Proc. nº 317/2010
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 6 de Outubro de 2011
Descritores: Declaração de remissão/quitação
I- A remissão consiste no que é vulgarmente designado por perdão de dívida.
II – A quitação (ou recibo, no caso de obrigação pecuniária) é a declaração do credor, corporizada num documento, de que recebeu a prestação.
III – O reconhecimento negativo de dívida é o negócio pelo qual o possível credor declara vinculativamente, perante a contraparte, que a obrigação não existe.
IV – O reconhecimento negativo da dívida pode ser elemento de uma transacção, se o credor obtém, em troca do reconhecimento, uma concessão; mas não o é, se não se obtém nada em troca, havendo então um contrato de reconhecimento ou fixação unilateral, que se distingue da transacção por não haver concessões recíprocas.
V – A remissão ou quitação de créditos do contrato de trabalho é possível após extinção das relações laborais.
Proc. Nº 317/2010
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I- Relatório
A, com os demais sinais dos autos, moveu acção comum de trabalho contra a STDM pedindo a condenação desta no pagamento de Mop$579.694,00, como compensação pelos descansos semanais, feriados obrigatórios e descansos anuais e licença de maternidade não gozados desde o inicio até ao fim da relação laboral.
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Os autos prosseguiram até ao seu termo na 1ª instância, tendo sido proferida na oportunidade sentença, que julgou totalmente improcedente a acção e absolveu a ré STDM do pedido.
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Desta sentença foi interposto recurso jurisdicional pelo autor, tendo as respectivas alegações terminado com as seguintes conclusões:
1. A sentença sub judice, ao considerar que 10 Hong-Kong dólares (depois 15 Hong-Kong dólares) era a quantia correcta a pagar diariamente em contrapartida de 8 horas de trabalho viola a lei por errada interpretação e aplicação do art. 25º do Decreto-Lei n.º 24/89/M
II. A lei aplicanda estatuia que:
“2. Entende-se por salário toda e qualquer prestação, susceptível de avaliação em dinheiro, seja qual for a sua designação ou forma de cálculo, devida em função da prestação de trabalho e fixada ou por acordo entre empregador e trabalhador, ou por regulamento ou norma convencional ou por norma legal.” (realçado nosso)
III. O Tribunal a quo, estribando-se em Jurisprudência superior, interpretou erroneamente o normativo supra identificado e considerou que o ora Recorrente se deveria sentir pago da violação ao seu direitro ao descanso através de uma quantia calculada pela base de uma mísera dezena de patacas....
IV. Ou seja, o Tribunal a quo entendeu que as quantias recebidas durante anos, de forma regular, em quantia calculada em função do trabalho e da categoria profissional, não tinham qualquer relevância na caracterização das mesmas como partes componentes do salário, erroneamente, salvo o devido respeito.
V. Ora, no caso sub judice, acontecia que o trabalhador recebeu durante anos um salário que variava meramente em função das faltas ao trabalho, salário esse que era conforme a categoria profissional do trabalhador, este não distinguia a proveniência do dinheiro pago (se era do património da Recorrida se era proveniente de gorjetas), o salário pago pela Recorrida nunca foi equivalente a HKD10,00, o Recorrente nunca teve qualquer redução ou aumento de salário em função da variação das gorjetas, o Recorrente nunca foi havido ou achado no recebimento ou distribuição de gorjetas....
VI. Ou seja, o que o Recorrente sabe é que no seu caso concreto existia um “Outro aspecto a que não podemos deixar de referir é que as gorjetas eram distribuídas pela entidade patronal segundo um critério por esta fixado por todos os trabalhadores da Ré e não apenas pelos que tinham contacto directo com os clientes nas salas de jogo, consoante a respectiva categoria, tempo de serviço e departamento em que trabalhavam.” (TSI, 254/2009)
VII. E, por outro lado, a Jurisprudência também é clara ao ensinar de forma perene que:
“Podem ainda as vezes as partes, pelos usos e costumes, admitir tacitamente as condições acessórias até essenciais acerca do pagamento do salário, “quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam” (artigo 209º nº 1 do Código Civil).
Por outro lado, a lei não exige para a retribuição ou salário uma certa designação e uma certa forma de cálculo, permitindo qualquer das denominações e qualquer das formas de cálculo, desde que os montantes recebidos pelo Trabalhador sejam susceptíveis integrar o salário ou retribuição.
