante das “gorjetas” oferecidas elos clientes. (H)
  As “gorjetas” não se destinavam, em exclusivo, aos trabalhadores que lidavam directamente com os clientes de casinos. (I)
  O Autor não podia ficar com quaisquer “gorjetas” que lhe fossem entregues pelos clientes do casino. (J)
  As “gorjetas” recebidas pelos empregados eram colocadas, por ordem da Ré, numa caixa destinada exclusivamente para esse efeito, e eram contadas diariamente por funcionários da Ré, sob vigilância da Direcção de Coordenação de Inspecção e Coordenação de Jogos, a fim de serem distribuídas de 10 em 10 dias aos diversos empregados consoante uma dada percentagem anteriormente fixada pela Ré. (K)
  Sobre os rendimentos incidiu imposto profissional nos termos que constou da certidão de rendimentos de fls. 76, de cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. (L)
  A 16 de Julho de 2003 o Autor emitiu a declaração constante de fls. 245, de cujo teor se passa a transcrever:
Declaração
  Eu, A,
  titular do BIR n.º 5/XXXXXX/0, recebi, voluntariamente, a título de prémio de serviço, a quantia de MOP$ 26.122,74 da Sociedade de Turismo e Diversões de Macau (doravante simplesmente designada por STDM) , referente ao pagamento de compensação extraordinária de eventuais direitos relativos a todos os dias de licença (descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, eventual licença de maternidade) e rescisão por acordo do contrato de trabalho, decorrentes do vinculo laboral com a STDM.
  Mais declaro e entendo que, recebido o valor recebido, nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a STDM subsiste e, por consequência, nenhuma quantia é por mim exigível, por qualquer forma, à STDM, na medida em que nenhuma das partes deve à outra qualquer compensação relativa ao vínculo laboral.
  (A Declarante): (ass.) A.
  BIR n.º: 5/XXXXXX/0
  Data: 16-7-2003
  
