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Processo nº 340/2009
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 15 de Setembro de 2011

ASSUNTO:
- Aquisição por usucapião
- Artº 7º da Lei Básica

SUMÁRIO:
- Não foi feita prova de o terreno em causa ter a natureza de propriedade privada, ou o seu domínio útil ter integrado naquele regime, o mesmo não é passível de aquisição por usucapião face ao disposto do artº 7º da Lei Básica da RAEM.

O Relator,
Ho Wai Neng

Processo nº 340/2009
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 15 de Setembro de 2011
Recorrente: A (A Autora)
Recorridos: Ministério Público e Interessados Incertos (Os Réus)

ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:

I – Relatório
Por sanedor-sentença de 11/12/2008, decidiu-se julgar improcedente o pedido da Autora, dele absolvendo os Réus.
Dessa decisão vem recorrer a Autora, alegando, em sede de conclusão o seguinte:
1. A Recorrente não se conforma com o despacho-saneador sentença proferido pelo Meritíssimo Juiz "a quo".
2. Que ao abrigo do princípio da economia processual, decidiu conhecer desde logo, do mérito da causa, por considerar que, mesmo que fossem provados todos os factos articulados pela Autora ora Recorrente, a acção não podia deixar de improceder e, finalmente, concluiu decidindo pela inviabilidade do pedido da Autora de ser declarada proprietária plena ou até mesmo proprietária do domínio útil do prédio com o n° 3 do Pátio da Águia em Macau, daí o presente recurso.
3. A recorrente moveu uma acção ordinária junto do Tribunal Judicial de Base, onde a final, pediu para que fosse considerada como única e legitima proprietária do Prédio Urbano com o n° 3, sito em Macau, no Pátio da Águia.
4. O Digno Magistrado do Ministério Público ofereceu a sua contestação, invocou um facto para o qual, apresentou um documento emitido pela Direcção dos Serviços de Finanças, onde é declarado que o prédio objecto dos autos não é foreiro à Fazenda nacional, pelo que, entende a recorrente que tal contestação deveria ser qualificado como sendo de excepção peremptória, e como tal, assisti-lhe o direito de replicar.
5. A recorrente não aceita o entendimento do Tribunal a quo de que "Na contestação do Ministério Público, para além de impugnar factos, limitouse a dar a sua opinião jurídica quanto ao pedido formulado pela A., e nunca chegou a alegar qualquer novo facto pertinente para servir de causa impeditiva, modificativa ou extintiva do direito invocado pela A., pelo que não resta outra solução senão considerar não escritos os artigos 10° a 40° da réplica apresentada pela A..", uma vez que a alegação do facto de que o prédio não era foreiro, com a junção de prova documental para o efeito, não revela uma "simples opinião jurídica quanto ao pedido formulado pela A.",
6. A invocação daquele facto, é sim, a invocação de um facto que pode impedir, modificar ou extinguir o direito de Autora ver reconhecido o seu direito de proprietária plena ou, até poder vir a ser reconhecido o direito sobre o domínio útil daquele prédio.
7. Razão pela qual, o Despacho Saneador Sentença, violou os normativos legais constantes dos n.º 3 do artigo 412°, artigo 415° e alínea a) do n° 1 do artigo 420°, todos do Código de Processo Civil, pelo que, deve a Decisão ora em recurso ser, neste parte, revogada e, assim, ser a Réplica aceite na íntegra, baixado os autos ao Tribunal de Primeira Instância que que este pronuncie, em sede do Despacho Saneador, sobre o referido facto, dando-o como provado ou, inserindo-o na Base Instrutória, seguindo-se os ulteriores termos até final.
8. Mesmo que assim não se entenda, e caso os Venerandos Juízes desse Douto Tribunal de Segunda Instância, não entendam que assistia o direito da Autora replicar, sempre se dirá que a Sentença deve ser considerada nula, à luz do estipulado pela alínea dl do artigo 571º do Código de Processo Civil, uma vez o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo deixou de se pronunciar sobre uma questão sobre a qual deveria se pronunciar, e que é, se o prédio é ou não é foreiro à fazenda Nacional.
9. Isto porque a Autora/recorrente juntou com o seu Articulado Inicial, a Certidão da Sentença que correu termos, no então Tribunal de Competência Genérica de Macau, sob o n° de processo 334/1994 do 2° Juízo Cível e que transitou em julgado no dia 28 de Junho de 1995 (doravante "Sentença") tal como aceite pelo Ministério Público no artigo 15° da Contestação.
10. Apesar de o Digno Ministério Público juntar com a sua contestação, o documento emitido pela Direcção dos Serviços de Finanças afirmando que "nada consta que o prédio sito no Pátio da Águia n° 3 é foreiro à fazenda(...)" o certo é que, no ponto 6 dos factos dados como provados naquela Sentença, consta que a Autora fez "face às despesas de manutenção do prédio, nomeadamente com obras de canalizações e instalações eléctricas, bem como, pagando o respectivo foro e contribuição predial", pelo que, existe nítida contradição entre um documento administrativo e uma sentença judicial transitada em julgado.