Isto se traduz que não é relevante a denominação do salário ou o título dos seus elementos componentes. O que é determinante para ser salário é a natureza dos montantes recebidas pelo trabalhador e as condições acordadas acerca da fixação e do cálculo da sua prestação. (Acórdão deste TSI de 12 de Dezembro de 2002 do processo nº 123/2002)
VIII. A pretensa vexata quaestio referida na sentença recorrida (“As gorjetas fazem ou não parte do salário?”) não é real porquanto se assemelha àquele que “....num quarto escuro (pintado de preto) se dedica a procurar um gato preto que não existe ...”; de facto, tem sido um falso problema inventado pela Recorrida (STDM) em que, infelizmente, alguma boa gente tem sido ludibriada e, desse modo, perdido tempo à procura do fantástico gato preto...
IX. O Tribunal a quo deveria ter interpretado e aplicado o art. 25º do Decreto-Lei n.º 24/89/M de forma a abranger todas as quantias recebidas regularmente pelo ora Recorrente que eram pagas pela Recorrida em função do trabalho e da categoria do trabalhador.
X. E, consequentemente, ter calculado o valor da indemnização do direito ao descanso em função do salário efectivamente pago pela STDM aos seus trabalhadores.
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Em contra-alegações a STDM sintetizou da seguinte maneira a sua posição:
1 - Com todo o respeito por entendimento diverso, as gratificações ou gorjetas recebidas dos clientes pelos empregados de casino não fazem parte do salário.
2 - A retribuição ou salário, em sentido jurídico (laboral), encerra quatro elementos essenciais e cumulativos:
i. É uma prestação regular e periódica;
ii. Em dinheiro ou em espécie;
iii. A que o trabalhador tem direito por título contratual e normativo e que corresponde a um dever jurídico da entidade patronal;
iv. Como contrapartida pelo seu trabalho.
3 - No caso dos autos, estando em causa gorjetas comprovadamente oferecidas por clientes de casino, dependendo o seu recebimento do animus donandi de terceiros, estranhos à relação jurídico-laboral, nunca poderia o(a) trabalhador(a) ter exigido à sua entidade empregadora o seu pagamento inexistindo aquela oferta por parte dos clientes.
4 - Se, por hipótese, em determinado mês, não existissem quaisquer gorjetas entregues pelos clientes da Recorrida a distribuir pelo(a) A., ora Recorrente, e restantes trabalhadores, nenhum dever jurídico impendia sobre a Recorrida no sentido de suprir aquela falta e nenhum direito de crédito podiam os seus trabalhadores exigir a este respeito.
5 - Com efeito, é sabido que em anos em que o montante das gorjetas era inferior ao do ano anterior (variação que se constata pela análise dos rendimentos do(a) A., ora Recorrente), nunca o Recorrente reclamou da ora Recorrida o seu pagamento.
6 - O Recorrente sabia que a parte do rendimento respeitante às gorjetas dependia exclusivamente das liberalidades dos clientes de casino, nada podendo exigir à ora Recorrida a esse título caso essa parte do seu rendimento fosse zero.
7 - Dispõe o artigo 25º, n.º I do RJRT que “Pela prestação dos seus serviços ou actividade laboral, os trabalhadores têm direito a um salário justo.”.
8 - Salvo o devido respeito por opinião contrária, analisando a certidão de rendimentos do(a) Recorrente, não se pode dizer que ao(à) A. não foi proporcionado um rendimento justo, maxime porque os rendimentos globais auferidos eram claramente superiores à média do rendimento / remuneração auferida por cidadãos de Macau com formação académica e profissional equivalente às suas que não trabalhassem em casino, os quais eram mais que bastantes para prover a uma vida digna e decente do(a) Recorrente e sua família.
9 - Deste modo, na esteira do entendimento do mais Alto Tribunal da RAEM, do douto tribunal Recorrido e, bem assim, da doutrina maioritária, entendemos que “As gratificações ou gorjetas recebidas pelos empregados de casino dos clientes não fazem parte do salário.”