  Concordo e aceito tal declaração
  (ass.) - (Vide o original).
  2003.07.16
  (carimbo) - STDM * Departamento do Pessoal. (N)
  O Autor recebeu junto da então Direcção de Serviços de Trabalho e Emprego (DSTE), que deu origem ao processo n.º 1476/2002, a quantia de MOP$ 13.061,37. (O)
  Em 25 de Setembro de 2003,0 Autor, por sua vontade, extinguiu o contrato de trabalho com a 2a Ré SJM. (Q)
  Desde o início da relação de trabalho entre o Autor e a 1a Ré (STDM) até ao seu termo, por imposição da 1a Ré (STDM), o Autor trabalhou todos os dias de descanso semanal, anual e feriados obrigatórios. (1º)
  Nunca beneficiou ou gozou de qualquer dia de descanso semanal, anual e feriados obrigatórios. (2º)
  O Autor nunca beneficiou de qualquer acréscimo salarial pelo trabalho prestado nos dias de descanso semanal, descanso anual e feriados obrigatórios, excepto as quantias referidas na al. n) e o) dos factos assentes. (3º)
  A partir do dia 21 de Julho de 2002, o Autor iniciou a sua prestação e trabalho para a 2a Ré (SJM). (4º)
  O Autor gozou 24 dias de descanso no ano de 1993, 2 dias de descanso no ano de 1994, 32 dias do descanso no ano de 1995, 9 dias de descanso no ano de 1996, 8 dias de descanso no ano de 1997, 10 dias de descanso no ano de 1998. (16º)
  Os trabalhadores da Ré até 2002, tal como na situação do Autor, podiam gozar um máximo de 40 dias seguidos ou corridos e um número ilimitado de dias interpolados de descanso não remunerado. (17º)
  Para tal, bastava que preenchesse um formulário. (18º)
  Os formulários eram remetidos à Secretaria da Ré. (19º)
  As gorjetas eram reunidas diariamente, após o que eram contabilizadas e guardadas por uma comissão paritária com a seguinte composição: um funcionário do Departamento da Inspecção de Jogos de Fortuna ou Azar; um membro do Departamento da Tesouraria da Ré; um Gerente de Andar ou Floor Manager; um ou mais Trabalhadores/ Croupiers das mesas de Jogo. (20º)
  Desde o início da relação laboral até 2002, o rendimento médio diário do Autor correspondia aos seguintes valores:
a) Ano de 1990 = MOP$ 176,00
b) Ano de 1991 = MOP$ 264,00
  c) Ano de 1992 = MOP$ 340,00
  d) Ano de 1993 = MOP$ 367,00
  e) Ano de 1994 = MOP$ 427,00
  f) Ano de 1995 = MOP$ 473,00
  g) Ano de 1996 = MOP$ 521,00
  h) Ano de 1997 = MOP$ 535,00
  i) Ano de 1998 = MOP$ 528,00
  j) Ano de 1999 = MOP$ 493,00
  k) Ano de 2000 = MOP$ 498,00
  l) Ano de 2001 = MOP$ 505,00
  m) Ano de 2002 = MOP$ 528,00 (21º)
  O rendimento do Autor pago pela 2a Ré (SJM) era de MOP$ 5.000,00 por mês entre 21 de Julho de 2002 até ao final do contrato, em 26 de Setembro de 2003. (22º)
***
III- O Direito
Como se alcança perfeitamente da sentença, a improcedência do pedido ficou a dever-se à circunstância de a 1ª instância ter configurado a declaração constante de fls. 245 dos autos como um documento de “quitação” com “reconhecimento negativo da dívida”.
O recorrente, diferentemente, acha que ele não pode ter essa leitura, pois do documento resulta que se tratava do recebimento de um prémio de serviço, em montante muito inferior ao devido à luz do Regime Jurídico das Relações Laborais e nos autos reclamado. Além disso, insiste na nulidade da 2ª parte da referida declaração por violador dos arts. 5º e 6º do DL nº 24/89/M, de 3/04.
Apreciemos.
Questão com os contornos daquela que aqui se discute, foi já tratada nos tribunais da RAEM, inclusive pelo TUI. Veja-se o que este tribunal asseverou a propósito (Ac. do TUI de 30/07/2008, no Proc. nº 27/2008):
“A remissão é o contrato pelo qual o credor, “com a aquiescência do devedor”, renuncia ao poder de exigir a prestação devida, afastando definitivamente da sua esfera jurídica os instrumentos de tutela do seu interesse”1.
E acrescenta ANTUNES VARELA, “o interesse do credor a que a obrigação se encontra adstrita não chega a ser satisfeito, nem sequer indirecta ou potencialmente.
A obrigação extingue-se sem haver lugar a prestação2”.
A remissão consiste no que é vulgarmente designado por perdão de dívida3.
Aliás, remitir significa perdoar.
Ora, não parece ter sido isto que sucedeu, em face da declaração da autora.
A autora declarou que recebeu a prestação, que quantificou. E reconheceu mais nada ser devido em relação à relação laboral que já se tinha extinguido.
Mas não quis perdoar a totalidade ou mesmo parte da dívida, ou pelo menos não é isso que resulta da declaração, nem foi alegado ter sido essa a sua intenção.
Parece, portanto, tratar-se de quitação ou recibo, que é a declaração do credor, corporizada num documento, de que recebeu a prestação, prevista no art. 776.º do Código Civil.
Explicam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA4 que a “quitação é muitas vezes, como Carbonnier (Droit civil, 4, 1982, n.º 129, pág. 538) justamente observa, não uma simples declaração de recebimento da prestação, mas a ampla declaração de que o solvens já nada deve ao accipiens, seja a título do crédito extinto, seja a qualquer outro título (quittance pour solde de tout compte)”.
Poderá, desta maneira, a quitação, ser acompanhada de reconhecimento negativo de dívida, que é, na lição de ANTUNES VARELA5, o negócio “pelo qual o possível credor declara vinculativamente, perante a contraparte, que a obrigação não existe.
...
O reconhecimento negativo de dívida, assente sobre a convicção (declarada) da inexistência da obrigação, não se confunde com a remissão, que é a perda voluntária dum direito de crédito existente”.
Claro que o reconhecimento negativo da dívida pode dissimular uma remissão, mas para isso há que alegar e provar o facto, o que não aconteceu.
Explica VAZ SERRA6 nos trabalhos preparatórios do Código Civil de 1966, que “o reconhecimento negativo propriamente dito distingue-se da remissão, pois, ao passo que, nesta, existe apenas a vontade de remitir (isto é, de abandonar o crédito), naquele, a vontade é a de pôr termo a um estado de incerteza acerca da existência do crédito”.
E, como ensina o mesmo autor, noutra obra dos mesmos trabalhos preparatórios, a remissão não é de presumir, “dado que, em regra, a quitação não é passada com essa finalidade”7.
O reconhecimento negativo da dívida pode, de outra banda, “ser elemento de uma transacção, se o credor obtém, em troca do reconhecimento, uma concessão; mas não o é, se não se obtém nada em troca, havendo então um contrato de reconhecimento ou fixação unilateral, que se distingue da transacção por não haver concessões recíprocas”8 9.
Mas a transacção preventiva ou extrajudicial não dispensa “uma controvérsia entre as partes, como base ou fundamento de um litígio eventual ou futuro: uma há-de afirmar a juridicidade de certa pretensão, e a outra negá-la”10.
Mas nem da declaração escrita, nem das alegações das partes no processo, resulta tal controvérsia.
Em conclusão, afigura-se-nos mais preciso qualificar a declaração da autora como uma quitação acompanhada de reconhecimento negativo de dívida.