11. De acordo com estipulado pelo n° 1 do art. 574º do Código de Processo Civil, "transitada em julgado, a decisão sobre a relação material controvertida tem força obrigatória dentro do processo e fora dele (...)", pelo que, não poderá aquele documento apresentado pelo Ministério Público vir agora a ser valorado para prova daquele artigo 11° da contestação.
12. Assim sendo, e tendo a Autora alegado essa Sentença na sua Petição Inicial e uma vez que a mesma se encontra junto aos autos, e dado que o Ministério Público, contesta apresentado um outro documento contraditório, deveria o Meritíssimo Juiz de Direito, decidir se este facto está ou não provado, o que apenas poderia fazer proferindo Despacho Saneador, dando como provados determinados factos e levando à Base Instrutória, os factos controvertidos, o que não aconteceu.
13. Para além do até aqui dito, a recorrente discorda completamente o afirmado pelo Tribunal a quo na decisão ora em recurso quando afirmou que, "Mesmo que se considerassem como provados todos os fàctos articulados na petição inicial, a acção intentada pela Autora não pode deixar de improceder, pelo que, em prol do princípio da economia processual, conheço já nesta fase processual o mérito da causa, por aplicação analógica do artigo 429º, n° 1, alínea b) do Código de Processo Civil de Macau".
14. Para tal, o Tribunal a quo, fundamentou a sua decisão no estipulado pelos artigos 5°, 6° e 8° da Lei das Terras, pelo artigo 7° da Lei Básica de Macau e pela interpretação que deve ser dada na aplicação do disposto por este artigo 7°, referindo os acórdãos 316/2004 de 17/2/2005, no acórdão n° 245/2005 de 14/7/2005, no acórdão n° 323/2005 de 23/2/2006, todos proferidos pelo Douto Tribunal de Segunda Instância, bem como, no acórdão Do Douto Tribunal de Ultima Instância de 5 de Junho de 2006, com o n° 32/2005.
15. Sucede que, nenhum dos Acórdãos que serviram para fundamentar a decisão ora em recorrida, comporta situações semelhantes as do prédio dos autos, dado que, os prédios objecto daqueles autos, estavam omissos tanto na Conservatória do Registo Predial, como na Matriz Predial, estando apenas as suas confrontações registadas junto dos Serviços de Cartografia e Cadastro de Macau.
16. Ora, de acordo com a prova documental junta ao autos, nomeadamente Certidão do Registo Predial, Certidão Matricial, Certidão emitida pela Direcção do Serviços de Cartografia e Cadastros, pode concluir-se que o referido prédio n° 3 do Pátio da Águia:
* está descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n° 22737, antes de 1999, e está inscrito o direito de mera posse a favor da ora recorrente, através da inscrição n° 2959 do Livro F16L a fls 16, ;
* encontra-se inscrito na matriz predial URBANA sob o artigo nº 32547 a favor da ora recorrente; com o valor de MOP$3,460.00
* está registado junto dos Serviços de Cartografia de Macau, tendo as suas confrontações delimitadas tendo a área de 40 metros quadrados, confrontando a Norte com o Pátio da Águia, a Sul com a Rua de Tomás Vieira, a Este com o Pátio da Águia n° 1 e a Oeste com o Pátio da águia n° 5.
17. Pelo que, o Tribunal a quo ao proferir a decisão no sentido de dar como inviável o pedido da Autora, mesmo que se dessem como provados todos os factos articulados pela Autora na petição inicial, fundamentou aquela decisão erroneamente em acórdãos que em nada se assemelham ao caso dos autos, fazendo assim, uma aplicação errada do direito ao caso em apreço, devendo, como tal ser a decisão revogada.
18. A recorrente, igualmente, não aceita a decisão do Tribunal a quo, no sentido de que, "No fundo, por o prédio não se encontrar legalmente reconhecido, até à data da transferência da soberania, como constituindo propriedade privada de particulares na Região, é inviável o pedido da A. no sentido da aquisição por usucapião do direito de propriedade do prédio em causa, nem que seja de domínio útil",
19. A recorrente, não aceita que, por um lado, não possa ser reconhecido o direito de propriedade plena e, por outro, não aceita que não possa, eventualmente, ser-lhe reconhecido o direito de propriedade sobre o domínio útil, uma vez que, o prédio em questão, já desde 1995, que foi reconhecido que o prédio estava inserido no âmbito da propriedade privada ou do domínio privado da RAEM.
20. Pelo supra referido, pode ser usucapível à luz do direito vigente, bem como, de alguns acórdãos proferidos pelo Tribunal Judicial de Base da RAEM, o direito de propriedade plena, em como poderá ser reconhecido o direito sobre o domínio útil.
21. Com efeito, no entendimento da recorrente, são vários pontos pelos quais se pode afirmar que o prédio com o n° 3 do Pátio da Águia em Macau. já tenha entrada no âmbito do Regime da Propriedade Privada. muito antes de 20 de Dezembro de 1999, pelo que, pode ser usucapível (o direito propriedade plena ou, o direito do domínio útil).