10 - Admitindo a Recorrida, apenas por cautela e por hipótese, que de forma alguma se concede, a obrigação de indemnizar o Recorrente tendo em conta o valor das gorjetas oferecidas pelos clientes de casino, devem ser as seguintes as fórmulas aplicáveis para aferir das compensações adicionais devidas:
i. Trabalho prestado em dias de descanso semanal:
a. Decreto-Lei n.º 101/84/M: salário diário x0 (e não x1, porque uma parcela já foi paga);
b. Decreto-Lei n.º 24/89/M: salário diário x1 (e não x2, porque uma parcela já foi paga);
c. Decreto-Lei n.º 32/90/M: salário diário x0 (e não x1, porque uma parcela já foi paga).
ii. Trabalho prestado em dias de descanso anual:
a. Decreto-Lei n.º 101/84/M: salário diário x0 (e não x1, porque uma parcela já foi paga);
b. Decreto-Lei n.º 24/89/M: salário diário x1 (e não x3, porque uma parcela já foi paga e a R. não impediu o(a) A. de gozar quaisquer dias de descanso);
c. Decreto-Lei n.º 32/90/M: salário diário x1 (e não x3, porque uma parcela já foi paga e a R. não impediu o(a) A. de gozar quaisquer dias de descanso).
iii. Trabalho prestado em dias de feriado obrigatório:
a. Decreto-Lei n.º 101/84/M: salário diário x0 (e não x1, porque uma parcela já foi paga);
b. Decreto-Lei n.º 24/89/M: salário diário x1 (e não x2, porque uma parcela já foi paga);
c. Decreto-Lei n.º 32/90/M: salário diário x1 (e não x2 porque uma parcela já foi paga).
11 - Caso se entenda que as fórmulas supra expostas não são adequadas para o cálculo de uma indemnização eventualmente devida à Recorrente, remete-se para as fórmulas adoptadas nos já referidos acórdãos do Tribunal de Última Instância, proferidos no âmbito dos Processos n.ºs 28/2007, 29/2007 e 58/2007, datados de 21 de Setembro de 2007, 22 de Novembro de 2007 e 27 de Fevereiro de 2008, respectivamente.
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A STDM apresentou ainda recurso subordinado (fls. 284 e sgs.), que continha a s seguintes conclusões:
1. Sem prejuízo de melhor entendimento e Juízo, deve improceder o recurso principal já interposto pelo A. e aqui Recorrido Subordinado, mantendo-se a douta Sentença recorrida, que absolveu integralmente a Ré e Recorrente Subordinada do(s) pedido(s) do mesmo.
2. Ainda que, a Sentença, doutamente, tenha decidido por uma forma e ordem distinta do requerido pela R./Recorrente Subordinada.
3. O fundamento do presente recurso subordinado prende-se com a pretensão da Recorrente de ser absolvida pela procedência da primeira excepção peremptória deduzida no Documento n.º 1 da Contestação e pelo teor extintivo da mesma,
4. E, não, apenas, pelo facto de o montante constante na referida Declaração de remissão ou de pagamento e pago ao Autor e aqui Recorrido Subordinado ser superior ao valor doutamente decretado pela Sentença recorrida, que é de HKD$ 12,695.00;
5. Em face do teor do aludido documento. n.º 1 da Contestação e da Declaração, e bem assim, na Matéria assente;
6. Tendo em vista o valor pago de MOP$ 22.502,18, em 18 de Março de 2003 ao Autor, ora Recorrido Subordinado.
7. Ou seja, salvo mais douto Juízo e entendimento e melhor opinião, primeiro deveria o Tribunal recorrido ter conhecido da primeira excepção deduzida pela Ré e aqui Recorrente Subordinada (denominada pela Ré como, “Da Remissão de Créditos celebrada pelo A.”),
8. E, apenas depois, ao eventual direito e procedência ou improcedência dos pedidos do Autor/Recorrido subordinado, peticionados e reclamados na sua douta P. I.,
9. Porque as excepções peremptórias ou materiais ou substantivas, “importam a absolvição total ou parcial do pedido e consistem na invocação de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor.” - cfr. artigos 412º e 415º, ambos do CPC.
10. Assim, requer-se o conhecimento do mérito ou do demérito e da validade ou procedência da excepção deduzida pela Ré e Recorrente Subordinada nos artigos 17º a 38º da Contestação,
11. Evitando o caso julgado e o trânsito em Julgado da questão aqui levantada no presente recurso,
12. Conhecendo-se do teor da Declaração junta como documento número 1 da Contestação e nestes autos assente na Especificação do processo laboral.