Seja como for, trate-se de quitação, de remissão ou de transacção, os efeitos são semelhantes, já que, como se verá, se está perante direitos disponíveis, uma vez que a relação laboral já havia cessado, pelo que a consequência é a inexistência do direito de crédito contra a ré.
4. Insusceptibilidade de cessão de crédito de salário. Impossibilidade de renúncia a salário. Vícios da vontade
Nas alegações de recurso para o TSI, a autora veio defender que o art. 33.º do RJRL não permite a cedência de créditos, por força do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador. E os trabalhadores estiveram sempre sob alçada económica e disciplinar da ré, já que a B controla a C, pelo que a autora não teve uma vontade livre e esclarecida quando assinaram as declarações.
Mas a declaração de quitação não constitui qualquer cedência de créditos (a quem?).
Acresce que a cedência de créditos só está vedada enquanto durar a relação de trabalho e esta já se tinha extinguido quando foi emitida a quitação.
Por outro lado, ainda que tivesse havido renúncia a créditos, ou seja remissão, ela seria possível porque efectuada após extinção da relação de trabalho.
É o que defende a generalidade da doutrina. Escreve PEDRO ROMANO MARTINEZ11:
“Relacionada com a irredutibilidade12 encontra-se a impossibilidade de renúncia, de cessão, de compensação e de penhora da retribuição. Estas limitações, excepção feita à penhora, só têm sentido na pendência da relação laboral; cessando a subordinação jurídica, o trabalhador deixa de estar numa situação de dependência, que justifica a tutela por via destas limitações”.
  Quanto à alegação de que a autora não teve uma vontade livre e esclarecida quando assinou a declaração, a mesma é irrelevante nesta fase, já que a autora não alegou no momento próprio factos integradores de vícios da vontade.
5. Normas convencionais e declarações negociais. O princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador
O Acórdão recorrido considerou que o art. 6.º do RJRL não permitia o acordo das partes pelo qual a autora, trabalhadora, declarasse remitir a dívida para com a ré, tendo esta declaração violado o princípio de tratamento mais favorável dos trabalhadores.
E acrescentou o mesmo Acórdão, referindo-se ao princípio de tratamento mais favorável, ele “deve ser tido pelo menos também como farol de interpretação da lei laboral, sob o qual o intérprete-aplicador do direito deve escolher, na dúvida, o sentido ou solução que mais favorável se mostre aos trabalhadores no caso considerado, em virtude do objectivo de protecção do trabalhador que o Direito do Trabalho visa prosseguir”.
Na feliz síntese de BERNARDO LOBO XAVIER13 “o princípio do tratamento mais favorável, no plano da hierarquia das normas, significa que as normas de mais alto grau valem como estabelecendo mínimos, podendo ser derrogadas por outras subalternas, desde que mais favoráveis para o trabalhador. No plano da interpretação, na dúvida sobre o sentido da lei, deverá eleger-se aquele que seja mais benéfico para o trabalhador. Na aplicação no tempo, aplicar-se-ão imediatamente todas as regras do trabalho, no pressuposto de que, havendo um constante progresso social, as novas normas são mais favoráveis para o trabalhador, conservando este, ainda, as regalias adquiridas à sombra de anterior legislação”.
  O art. 6.º do RJRL dispõe o seguinte:
“Artigo 6.º
Prevalência de regimes convencionais São, em princípio, admitidos todos os acordos ou convenções estabelecidos entre os empregadores e trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos ainda que disponham de modo diferente do estabelecido na presente lei, desde que da sua aplicação não resultem condições de trabalho menos favoráveis para os trabalhadores do que as que resultariam da aplicação da lei”.
Esta norma prevê que as normas convencionais, estipuladas entre empregadores e trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos, podem afastar o regime das normas legais desde que o regime convencional não seja menos favorável para os trabalhadores do que o regime legal.
Assim, e em primeiro lugar, as normas convencionais de que fala o preceito são normas relativas ao regime do trabalho, para vigorarem enquanto durar a relação laboral.
O acordo dos autos entre a autora e a antiga entidade patronal não é integrado por normas, isto é, não constituem nenhuma regulamentação normativa atinente às condições de trabalho. São antes declarações negociais, pelas quais a autora declara ter recebido as quantias devidas pela relação laboral já extinta e nada mais ter a receber da antiga entidade patronal.
Parece, portanto, que o art. 6.º do RJRL nada tem que ver com a matéria em apreço.
Por outro lado, o art. 6.º do RJRL prescreve, na verdade, o princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, no que respeita à prevalência dos acordos sobre a lei, ao plano da hierarquia das normas.
Mas, no caso dos autos, embora exista um acordo entre partes (entre um ex-trabalhador e uma ex-entidade patronal) não existe nenhuma lei mais favorável ou menos favorável aos trabalhadores ou a ex-trabalhadores, pelo que não se vislumbra, qualquer aplicação do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, na vertente que o art. 6.º do RJRL consagra, que é o da prevalência dos acordos sobre a lei.
Há, é certo, outras vertentes do mesmo princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, por exemplo, no art. 5.º, n.º 1 do RJRL, que é o da manutenção das regalias adquiridas sobre o regime constante do RJRL.
Mas, no caso em apreço não está em causa nenhuma alteração de regime convencional para um regime legal, pelo que a vertente do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, constante do art. 5.º, n.º 1 do RJRL, não aproveitaria à autora.
O Acórdão recorrido invoca, ainda, em abono da sua tese o art. 60.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M, de 14 de Agosto, que institui o regime aplicável à reparação dos danos emergentes dos acidentes de trabalho e doenças profissionais.
Tal preceito, no seu n.º 2 fere com a nulidade os actos e os contratos que visem a renúncia aos direitos estabelecidos naquele diploma. Ora, nem nos autos está em causa qualquer acidente de trabalho ou doença profissional, nem a quitação operou qualquer renúncia a direitos da autora.
O art. 60.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M é, pois, inaplicável.
Em suma, a autora não tem o direito que invocou, pelo que a acção estava condenada ao insucesso”.
Por esta autorizada posição se vê que a referida declaração, mais consentânea com uma quitação, tal como se pode ler no aresto, implica que o autor/credor nada mais tenha a exigir do devedor, seja qual for a for de composição do salário.