22. Por sentença transitada em julgado a 28 de Junho de 1995 e que correu seus termos sob o n° 334/94 no 2° Juízo do então Tribunal de Competência Genérica de Macau, foi reconhecido JUDICIALMENTE um DIREITO sobre o referido prédio a favor de um particular, in casu, a Autora/recorrente.
23. O direito judicialmente reconhecido foi o de "direito de mera posse", com efeitos, reconhecidos naquela sentença, desde 24 de Abril de 1989 a favor da Autora/recorrente, i.é., muitos anos antes da passagem de soberania em 20 de Dezembro de 1999.
24. O direito foi INSCRITO na Conservatório do Registo Predial, em 1995, isto é, muito anos antes da passagem de soberania, em 20 de Dezembro de 1990.
25. Aquela inscrição registral foi, ab initio, exarada a título definitivo, já que, não foi objecto de nenhuma inscrição provisória ou por dúvidas, nos termos do artigo 59° e segs do Código de Registo Predial.
26. Razão pela qual, ainda hoje, caso um terceiro pretendesse dispor de algum direito sobre aquele prédio, teria sempre que diligenciar no sentido de se proceder à citação da ora Autora, facto que,
27. por um lado, constitui razão suficiente para, por si só, e em termos de puro raciocínio lógico-dedutivo, ver-se reconhecido que o prédio dos Autos, não pode, ser classificado como tendo natureza de terreno vago e,
28. Por outro lado, sempre será de afirmar que existe um direito inscrito na Conservatória do Registo Predial a favor de uma particular.
29. Por seu turno, dever-se-á ver reconhecido por este Douto Tribunal de Segunda Instância que, o prédio em apreço, foi adstrito, ainda antes de 20 de Dezembro de 1999, a uma finalidade privada, pelo que, entrou no âmago do comércio e regime jurídico privado, já que, tal como ficou provado na sentença cuja sentença se encontra junta aos autos, a Autora, desde 1989 que utilizou aquele prédio economicamente, arrendando-o.
30. Com efeito, em 1995, o então Território de Macau, por intermédio dos seus Tribunais, através da prolação de uma Sentença, admitiu que o prédio se encontrava na posse de um particular, in casu, a Autora/recorrente.
31. Desde 1989, foi a Autora/recorrente quem procedeu ao seu aproveitamento económico, colhendo dali frutos civis, já que, sempre foi ela a única que recebeu as rendas sobre aquele.
32. Rendas essas, cobradas a título de arrendamento para habitacão, uma vez que, com efeito, não se trata de um terreno, mas sim, de um prédio urbano composto por r/c e 1º andar, conforme descrição predial e classificação junto dos Serviços de Finanças, bem como, se pode ver reconhecido pelos inúmeros recibos de renda que a Autora/recorrente juntou com a sua Petição Inicial.
33. Pelo exposto, existe um reconhecimento expresso, por parte do Território de Macau, da afectação daquele prédio a uma utilidade e aproveitamento económico por parte de um particular.
34. Reconhecimento esse, por parte do Território de Macau que, não se pode classificar meramente tácito!
35. Pelo contrário, houve um verdadeiro reconhecimento formal, por parte do Território de Macau, perante terceiros, de que era a Autora/recorrente quem detinha aquele prédio.
36. O reconhecimento expresso em sentenca transitada em julgado e formalizado tornou-se patente, a partir do momento que foi concedido à Autora/recorrente a possibilidade de ver nascer na sua esfera jurídica, o direito de requerer o registo do direito de posse a seu favor, com todas as legais consequências jurídicas inerentes que dali advêm para um qualquer possuidor registado na Conservatória do Registo Predial, nomeadamente, o direito de defender judicialmente o direito ali inscrito!
37. Por conseguinte, por intermédio da inscrição da posse no registo predial, a favor da ora Autora, foi declarado expressamente, com fé pública, perante a comunidade em geral que, aquele prédio, estava na posse de um particular e ser utilizado por ele economicamente, pelo menos, desde 1995, sendo que, pela leitura do título que serviu de base àquela inscrição registral, toda a comunidade pode tomar conhecimento de que, é desde 1989, Autora/recorrente a sua única e legítima possuidora!
38. O Ministério Público, enquanto representante do então Território de Macau, não se opôs naquela data, pelo que, não se vislumbra, hoje, como possíveL afirmar que o Território não afectou o prédio a nenhuma utilidade privada se existe um direito inscrito antes de 1989, direito esse· que implica alguém usar um determinado bem como seu fosse!
39. O registo no caso, é um registo definitivo, do um direito que reconhece a utilização por um particular de um determinado bem na sua plenitude, tal como se tratasse de um proprietário, implica o reconhecimento da afectacão a um particular, da existência da posse que, como bem se sabe, é um direito autónoma, com caracteres próprios, susceptível de defesa autónoma pela via judicial, e extrajudicial, previstos nos artigos 1201º e sgs. do Código Civil.