13. Conhecendo primeiro a excepção e apenas depois os direitos do A., que já recorreu da douta Sentença em 21 de Setembro de 2009 para o Mmo. Tribunal ad quem, da douta Sentença proferida em 4 de Setembro de 2009.
14. Ainda assim, sendo esta questão levantada pela Recorrente Subordinada, requer-se a V. Exas o seu conhecimento e fazendo sempre, a costumada e habitual Justiça.
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Este recurso subordinado, por não ter sido recebido (fls. 313), deu origem a uma reclamação para o Presidente do TSI, que a julgou improcedente, embora ordenando a sua convolação para o requerimento a que alude o art. 590º, nº1 do CPC e, assim, determinando que o recurso passe a fazer parte das contra-alegações apresentadas de forma a se tomar conhecimento do tema no âmbito do recurso interposto pelo autor.
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Cumpre decidir.
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II- Os Factos
A sentença deu por provada a seguinte factualidade:
1. O Autor começou a trabalhar para a Ré no dia 11 de Julho de 1992, tendo cessado o contrato em 23.07.2002.
2. No decurso da relação contratual existente entre o Autor e a Ré, esta última entregava ao Autor uma quantia de valor fixo e outra quantia de valor variável.
3. A quantia variável entregue pela Ré ao Autor era composta pelo dinheiro recebido dos clientes do casino, designado por “gorjetas”, distribuídas em função da respectiva categoria profissional.
4.Os dias de descanso que, ao longo da vigência da relação contratual entre as partes, o Autor teria direito a gozar não eram remunerados.
5. A quantia fixa diária entregue pela Ré ao Autor foi de HKD 10,00 desde o início da relação contratual até 30.04.1995 e de HKD 15,00 desde 1.05.1995 até ao final.
6. O Autor auferiu as seguintes quantias por ano:
- em 1992 MOP$ 34.444,00
- em 1993 MOP$ 119.693,00
- em 1994 MOP$ 137.942,00
- em 1995 MOP$ 142.327,00
- em 1996 MOP$ 168.677,00
- em 1997 MOP$ 175.168,00
- em 1998 MOP$ 179.438,00
- em 1999 MOP$ 153.122,00
- em 2000 MOP$ 154.418,00
- em 2001 MOP$ 168.070,00
- em 2002 MOP$ 188.863,00
7. O Autor recebeu o ofício da DSTE constante de fls. 17 dos autos, dirigiu-se aos aludidos serviços e recebeu a quantia ali referida de MOP$ 11.251,09.
8. A 18.03.2003 o Autor declarou ter recebido da aqui Ré a quantia de MOP$ 22.502,18 “referente ao pagamento de compensação extraordinária de eventuais direitos relativos a descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, eventual licença de maternidade e rescisão por acordo do contrato do trabalho decorrentes do vínculo laboral com a STDM conforme documento a fls. 118 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido.
9. O Autor recebeu a quantia antes referida.
10. Ré sempre entregou, regular e periodicamente, ao Autor as “gratificações”.
11. Que sempre teve a expectativa do seu recebimento com continuidade.
12. O Autor nunca recebeu da Ré quaisquer quantias pelos dias em que não prestou trabalho efectivo e pelos dias em que o prestou recebeu apenas o constante das alíneas B, C, e E) dos factos assentes.
13. O Autor só não trabalhou nos dias que requereu à Ré para não o fazer e esta deferiu o seu pedido.
14. Autor e Ré acordaram que aquele apenas receberia desta os quantitativos referidos em B), C) e E) dos factos assentes, e só estes, pelos dias em que prestasse trabalho efectivo e que se o Autor quisesse gozar tempos de descanso deveria requerer previamente à Ré, podendo esta recusar ou deferir.
15. As gorjetas oferecidas a cada um dos colaboradores da Ré pelos clientes dos casinos eram reunidas e contabilizadas diariamente por um grupo variável de pessoas, do qual fazia parte um funcionário do Departamento de Inspecção de Jogos, um membro do departamento da tesouraria da Ré e um ou mais trabalhadores da Ré e que tais gorjetas eram distribuídas em cada 10 dias pela Ré aos seus trabalhadores.