Trata-se, de resto, de uma posição que noutras ocasiões temos já subscrito em recursos de cujos arestos o aqui relator foi adjunto. Veja-se, por exemplo, e por mais recentes, os Acs. do TSI lavrados nos Processos nºs. 318/2010 e 316/2010, ambos de 28/07/2011 e 317/2010, de 6/10/2011,
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O recorrente insiste, no entanto, ainda na nulidade da declaração de fls. 245 (ver facto o) dos factos assentes), por considerar:
a) Que o valor pecuniário ali constante era concedido a título de “prémio de serviço”. Estava convencido, pois, que se tratava de mera liberalidade ou uma compensação extraordinária;
b) Que caso não assinasse a declaração o seu contrato terminaria e não se prolongaria com a SJM. O medo de represálias e de perder o emprego no futuro fê-lo decidir sem liberdade.
c) Que tal declaração implica a perda de direitos inalienáveis fixados por normas imperativas, nomeadamente o art. 33º do DL nº 24/89/M, de 3/04.
Razões (estas e outras que ali desenvolve) para sustentar a nulidade da declaração ou, no mínimo, para que seja decretada a sua anulação por erro-vício (art. 240º do CCM), por erro sobre a base do negócio (art. 245º do CCM)ou por negócio usurário (art. 275º do CCM).
Mas nada disto pode proceder.
Veja-se o que sobre o tema este TSI já asseverou no acórdão datado de 29/09/2011, no Proc. nº 11/2011, o qual por nós foi subscrito como adjunto do relator:
“ …Pretende o recorrente que se tratou de uma renúncia de direitos indisponíveis.
E para tanto invoca a natureza indisponível dos direitos concedidos ao trabalhador, a natureza proteccionista daquele diploma em relação a tais direitos, a necessidade de protecção da parte mais fraca, a posição dominante da concessionária empregadora, a menor margem de liberdade do trabalhador.
Não tem razão o recorrente.
Não obstante ser verdade o que diz quanto à enunciação daqueles princípios, a protecção que deve ser dispensada ao trabalhador não pode ser absoluta nem fazer dele um incapaz sem autonomia e liberdade, ainda que aceitando os condicionamentos específicos decorrentes de uma relação laboral.
É verdade que, desde logo, o RJRL, no seu art. 1°, pugnando pela “observância dos condicionalismos mínimos” nele estabelecidos, prevê que
“O presente diploma define os condicionalismos mínimos que devem ser observados na contratação entre empregadores directos e trabalhadores residentes, para além de outros que se encontrem ou venham a ser estabelecidos em diplomas avulsos.”
E no art. 33º do R.J.R.T.
“O trabalhador não pode ceder, nem a qualquer outro título alienar, a título gratuito ou oneroso, os seus créditos ao salário, salvo a favor de fundo de segurança social, desde que os subsídios por este atribuídos sejam de montante igual ou superior ao dos créditos.”
Daqui decorre que nenhum desses artigos contempla ex professo a situação em apreço. Antes respeitam a situações diferentes, nomeadamente o artigo 33º o que prevê é a impossibilidade de renúncia a um salário e não já às compensações devidas por trabalho indevido.
Tais preceitos dispõem sobre a regulação do exercício de uma relação laboral ainda em aberto, compreendendo-se que por essa via, ao trabalhador sejam garantidos aqueles mínimos que o legislador reputa como as condições mínimas de exercício humano, digno e justo do trabalho a favor de outrem.
Tais cautelas já não são válidas quando finda essa relação, como acontece no caso presente.
E também não são válidas quando já não está em causa o exercício dos direitos, mas apenas uma compensação que mais não é do que a indemnização pelo não gozo de determinados direitos.
Não deixaria de ser abusivo e contrário à autonomia da vontade e liberdade pessoal, próprias do direito privado, que alguém, incluindo o trabalhador, não pudesse ser livre quanto ao destino a dar ao dinheiro recebido, ainda que a título de compensações recebidas por créditos laborais.
A não se entender desta forma, pese embora a aberração do argumento, ter-se-ia de obrigar o trabalhador a aceitar o dinheiro e, mais, importaria seguir o destino que ele lhe daria.
11. Diferentes são as coisas quando o trabalhador está em exercício de funções e a sociedade exige que as condições de trabalho sejam humanas e ignificantes, não se permitindo salários ou condições concretas de exercício vexatórias e achincalhantes, materializando a garantia da sua subsistência e do seu agregado familiar. Essa tem de ser a inspiração do intérprete relativamente ao princípio favor laboratoris, mas que não pode ir ao ponto de converter o trabalhador num incapaz de querer, entender e de se poder e dever determinar.
Nem aquele princípio, consagrado no artigo 5º do mesmo supra citado Regime nos seguintes termos “1. O disposto no presente diploma não prejudica as condições de trabalho mais favoráveis que sejam já observadas e praticadas entre qualquer empregador e os trabalhadores ao seu serviço, seja qual for a fonte dessas condições mais favoráveis. 2. O presente diploma nunca poderá ser entendido ou interpretado no sentido de implicar a redução ou eliminação de condições de trabalho estabelecidas ou observadas entre os empregadores e os trabalhadores, com origem em normas convencionais, em regulamentos de empresa ou em usos e costumes, desde que essas condições de trabalho sejam mais favoráveis do que as consagradas no presente diploma.”, poderá ter o alcance que se pretende, de limitar a capacidade negocial do trabalhador de forma tão extensa.
O princípio do tratamento mais favorável “...assume fundamentalmente o sentido de que as normas jurídico-laborais, mesmo as que não denunciem expressamente o carácter de preceitos limitativos, devem ser em princípio consideradas como tais. O favor laboratoris desempenha pois a função de um prius relativamente ao esforço interpretativo, não se integra nele. É este o sentido em que, segundo supomos, pode apelar-se para a atitude geral de favorecimento do legislador - e não o de todas as normas do direito laboral serem realmente concretizações desse favor e como tais deverem ser aplicadas”
Noutra perspectiva, considera-se que tratamento mais favorável ao trabalhador deve ser entendido em termos actualistas, como o conjunto dos valores que o Direito do Trabalho, de modo adaptado, particularmente defende e entre os quais, naturalmente, avulta a protecção necessária ao trabalhador subordinado. Quando haja um conflito hierárquico entre fontes do Direito do Trabalho, aplicam-se as normas que estabelecem tratamento mais favorável para o trabalhador, sejam elas quais forem; tal não se verificará quando a norma superior tenha uma pretensão de aplicação efectiva, afastando a inferior.
Donde decorre que o princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador não é erigido para sufragar toda e qualquer interpretação que permita o alargamento de uma tutela proteccionista injustificada, tendo antes na sua génese a exclusão de um regime, entre dois ou mais aplicáveis, que lhe seja menos favorável.