40. Pelo exposto, não pode proceder a posição do Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo, no sentido de declarar aquele prédio como terreno e, muito menos, como terreno vago, uma vez que, ainda antes de 20 de Dezembro de 1999, houve um reconhecimento da afectacão daquele prédio ao domínio de um privado, ora Autora/recorrente, que sobre ele podia dispor como se de verdadeira proprietária se tratasse, reconhecimento esse que, é embebido de fé pública, já que, o registo predial incorpora em si, essa fé.
41. Acresce que, para além do que até aqui se expôs, dispõe o artigo 1175° do Código Civil que, a posse "é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real".
42. O Território de Macau, ao admitir a declaração perante terceiros -através da publicidade conferida pelo registo predial -, de que a Autora era a legal e legítima possuidora do prédio, reconheceu, que o prédio estava a ser utilizado por alguém que actuava, não como mero detentor, mas sim, como se de verdadeiro proprietário se tratasse, uma vez que, ao exercício do "direito de mera posse" corresponde o mesmo tipo actuação que cabe ao "exercício do direito de propriedade".
43. Se assim não fosse, teria o Ministério Público, naquela data, que ter reconhecido apenas o direito de "mera posse sobre o domínio útil".
44. Ora, o Território de Macau, já bem antes de 20 de Dezembro de 1999, permitiu o registo da mera posse e, não apenas, de mera posse sobre o domínio útil.
45. Razão pela qual, o pedido de reconhecimento da propriedade por parte da Autora sobre aquele prédio, em nada ofende o art. 7° da Lei Básica, uma vez que, o Território, reconheceu que aquele prédio estava, e está, sob o regime de propriedade privada.
46. Ao admitir o registo de mera posse sobre aquele prédio, se o Território achasse que era ele, Território de Macau, o seu proprietário, teria então que, também ele ter sido diligente e ter requerido o registo do seu domínio directo ou, em alternativa, ter apenas ter permitido à Autora o reconhecimento da mera posse sobre o domínio útil, não devendo, a Autora, agora, ser penalizada pela inércia do Território naquela data!
47. O pedido da Autora em nada ofende a Lei das Terras, nem o art. 7° da lei Básica e nem tão pouco a Jurisprudência que o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo invocou no Despacho Saneador Sentença, ora em recurso.
48. Ora por todo o exposto até aqui, não restam dúvidas que o direito de registar o direito de mera posse, implica a integração do prédio no regime da propriedade privada, pois que, a posse está integrada no âmbito do REGIME da propriedade privada, pois que é o pilar base para todos os direitos reais previstos no Código Civil, podendo ser defendida pelo seu titular, posse essa, reconhecida que foi, formalmente, antes de 20 de Dezembro de 1999.
49. Ora a ser assim, sempre será de conceber igual possibilidade para o prédio em questão e a recorrente ver reconhecido o seu direito de proprietária plena ou, pelo menos, o direito de ser reconhecida como proprietária do domínio útil.
50. Ora, é entendimento da Autora/recorrente que, basta ser dada a possibilidade para fazer prova de que, a partir de 1995 até hoje, ela continuou a possuir aquele prédio urbano de forma pública, contínua, pacífica de boa-fé com o "animus rem sibi habendi, como se de única e verdadeira proprietária se tratasse, para que, possa ver reconhecido o seu direito de proprietária sobre o mesmo, ou mormente, o direito de sobre o domínio útil.
51. Por todas as razões invocadas, deverá a Sentença proferida pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo, ser revogada, devendo os autos descerem novamente ao Tribunal de Primeira Instância, seguindo-se os ulteriores termos até final, e assim facultando a possibilidade de a Autora, provar a continuidade da sua posse e ver reconhecida o seu direito de propriedade plena do prédio n° 3 do Pátio da Águia em Macau, ou, poder vir a ser reconhecido o direito de propriedade do domínio útil:
52. O Tribunal a quo, ao julgar manifestamente improcedente a pretensão da Autora, ora Recorrente, caiu em erro de interpretação e aplicação da Lei, nomeadamente da própria Lei Básica.
53. O Tribunal a quo violou vários dispositivos legais, nomeadamente,
- os artigos 1175°, 1183°, 1184°, 1185°, 1186°, al. a) do n° 1 do art 1187°, e 1120°, 1212° , 1213° e 1241° do Código Civil;
- o n° 3 do artigo 412°, o artigo 415° e alínea a) do n° 1 do artigo 420°, a alínea b) do n° 1 do artigo 571°, todos do Código de Processo Civi1;os artigos 1°, 5°, 6°, 7° e 8° da Lei n° 6/80/M de 5 de Julho e o artigo 7° da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau.
Pedindo no final que seja revogada a sentença recorrida e ordenada a baixa do processo para que prossiga os seus ulteriores termos.
*
O Ministério Público, ora recorrido, respondeu à motivação do recurso da Autora, nos termos constantes a fls. 174 a 177 dos autos, cujo teor aqui se dá integralmente reproduzido, pugnando pela improcedência do mesmo.
  *
Foram colhidos os vistos legais.