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III- O Direito
A sentença recorrida, no pressuposto declarado que do salário não faziam parte as gorjetas que o trabalhador recebia, concluiu que os créditos emergentes do contrato de trabalho que o unia à STDM atingiam a soma de HK$ 12.695,00. Mas, considerando que o recorrente/autor tinha já recebido da entidade patronal, já depois da cessação da relação laboral, a quantia de Mop$ 22.502,18, entendeu que nada mais tinha a receber. E, portanto, absolveu a ré do pedido.
Ora, o que o M.mo juiz parece ter feito, com aquele juízo, foi simplesmente uma operação de tipo compensatório. Mas, a verdade é que, para além disso, haveria que analisar a declaração de fls. 118 e extrair dela as pertinentes consequências, nomeadamente apurar se ela, efectivamente, tinha a capacidade exceptiva de surtir efeitos remissivos ou quitativos, tal como foi intenção da STDM ao invocá-la na contestação. É que se não a tivesse, então um eventual provimento do recurso do autor com a revogação da sentença na parte referente à composição do salário do trabalhador, na medida em que engrossaria vastamente o montante indemnizatório, poderia levar a um dano à esfera da excepcionante acaso não fosse recebido o recurso subordinado (como não foi) ou acaso a sua pretensão não fosse levada à conta de um alargamento das questões decidendas sob o império do art. 590º, nº1 do CPC (como, efectivamente, foi).
Por essa razão, o conhecimento da matéria exceptiva em apreço apresenta-se-nos como prioritário, na medida em que, consoante o resultado da análise, assim a apreciação do recurso do autor pode ficar totalmente prejudicada.
Apreciemos, pois, a matéria da excepção, o mesmo é dizer, a questão emergente da declaração de fls. 118.
Para tanto, sirvamo-nos, com a devida vénia, do texto de um acórdão do TUI lavrado no Processo nº 27/2008, em 30/07/2008, com o qual concordamos e que, por essa razão, aqui fazemos nosso, transcrevendo-o:
“A remissão é o contrato pelo qual o credor, “com a aquiescência do devedor”, renuncia ao poder de exigir a prestação devida, afastando definitivamente da sua esfera jurídica os instrumentos de tutela do seu interesse”1.
E acrescenta ANTUNES VARELA, “o interesse do credor a que a obrigação se encontra adstrita não chega a ser satisfeito, nem sequer indirecta ou potencialmente.
A obrigação extingue-se sem haver lugar a prestação2”.
A remissão consiste no que é vulgarmente designado por perdão de dívida3.
Aliás, remitir significa perdoar.
Ora, não parece ter sido isto que sucedeu, em face da declaração da autora.
A autora declarou que recebeu a prestação, que quantificou. E reconheceu mais nada ser devido em relação à relação laboral que já se tinha extinguido.
Mas não quis perdoar a totalidade ou mesmo parte da dívida, ou pelo menos não é isso que resulta da declaração, nem foi alegado ter sido essa a sua intenção.
Parece, portanto, tratar-se de quitação ou recibo, que é a declaração do credor, corporizada num documento, de que recebeu a prestação, prevista no art. 776.º do Código Civil.
Explicam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA4 que a “quitação é muitas vezes, como Carbonnier (Droit civil, 4, 1982, n.º 129, pág. 538) justamente observa, não uma simples declaração de recebimento da prestação, mas a ampla declaração de que o solvens já nada deve ao accipiens, seja a título do crédito extinto, seja a qualquer outro título (quittance pour solde de tout compte)”.
Poderá, desta maneira, a quitação, ser acompanhada de reconhecimento negativo de dívida, que é, na lição de ANTUNES VARELA5, o negócio “pelo qual o possível credor declara vinculativamente, perante a contraparte, que a obrigação não existe.
...
O reconhecimento negativo de dívida, assente sobre a convicção (declarada) da inexistência da obrigação, não se confunde com a remissão, que é a perda voluntária dum direito de crédito existente”.
Claro que o reconhecimento negativo da dívida pode dissimular uma remissão, mas para isso há que alegar e provar o facto, o que não aconteceu.
Explica VAZ SERRA6 nos trabalhos preparatórios do Código Civil de 1966, que “o reconhecimento negativo propriamente dito distingue-se da remissão, pois, ao passo que, nesta, existe apenas a vontade de remitir (isto é, de abandonar o crédito), naquele, a vontade é a de pôr termo a um estado de incerteza acerca da existência do crédito”.