(…) Nesta conformidade falece eventual invocação do artigo 6º do RJRL “São, em princípio, admitidos todos os acordos ou convenções estabelecidos entre os empregadores e trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos ainda que disponham de modo diferente do estabelecido na presente lei, desde que da sua aplicação não resultem condições de trabalho menos favoráveis para os trabalhadores do que as que resultariam da aplicação da lei”, tendo-se como condições de trabalho, nos termos do art. 2º, al. d) todo e qualquer direito, dever ou circunstância, relacionados com a conduta e actuação dos empregadores e dos trabalhadores, nas respectivas relações de trabalho, ou nos locais onde o trabalho é prestado.
Isto porque, como se disse, já não se trata de conduta e actuação no local de trabalho e exercício de funções.
Tal é a situação dos autos, em que se mostra cessada a relação laboral e assim se tem entendido em termos de Jurisprudência comparada.

(…) É que não se trata da disponibilidade de direitos, mas sim da compensação pela sua não satisfação. Pelo contrato havido e comprovado, no âmbito do qual foi emitida aquela declaração, as partes acordaram sobre o montante de indemnização ou "compensação" devida ao Autor e, com o recebimento dessa quantia, a correspondente obrigação da Ré, surgida em substituição da obrigação inicial, extinguiu-se pelo pagamento de que o A. deu total quitação, sendo legítima a transacção extrajudicial sobre o conteúdo ou extensão de obrigação da Ré nos termos do artigo 1172º do CC, não abrangida já por qualquer indisponibilidade.