II – Factos
Vêm provados os factos seguintes:
- A autora é uma associação constituída por escritura pública de 24 Abril de 1989 lavrada no Livro de Notas nº. 391-B, a fls. 35, do 1º Cartório Notarial de Macau, publicada no Boletim Oficial nº. 20, de 15 de Maio de 1989 e inscrita na Direcção dos Serviços de Identificação sob o nº 446.
- Por sentença do então Tribunal de Competência Genérica de Macau, de 16/06/1995, proferida no Proc. de Acção Ordinária nº 334/94, do 2º Juízo, foi a Autora declarada como única e legítima possuidora do prédio sito em Macau, com o nº 3 do Pátio da Águia
- A referida sentença transitou em julgado em 28/06/1995.
- Fica registada a favor da Autora a titularidade da mera posse sobre aquele prédio, junto da Conservatória do Registo Predial, sob o n° 22737, através da inscrição nº 2959 do Livro F16L a fls 163.
- Igualmente inscrito na matriz predial sob o nº 32547, a favor da Autora, com o valor de MOP$3,460.00.
- O prédio em referência tem a área de 40 metros quadrados, confrontando a Norte com o Pátio da Águia, a Sul com a Rua de Tomás Vieira, a Este com o Pátio da Águia n° 1 e a oeste com o Pátio da águia n° 5.
- Não se encontra registada a titularidade da propriedade do prédio em causa.