E, como ensina o mesmo autor, noutra obra dos mesmos trabalhos preparatórios, a remissão não é de presumir, “dado que, em regra, a quitação não é passada com essa finalidade”7.
O reconhecimento negativo da dívida pode, de outra banda, “ser elemento de uma transacção, se o credor obtém, em troca do reconhecimento, uma concessão; mas não o é, se não se obtém nada em troca, havendo então um contrato de reconhecimento ou fixação unilateral, que se distingue da transacção por não haver concessões recíprocas”8 9.
Mas a transacção preventiva ou extrajudicial não dispensa “uma controvérsia entre as partes, como base ou fundamento de um litígio eventual ou futuro: uma há-de afirmar a juridicidade de certa pretensão, e a outra negá-la”10.
Mas nem da declaração escrita, nem das alegações das partes no processo, resulta tal controvérsia.
Em conclusão, afigura-se-nos mais preciso qualificar a declaração da autora como uma quitação acompanhada de reconhecimento negativo de dívida.
Seja como for, trate-se de quitação, de remissão ou de transacção, os efeitos são semelhantes, já que, como se verá, se está perante direitos disponíveis, uma vez que a relação laboral já havia cessado, pelo que a consequência é a inexistência do direito de crédito contra a ré.
4. Insusceptibilidade de cessão de crédito de salário. Impossibilidade de renúncia a salário. Vícios da vontade
Nas alegações de recurso para o TSI, a autora veio defender que o art. 33.º do RJRL não permite a cedência de créditos, por força do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador. E os trabalhadores estiveram sempre sob alçada económica e disciplinar da ré, já que a B controla a C, pelo que a autora não teve uma vontade livre e esclarecida quando assinaram as declarações.
Mas a declaração de quitação não constitui qualquer cedência de créditos (a quem?).
Acresce que a cedência de créditos só está vedada enquanto durar a relação de trabalho e esta já se tinha extinguido quando foi emitida a quitação.
Por outro lado, ainda que tivesse havido renúncia a créditos, ou seja remissão, ela seria possível porque efectuada após extinção da relação de trabalho.
É o que defende a generalidade da doutrina. Escreve PEDRO ROMANO MARTINEZ11:
“Relacionada com a irredutibilidade12 encontra-se a impossibilidade de renúncia, de cessão, de compensação e de penhora da retribuição. Estas limitações, excepção feita à penhora, só têm sentido na pendência da relação laboral; cessando a subordinação jurídica, o trabalhador deixa de estar numa situação de dependência, que justifica a tutela por via destas limitações”.
Quanto à alegação de que a autora não teve uma vontade livre e esclarecida quando assinou a declaração, a mesma é irrelevante nesta fase, já que a autora não alegou no momento próprio factos integradores de vícios da vontade.
5. Normas convencionais e declarações negociais. O princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador
O Acórdão recorrido considerou que o art. 6.º do RJRL não permitia o acordo das partes pelo qual a autora, trabalhadora, declarasse remitir a dívida para com a ré, tendo esta declaração violado o princípio de tratamento mais favorável dos trabalhadores.
E acrescentou o mesmo Acórdão, referindo-se ao princípio de tratamento mais favorável, ele “deve ser tido pelo menos também como farol de interpretação da lei laboral, sob o qual o intérprete-aplicador do direito deve escolher, na dúvida, o sentido ou solução que mais favorável se mostre aos trabalhadores no caso considerado, em virtude do objectivo de protecção do trabalhador que o Direito do Trabalho visa prosseguir”.
Na feliz síntese de BERNARDO LOBO XAVIER13 “o princípio do tratamento mais favorável, no plano da hierarquia das normas, significa que as normas de mais alto grau valem como estabelecendo mínimos, podendo ser derrogadas por outras subalternas, desde que mais favoráveis para o trabalhador. No plano da interpretação, na dúvida sobre o sentido da lei, deverá eleger-se aquele que seja mais benéfico para o trabalhador. Na aplicação no tempo, aplicar-se-ão imediatamente todas as regras do trabalho, no pressuposto de que, havendo um constante progresso social, as novas normas são mais favoráveis para o trabalhador, conservando este, ainda, as regalias adquiridas à sombra de anterior legislação”.