(…) Somos assim, face à caracterização jurídica do acordo celebrado, em considerar que a alegação sobre a vaguidade da declaração de reconhecimento de cumprimento e extinção de toda e qualquer prestação que fosse porventura devida não colhe, face à sua admissibilidade.
Para além de que não se deixaram de concretizar a que título ocorreu o acerto final, quais as compensações a que se procedia, dando-se quitação de todas e eventuais prestações não abrangidas por aquele recebimento.

(…) Sobre a eventual situação de inferioridade e dependência ao assinar o recibo, pelo que, não manifestando qualquer vontade negocial, não tomou uma opção livre e consciente, uma escolha livre no tocante à assinatura da referida declaração, estaríamos perante uma situação de erro vício previsto no artigo 240º do CC, face à indução da conduta pela entidade pública tutelar e viciação da vontade, por temor, face à continuação numa sociedade subsidiária da primeira empregadora.
Ou, noutra perspectiva numa situação de coacção moral ou de negócio usurário contemplados nos artigos 240º e 275º do CC.
Trata-se de matéria não comprovada.

(…) Como por tudo quanto se vem dizendo não há elementos que possam fundamentar um enquadramento em termos de tal declaração ter sido assinada com base em erro sobre a base do negócio ou em qualquer outro erro ou afectação de uma vontade negocial livre e esclarecida”.

O conjunto de argumentos ali expendidos serve perfeitamente para o caso que nos ocupa e, por isso, dele aqui nos apropriamos para rechaçar a tese vertida no recurso a este propósito.
De resto, tudo o que o recorrente invocara na petição inicial da acção, já com esse objectivo de retirar qualquer validade ao documento (“declaração”) por si assinado, acabou por ser vazado na base instrutória, sendo certo também que nenhum dos factos pertinentes e essenciais mereceu resposta positiva (ver resposta aos quesitos 5º, 6º,7º, 8º, 9º, 10º e 11º).
Portanto, o recurso não pode proceder.

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IV - DECISÃO

Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso interposto, assim se confirmando a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.