III – Fundamentos
A sentença recorrida tem o seguinte teor:
DESPACHO SANEADOR-SENTENÇA
Vem a Autora(A.) intentar a presente acção ordinária contra o Ministério Público e demais interessados incertos, pedindo que lhe seja reconhecido o direito de propriedade sobre o imóvel sito em Macau, com o nº 3 do Pátio da Águia.
...
*
Salvo o devido respeito por opinião contrária, julgo que mesmo considerassem provados os factos articulados na petição inicial, a acção intentada pela Autora não pode deixar de improceder, pelo que, em prol do princípio da economia processual, conheço já nesta fase processual o mérito da causa, por aplicação analógica do artº 429º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Civil de Macau.
*
O Tribunal é o competente e o processo o próprio.
As partes dispõem de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas.
Não existem outras nulidades, excepções e questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
*
A questão que se coloca é saber se é permitida a aquisição do direito de propriedade do imóvel referido nos autos, a saber, o prédio urbano nº 3 do Pátio da Águia, por usucapião.
Vejamos.
Começamos por fazer uma descrição sumária do regime jurídico dos terrenos de Macau.
Nos termos da Lei nº 6/80/M, de 5 de Julho (doravante designada por Lei de Terras), dispõe-se que “os terrenos de Macau podem distinguir-se em terrenos do domínio público do Território, terrenos do seu domínio privado e terrenos de propriedade privada”.
Ao abrigo do artº 193º, nº 3 do Código Civil de Macau, diz que “são bens do domínio público as estradas, lagoas e cursos de água navegáveis ou flutuáveis, com os respectivos leitos; as camadas aéreas superiores ao território acima do limite reconhecido ao proprietário ou superficiário; os jazigos minerais, as nascentes de água mineromedicionais, as cavidades naturais subterrâneas existentes no subsolo, com excepção das rochas, terras comuns e outros materiais habitualmente, usados na construção; os terrenos e outros bens, com tais classificados em legislação especial”.
Relativamente aos terrenos de propriedade privada, segundo os termos do artº 5º, nº 1 da Lei de Terras, são aqueles “terrenos sobre os quais tenha sido constituído definitivamente um direito de propriedade por outrem que não as pessoas colectivas de direito público”.
Finalmente, usando um critério de exclusão previsto no artº 6º, nº 1 da Lei de Terras, “pertencem ao domínio privado do Território os terrenos que não devam ser considerados de domínio público ou de propriedade privada”.
Assim sendo, só depois de verificar que os terrenos se não integram no domínio público e na propriedade privada é que se permite considerá-los como terrenos pertencentes ao domínio privado do Território.
No âmbito do domínio privado do Território são incluídos ainda os chamados terrenos vagos, que são aqueles que “não tendo entrado definitivamente no regime de propriedade privada ou de domínio público, não tenham ainda sido afectados, a título definitivo, a qualquer finalidade pública ou privada”.
Segundo a versão original do artº 8º da Lei de Terras, era proibida a aquisição por usucapião dos terrenos do domínio público ou do domínio privado da RAEM. Posteriormente, face à nova redacção introduzida nos artigos 5º e 8º da Lei de Terras, passou a consagrar que “o domínio útil de prédio urbano objecto de concessão por aforamento pelo Território é adquirível por usucapião nos termos da lei civil; e não havendo título de aquisição ou registo deste, ou prova do pagamento de foro, relativo a prédio urbano, a sua posse por particular, há mais de vinte anos, faz presumir o seu aforamento pelo Território e que o respectivo domínio útil é adquirível por usucapião nos termos da lei civil”.
A lei faz presumir neste caso a existência de uma situação de aforamento, no sentido de que os terrenos sem título formal de aquisição pertencem ao domínio privado do Território.
No entanto, a partir de 20 de Dezembro de 1999, data da transferência da soberania para a República Popular da China e a consequente entrada em vigor da Lei Básica da RAEM, a situação foi alterada.