O art. 6.º do RJRL dispõe o seguinte:
“Artigo 6.º
Prevalência de regimes convencionais São, em princípio, admitidos todos os acordos ou convenções estabelecidos entre os empregadores e trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos ainda que disponham de modo diferente do estabelecido na presente lei, desde que da sua aplicação não resultem condições de trabalho menos favoráveis para os trabalhadores do que as que resultariam da aplicação da lei”.
Esta norma prevê que as normas convencionais, estipuladas entre empregadores e trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos, podem afastar o regime das normas legais desde que o regime convencional não seja menos favorável para os trabalhadores do que o regime legal.
Assim, e em primeiro lugar, as normas convencionais de que fala o preceito são normas relativas ao regime do trabalho, para vigorarem enquanto durar a relação laboral.
O acordo dos autos entre a autora e a antiga entidade patronal não é integrado por normas, isto é, não constituem nenhuma regulamentação normativa atinente às condições de trabalho. São antes declarações negociais, pelas quais a autora declara ter recebido as quantias devidas pela relação laboral já extinta e nada mais ter a receber da antiga entidade patronal.
Parece, portanto, que o art. 6.º do RJRL nada tem que ver com a matéria em apreço.
Por outro lado, o art. 6.º do RJRL prescreve, na verdade, o princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, no que respeita à prevalência dos acordos sobre a lei, ao plano da hierarquia das normas.
Mas, no caso dos autos, embora exista um acordo entre partes (entre um ex-trabalhador e uma ex-entidade patronal) não existe nenhuma lei mais favorável ou menos favorável aos trabalhadores ou a ex-trabalhadores, pelo que não se vislumbra, qualquer aplicação do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, na vertente que o art. 6.º do RJRL consagra, que é o da prevalência dos acordos sobre a lei.
Há, é certo, outras vertentes do mesmo princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, por exemplo, no art. 5.º, n.º 1 do RJRL, que é o da manutenção das regalias adquiridas sobre o regime constante do RJRL.
Mas, no caso em apreço não está em causa nenhuma alteração de regime convencional para um regime legal, pelo que a vertente do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, constante do art. 5.º, n.º 1 do RJRL, não aproveitaria à autora.
O Acórdão recorrido invoca, ainda, em abono da sua tese o art. 60.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M, de 14 de Agosto, que institui o regime aplicável à reparação dos danos emergentes dos acidentes de trabalho e doenças profissionais.
Tal preceito, no seu n.º 2 fere com a nulidade os actos e os contratos que visem a renúncia aos direitos estabelecidos naquele diploma. Ora, nem nos autos está em causa qualquer acidente de trabalho ou doença profissional, nem a quitação operou qualquer renúncia a direitos da autora.
O art. 60.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M é, pois, inaplicável.
Em suma, a autora não tem o direito que invocou, pelo que a acção estava condenada ao insucesso”.
Por esta autorizada posição se vê que a referida declaração, mais consentânea com uma quitação, tal como se pode ler no aresto, implica que o autor/credor nada mais tenha a exigir do devedor, seja qual for a for de composição do salário (questão que haveria de discutir-se no recurso do então autor).
Trata-se, de resto, de uma posição que noutras ocasiões temos já subscrito em recursos de cujos arestos o aqui relator foi adjunto. Veja-se, por exemplo, e por mais recentes, os Acs. do TSI lavrados nos Processos nºs. 318/2010 e 316/2010, ambos de 28/07/2011.
E como esta conclusão torna inútil, por prejudicado, o recurso principal, não o poderemos apreciar.
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IV- Decidindo
Nos termos expostos, acordam em conceder provimento ao pedido ampliado no recurso interposto, julgando procedente a excepção relativa à quitação dos créditos reclamados pelo autor A e, por via disso, absolver a ré STDM do pedido de todos os créditos formulados na acção.
Custas do recurso por A.
TSI, 06 / 10 / 2011.
José Cândido de Pinho
Choi Mou Pan
Lai Kin Hong (com declaração de voto)
Processo nº 317/2010
Declaração de voto de vencido
Vencido nos termos seguintes:
No presente recurso está em causa a questão em relação à qual já tomei posição quando subscrevi, entre os outros congéneres tirados nos últimos tempos, o Acórdão tirado em 24JUL2008, no processo nº 444/2007 deste TSI, dou assim por integralmente reproduzidos aqui todos os argumentos nele expostos.