TSI, 24 / 11 / 2011
José Cândido de Pinho
Choi Mou Pan
Lai Kin Hong
com declaração de voto












Processo nº 794/2010
Declaração de voto de vencido

Vencido nos termos seguintes:

No presente recurso está em causa a questão em relação à qual já tomei posição quando subscrevi, entre os outros congéneres, o Acórdão tirado em 24JUL2008, no processo nº 444/2007 deste TSI, dou assim por integralmente reproduzidos aqui todos os argumentos nele expostos.

De facto, se é certo que, ao abrigo do disposto no artº 854º do Código Civil, o credor pode remitir a dívida por contrato com o devedor, não é menos verdade que existem restrições legais susceptíveis de invalidar o contrato de remissão, mesmo que este tenha sido celebrado de livre vontade entre ambos os contraentes.

Pois, sendo de natureza contratual que é, a remissão não pode deixar de se sujeitar ao regime geral de validade legalmente estabelecido para negócios jurídicos em geral.

Atendendo ao teor do contrato de remissão que se juntou aos autos, verifica-se que, justamente pelo negócio nele documentado, o autor, ora recorrente, abdicou de todos os créditos, ora peticionados na presente acção, alegadamente gerados a seu favor na execução do contrato de trabalho celebrado entre ele e a ré, em troca de um correspectivo, no valor de MOP$26.122,74.

Confrontando-se este valor com o valor da totalidade dos créditos por ele peticionados na presente acção, vê-se logo que essa correspectivo fica muito inferior àquele valor peticionado, que é, pelo menos, MOP$757.383,63, conforme se vê na petição inicial.

Ora, nos termos do disposto no artº 6º do Decreto-Lei nº 24/89/M de 03ABR, interpretado a contrario, não são admitidos acordos ou convenções, estabelecidos entre os empregadores e trabalhadores, dos quais resultam condições de trabalho menos favoráveis para os trabalhadores do que as que resultariam da aplicação da lei.

Da leitura da petição inicial, verifica-se que os créditos pelo autor ora recorrente reivindicados na presente acção são (alegados) créditos a seu favor resultantes do alegado incumprimento por parte da ré do mínimo das condições de trabalho estabelecidas nesse citado Decreto-Lei nº 24/89/M de 03ABR.

E facilmente se nota que o benefício que o “prémio de serviço” representa para o autor é claramente inferior ao benefício que lhe trará se a presente acção vier a ser julgada procedente tal qual como é peticionado.

Olhando sob outro prisma, o que o autor e a ré convencionaram no contrato de remissão traduz-se realmente num acordo sobre remunerações e compensações menos favorável para o autor, em comparação do que está estabelecido de acordo com o mínimo dos critérios legais.

Assim, dada a natureza imperativa da norma do artº 6º desse citado decreto, um contrato mediante o qual se convencionaram as condições de trabalho aquém do mínimo da protecção dos trabalhadores não pode deixar de ser julgado nulo, por força do disposto no artº 287º do Código Civil, nos termos do qual, salvo excepção expressa em contrário resultante da lei, são nulos os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo.

Tipo da situação essa que sucedeu exactamente no caso sub judice.

Contra esse entendimento nem se diga que in casu, com a cessação das relações de trabalho entre o autor e a ré, o objecto do contrato de remissão deixa de ser créditos integrantes das condições de trabalho, uma vez que a lei, ou seja, o citado artº 6º, visa assegurar aos trabalhadores o mínimo das condições de trabalho, nas quais estão naturalmente incluídas, entre outras, as remunerações e compensações a que os trabalhadores têm direito e que, pela própria natureza de prestações pecuniárias, mesmo após a cessação das respectivas relações de trabalho, não se extinguem nem perdem a dignidade da protecção jurídica, por força do princípio da protecção mínima consagrado no artº 6º do mesmo decreto.

Portanto, o facto de terem sido entretanto cessadas as relações de trabalho entre o autor e a ré nunca pode ser invocado como argumento válido para afastar os trabalhadores do âmbito da protecção mínima estabelecida no artº 6º do citado decreto-lei.

Assim, dado que foi celebrado contra uma norma imperativa, ao abrigo do disposto no artº 279º do Código Civil, deve ser declarado nulo o contrato de remissão, ora invocado pela ré como excepção peremptória, e em consequência julgar procedente o presente recurso determinando a revogação da decisão recorrida.

Eis as razões que me levaram a não acompanhar o presente Acórdão.

RAEM, 24NOV2011



O juiz adjunto,


Lai Kin Hong