Consagra-se no artº 7º da Lei Básica que “os solos e os recursos naturais na Região Administrativa Especial de Macau são propriedade do Estado, salvo os terrenos que sejam reconhecidos, de acordo com a lei, como propriedade privada, antes do estabelecimento de Região Administrativa Especial de Macau...”.
Assim sendo, com a entrada em vigor da referida “mini Constituição”, todos os terrenos passaram a ser propriedade do Estado com excepção daqueles que se integraram e se integram na propriedade privada pertencentes aos particulares, que continuam a ser objecto de protecção.
Pelo que, no que respeita à usucapião do domínio útil previsto no artº 5º da Lei de Terras, tem sido entendido ulteriormente pelo Tribunal de Segunda Instância que tal previsão normativa tem que ser interpretada com o limite temporal da entrada em vigor da Lei Básica, no sentido de que não sendo possível “usucapir” antes do estabelecimento da RAEM em 20 de Dezembro de 1999, i.e., data da entrada em vigor da Lei Básica, não mais será possível adquirí-lo por usucapião a partir dessa data, sob pena de violar o disposto no artº 7º da Lei Básica.
Em suma, com o retorno da soberania, os solos e os recursos naturais da Região Administrativa Especial de Macau passaram a ser propriedade do Estado, salvo os terrenos que sejam reconhecidos, de acordo com a lei, como propriedade privada, antes do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau.
A título de exemplo, cita-se, os Acórdãos do Tribunal de Segunda Instância, de 17/2/2005 (Proc. nº 316/2004), de 14/7/2005 (Proc. nº 245/2005) e de 23/2/2006 (Proc. nº 323/2005).
Também decidiu o TUI, por Acórdão de 5 de Junho de 2006, no Proc. nº 32/2005, que “...sobre a aquisição da propriedade de terrenos na Região, o domínio útil só constitui a excepção prevista no artº 7º da Lei Básica quando for reconhecido legalmente antes do estabelecimento da Região, e assim continua a integrar na esfera de particulares após a sua criação. Se antes desta não conseguisse o reconhecimento legal do domínio útil de terreno, mesmo que a acção destinada a confirmar a titularidade do mesmo domínio por parte de particulares fosse proposta antes do estabelecimento da Região, depois deste nunca pode ser reconhecido por decisão judicial o domínio útil de terrenos”.
Nos presentes autos, a A. vem pedir o reconhecimento do direito de propriedade do prédio em causa, com fundamento no exercício da posse do mesmo por período suficientemente previsto na lei.
Ora, salvo o devido respeito por opinião contrária, julgo que por estar apenas registada a favor da A. a mera posse do prédio referido nos autos, este registo só tem relevância quanto à redução do prazo para efeitos de aquisição por usucapião, nos termos do artº 1220º do Código Civil de Macau, outrora artº 1295º do Código Civil de 1966.
No fundo, por o prédio não se encontrar legalmente reconhecido, até à data da transferência da soberania, como constituindo propriedade privada de particulares na Região, é inviável o pedido da A. no sentido da aquisição por usucapião do direito de propriedade do prédio em causa, nem que seja de domínio útil.
Face aos fundamentos acima expostos, julgo improcedente a acção intentada pela Autora A, e consequentemente, absolvendo os RR. do pedido.
Custas pela Autora.
Registe e notifique.
*
Juiz do Tribunal Judicial de Base da RAEM
Aos 11 de Dezembro de 2008
Não nos afigura a sentença recorrida merecer de qualquer reparação, quer quanto à decisão, quer quanto aos respectivos fundamentos, pelo que ao abrigo do disposto no nº 5 do artº 631º do CPC, é de negar o provimento do presente recurso, remetendo para os fundamentos invocados na decisão impugnada.

IV – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em negar provimento ao recurso da Autora, confirmando a sentença recorrida.

Custas pela Autora.
Notifique e registe.

RAEM, aos 15 de Setembro de 2011.

Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
Lai Kin Hong




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