De facto, se é certo que, ao abrigo do disposto no artº 854º do Código Civil, o credor pode remitir a dívida por contrato com o devedor, não é menos verdade que existem restrições legais susceptíveis de invalidar o contrato de remissão, mesmo que este tenha sido celebrado de livre vontade entre ambos os contraentes.
Pois, sendo de natureza contratual que é, a remissão não pode deixar de se sujeitar ao regime geral de validade legalmente estabelecido para negõcios jurídicos em geral.
Atendendo ao teor do contrato de remissão que se juntou aos autos, verifica-se que, justamente pelo negócio nele documentado, o autor, ora recorrente, abdicou de todos os créditos, ora peticionados na presente acção, alegadamente gerados a seu favor na execução do contrato de trabalho celebrado entre ele e a ré, em troca de um correspectivo, que se denomina “Prémio de seviço”, no valor de MOP$22,502.18.
Confrontando-se este valor com o valor da totalidade dos créditos por ele peticionados na presente acção, vê-se logo que esse “prémio de serviço” fica muitoinferior àquele valor peticionado, que é MOP$579.694.00, conforme se vê na petição inicial.
Ora, nos termos do disposto no artº 6º do Decreto-Lei nº 24/89/M de 03ABR, interpretado a contrario, não são admitidos acordos ou convenções, estabelecidos entre os empregadores e trabalhadores, dos quais resultam condições de trabalho menos favoráveis para os trabalhadores do que as que resultariam da aplicação da lei.
Da leitura da petição inicial, verifica-se que os créditos pelo autor ora recorrente reivindicados na presente acção são (alegados) créditos a seu favor resultantes do alegado incumprimento por parte da ré do mínimo das condições de trabalho estabelecidas nesse citado Decreto-Lei nº 24/89/M de 03ABR.
E facilmente se not que o benefício que o “prémio de serviço” representa para o autor é claramente inferior ao benefício que lhe trará se a presente acção vier a ser julgada procedente talqual como é peticionado.
Olhando sob outro prisma, o que o autor e a ré convencionaram no contrato se remissão traduz-se realmente num acordo sobre remunerações e compensações menos favorável para o autor, em comparação do que está estabelecido de acordo com o mínimo dos critérios legais.
Assim, dada a natureza imperativa da norma do artº 6º desse citado decreto, um contrato mediante o qual se convencionaram as condições de trabalho aquém do mínimo da protecção dos trabalhadores não pode deixar de ser julgado nulo, por força do disposto no artº 287º do Código Civil, nos termos do qual, salvo excepção expressa em contrário resultante da lei, são nulos os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo.
Tipo da situação essa que sucedeu exactamente no caso sub judice.
Contra esse entendimento nem se diga que in casu, com a cessação das relações de trabalho entre o autor e a ré, o objecto do contrato de remissão deixa de ser créditos integrantes das condições de trabalho, uma vez que a lei, ou seja, o citado artº 6º, visa assegurar aos trabalhadores o mínimo das condições de trabalho, nas quais estão naturalmente incluídas, entre outras, as remunerações e compensações a que os trabalhadores têm direito e que, pela própria natureza de prestações pecuniárias, mesmo após a cessação das respectivas relações de trabalho, não se extinguem nem perdem a dignidade da protecção jurídica, por força do princípio da protecção mínima consagrado no artº 6º do mesmo decreto.
Portanto, o facto de terem sido entretanto cessadas as relações de trabalho entre o autor e a ré nunca pode ser invocado como argumento válido para afastar os trabalhadores do ãmbito da protecção mínima estabelecida no artº 6º do citado decreto-lei.
Assim, dado que foi celebrado contra uma norma imperativa, ao abrigo do disposto no artº 279º do Código Civil, deve ser declarado nulo o contrato de remissão, ora invocado pela ré como excepção peremptória, e em consequência julgar procedente o presente recurso determinando a revogação da decisão recorrida.
Eis as razões que me levaram a não acompanhar o presente Acórdão.
RAEM, 06OUT2011
O juiz adjunto,
Lai Kin Hong.